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José Sanchis Sinisterra

!Ay, Carmela!
Elegia de uma guerra civil
em dois actos e um epilogo

Ao meu pai

Tradução de Gil Salgueiro Nave


Janeiro 2010

1
PERSONAGENS

PAULINO
CARMELA

A acção não ocorreu em Belchite em Março de 1938.

PRIMEIRO ACTO
(Palco vazio, sumido na obscuridade. Com um sonoro “clic” acende-se uma
triste lâmpada de ensaios e, passado um pouco, entra PAULINO: roupas
descuidadas, vacilante, com uma garrafa na mão. Olha o palco. Bebe um trago.
Volta a olhar. Atravessa a cena desapertando a braguilha e desaparece pela
lateral oposta. Pausa. Volta a entrar, abotoando-se. Olha de novo. Vê ao fundo,
no chão, uma velha grafonola. Vai junto a ela e tenta pô-la a funcionar. Não
funciona. Pega no disco que estava posto nela, olha-o e tem um impulso de o
partir, mas contém-se e volta a pô-lo na grafonola. Sempre de cócoras e de
costas viradas para o público, bebe outro trago. O seu olhar descobre no chão,
noutra zona do fundo, um pano. Vai junto a ele e levanta-o, segurando uma ponta
com os dedos: é uma bandeira republicana meio queimada.)

PAULINO (cantarola):

…pero nada poden bombas,


rumba, la rumba, la rumba, va
donde sobra corazón,
ay Carmela, ay Carmela…,

(Volta para junto da grafonola e vai cobri-la com a bandeira. Ao encurvar-se para
fazê-lo, escapa-se-lhe um sonoro traque. Pára um momento, mas conclui a operação.

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Uma vez em pé, faz soar, agora deliberadamente, várias ventosidades que evocam um
toque de trompete. Ri num sussurro. Gira sobre si e olha para a sala. Avança até ao
proscénio, põe-se em sentido e saúda militarmente. Novo traque. Levanta o braço
direito, em saudação fascista, e declama:)

En el Cerro de los Angeles,


Que los ángeles guardaban,
Han fusilado a Jesus!
Y las piedras se desangarn!
Pero no te assustes, madre!
Toda Castilla está en armas!
Madrid se ve ya muy cerca.
No oyes? Franco! Arriba Espanha!
La hidra roja se muere
De bayonetas cercada.
Tiene las carnes abiertas
Y las fauces desgarradas.
Y El Cid, con camisa azul,
Por el cielo cabalgava…

(Novo traque. Ri num sussurro. De repente, julga ouvir um ruído nas suas costas e
sobressalta-se. Tem um reflexo de fuga, mas contém-se. Pela lateral do fundo entra
uma luz esbranquiçada, como se tivessem aberto uma porta. PAULINO aguarda,
temeroso.)

PAULINO – Quem está aí?

(Entra CARMELA, vestida com um discreto traje de passeio.)

CARMELA – Olá, Paulino.

PAULINO – (Aliviado.) Olá, Car… (Sobressalta-se.) Carmela! Que fazes aqui?

CARMELA – Bem vês.

PAULINO – Não é possível… (Olhando a garrafa.) Se não bebi quase…

CARMELA – Não, não é do vinho. Sou eu, de verdade.

PAULINO – Carmela…

CARMELA – Sim, Carmela.

PAULINO – Não pode ser… (Olha a garrafa.)

CARMELA – Sim, pode ser. É que, de repente, recordei-me de ti.

PAULINO – E assim sem mais nem menos?

CARMELA – Já está, sim. Recordei-me de ti, e aqui estou.

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PAULINO – E deixaram-te vir, assim às boas?

CARMELA – Como vês.

PAULINO – Assim facilmente?

CARMELA – Bom, não foi assim tão fácil. Custou-me bastante encontrar isto.

PAULINO – Mas, vieste assim, andando, sem mais nem menos?

CARMELA – Caramba, rapaz: quantas perguntas. Qualquer um diria que não estás
contente por me ver.

PAULINO – Que não estou contente? Mas claro que sim: contentíssimo… Mas,
compreende… Como podia eu imaginar…?

CARMELA – Não, sim já compreendo que aches estranho… Também a mim me parece
um pouco esquisito.

PAULINO – Eu pensava que… depois daquilo… já tudo…

CARMELA – Vê-se que tudo não…, que alguma coisa fica…

PAULINO – Que curioso.

CARMELA – Di-lo a mim…

PAULINO – Mas, então, ali… o que é que há?

CARMELA – Nada.

PAULINO – Nada?

CARMELA – Bom: quase nada.

PAULINO – Mas, quê?

CARMELA – Quê o quê?

PAULINO – Que é isso, esse “quase nada” que há ali?

CARMELA – Não sei… pouca coisa.

PAULINO – Que coisas?

CARMELA – Muito seco.

PAULINO – Seco?

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CARMELA – Ou algo assim.

PAULINO – Queres dizer que é como isto?

CARMELA – Como quê?

PAULINO – Como isto…, como estas terras…

CARMELA – Algo assim.

PAULINO – Seco…

CARMELA – Sim: muito seco, pouca coisa.

PAULINO – Com árvores ?

CARMELA – Algumas há, sim: murchas.

PAULINO – E rios?

CARMELA – Mas secos.

PAULINO – E casas? Aldeias?

