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VirgilioPiñera
Tradução de Cláudia Silveyra D’Avila
Carlos
Berta
Angelito
O coral
Os mortos de Angelito
Primeiro ato
CARLOS: (Em blue-jim, camisa vermelha e de meias [de meias sem sapatos], está
sentado no sofá-cama. Com um lenço enxuga-se o suor da cara, do pescoço e dos
braços. Ofega. Deixa o lenço sobre o sofá, encosta-se para trás e levanta as
pernas. Esfrega-se os pés com ambas as mãos. Deixa de mexer neles. Olha-os.)
Outra vez… (Alçando a voz.) Sim, outra vez. (Apoia-se nas mãos e dá um pulo)
Jup! (Esfrega-se as mãos.) Hoje acordei com o pé direito… (Coloca-se de trás da
caixa.) Vamos ver, vamos ver! (Respira fundo, fica em pé sobre a perna esquerda,
esticando a direita para trás o máximo que pode) Aos seus lugares, preparados,
partida! (Dá um forte chute na caixa.) Hã, hã! Bom chute. (Corre até o lugar onde
caiu a caixa.) Não gostou? Responda: não gostou? (Agacha-se, coloca o ouvido
na caixa.) O que é que fala? Que não gostou? (Pausa. Ergue-se.) Pois eu sim. E
escuta uma coisa: seguirei gostando. (Pausa. Agacha-se de novo.) Se vou te dar
outro chute? Pois é claro que vou te dar mais um e mil! (Ergue-se, apoia-se na
perna esquerda, estica a direita para trás, mas pouca coisa.) Dessa vez vou te
chutar mais suavezinho… suavezinho… (Dá um chute suave nela.) Assim,
assim… Não me diga que te dói. Quase nem te toco. (Dá nela um pontapé mais
suave, agora em direção ao proscênio.) Não pode se queixar, estou te dando um
tapa suave, sedoso, acolchoado… (Dá um chute um pouco mais forte nela.)
Perdoa, dei uma patada. (Chega ao pé da caixa.) E agora? Hã!, hã! E agora?
Posso te fazer voar pelos ares. Imagina onde você ia cair! (Chuta com ambos os
pés a caixa ao longo de todo o proscênio.) Onde, onde, onde, onde…? (Chegando
ao extremo do proscênio, se detém. Crise de nervos. Dá-se pancadas no peito.
Grita.) Onde, onde, onde, ondêêê…?
BERTA: (Que entrou pelos fundos no momento em que Carlos dizia: “Não
gostou?”, está sentada no sofá-cama lixando as unhas. Em bermudas e pulôver
branco.) O que está passando hoje no cinema?
BERTA: (Sem deixar de lixar as unhas e sem olhar para Carlos.) O quê?
CARLOS: (Pega o lenço, passa-o pela sua testa.) Você é que gosta?
CARLOS: (Interrompe-a.) Deixa o cinema, eh!, te suplico, deixa prá lá. (Vai
alterando-se.) Deixa essa merda. (Arrebata-lhe a lixa, e a joga fora.) E o esmalte
prás tuas unhazinhas, e o xampu prá tua cabecinha, e o batom prá tua boquinha…
(Pausa) E eu não quero, está me ouvindo? , não quero falar daquilo, mas sim
disto. Isto é o que me interessa, não o outro ou o além…
CARLOS: (Corre, pega a caixa, enquanto volta junto a Berta.) Isto é esta caixa,
esta caixa de papelão, de cor branca, de uns vinte centímetros de comprimento.
Uma caixa de sapatos. (Coloca-a diante dos olhos dela.) Tá vendo? Vazia.
BERTA: Esqueci ontem à noite. (Pausa.) Se quiser ela para guardar alguma coisa,
posso te dar a tampa.
CARLOS: Não preciso dela, tenho a caixa, é o suficiente. (Pausa.) Sabe o que me
chamou a atenção?
BERTA: (Mofando.) Não me diga! Então isto (acentua “isto”) te chamou a atenção?
(Pausa.) Pois a mim, não. Se eu vejo ela no sofá, a pego, boto nela a tampa,
coloco ela na privada ou quebro ela em quatro pedaços e boto fogo nelas.
BERTA: É isso.
BERTA: A não ser que me ocorra escrever um conto para crianças. (Em tom
narrativo.) Uma caixa de chapéus falou para uma caixa de sapatos: Eu sou maior
do que você. E a caixa de sapatos respondeu…
BERTA: Bom, então um conto para adultos. (Em tom narrativo.) Advertiu com
horror que o que estava na caixa de sapatos era a mão cortada de um homem …
(Pausa.) Gostou?
CARLOS: Não, isso não serve, é literatura. (Pausa.) Essa caixa me chamou a
atenção porque… (Cala-se.)
CARLOS: Bom. (Pausa.) Pois me chamou a atenção porque vê-la e pensar que
era algo que se podia chutar foi tudo uma.
CARLOS: (Angustiado.) Agora não é “suspense”. Mas tenho medo de falar isso
para você. (Pausa) Você vive tão nas nuvens… (Pausa.) Bom, não é só você,
quase todo o mundo vive nas nuvens: a pintura Pop, a literatura Camp, a música
concreta, e, naturalmente os Beatles.
CARLOS: Gosto, gosto. Eu vivo também nas nuvens. Não nego isso. (Pausa.) Mas
hoje, esta caixa de papelão, me fez botar os pés no chão.
BERTA: Aliás, não tenho muita certeza que ouvir os Beatles seja estar nas nuvens.
Por aí falam que eles refletem a época.
CARLOS: Bom, sim, a refletem, mas, como ao fim e ao cabo os Beatles, não são
mais do que um de tantos long-plays, a época se vê como uma festa. (Pausa.) Em
contrapartida, esta simples caixinha de papelão é, em si mesma, um horror, uma
angústia e uma violência.
BERTA: (Ri.) Grava essa descarga e você vai virar famoso como os Beatles.
