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SANGUE DE PANTERA

Jacques Tourneur, Cat People, EUA, 1942

Simone Simon morreu dia 22 de fevereiro de 2005, com


pouca ou nenhuma atenção para o fato. Inútil dizer como
justificativa que ela mesma abandonou sua carreira em
meados dos anos 50, depois de duas pérolas com Max
Ophüls, já tendo anteriormente feito filmes com William
Dieterle, Allan Dwan e Jean Renoir (A Besta Humana):
para qualquer um que já assistiu a algum desses filmes – e
em todo caso é este Sangue de Pantera que toma a
primazia da memória, sem dúvida –, esse rosto tornou-se
inesquecível para quem o viu mesmo por uma única vez.
Uma beleza estranha, irradiada menos do equilíbrio dos
traços do que de uma espécie de sinuosidade viciosa, um
rosto pecaminoso em si, apesar de si mesmo, do qual
Jacques Tourneur consegue retirar todas as suas
potencialidades. Pois é em torno de sexualidade e
repressão feminina que gira e evolui a história de Sangue
de Pantera, e assim segue o percurso do rosto de Simone
Simon.

Primeiro fotograma: começo do filme, ela desenha uma


pantera no zoológico, enquanto nosso herói está à
espreita. Mal sabe ele que é a própria presa: ela o arrebata
por seu charme e o conduz até sua casa, com o argumento
de que não tem amigos porque está a pouco tempo no
país e suas relações de trabalho não lhe permitem tantos
contatos. Comportamento animal, instintivo, sangue de
pantera que inicialmente ela não recusa, muito ao
contrário: tenta lhe dar vazão completa. Simon sensual,
rosto levemente desequilibrado para a direita (esquerda da
tela), com olho menor e um sorriso de lado – que, junto
com o sotaque fortemente estrangeiro – que seduzem o
pobre projetista. À medida que a misteriosa Irena
Dubrovna vai se apaixonando pelo maravilhado Oliver,
nasce o problema com a maldição: o despertar do desejo
sexual na mulher é identificado com o desejo assassino de
matar sua presa. A entrada na Lei (o casamento) se
confunde com a auto-repressão. Irena frígida.

Segundo fotograma: rosto equilibrado, neutro, angelical. A


iluminação incide diretamente sobre o rosto de Irena, que
sofre para contar de seu auto-isolamento para não ferir
ninguém. A conversa tem lugar a 15 minutos de filme,
logo antes da cena do jantar de casamento. O périplo
traumático contiuará a funcionar mais fortemente após o
casamento: mais conversas sobre desejo, sobre o
casamento não-consumado (a ausência do ato sexual),
ciúmes que recaem sobre a bela colega de trabalho Alice
Moore e a raiva que também desperta em Irena seu lado
destruidor. Mas aqui nada disso. Aqui, é nossa musa em
seu aspecto mais frágil, mais um bebê felino do que uma
pantera.
Terceiro fotograma: no jantar de casamento, quando tudo
parece agradável e Irena Dubrovna, agora portando o
sobrenome Reed, finalmente parece aclimatada a Oliver, a
seus amigos e ao novo país, surge a pantera-irmã para
lembrá-la da maldição. Outro rosto vicioso, rosto de gato
("looks like a cat", diz um dos convivas do casal), que mia
numa língua inteligível apenas para sua colega de espécie.
Mau augúrio que irrompe no momento mais feliz do filme
para mostrar a Irena que ela não vai escapar de seu
destino. Mais uma vez, o vício está carregado todo no
olhar, no poder do primeiro plano e na conformação visual
do rosto, e na relação especular que se estabelece entre
duas mulheres felinas.

Quarto e quinto fotogramas: grande elipse para o final do


filme. Aqueles que conhecem Sangue de Pantera sabem
que omitimos as duas cenas mais famosas, e aquelas em
que o suspense aparece com mais força: a cena da
caminhada de Alice Moore perseguida pelos sons de
pantera com a imagem ameaçadora tendo presença
imaginária apenas no fora-de-campo, e posteriormente a
cena em que essa mesma Alice se vê perseguida pela
pantera na piscina, numa cena em que igualmente om
perigo é todo construído pelo extra-campo, sob a forma
dos rugidos de animal e pela maneira como o corpo de
Alice se move na água (e pelos reflexos fluidos nas
paredes). Nosso estudo é sobre os rostos. Assim,
passamos diretamente ao momento em que Irena,
atendendo aos convites freqüentes de um psiquiatra
malandrão que deseja tirar proveito de sua paciente,
finalmente cede à tentação e torna-se a pantera que ela
tanto temia transformar-se na frente de Oliver. Atenção
para como a transformação de Irena em pantera se dá
inicialmente em frente à câmera, primeiro iluminada à
Marlene Dietrich, em north light – a luz que vem do céu,
que capta o instante da liberação do instinto, a
concretização do destino – para em seguida obstruir a
luminosidade e a visibilidade do rosto de Irena. O rosto
fica distorcido, o olho passa a refletir um brilho assustador,
e o corpo se retorce, se aproxima da câmera e o rosto
desce, se conformando ao porte físico de um felino. O
semblante extático, de entrega aos instintos e ao destino,
transforma-se em olhar de estupor, quase de
despersonalização.

Sexto fotograma: por fim, a continuação da seqüência, a


cena do ataque, que se dá igualmente por sugestão, com a
câmera flagrando apenas através das sombras a luta entre
Irena-tornada-pantera e o doutor. Momento decisivo, e
também o tipo de cena que faz a fama de Tourneur, essa
espécie de "terror branco" (que encontra seu correlato no
paroxista "noir branco" de Fuga do Passado) que se
preocupa muito mais na criação das atmosferas do que em
recompensar o espectador mostrando na tela o horror que
ele tem que imaginar fora dela. Mas essa cena só funciona
sob medida, e nesse aspecto de forma muito mais
interessante do que a cena da pantera no escritório,
porque associamos imediatamente a sombra na parede ao
rosto de Irena que se transfigura a nossa frente. É ainda
um rosto, um primeiro plano, que nos assombra e que
vemos quando pressentimos o ataque e posteriormente o
presenciamos. Temor do inevitável, e ao mesmo tempo
compadecimento com a libertação e com o horror de
Irena. Como em Os Pássaros, primo não muito distante de
Sangue de Pantera, perguntamos: que mal há em uma
mulher se entregar a um homem? por que tanta agitação?

(Infelizmente, a edição da Magnus Opus não faz jus à


grandeza do título. O disco visto apresentava sérios
problemas de distorção na imagem, pixelização em
diversos dos movimentos de câmera, e no geral uma
imagem com definição menor do que poderia. Como extra,
um texto informativo de Luiz Nazário que se atém mais à
contextualização histórica de Val Lewton como produtor, e
um texto introdutório pra lá de equivocado, a dizer, por
exemplo, que o filme está "ultrapassado", como se Giotto
ficasse ultrapassado a partir da invenção da perspectiva.)

Ruy Gardnier

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