CARMELA – Casas?

PAULINO – Sim: casas, gente…

CARMELA – Não sei.

PAULINO – Não sabes? Que queres dizer?

CARMELA – Que não sei.

PAULINO – Mas, viste, sim ou não?

CARMELA – Se vi, o quê?

PAULINO – Gente, pessoas…

CARMELA – Pessoas?

PAULINO – Sim pessoas: homens e mulheres, como eu e como tu.

CARMELA – Vi algum, sim…

PAULINO – E então?

CARMELA – Então o quê?

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PAULINO – Que fazem? Que dizem?

CARMELA – Nada.

PAULINO – Não fazem nada?

CARMELA – Quase nada.

PAULINO – Como quê?

CARMELA – Não sei: andam, param… tornam a andar…

PAULINO – Mais nada?

CARMELA – Coçam-se.

PAULINO – Coçam-se?

CARMELA – A tinha.

PAULINO – A tinha? Também têm tinha?

CARMELA – Isso parece.

PAULINO – Pois, chiças!… Poucos e tinhosos…

CARMELA – Tem em conta que aquilo é muito grande.

PAULINO – Sim, mas… E que dizem?

CARMELA – Dizer?

PAULINO – Sim, dizer. Dizem-te alguma coisa?

CARMELA – A mim?

PAULINO – Sim, a ti. Falam-te?

CARMELA – Muito pouco… Quase nada.

PAULINO – Como quê?

CARMELA – Não sei… Por exemplo: “Mau ano”…

PAULINO – Mau ano… E que mais?

CARMELA – Pois… “Ide com Deus”…

PAULINO – E que mais?

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CARMELA – Pois… “ Belo rabo” …

PAULINO – Como?

CARMELA – Belo rabo.

PAULINO – Dizem-te isso?

CARMELA – Bom, foi um que mo disse.

PAULINO – Quem?

CARMELA – Não sei. Ainda não conheço lá ninguém.

PAULINO – “Belo rabo”… Será possível?

CARMELA – Era um assim, grandote, moreno, espertalhão, com a cabeça aberta, a


aproveitar-se da situação…

PAULINO – Como está o mundo!

CARMELA – Bom, o mundo…

PAULINO – Ou lá o que for… E tu que fizeste?

CARMELA – Eu?

PAULINO – Sim, tu. De certeza que achaste graça…

CARMELA – Homem, graça… Mas não se lhe notava má intenção.

PAULINO – Não faltaria mais nada: com a cabeça aberta…

CARMELA – Nem queiras saber, pois mesmo assim, era um belo moço…

PAULINO – Pois: belo moço… Tu, pelo que vejo, não mudarás nem…

CARMELA – Anda, tonto… Não vês que o digo para te pôr ciumento? Nem olhei para
ele sequer. Estou mesmo jeitosa para galanteios. Se nem me sinto, o corpo…

PAULINO – Dói-te?

CARMELA – Quê?

PAULINO – Isso… as… aí onde…

CARMELA – Não, doer, não. Não sinto quase nada. É como se… Como direi? Por
exemplo: quando tens uma perna dormente, estás a ver? Sim, sente-la, mas como se não
fosse tua…

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PAULINO – Estou a ver… E, por exemplo, se te toco assim… (Toca-lhe a cara.) Que
sentes?

CARMELA – Pois, que me tocas.

PAULINO – Ah!, Sim?

CARMELA – Sim. Um pouco dormente, mas sinto.

PAULINO – Que curioso… Eu também te sinto, mas… não sei como dizê-lo…

CARMELA – Retraída.

PAULINO – É isso: retraída. Que curioso… E … Dar-te um beijo, posso?

CARMELA – Não: beijos, não.

PAULINO – Porque não?

CARMELA – Porque não. Porque estou morta, e aos mortos não se dão beijos.

PAULINO – Sim, mas…

CARMELA – Nem mas, nem nada.

PAULINO – Bom, bom: não te ponhas assim…

CARMELA – É que tu, também…

PAULINO – Como não me pude despedir…

CARMELA – Mas agora, já te aguentas.

PAULINO – Claro.

CARMELA – Eu também me aguento, não penses.

PAULINO – Sim?

CARMELA –Pareceu-me muito mal.

PAULINO – Sim?

CARMELA – Muito mal, sim.

PAULINO – E não… me guardas rancor?

CARMELA – Rancor? Porquê?

PAULINO – Mulher, por aquilo…, porque eu não…

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CARMELA – Olha Paulino: cada um é como cada qual.

PAULINO – Isso é verdade.

CARMELA – E tu, não me leves a mal, mas sempre foste um cagarolas.

PAULINO – Carmela, por Deus, eu…

CARMELA – Um cagarolas, Paulino. As coisas são o que são. No palco, um anjo; na


cama, um demónio… Mas, em tudo o resto, um cagarolas. Ou não?

PAULINO – Mulher, eu…

CARMELA – Lembras-te em Oviedo, sem ir mais longe, com aquele fulano do salão de
festas… Como se chamava?

PAULINO – Dom Saturnino…

CARMELA – Isso: dom Saturnino…

PAULINO - Grande passarão! Não mo recordes! Missa diária, vereador, oito filhos…,
um deles mongolóide e outro cónego da catedral…, e ele, pela noite, gerente do pior
tugúrio do norte de Espanha… Nem mo recordes.