CARLOS: Ria, é o teu direito. Mas também eu tenho o meu, meu direito, e vou
exercê-lo. (Pausa.) Vem.
BERTA: (Sem mover-se) Estou muito cansada. Além disso, isto não tem pé nem
cabeça.
BERTA: (Com assombro.) Você está sob os efeitos do LSD? (Pausa.) Então
vamos passar a manhã toda comendo merda. Problema seu. Eu vou me vestir.
(Começa a andar.)
CARLOS: (Pega ela dum braço, a leva de volta onde estava.) Dá nela um chute
com a tua patinha.
CARLOS: Isso não serve. Tem que chutar forte. Bota o pé direito para atrás,
coloca as mãos no quadril, assegura o equilíbrio e chuta forte.
BERTA: (Já em posição.) Lá vai! ( Dá na caixa uma forte patada.)
CARLOS: (Pega-a no braço e a leva-levando-a até onde caiu a caixa.) É uma boa
patada. (Pausa.) Agora dá outra nela.
BERTA: (Gritando.) Com que direito? Você acha que vou passar a manhã toda
dando patadas nessa caixa? Tenho mil coisas prá fazer. Vou embora.
CARLOS: Com o direito do mais forte. Aqui sou eu o mais forte. Em outra parte
posso ser o mais fraco, mas aqui, Berta, aqui sou o mais forte. (Pausa.) Não se
desanime. A caixa é mais fraca do que você. Vai, aproveite, dê uma patada nela.
BERTA: E o que eu ganho, fala prá mim, o que ganho dando patadas nela?
BERTA: E se eu me negar?
CARLOS: O quê?
BERTA: Quando?
CARLOS: Depois de cumprir o ritual.
BERTA: Não vai me dizer que dar chutes numa caixa de sapatos é um ritual.
CARLOS: É sim, como uma missa. A nossa. Só que em vez de cantada, chutada.
BERTA: Você gosta de abusar, hein? Falo para ela me pedir perdão?
CARLOS: (Imperativo.) Deixa as cretinices. Quando é que você ouviu uma caixa
pedir perdão? (Pausa.) Ela não tem arte nem parte nesta missa. É tão só um
instrumento. O nosso instrumento.
BERTA: Que triste a sina desta caixinha! (Com voz gutural.) No altar do sacrifício a
vítima propiciatória aguarda a hora fatal. (Pausa. Solta uma gargalhada.) Então ela
é o nosso instrumento. Não é um cachorrinho, nem gatinho e sem mesmo uma
rãzinha… algo que sinta e padeça. Não, é ela, que não existe.
CARLOS: Que você exista e eu exista é suficiente para o jogo. (Pausa.) E agora,
menos palavras e mais ação. Vamos, brinca com ela.
CARLOS: Dá uns chutes suaves nela, leva-a de um a outro lado, fala com ela.
BERTA: Não te entendo. Você acaba de dizer que ela não fala, nem vê, nem ouve
e nem sente.
CARLOS: Ela não, mas você existe. Você pode sim falar para ela. Por exemplo,
pode perguntar para ela: “Não gostou?”.
BERTA: (Maquinalmente dá chutes suaves na caixa e fala para ela.) Não gostou?
BERTA: (Ela faz.) O que você diz? Que não gostou? (Interrompe-se, grita.) Não
posso mais! não posso mais!
CARLOS: (Aproxima-se, tapa a boca dela, está agitado). Isso não forma parte da
missa. Aqui o profano nada tem a ver. Leva o teu problema emocional ao
psiquiatra. Ele oficiará a sua missa, você será o acólito dele e então poderão gritar
até se esgoelar. (Pausa.) Prossigamos a nossa missa. Insulta ela.
CARLOS: Isso é bem melhor. (Dá um chute na caixa.) Cafajeste. (A Berta.) Bate
nela com a língua e com a pata.
BERTA: Queria.
CARLOS: Estão passando este. Olha.
BERTA: (Rápido.) “A luz que agoniza” (Pensando.) Me fala o título deste. (Como
se apunhalasse alguém, depois olha suas mãos, depois começa a tremer como
seestivesse com frio.)
BERTA: Tem sangue, mas não sobre a terra. Você se dá por vencido?
CARLOS: (Com o punho de sua mão direita fechado deixa livre o dedo indicador e
o move uma vez só. Ato seguido, toca-se o rosto. Depois com a mão direita aberta,
a eleva à altura de sua cabeça, vaárias vezes de direita à esquerda.) Adivinha se
puder.
BERTA: Pois claro que posso. “Um rosto na multidão” (Pausa.) Quero ver se sabe
como se intitula este.
BERTA: Joia, então não oficiarei neste segundo tempo. Guerra avisada…
CARLOS: Agora temos a caixa na pedra do sacrifício. Está vendo? Indefesa. Não
pode escapar. Também não pode cozinhar, costurar, sair para fazer compras,
brigar com a vizinha, tomar banho, pintar as unhas…
BERTA: Pode encomendar sua alma a Deus.
CARLOS: E você acha que ela é tão idiota como para perder o pouco tempo que
tem de vida encomendando a sua alma a Deus? (Pausa.) Faz algo bem diferente.
Olha bem. (Pega Berta no braço.) Se agache. (Berta agacha-se, Carlos deita-se no
chão.) Planeja a fuga. Caramba! (Move a caixa.) Se move. Está vendo? É uma
artista. Nós filosofando, e ela, Berta, ela na prática… Um passinho agora, outro
depois, e olhos que te viram ir…
CARLOS: (Levanta-se, pega Berta na cintura.) Você fica. Sou o número um neste
ritual e você é o número dois. Portanto você fica. A tortura é parte do ritual. Tá
certo? (Pausa.) Então prossigamos.
BERTA: Teu coração não amolece? É tão pouca coisa, tão fragil.