CARMELA – Recordo-to só para que recordes o valente que és.

PAULINO – Eu?

CARMELA – Sim, tu. Agora, muita desconsideração por ele, mas nesse tempo quase
que o metes na minha cama.

PAULINO – Como podes dizer isso, Carmela?

CARMELA – Pois, como vês: digo-o.

PAULINO – És injusta comigo. Eu só te pedia que lhe fizesses boa cara para que não
nos despedisse. Porque eu, com a minha afonia, estava em muito má forma.

CARMELA – E por isso não abrias a boca quando ele te gritava e insultava diante de
toda a gente?

PAULINO – Bem sabes que estava afónico e quase não podia falar.

CARMELA – Afónico, sim… É isso que te acontece: ficas afónico quando é preciso
lutar por qualquer coisa.

PAULINO – Eu sou um artista, não um lutador de boxe… E além do mais, quando faz
falta, também saco o que há que sacar…

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CARMELA – Que sacas tu?

PAULINO – O que há que sacar. Em Albacete, o ano passado, por exemplo… Já não te
recordas?

CARMELA – Em Albacete?

PAULINO – Sim, em Albacete. Quem deu a cara contra aqueles milicianos que nos
queriam confiscar todo o material?

CARMELA – Não me lembro.

PAULINO – Ah, não te lembras… Não te lembras da coragem com que fui buscar o
sargento e lhe disse na sua frente: “Senhor sargento: os seus homens…”?

CARMELA – Era um cabo.

PAULINO – Como?

CARMELA – Que era um cabo, não um sargento, já me lembro… e estavam todos


meios bêbados a gozar...

PAULINO – A gozar? Tens a certeza?

CARMELA – Até havia uns quatro que eram de Huelva e acabamos todos a cantar
fandangos, não te lembras?

PAULINO – Isso foi já no final, depois de que eu lhes fazer má cara e pôr os pontos nos
iis.

CARMELA – Pois…

PAULINO – Certamente, viste-los?

CARMELA – A quem?

PAULINO – Aos da outra noite …

CARMELA – A quem da outra noite?

PAULINO – Aos milicianos da outra noite…(Assinala um dos lados da sala.) Os que


estavam aqui, presos…

CARMELA – Presos?

PAULINO – Sim, os prisioneiros… Não te lembras? Os que iam a…

CARMELA – Que noite?

PAULINO – A outra noite, aqui, quando fizemos o espectáculo…

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CARMELA – Que espectáculo?

PAULINO – O espectáculo de… Mas é possível que não te lembres?

CARMELA – De muitas coisas não me recordo, às vezes… Vão e vêm …

PAULINO – Claro, é natural, mas…

CARMELA – Agora mesmo, por exemplo, acabo de me lembrar que tenho que ir
embora…

PAULINO – Que tens que te ir embora? Aonde?

CARMELA – Não sei… Vem-me à cabeça que tenho que ir a um sítio…

PAULINO – A que sítio?

CARMELA – Não sei mas tenho que ir…

PAULINO – Para quê?

CARMELA – Não me recordo… Alguém disse que tínhamos que ir a não sei onde, para
não sei quê…

PAULINO – Mas, voltarás, não?

CARMELA – Sim…, suponho que sim…

PAULINO – Promete-me que voltarás, Carmela. Não me podes deixar assim.

CARMELA – Assim? Como?

PAULINO – Pois assim, com este…, com esta… Bom: tu entendes-me.

CARMELA – Sim, entendo-te. Farei todo o possível para voltar… (Vai a sair.)

PAULINO – Diz-lhes que te deixem…, diz-lhes que eu, que tu…

CARMELA – Digo-o a quem?

PAULINO – Não sei, tu saberás… Aos que mandam…

CARMELA – Ali ninguém manda… creio.

PAULINO – Pois então volta, eh? Espero-te.

CARMELA – Sim, espera-me…(Sai por onde entrou. Apaga-se a luz esbranquiçada.)

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PAULINO – (Fala para a lateral, sem se atrever a segui-la.) Espero-te aqui, eh,
Carmela? Aqui mesmo… Sem me mexer… Até que voltes. E não te esqueças, que tu…
(Gesto de despiste.) E mais agora, acabada de morrer… (Pensa.) Acabada… Mas então,
como é possível que …? Porque eu não estou bêbado… (Dá palmadas na cara. Olha o
palco, depois a sala, e outra vez o palco, percorrendo-o. Detém-se diante da zona
lateral por onde entrou e saiu CARMELA: parece que quer inspeccionar a saída, mas
não se atreve. É assaltado por uma ideia repentina e começa a actuar
precipitadamente: pega na garrafa de vinho e deixa-a em bastidores fora do palco; faz
o mesmo com a grafonola e a bandeira. Compondo o fato e o cabelo, limpa com os pés
a sujidade do chão e coloca-se no proscénio, em frente ao público. Uma vez ali, fecha
os olhos e aperta os punhos, como desejando algo muito intensamente, e por fim adopta
uma atitude de risonho apresentador. Quando parece que vai falar, descompõe a sua
posição, olha a luz de ensaios e sai pela lateral. Ouve-se o “clic” do interruptor e a luz
apaga-se. Após uma breve PAUSA, às escuras, entra de novo e coloca-se no centro do
proscénio, gritando para o fundo da sala:) Quando quiser, meu tenente! Estamos
preparados! (Silêncio. Não acontece nada. Volta a gritar:)Em frente com o ensaio de
luzes, meu tenente! Avanti! Stiamo presti! Luci, mio teniente! (A cena ilumina-se
brilhantemente. PAULINO, que agora tem posto um gorro de soldado nacional e leva
uns papeis na mão, fica um momento encandeado.) Bom, homem, bom… Não se ponha
assim… De certeza que no princípio é esta luz toda? (Folheia os papeis e grita.) Tuta
questa luce, in principio? (As luzes apagam-se e voltam a acender-se, esta vez com
menos intensidade.) Bem me parecia a mim… (Novo apagão e de novo
Luz, ainda que com menos intensidade) Nem tanto, homem, nem tanto, que nos deixa às
escuras!... No tanti, uomo, no tanti!... ( A luz desce mais.) Que nem tanto, digo, que não
a baixe tanto! Ao contrário: mais luz! Più, più, più…!