CARLOS: Pouca coisa esta safada? Olha o trecho que percorreu enquanto
discutíamos. (Pega a caixa e a coloca sobre seu peito.) Degenerada!
BERTA: Está chorando, não a está ouvindo? Nos pede perdão. Toma cuidado
para ela não te cagar.
CARLOS: (Aparta a caixa de seu peito.) É coisa normal. O terror relaxa o esfíncter.
Primeiro o torna tenso, depois sobrevém o desabamento. O corpo inteiro é
manteiga, gelatina, saliva. E o que dizer de suas tripas? Elas são altamente
sensíveis, são sua high-fidelity. No primeiro sinal de terror o corpo escorre em
merda.
BERTA: (Gritando.) Porco!
CARLOS: Merda é a única palavra que pode refletir o estado de terror em que um
ser humano se encontra. Se eu dizesse essas fezes estaria manifestando que o
doente padece de lombrigas(Ri.)
CARLOS: É isso que se tem que evitar. Evitar por todos os meios e custe o que
custar.
CARLOS: (Num ataque de histeria, Carlos golpeia Berta na boca.) Cala a boca.
Você me enche o saco com a tua filosofia barata. Já te falei, quando você quiser
se analisar vai ao psiquiatra. Aqui estamos na missa, está me ouvindo? Na missa.
BERTA: (Passa as mãos pela boca.) A única coisa que falta é você me assassinar.
Me avisa quando esse momento chegar para eu fazer as minhas orações.
CARLOS: Senso do humor. Não está ruim. (Acaricia-a.) Me perdoa. A mão deve
me cair por ter batido em você. Perdi o controle. (Pausa.) Acontece que tudo isto é
muito sério para mim. E gostaria que também você o levasse a sério.
BERTA: Mas eu levo a sério! Olha tanto eu levo a sério que estou a ponto de
vomitar. (Faz uma curvatura.)
CARLOS: Não, por favor, não vomite aqui. Este é um lugar sagrado. Vai no
banheiro.
BERTA: O que você acha de eu vomitar em cima dela? (Faz um gesto de pegar a
caixa.) Me dá.
BERTA: Só que, cara, só que…? Consideração por essa puta?Você fala muito,
mas no final se abranda. (Pausa.) Me dá ela. (Faz outro gesto de pegar a caixa.)
Vou enchê-lá até o topo com meu vômito. Depois você mija nela. E se ela não
gostar, se começar a gritar, então vamos fazer com ela coisa pior.
BERTA: Pode emprenhar ela, e quando tiver um barrigão grande assim (coloca as
mãos diante da barriga) dá chutes nela e mais chutes.
BERTA: (Bastante excitada, aos gritos.) Incha ela, porra, incha ela.(Bota o ouvido
na caixa.) O que é que está dizendo? Que você não pode ficar prenha porque
tiraram a tua matriz e os ovários? Não acredito em ti. (Bota novamente o ouvido.)
Jura que é verdade? Pois então vamos te encher até os topos com o gordo
(Acesso de risada.)
CARLOS: (Afastando Berta.) Solta ela já (Pausa.) Se a gente continuar assim, ela
vai morrer de susto. E ela, Berta, certamente está desejando essa morte. Imagina,
quando você morre de um susto é questão de um segundo. (Pausa.) Assim pois,
de acordo com o nosso ritual, procedamos à imolação da caixinha. (Coloca, boca
abaixo, a caixa no centro da cena.) Berta…
BERTA: (Coloca as mãos nas costas. Suplicante.) Não, Carlos! Eu não. Nunca
matei. Não saberia fazer isso!
BERTA: (Mofando.) Olha quem fala! Teus únicos mortos são as moscas e os
mosquitos.
CARLOS: Não nego, mas isso não quer dizer que a partir de hoje… ( Faz o gesto
de degolar.)
BERTA: Então, mata você.
CARLOS: Vou te dar esse prazer, mas tenha em mente que você também terá o
teu mortozinho. Logo verás… Logo verás…
CARLOS: Você não quer, mas tem que fazer. (Pausa.) Por hoje você se salvou;
amanhã você matará. (Pausa) Bem, como o algoz sou eu, você será o sacerdote.
Administra a ela os auxílios espirituais.
CARLOS: (Enquanto Berta grita “beee”, Carlos que já tinha saído pela porta do
fundo, regressa instantaneamente calçando no seu pé direito uma bota de
borracha preta que lhe chega até o começo do joelho. Coloca-se diante de Berta.)
Me ajuda.
BERTA (que em nenhum momento deixará de balir, ajoelha-se junto a Carlos,
pega a perna direita dele e a levanta. Em seguida vai baixando-a lentamente até
colocá-la acima da caixa, embora sem tocá-la. Retira as mãos).
CARLOS: (Gritando.) A-ção! (Berta deixa de dizer “beee”. Carlos esmaga a caixa.
Pausa longa. Senta no solo, tira a bota, coloca-a a um lado. A Berta.) Final do
segundo tempo. Um minuto de recesso.
BERTA: (Com assombro.) Como! Não acabou a missa com a eliminação física da
vítima? Se pretender me levar até a mesa, já te comunico que não vou me prestar
ao teu jogo. São as dez da manhã. Às onze tenho cabelereiro. À uma almoço. Às
duas Universidade. Vou embora.
CARLOS: Sempre acabas teus discursinhos com um “vou embora”. Então, vai,
garota, vai embora.
CARLOS: Pode.
CARLOS: E aí?
CARLOS: Pensa o que mais gostar, mas se quiser ir embora, vai. (Pega a bota e a
lança ao sofá.)
CARLOS: (Com voz de falsete) Antes… Agora… (Pausa.) Velha, me solta já. Vá
embora de uma vez.
BERTA: E se eu ficar?
CARLOS: Fica.
CARLOS: Nenhuma.
CARLOS: Te explica.
BERTA: Continuar chutando e esmagando a caixa.
CARLOS: Joia!
BERTA: Foi chutada, torturada, imolada. Uma vez, tudo bem, mas duas, isso fede.
BERTA: E você?
CARLOS: Eu fico.
CARLOS: Fica.
BERTA: Fico, não. Fico porque me dá prazer (Toca o sexo dela.) Vamos, continua
com a tua missa de merda. (Dá nele um empurrão.)
BERTA: A mim mesma? E o que vai me perguntar? Você acha que vou gastar
saliva falando para você que em tal dia, em tal lugar, a tal hora, dois assassinos
chamados Carlos e Berta torturaram e mataram uma infeliz caixinha? Isso até os
cachorros o sabem!
CARLOS: Esses são os fatos. Falta que o discutamos. (Pausa.) Você. (Toca no
peito dela) E eu. (Toca-se no peito.)
CARLOS: (Aproxima-se dela, a pega pelos pulsos, agressivo.) Este conto ainda
não terminou. Está louquinha por ver como acaba. (Solta-a.)
CARLOS: Pensa duas vezes. Olha que acaba muito mal. Isto não é de happy
ending. Vamos, se decida.
CARLOS: Você vai ver. (Pausa.) Chapeuzinho Vermelho foi à floresta e encontrou-
se…(Pausa.) Com quem se encontrou?
BERTA: Contigo.
CARLOS: Correto. (Pausa.) O que ele te perguntou?
BERTA: Eu fico.
CARLOS: Magnífico. (Pega duas cadeiras, as coloca uma diante da outra de modo
que os atores sejam vistos de perfil.) Senta.
CARLOS: Não.
BERTA: Não?
CARLOS: Não.
BERTA: Não?
CARLOS: Correto. (Pausa. Pega a cabeça com ambas mãos) E o que é isto?
CARLOS: Não.
BERTA: Não?
CARLOS: Correto. (Pausa.) Agora pode me dizer o que o cérebro ordena fazer
com a garra?
BERTA: (Fazendo gesto de levantar-se.) Então deixa para lá. Não gosto do
joguinho. Você sabe a hora e o minuto em que começam a te interrogar, mas não
sabe nem a hora nem o minuto em que vão deixar de fazê-lo. (Pausa.) Ainda
lembro das perguntas daquele Juiz quando do julgamento por aquela coisa da
batida…
BERTA: Claro que me caçou. Falou para mim que com o uísque bom se bate, e
com o ruim também.
BERTA: Acho também, porque, me diga você, o que tinha a ver o uísque, bom ou
ruim, em tudo isso?
CARLOS: Sempre brincam com a gente. Puxam e tiram e no final você fica vazio.
BERTA: Por isso mesmo não gosto deste jogo. Se proseguirmos vou me inteirar
de coisas muito desagradáveis.
CARLOS: E tão desagradáveis! Mas não tem mais saída. (Pausa.) Bom, outra
pergunta. (Pausa. Estende de novo a perna.) O que é isto, Berta?
BERTA: (Agressiva.) Me escuta bem: aceito fazer o papel de boba, mas o de dois
bobos o faz a puta da tua mãe. (Arremedando Carlos estica a perna direita.) O que
é isto? Carlos, o que é isto? (Pausa.) Entrei no teu joguinho, te falei que era uma
perna. Você falou que não era uma perna. Então eu adivinhei e te disse que era
una pata. E você falou para mim: “o que faz a pata?” Eu eu te falei, e você falou:
“correto”. E continuou com a garra e com o cérebro. E agora você volta
indiretamente… (Levanta-se.) Te vejo vir: quer me enlouquecer, mas antes te
mato. (Pega a cadeira e faz gesto de esmagá-la na cabeça de Carlos.) Primeiro te
mato. (Dá uma cadeirada na cabeça de Carlos.)
BERTA: (Coloca a cadeira perto daquela de Carlos. Para o ouvido dele.) Não me
procure, Carlos, não me procure que vai me encontrar…
BERTA: Já te falei, mas embora fosse outra e embora o soubesse, não vou te
falar. Pergunta ao Juiz, ao cura, ao padeiro, ao leitero, ao mecânico, ao mestre-
escola, ao pintor, ao pianista, ao carteiro, ao escultor, pergunta à buceta da tua
mãe.
BERTA: (O mesmo.) É isso o que você quer que eu te fale, mas eu já te falei e não
vou repetir. (Pausa.) Em contrapartida, vou te falar que deste novo joguinho gosto
sim e que vamos continuar jogando. (Pausa.) Isto (toca a perna dele), é uma perna
de porco assada, tua cerda perna de porco que você mesmo assou para eu me
dar um banquete com ela. Deixa eu prová-la. (Dá um mordisco na perna)
Deliciosa! (Pausa.) Vai, experimenta, eu te permito.
BERTA: Bom, agora não é uma perna de porco; agora é uma bosta, um
excremento, uma merda. Fique sabendo.
CARLOS: (Relaxando-se.) Tá vendo, meu amor? No final você acertou na mosca.
(Pausa.) Isto é uma merda! (Toca-se na mão.) E isto também. (Toca-se na
cabeça.) E isto? Nem falar… Isto é a merda maior de todas as merdas. (Toca-se o
sexo.) E isto é uma reverenda merda. (Pausa.) Não tenho nem pata, nem garra,
nem cérebro. O que tenho é merda, e eu sou uma pura merda.
BERTA: Joia! Assim sendo o capanga é uma merda. (Levanta-se.) E toda esta
missa é outra merda.
CARLOS: Uma merda entre merda, mas mesmo assim é necessário rezá-la. Uma
missa profana para doentes sem esperança nenhuma [condenados]. (Pausa.) A
missa da minha vida; em contrapartida, uma missa sagrada para matadores não é
a missa da minha vida, mas…
BERTA: Mas que… Você é uma merda e um cara de merda só coleta merda,
recolhe merda e a come.