CARMELA assoma pela lateral, acabando de se vestir com um lamentável traje de


andaluza.

CARMELA – Mas, a que vem essa agora, fazer de pássaro? Isso não o temos
ensaiado…

PAULINO – (Bufando.) Qual pássaro, coisa nenhuma! Que lhe estou dizendo ao
tenente que dê mais luz… Mas esse, além de maricas, é surdo…

CARMELA – Ah!, bom… (Desaparece.)

PAULINO – (Consultando os papeis.) Vamos a ver, vamos a ver… Não nos ponhamos
nervosos, que ainda falta uma hora… (Consulta o relógio.) Uma hora, digo? Só meia!
(Encontra a folha que procurava.) Aqui está: “Princípio”… É isso… (Grita para o
fundo da sala:) Os vermelhos! Os vermelhos , meu tenente! I rossi! (Apagão total.)
Não, homem! Que está a fazer? Não se assuste…! Quero dizer os botões vermelhos!
Que carregue só nos botões vermelhos para o princípio! I bottoni rossi! (Acende-se a luz
com intensidade média.) Finalmente ! É isso! Perfeito! Perfetto, mio tenente! Assim!
Cosí, cosí!... Princípio, cosí! I bottoni rossi! ( Dá um bufo de alívio e fala para a lateral,
a CARMELA.) Se isto dura muito, vou destroçar a voz à força de tanto gritar… E
depois, nos duetos vais tu fazer de ventríloqua … (Para o fundo da sala.) Ouça senhor,
meu tenente ! Porque não abre a janelita da cabine para me ouvir melhor? La finestrina
de la cabina, aprire, aprire…! ( Acompanhando com gestos super expressivos. Força a
vista e suspira.) É isso! Muito bem! Molto bene, mio tenente! Cosi, voce mia, no

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cascata…! (Para a lateral:) E menos mal que aprendi alguma coisa de italiano no
Conservatório, que se não, não sei como nos arranjaríamos…

CARMELA – (Entra de novo, tratando ainda de apertar o vestido.) Costura, é que


devias ter aprendido, que agora nos seria mais útil… anda , ajuda-me a apertar, que este
farrapo vai-me cair no meio da festa.

PAULINO – Farrapo? Não, mulher: fica-te até muito bem…

CARMELA – Anda lá, muito bem…! Nem uma hora tive para o fazer… E de um
cortinado que só visto… Olha que aparecer diante de toda essa “homenzada” neste
ridículo...

PAULINO – De verdade que não… (Para o fundo da sala, enquanto ajuda


CARMELA:) Um momento, meu tenente! (Sorri forçadamente.) Cose de donne…! (A
CARMELA.) De verdade que estás muito salerosa…

CARMELA – O saleiro devia eu meter-to pela boca abaixo… Devias ter dito que, pelo
menos, sem os vestidos, não podíamos actuar…

PAULINO – Mas eu disse-lhe…

CARMELA – E se os querem, pois que vão a Azaila, que os conquistem, já que são tão
valentes, e que no-los tragam…

PAULINO – (Temeroso.) Queres calar-te, imprudente?

CARMELA – E já veriam que gala tão bonita lhes fazíamos. Mas assim, sem nada…
(Bruscas mudanças de luzes.)

PAULINO – Já vou, já vou, meu tenente! (Empurrando CARMELA para fora de cena.)
Anda e acaba tu…

CARMELA – (Fora.) Vou ficar em bragas logo na primeira dança, vais ver!...

PAULINO – (Para o fundo da sala:) O senhor desculpe, meu tenente, mas é que… la
signorina Carmela está muito nervosa por ter de actuar assim: sem cenários, sem
figurinos , sin niente de niente … (Mudanças de luzes.) Bom, sim: luzes, sim. Muito
boas as luzes. Molto buone. Luci, splendide… Do mal o menos, porque, se não,
estaríamos na contingência … quero dizer… Bom, está-me a entender. Enfim, onde é
que eu ia: compreenda o senhor que nós somos artistas também, se bem que modestos…
Não como o senhor, claro, mas artistas… De “varietés”, claro, mas artistas… Aqui
onde me vê, eu tinha uma brilhante carreira de tenor lírico… Eu, tenor lírico de …
Zarzuela, compreende? Capisce “zarzuela”, opereta espanhola. (Canta:)

“Hace tiempo que vengo al taller


y no sé a que vengo.
Eso es muy alarmante…”

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(Casparreia.)Tenor lírico, sim, mas a guerra… quero dizer, a Cruzada, o Glorioso
Levantamento Nacional…, mas isso: carreira cagata, spezzata… E Carmela, la
signorina: uma figura do bailado andaluz, flamenco … Compreende, “flamenco”?
(Sapateia. ) Olé, gitano!... Enfim, meu tenente, como estava a dizer: Veja que é muito
duro para um artista dar menos do que pode dar, e ainda por cima fazê-lo mal,
compreende? Cosa mala fare arte cosi, spogliati, smantellati, smirriati… Non è vero? É
veríssimo, mi teniente, não me diga que não…O senhor sabe isso muito bem, como
artista que é, italiano além do mais, do berço da arte… Itália, e não é nada: Miguel
Angel, Dante, Petrarca, Puccini, Rossini, Boccherini, Mussolini… Enfim, para quê
continuar: aquilo está cheio. Pois é isso: já está a compreender, angustiados como
estamos a Carmela e um servidor, por ter que improvisar um sarau nestas condições…
E mais perante um público tão…tão…

CARMELA – (Saindo furiosa, ainda meio vestida.) Tantarantán! Deixa, que lho ponho
claro em quatro palavras…

PAULINO – (Tratando de o evitar.) Tu não abres a boca, que nos deitas a perder…
(Para o fundo:) Está a ver como está nervosa, meu tenente…

CARMELA – Não estou nervosa, seu tenente! O que estou é furiosa, sim.

PAULINO – Carmelazinha, por Deus…

CARMELA – (Para o fundo:) Aqui Paulino e esta servidora não temos que fazer de
ridículos diante da tropa…

PAULINO – Do exército, Carmela…

CARMELA – Pois do exército, para além do mais, certamente, para celebrar a ocupação
de Belchite…

PAULINO – A libertação, queres dizer…

CARMELA – Isso, a libertação…, pois de certeza que devem ter libertado todas as
tavernas, e nem lhe digo nem lhe conto a vontade de armar confusão que devem trazer
no corpo.

PAULINO – Cala-te Carmela, que o tenente quase não entende o espanhol. Eu lho
explicarei… (Para o fundo). O senhor veja, meu tenente: la signorita vuole dire…

CARMELA – Ouve, tens a certeza que ele está aí?

PAULINO – Quem? O tenente? Pois, claro: se estou a falar com ele desde há um
bocado…

CARMELA – Olha que se pôs a andar…

PAULINO – Como se iria assim, na boa, sem me dizer nada? É um homem


educadíssimo…(Grita para o fundo:) Meu tenente! Meu tenente! (Escutam.)

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CARMELA – Não te dizia eu…?

PAULINO – Meu tenente! O senhor está aí?

CARMELA – Era o que eu te dizia, Paulino: esse foi dar uma volta. E de certeza que se
foi com o cabeleireiro, que andava atrás dele esta tarde.

PAULINO – Cala-te, insensata! (Para o fundo.) Meu tenente…! (Falha-lhe a voz.


Aterrado, leva as mãos à garganta. Sussurrando:) Ai, meu Deus!

CARMELA – O que é que se passa?

PAULINO – (Idem.) A voz!

CARMELA – Qual voz?

PAULINO – A minha… Já se me pifou…

CARMELA – Como te vai a pifar a voz por dois gritos de nada?

PAULINO – Temia-o… Entre o susto desta manhã, o frio que faz, e agora os gritos…

CARMELA – Queres falar normalmente para ver como não se passou nada?

PAULINO – Não vou poder cantar, nem sequer falar e então adeus espectáculo…

CARMELA – Pois olha que grande desgosto seria…! Pela tua mãe., Paulino: continua
afónico até à manhã de manhã e safamo-nos desta merda.

PAULINO – (Com voz normal.) E quem nos safa de morrer fuzilados por
desobediência, eh? Muito boa é esta gente…!

CARMELA – Bolas, homem: já te voltou a voz…

PAULINO – É verdade: já me voltou… (Em diferentes tons e intensidades:) Voltou-me


… volto… vol… tooou…

CARMELA – Tu, com essa de me quereres enganar...

PAULINO – Mas pode-me ir embora a qualquer momento, durante o espectáculo… E


que fazemos então?

CARMELA – Para ti é muito fácil: é fazeres o número dos traques…

PAULINO – (Como se lhe tivesse insultado a mãe.) Cala-te Carmela!

CARMELA – Pois , o que é que se passa? Saía-te sempre bem e gostava muito…

PAULINO – Que te cales, estou a dizer-te? Queres mortificar-me?

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CARMELA – Eu?

PAULINO – Nunca mais! Estás me a ouvir? Nunca mais! Jurei-o em Barcelona, e


nunca mais! Nem que morra de fome.

CARMELA – Também o juras-te: em Logroño…

PAULINO – Em Logroño não o jurei: prometi-o, que não é a mesma coisa.

CARMELA – Bom, se tu o dizes…

PAULINO – Mas, é que não estás a compreender Carmela? Não te dás conta como me
humilhas recordando-me essa… essa… ? Eu sou um artista, um cantor!

CARMELA – E isso que tem a ver? Se ainda por cima tens esse dom que Deus te deu…

PAULINO – Dom? Chamas dom a essa… a essa ignomínia ?

CARMELA – A essa quê?