CARLOS: (Gritando.) Mas… Berta, você não comprende, tem que comprender…
(Abraça-a.) Meu amor, olha para mim, estou tremendo; vou cair em pedaços aqui
mesmo, vou escorrer em merda. (Pausa.) Mas tenho de aprender; se não aprendo,
me matam, e não significaria nada que o fizessem, mas ser excluído do mundo
que mata é não estar no mundo, neste mundo, neste mundo de meus vinte anos,
não no do meu pai nem no do meu avô, nem sequer, Berta, no mundo por fazer.
(Pausa.) Se não mato, me matam; se não aprendo, me esquecem; se não
esmago, me esmagam; se não vivo como eles, morro, e eu quero viver, Berta,
embora seja matando.
BERTA: Me esclareça: Toda esse desabafo faz parte da missa? Quero saber onde
estou pisando. Agora devo te dizer: Carlos, a primeira coisa na vida é viver, viver
seja como for. Assim pega a pistola e mata até cair o teu braço?
CARLOS: Agora não estamos na missa. Agora somos o que somos. E somos
merda.
CARLOS: Bem.
BERTA: Já.
BERTA: A quem?
BERTA: Então…
BERTA: Rapaz. Já sei… O cara do blue-jim preto, com tênis brancos que olha com
um olho para cá e outro para lá… porque o cabelo cai sobre a testa dele.
Escutaaa! o dinheiro caiu!
CARLOS: Entra assim (como se apuntasse com duas pistolas), e fala: “Chegou
Angelito, cumprimentem”.
CARLOS: Então ele me pega por aqui. (Com sua mão direita pega por trás do
colarinho de sua camisa. Ao mesmo tempo, faz como se chutasse alguém no
traseiro) Senta ali. (Carlos, tropeçando, deixa-se cair numa cadeira, e deixa-se
pendurar os braços e abaixa cabeça.)
Apaga-se a luz.
Ato Segundo
Carlos está na mesma posição do final do Primeiro Ato. Berta, agora de mini-saia,
sentada no sofá-cama, lixa as unhas. Angelito em pé diante de Carlos. Veste blue-
jim preto, camisa preta, tênis brancos. A mesma cenografia.
BERTA: (A Carlos.) Se você começar com as tuas perguntas bobas, vou embora.
Ontem você brilhou. Vinte minutos a mais que não estavam no programa.
ANGELITO: (A Berta.) Metida, mas quando chegar a tua vez. Agora fecha o bico.
(Pausa. A Carlos.) Levanta.
CARLOS: (Caminha lentamente até o centro da cena.) Você acha que vou
aprender?
ANGELITO: Tenho pena dele, juro que tenho. E asco. Nunca vai aprender nada de
nada.
ANGELITO: Nesse dia me mata rápido. Do contrário você não conta o conto.
CARLOS: Confia na bichona. Um dia ela decide que isto se faz e isto não se faz e
todo mundo de boca fechada.
BERTA: (A Angelito. Pondo a mão direita na orelha [para ouvir melhor].) Chefe,
ouviu o que eu? (Baixando com o dedo índice de sua mão direita a pálpebra de
seu olho direito.) Viu o que eu? (Passando suas mãos por todo o corpo) Sentiu o
que eu?
ANGELITO: Não se consola quem não quer… (Pausa. A Carlos.) Agora vou te dar
o primeiro chute desta tarde. Naturalmente, você vai permitir que eu te dê, você vai
rodando até cair aonde a gente combinou, eu vou chegar junto de ti, vou te chutar
de novo, você vai rodar de novo, e assim prosseguiremos. (Pausa.) Ai vai! (Chuta
ele)
ANGELITO: (Chega junto a Carlos, que tem rodado até cair de bruços perto do
proscênio.) Não gostou? Responda. Não gostou? (Agacha-se.) Pois eu, sim. E
olha: vou continuar gostando. (Ergue-se.) Que tal eu te dar mais chutes? Claro que
sim! Mas desta vez te chuto suavezinho. (Dá nele um chute suave) Não me diga
que doeu. Quase nem te toquei. Não pode se queixar: estou batendo em você
suave, sedoso, acolchoado…
CARLOS: (Levanta-se.) Você já pensou que esse jogo pode ter um final?
ANGELITO: (Entre risos afogados.) Então você vai… Com um… Um dia desses…
CARLOS: Com todas as letras. Chegarei a ser Chefe. E como você, irei todas as
noites, das oito às dez, para a casa de alguém que se deixa dar chutes, porque
não tem outra saída a não ser deixar-se chutar. (Pausa.) É um cara que mede seis
por dois, com umas costas assim. (Faz o gesto), com uns braços que são duas
bazucas e uns punhos que são duas granadas. (Pausa.) E eu o coloco, aí onde
você está, e… apanha esse chute e apanha esse outro e esse outro… (Lança
chutes ora com a perna direita, ora com a esquerda tão velozmente que cai.)
ANGELITO: (Lança-se sobre Carlos e dá chutes nele.) É isso o que você vai fazer
com o cara dos seis dois? Que gosto você vai se dar! “Mano”, meus parábens.
Você imagina o que é poder dar um pezão no pescoço? (Pausa.) Veja: Você o
pega pelo pescoço (pega Carlos pelo pescoço.), bota a cabeça dele no chão e o
obriga a beijar a chão. (Faz o gesto.) Depois você coloca ele em pé (ele o faz), dá
golpes nos rins dele (ele faz isso), leva ele até essa cadeira (ele o faz), dá um
passeiozinho para ele se refrescar (ele o faz), volta a chutar nele (ele o faz).
(Pausa.) Você gostaria de fazer tudo isso com ele?
ANGELITO: Me mata.
CARLOS: Já vais ver, já vais ver!