PAULINO – A essa vergonha, a esse castigo, a essa cruz…

CARMELA – Olha-me que exagerado…

PAULINO – Não sou exagerado. O que acontece é que tenho a minha dignidade. Sabes
o que isso é? Não, suspeito que não…

CARMELA – Ouve, bem… Que eu, quando quero, sei-me por tão digna como as
demais…

PAULINO – Refiro-me à dignidade do artista, compreendes?

CARMELA – Ah, bom… Se te pões assim…

PAULINO – Ponho-me no meu lugar. Se alguma vez de lá tive que sair, ou seja,
rebaixar-me, ou seja, perder a dignidade…

CARMELA – Referes-te a deitar mão aos traques?

PAULINO – Aos traques, sim! A esse… “dom divino” como tu lhe chamas…! Já podes
ver que dom divino é, por sua culpa puseram-me fora do seminário aos treze anos…

CARMELA – Puseram-te fora? Pois não me tinhas dito que te vieste embora porque um
padre te andava…?

PAULINO – Me andava a querer mexer a toda a hora, sim, aquele padre… Mas a
verdade é que me puseram fora, me expulsaram, porque, para me fazer engraçadinho
diante dos meus companheiros, abrilhantava o “dom divino” em plena missa, no
momento da consagração…

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CARMELA – (Benzendo-se.) Jesus, Maria e José! E porquê essa heresia?

PAULINO – Não sei explicar… Mas tenho muito claro que, já mais velho, cada vez que
caí nesse… comércio, ou seja, cada vez que me rebaixei para ganhar a vida… com
isso… pois, isso: algo se rompeu em mim.

CARMELA – Que é que se te rompeu?

PAULINO – Por dentro, quero dizer…

CARMELA – Por dentro, não sei… Mas, por fora, tinham-nos rompido a cabeça em
Barcelona e em Logroño se não tivesses actuado com os traques… Tu afónico, eu tísica,
estava para ver como teríamos cumprido os contratos…

PAULINO – Há um contrato mais importante, Carmela, e é o que um artista tem


firmado com as musas.

CARMELA – Caramba, Paulino! Como estás hoje… Até pareces saído de uma comédia
de dom Jacinto de Benavente…

PAULINO – Basta, Carmela: não discutamos mais. Mas, convence-te: eu sou um


cantor. Sem sorte, é verdade, mas um cantor. E os traques são o contrário do canto,
compreendes? Os traques são o canto ao contrário, a arte rasteira, a vergonha do
artista… E se uma pessoa esquece isso, ou não o quer ver, ou mesmo sabendo-o, tanto
lhe faz, e diz: “As pessoas gostam, olha como riem, a apreciar traques… ou o que seja”,
então, então, Carmela, é… é… pois, isso: a ignomínia…

CARMELA – E tu a dar-lhe…!

PAULINO – Dou-lhe, sim: a ver se percebes de uma vez. Não mais traques na minha
carreira… nem ainda que me fuzilassem os fascistas … (Repara de repente no que disse
e a sua exaltação acalma-se de imediato. Olha, medroso, à sua volta.) Mas… que estou
a dizer? Como pude…? (A CARMELA, irado:) Dás-te conta como me provocas com as
tuas…?

CARMELA – Quem te provoca? Se tu é que te puseste assim sozinho…

PAULINO – (Muito nervoso.) Onde está o tenente? (Para o fundo da sala:) Meu
tenente!

CARMELA – Eu, cá para mim, suspenderam o espectáculo…

PAULINO – Estranharia muito. (Baixa a voz, inquieto.) E se é um truque para ver se


nos apanham a dar à língua?

CARMELA – Dar à língua sobre o quê?

PAULINO – Não sei… Talvez pensem que somos espiões, ou algo assim… (Grita
para o fundo.) Meu tenente!

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CARMELA – Espiões, tu e eu? Essa é de rir! Mas se de manhã lhes dissemos tudo o
que queriam e mais…

PAULINO – Já o sei… Mas esta gente é muito desconfiada. Vêem vermelhos por toda a
parte… Onde está Gustavete?

CARMELA – Foi ver se lhe arranjavam a grafonola.

PAULINO – Essa é outra: Gustavete manejando a grafonola… Nem grafonola nem


Gustavete… (Para o fundo:) Meu tenente!

CARMELA – Que tens que dizer do moço?

PAULINO – Não digo nada… sabes o que me ocorre? Vamos disfarçar.

CARMELA – Disfarçar?

PAULINO – Sim: façamos como se estivéssemos a ensaiar uma dança…

CARMELA – Mas, não está na hora de começar?

PAULINO – Por isso mesmo: já é hora de começar, e o tenente nem respira, a tropa não
aparece… Isto dá-me muito mau presságio... Vamos… (Colocam-se em posição de
iniciar um numero de dança.)

CARMELA – Olha, Paulino, não comeces com as tuas apreensões, que eu já te


conheço… e conheço-me a mim: tu assustas-te, assustas-me a mim, assustas-te mais
ainda de me veres assustada e eu…

PAULINO – Um, dois, três: (Começam a evoluir pela cena em rudimentar coreografia
e continuam dialogando enquanto vigiam, inquietos, a sala e os bastidores do palco.)
Que lhe estava dizendo? Um, dois, um dois!

CARMELA – A quem?

PAULINO – Ao tenente… Três, quatro, três, quatro!

CARMELA – Quando?

PAULINO – Há momentos, antes de sair tu… Roda à direita, um, dois!... A última vez
que manejou as luzes foi…

CARMELA – E que mais dá isso?

PAULINO – Roda à esquerda, três, quatro!... Por ter dito alguma imprudência…

CARMELA – Imprudência, tu? Muito me estranharia…

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PAULINO – Cinco, seis, atrás!... Já sei: estava-lhe a dizer que isto de actuar assim, com
o que se traz vestido…

CARMELA – Com o que trazes vestido? Oxalá pudesse eu actuar com a minha roupa, e
não com estas cortinas remendadas…!

PAULINO – (Detém-se.) A tua roupa! Onde está a tua roupa?

CARMELA – Onde há-de estar? Nesse camarim cheio de baratas que…

PAULINO – (Assustado.) Que fizeste ao panfleto da C.N.T. que nos deram ontem à
noite em Azaila?

CARMELA – Ai, filho! Que susto me pregaste… Usei-a ontem à noite mesmo, na
retrete.

PAULINO – De certeza que não o levavas no saco, esta manhã?

CARMELA – Pensas que sou alguma porca?

PAULINO – Não mulher… Estou a pensar que… Mas, continuemos… Um, dois, um,
dois!...Estou a pensar que esta manhã quando nos detiveram, registaram-nos com muita
delicadeza…

CARMELA – Isso é verdade: as coisas são como são.

PAULINO – No interrogatório também foram muito amáveis …

CARMELA – Muito. O sargento não fazia outra coisa senão dizer-me: “Tranquila,
prenda, que isto é um mero trâmite…”

PAULINO – E cada vez que to dizia, pancadinha no rabo.

CARMELA – No rabo, não: aqui acima.

PAULINO – E acreditaram de imediato que cruzamos as linhas sem nos dar-mos


conta…

CARMELA – E não é verdade? (Vão deixando de dançar.)

PAULINO – Sim, mas isso, cabe na cabeça de alguém?

CARMELA – Homem: com o nevoeiro que estava…

PAULINO – Sim, anda diz-lhes tu a uns militares, que passaste, sem te dares conta, da
zona republicana à zona nacional numa carripana, como se fosses almoçar ao campo…

CARMELA – A almoçar, não; mas a comprar morcelas é verdade que vínhamos.

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PAULINO – A comprar morcelas virias tu, que eu vinha ver se nos contratavam aqui
em Belchite para as festas.

CARMELA – Mas, que festas iriam fazer sabendo que os fascistas estavam já em
Teruel?

PAULINO – Ninguém imaginava que avançariam tão depressa.

CARMELA – Pois, bem podes ver: aqui os tens.

PAULINO – Ouve, mas, estamos a discutir o quê?

CARMELA – Ah, tu saberás…

PAULINO – Claro, tu, sempre que abro a boca, contrarias-me, e aí está montada a
discussão.

CARMELA – Eu? Mas se és tu quem contesta tudo o que digo…

PAULINO – Que te contesto eu a ti?

CARMELA – Tudo: que sim o rabo, que sim o nevoeiro, que sim as morcelas…

PAULINO – Não é verdade: és tu quem dizias que eu não tinha que estranhar que eles
tivessem acreditado que nós…

De repente produz-se uma mudança de luzes. Os dois imobilizam-se, surpreendidos,


mas CARMELA reage rapidamente e transforma a sua discussão num número musical
improvisado.

CARMELA – (Cantando e dançando:)

Acreditaram que nós


Não acharemos estranho
Porque digam que tu dizes
Que já não me queres “não”

Nova mudança de luzes, mais enérgica. CARMELA dirige-se decidida ao proscénio e


fala ao “Tenente”, enquanto Paulino ainda permanece aturdido pela anterior reacção
dela.

Você está aí, senhor tenente? Faz uma hora que o estamos a chamar… E é para lhe
dizer que diga você ao senhor comandante que nós ainda não estamos preparados, nem
a música pronta. Assim que faça o favor de por a tropa a fazer instrução durante meia
hora, que lhes fará muito bem para lhes baixar o vinho, entretanto aqui Paulino e esta
servidora acabam de arranjar-se…

PAULINO – (Reagindo, mas ainda balbuciante.) Dice… mio tenente… la signorina


dice… vuole dire… que noi…

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Mas já CARMELA lhe agarrou a mão e puxou decidida para fora de cena. Esta fica um
momento vazia. Bruscamente, faz-se o

ESCURO

Na escuridão escuta-se a voz de CARMELA aproximando-se: “Paulino!... Paulino!.


Entra pelo bastidor do fundo a luz esbranquiçada e vemos PAULINO dormindo no
chão, feito um novelo. Torna a ouvir-se mais perto a voz de CARMELA, e a luz de
ensaios acende-se com um “clic”.