CARLOS: Quando eu tinha dez anos ia ao colégio dos padres. O meu avô me
dava uma peseta para a merenda. (Pausa.) Um dia, Matraca, que tinha quinze
anos, falou para mim: “Me dá essa peseta”. Eu falei para ele: “Em nome de que
santo?” Ele me falou: “Do santo que me sai daqui”. (Toca-se o sexo.) “Bom”, falei,
“vai ganhar ela”, e assumi posição de confronto. (Fecha os punhos.) Ele me disse:
“Pois, vou ganhá-la”. E me lançou tremendo soco. Que eu esquivei, e lancei um
murro no queixo dele. Caiu redondo.
ANGELITO: E daí…?
CARLOS: Desde então ninguém botou a pata em cima de mim. Vai lá, meu irmão!
Se você se abrandar eles te fritam, e aí você acabou; assim literalmente, você
acabou. (Pausa.) Quando ia pelos meus quinze, um cara alto assim e gordo assim
se aproximou do banco aonde eu estava com a minha namorada. Falou pra mim:
“Se identifica?” Eu mostrei a certeira de identidade, ele olhou, voltou a olhá-la, por
fim jogou-a no gramado. Eu falei para ele “por que é que faz isso?” Ele falou para
mim: “Sempre faço o que sinto dentro de mim”. Falei para ele: “Pois se faz isso,
você é um merda”. Ele falou: “Menininho, vou lavar essa boca suja”. Eu falei para
ele: “Quando quiser”. Ele veio em cima de mim, eu dei um pulo e me coloquei atrás
do banco. Ele se aproximou e quando se jogou em cima de mim eu banhei a
barrriga dele com a minha navalha. (Faz todos estes gestos.)
CARLOS: (Sem deixar de apertar a mão dele.) Você acredita em mim? Verdade?
(Pausa.) Posso procurar o jornal onde saiu o acontecimento.
ANGELITO: (Larga a mão dele) Não precisa, meu irmão. Tenho certeza de que
você é um cara que arrisca o jogo. Basta te ver para saber que você é um bravo.
ANGELITO: Pois sim vou te dar. Uma grande prova de confiança. (Pausa.) Está
vendo o cara que está sentado no sofá? (Faz sinal a Berta para se sentar no sofá.)
CARLOS: (No jogo.) Aquele que está com a namorada ou aquele que está
dormindo?
ANGELITO: Aquele que está com a “guapa”. (Pausa.) Pois esse filho de uma égua
se meteu no meu caminho. Tem ares de chefe. (Pausa.) Sabe o que fez? Mandou
um dos comparsas dele para me cortar embaixo. Ferrei ele, botei numa canastra,
enchi ela de flores, e mandei o morto de volta para ele. (Pausa.) O que você acha?
ANGELITO: “Mano”, o senhor não diga isso. Nem de brincadeira. Come vivo
aquele cara. (Aponta para o sofá.) Aí coloco o doce na tua boca. (Pausa.) Vá ali
passinho por passinho, não dê tempo ele para respirar. (Pausa.) Uma vez que o
tiver arrebentado, formaremos a sociedade de matanças mútuas.
CARLOS: Vou falar isso para ele, mas, com o que eu o mato?
ANGELITO: Com esta pistola. (Coloca a mão direita na cintura e faz como se lhe
desse a arma.) Assim que ele te falar o que te falar, você apaga ele.
CARLOS: (Faz como se pegasse a arma, coloca-a na cintura e deixa a mão sobre
esta. Caminha muito devagar até o sofá.) Sou um bravo, sou um bravo…
(Interrompe-se. A Angelito.) O que faço agora?
ANGELITO: Bom, não vou te contar nada. (Pausa.) Me pede o que quiser.
CARLOS: Deixa para lá, é inútil.
ANGELITO: “Mano”, te juro que agora não estou jogando. Me dá tanta pena te ver
ali deitado, chorando, que me parte o coração. Agora estou falando sério… Me
pede o que quiser.
CARLOS: (Senta-se ficando entre Berta e Angelito.) Como se sabe que é sério?
ANGELITO: (De um empurrão a joga para atrás.) Fecha o bico. Fala quando for a
tua vez. Você sabe de sobra quando vai falar.
BERTA: É que eu te vejo vir: você decidiu que Carlos deve se afogar na própria
merda dele. (Levanta-se.) Não continue jogando com ele, mata ele já.
CARLOS: (Com desalento.) Eu sou… O que é que eu sou, Berta, o que é que eu
sou?
ANGELITO: Posso fazer com que você não seja um merda. Estava te dizendo…
ANGELITO: Te digo que não. Vamos, te decide: se você esperar tempo demais,
quem sabe esqueço esse traço de… generosidade.
ANGELITO: Então, resta por dizer muita coisa. (Pausa. Como se apontasse com
um revolver.) E por fazer, “mano”. Você quer aprender?
CARLOS: E você?
ANGELITO: (Tirando a calça.) Isto não é uma saia, isto é uma calça, uma calça
para você vestir, machinho.
CARLOS: (Veste a calça de Angelito.) Vão ter que me matar para me tirar esta
calça. (Pausa.) Sou um chefe, um bravo, um duro. Viva Carlos!
CARLOS: Ah, bom! Eu ia romper o teu cuzinho se respondesse outra coisa. Você
fala como um filósofo. (Pausa.) O que é um filósofo?
ANGELITO: (Em caricatura.) Ou aquele que não mata se armar contra um pélago
de tormentos e, enfrentando-os, acabar com eles?
BERTA: (Pega Angelito e Carlos por um braço e vai com eles até o proscênio.
Uma vez ali, Berta marca o compasso com o pé direito no chão e falando só a
palavra “Bangue” cantam os primeiros compassos da Marcha Fúnebre de Chopin.
Depois voltam ao lugar onde estavam. Carlos ocupa uma cadeira. Angelito a outra.
Berta coloca-se atrás deles. Com afetação.) Sigam filosofando.
ANGELITO: Morrer… deixar-se matar, nada mais; e com um balaço pensar que
damos fim aos pesares e aos mil naturais conflitos que constituem a herança da
carne. (Berta se inclina sobre Angelito, abre o seu decote, mostra os seus seios,
exala um suspiro de prazer. Angelito prossegue o seu falatório. Eis aqui um
desenlace que deveríamos solicitar com sofreguidão.
CARLOS: Aí, aí está a dificuldade, porque é forçoso que tenhamos que considerar
que ao perdermos a vida saimos de sua inquietação.
ANGELITO: Esta reflexão é o que faz tão duradouro a desgraça, porque: Quem
aguentaria os ultrajes e desdéns do mundo, a tirania do opressor, as afrontas do
soberbo, as aflições do amor desairado, as dilações da justiça, as insolências do
poder e as humilhações que o valoroso paciente recebe dos homens indignos, se
não fosse pela inquietação da vida?
CARLOS: Quem queria procurar o repouso com uma simples ejaculação de
espera duma vida eterna que não é senão a negrura do sepulcro?
ANGELITO: Quem queria sofrer dores imensas, gemer e suar sob o peso de uma
vida difícil, se não fosse pela certeza da morte? Certeza que não põe impede à
vontade e nos faz suportar aqueles males que nos afligem para nos levar a outros
que ainda desconhecemos.
CARLOS: Assim é como a consciência faz de todos nós uns valentes, e assim o
tom natural da determinação não fica desluzido pela doentia palidez da inquietude
e os atos de maior coragem seguem seu curso e se chamam ação.
BERTA: Dei um joelhaço do caralho; sempre a mesma coisa: quando não é algo
pior. A semana passada…
ANGELITO: (Interrompe-a.) Verdade é que o Hamlet era um bárbaro: atropelou a
mãe, o rei, fulano e sicrano …
CARLOS: (Interrompe-o.) E quê… Olha como ele acabou. Tanta algazarra para
Fortimbras ficar com o melhor quinhão. (Pausa.) Comigo isso não vai. Em vez de
um Horácio que de mim diga: “Por fim se quebranta um nobre coração… Adeus,
amado Príncipe! Coros de anjos arrulhem com os seus cantos o teu sonho eterno”,
quero um Horácio que de mim proclame: “Bom dia, amado Príncipe: você é o
Chefe, pede por essa sua boca”.
ANGELITO: (Com indolência.) Posso poder não poder te pedir que você me peça
que peça mais por esta [minha] boca.
BERTA: (Com humildade.) Você pode não poder, chefe, mas, de qualquer forma,
pede mais por essa boca.
ANGELITO: (Se levanta, cruza os braços.) Sou dono do mundo inteiro. Nos meus
Estados o sol nunca se põe.
BERTA: (Situa-se por trás de Angelito.) Pede mais por essa boca.
ANGELITO: (Com fastídio.) Oh!
ANGELITO: Calem-se! (Pausa.) Não pedi por esta boca que todo o mundo diga
“oh”. Só quis dizer: “Oh!”. Berta, deixa de me pedir que peça mais por esta boca.
BERTA: Não posso não poder te pedir que você peça mais por essa boca.
ANGELITO: Merda!
BERTA: Que fechem o bico, que suas bocas se façam cinza, mas você, chefe,
pede mais por essa boca.
BERTA: (Que tem seguido Angelito.) Então pede algo que seja mais que tudo.
(O coral repete, in crescendo, dita palavra.)
ANGELITO: (Vira-se.) Calem-se! (Pausa.) O que mais posso pedir por esta boca?
Algo que seja mais que tudo? O quê? O quê?
ANGELITO: Que seja. Tem que pedir calça. (Pausa.) É precisco ouvir a voz
interior. (Pausa.) Calça tenho, mas calça devo pedir. Tenho tudo, algo mais do que
tudo pedir devo. (Pensando.) Calça ou não calça: eis aqui o problema. Calça
tenho, mas calça me falta. (Pausa.) Me falta uma calça minha ou me falta uma
calça de alguém? (Pensando.) De alguém? Tenho uma calça de alguém? (Olha a
calça que está vestindo.) Esta calça minha não é. (Pensando. Olha, ora Berta, ora
Carlos. Pausa. De repente aponta para Carlos.) Calça!
ANGELITO: (Veste-a. Pega a calça de Carlos pelas pernas da calça e faz com
elas um nó. A Carlos.) Levanta. Vem.
ANGELITO: Isso sim. Quando um merda é vencido acontece isso com ele. (Coloca
a calça enozada. A Berta.) Pega uma perna.
ANGELITO: (Pega a outra perna da calça.) Vou fazer isso com ele. Por esta boca
peço que por essa boca dele a língua vermelha dele saia. (A Berta.) Pronto?
BERTA: (Olhando para o sofá onde Carlos agora está deitado, de cuecas, boca
para cima.) Morreu como um otário. De nada servirá a ele a língua, daqui para
frente. Pedirá por essa boca e tudo ficará em: “Palavras, palavras, palavras…”
ANGELITO: Não tenho nenhum tipo de relação com os mortos. E menos com
aqueles que eu matei. Nem sequer poderia voltar a matá-los. Então cala a boca ou
você se aborrece, fala para outro morto.
ANGELITO: Tá ouvindo? Estão rindo de você. E estão com todo o seu direito.
Você não defendeu a tua calça, deixou que a tirassem de você como pomba
mansa. Fica aí com o teu castigo.
ANGELITO: (A Carlos.) Vai ver. Vou pedir por esta boca. (Levanta-se, faz como se
formasse um alto-falante com as mãos.) Calem-se!
(O coral, que até esse momento não para de gritar “maluco” se cala.)
CARLOS: Não entendo. Quando falavam “Calça!, Calça!”, você gritou a eles que
se calassen e não te obedeceram.
ANGELITO: Correto, defunto. Quando eu gritei para eles se calarem, o chefe era
você. Te escapou esse detalhe. Em contrapartida, eu fiquei ligado, peguei a
mensagem e te matei. Agora sou o chefe de verdade. Peço por esta boca, e por
esta boca peço para vocês calarem e vocês o fazem. Posso tudo e algo mais do
que tudo.
ANGELITO: Sinto muito, defunto, isso é a única coisa que não poderia fazer. Iria
contra os meus princípios.
ANGELITO: Seria como te devolver a vida. Também iria contra os meus princípios.
(Pausa.) Somente te resta o sonho eterno e os corais de bruxas com as suas
maldições.
CARLOS: (Vai até Berta e abraça ela.) Você ouviu? O sonho eterno, as maldições.
(Pausa.) Faz algo por mim.
CARLOS: Você pode fazer algo por mim, não sei o que, mas pode me salvar.
BERTA: A única coisa que posso fazer por você é te enterrar. Quer que eu faça
isso?
ANGELITO: De modo que além de morto, está louco. Será preciso enviá-lo ao
hospital de dementes do inferno.
BERTA: Se está louco pode fazer alguma coisa. O único modo de fazer as coisas
grandes é enlouquecendo.
ANGELITO: Concordo, mas a loucura de nada servirá a ele porque está morto.
CARLOS: (Começa a passar as mãos pelo corpo, no começo com moderação até
chegar ao frenesi.) Morto, me larga, me larga, morto, sai, morto sai, morto me fuja,
me fuja; morto se perca, se perca; morto, dá no pé, dá no pé. (Repete o conjuro.
Pausa.) Vivo, chupa ele, chupa ele. (Chupa os braços.) Vivo, morde ele, Morde
ele. (Morde os braços e as coxas.) Vivo, aranhe ele, aranhe ele, aranhe ele.
(Aranha o rosto e o peito.) Vivo, bata nele maluco, bata nele maluco. ( Dá-se
golpes por todo o corpo.)
O CORO: ( In crescendo.) Bata nele maluco! Bata nele maluco!
CARLOS: (Erguendo-se.) Cala os vivos, mata eles, tem milhões de vivos. A mim,
me deixa este morto.
CARLOS: Me deixa ele, tenho que viver o vivo que está no morto, tenho que matar
o morto que está no vivo.
CARLOS: (Chegando junto a Berta abre o seu decote e olha.) Aí está escondido,
aí está! Sai. Vivo, se apresente! Vivo, apareça!
CARLOS: (A mesma ação.) Vivo, morde ele! Vivo, aranha ele! Vivo, chupa ele!
Vivo, bata nele maluco!
ANGELITO: (No jogo.) Calem-se! Que venham outros mortos, mortos frescos,
matados pela minha mão!
(Apagão de dez segundos. Enquanto durar o apagão ouvir-se-á um vibrador em
toda sua intensidade. Quando deixar de ressoar, a luz amarela de um spot cairá
sobre Berta, agora em “panties”, e sobre Carlos, ajoelhado atrás desta. Por sua
vez, dez atores, vestidos igual como está Carlos [quer dizer, em cuecas, camisas
pretas e descalços formam uma escolta, distribuidos em dois grupos de a cinco,
cada um a um lado de Angelito.).
ANGELITO: (Olhando a um e outro lado.) Pedi por esta boca e aí tenho eles.
Mortos fresquinhos. Cheiram a rosa. (Aspira o ar como cheirando um perfume.
Pausa. A Carlos.) Faz a tua sepultura. Você fede demais. (Aos atores.) Gosto,
gosto… Sempre se deve obedecer ao chamado daquele que pode tudo. (Pausa.)
Agora, com a mesma rapidez que vieram, se larguem. E ao mesmo tempo levem
este. (Os atores não se movem.)
O CORAL: (Uma voz depois da outra, até dez.) Carolus, Carolus, Carolus, Carolus,
Carolus, Carolus, Carolus, Carolus, Carolus, Carolus.
ANGELITO: (A Carlos.) Tá ouvindo? Te chaman pelo nome que você tem na tua
lápide: “Hic jacet Carolus…” (Pausa.) Pulvis es et in pulvis reverteris[1]… (Pausa.)
Vamos, Carlinhos, volta ao pó. Os teus amáveis colegas te acompanharão.
(Pausa. Gritando.) Fora, fora eu falei! Se não sumir já, vou expulsar vocês a
chutes!
ANGELITO: (Se levanta, olhando para o alto.) Camisa? Eles têm falado camisa?
ANGELITO: Não há dúvida: “camisa” eles têm falado. “Camisa” agora? Antes
falaram “calça”. (Pausa.) Colossal! (Esfrega as mãos.) Pois se antes calça falaram
e eu calça vesti, agora se dizem camisa, camisa eu vestirei.
ANGELITO: Bem falado. Angelito Rei dos vivos e Carolus Rei dos mortos.
ANGELITO: (Dando as costas ao público.) Rei de que reino, do reino dos vivos ou
do reino dos mortos?
ANGELITO: (Golpeando no seu peito com uma e outra mão.) Eu Rex! Eu Rex, Eu
Rex! Eu Rex!
O CORAL: Rex-Rex-Rex-Rex-Rex-Rex!
(Agora Berta debate-se, como uma louca, entre os braços dos dois atores que a
sustêm; ao mesmo tempo suas contrações se tornam mais frequentes. Os oito
atores restantes dizem, como numa litania em uníssono: “Pressiona!” Berta
continua pressionando e abre mais as pernas. Carlos estende, por entre as pernas
de Berta, os braços. As vozes dos atores vão ficando ensurdecedoras. Berta
continua pressionando e debatendo-se num total paroxismo. Finalmente Carlos sai
por completo entre as pernas de Berta. Esta deixa de debater-se e de pressionar.
Os dois atores que a sustêm assim como os oito restantes se colocam por trás de
Carlos, que agora avança, com os braços estendidos, rumo a Angelito.)
FIM
[1]Pulvis es et in pulverem reverteris
* Informações sobre a peça podem ser lidas
em: http://teatrojornal.com.br/tag/virgilio-pinera/