CARMELA – (Entra vestida com traje de passeio.) Paulino!... ( Ao vê-lo chama-o a


seu lado.) Que fazes, Paulino? Estás…? ( Vai acordá-lo, mas contém-se.) Adormecido,
sim: pobre filho. Cansado que deve estar… (Olha à sua volta, sai de cena e regressa
com a bandeira republicana. Cobre-o com ela.) Não vás tu ter frio… Com este Inverno
que não há maneira de acabar… (Olha-o, pensativa.) Sortudo tu, que pelo menos podes
dormir um bocado. Eu, pelo contrário, estás a ver: todo o santo dia… ou a noite…ou lá
o que seja essa coisa cinzenta, mais desperta que um centurião. O bonito que era isso de
sentir ardor nos olhos, e logo a preguiça por todo o corpo, e enrolar na cama, ou onde
fora, e deixares-te levar nas onditas do sonho, como dizia minha avó Mamanina… Onde
estará agora? Encontrar-me-ei com ela… e com meu pai… e com meu tio El
Cucharillas e sua mulher La Talenta… e com Ramón el Risicas, meu primo, e …?
Chiça, que família de mortos me tocou! Claro, que não estranho: com a ração de miséria
que nos calhou na vida… E ainda dizia dona Antoñona, a cacique: “Que força têm os
pobres: todo o dia na ceifa só com um limão e um par de alfarrobas, e nunca
morrem…”. A mãe que a pariu…, bem podia ter ficado dentro da tripa, a dona
Antoñona, cara de mona, como lhe chamava-mos em crianças… De certeza que ela e
sua família, continuam vivos e contentes e gordos… Sim, gordos: que com uma das
suas tetas teríamos luzido eu e todas as minhas primas… (Fica pensativa.) Que
estranho!... Já quase não posso sentir inveja, nem raiva, nem…( Concentra-se e esforça-
se.) Dona Antoñona, cara de mona! Dom Melitón, amo cabrão!... (“Ausculta-se” em
busca do sentimento correspondente.) Muito pouco, quase nada… E pena? A ver…
(Concentra-se.) Não te vás, Mamanina! Não ponhas essa cara! Abre os olhos, fecha a
boca…! (“Ausculta-se.”) Bem, sim: ainda me resta pena… E medo? (Concentra-se.)
Os guardas! Que vem a guarda! Todos ao barranco, depressa!... (“Ausculta-se.”) Não,
medo, nada… E de… aquele? (Olha PAULINO, concentra-se.) Dá-lhe, Paulino, não
pares! Dá-lhe, dá-lhe, mais…, agora…! (“Ausculta-se”.) Psche … Não foi grande
coisa… Que lástima, Paulino! Que gosto me davas… Quando me cantavas aquela de:
(Cantarola, com leve movimento compassado.)

Ay, mamá Inês! Ay mamá Inês


Todos los negros tomamos café…

…com o ritmo como um negro rumbero… e sem desafinar nem uma nota… (Sorri com
pícara ternura.) Diabo de homem! Onde terias tu aprendido essas manhas ? De certeza
que não foi no seminário… (Mudança.) Já basta, Carmela. Água que não mais
beberás… Mais te vale ir esquecendo as coisas boas, para que não te coma a nostalgia
… (PAULINO mexe-se e articula algumas palavras ensonadas.) Bem: parece que o
senhor quer despertar. Seja em boa hora…

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PAULINO – (Sonhando em voz alta:) Não…! Não a levem!... Ela não tem…! Eles… a
culpa… esses milicianos…! …A cantar! Ela não!... Esses… que se puseram…!
(Continua murmurando, sem que se lhe entenda.)

CARMELA – Olha com o que este me sai! Pois não está sonhando…! E em voz alta,
além do mais… Eia novidade… ( Tenta acordá-lo com suavidade.) Acorda, rapazinho,
e não te zangues com o que já não tem remédio… Pauli, Paulino… Nada: como uma
criança no primeiro sono… Se até lhe saem os moncos… (Limpa-lhe o nariz com um
lenço. PAULINO resmunga, mas continua dormindo.) A culpa, dizes… Sabe Deus
quem a tem… Os milicianos… eu… tu… o tonto do Gustavete… a hóstia consagrada
… Mas não: eles não creio, pobres moços… Porem-se a cantar, sim. Isso deu-me não
sei quê… Ainda que, claro, que haviam de fazer? Que mais lhes dava, se pela
madrugada iam ser fuzilados? O facto de trazê-los a ver o espectáculo, com correntes e
tudo… E eu, ali, fazendo aquilo, com a bandeira… Que mau íntimo, o tenente! Em vez
de lhes dar a última ceia e matá-los, como Deus manda, trazem-mos aqui, pobres
filhos… a engolir o vexame. A mim estava-me a dar não sei quê logo desde início…
Vê-los aí, tão sérios… (Fica olhando a sala. Cantarola:)

…pero nada pueden bombas,


rumba, la rumba, la rumba,va
donde sobra corazón,
ay Carmela, ay Carmela…

(Como impulsionado por uma mola, PAULINO levanta-se e fica sentado, a pestanejar .
CARMELA sobressalta-se.)

Jesus, Paulino… Bolas! que maneira de acordar…

PAULINO – (Totalmente desperto.)Ah, és tu…

CARMELA – Sim.

PAULINO – Voltaste…

CARMELA – Bem vês.

PAULINO – Sonhei que… (Interrompe-se.)

CARMELA – Quê?

PAULINO – Não, nada… De forma que voltaste…

CARMELA – Sim, voltei.

PAULINO – Menos mal.

CARMELA – Só que… ( Interrompe-se.)

PAULINO – Quê?

22
CARMELA – Custou-me mais.

PAULINO – Que queres dizer?

CARMELA – Isso: que me custou mais.

PAULINO – Porquê?

CARMELA – Não sei… era mais difícil.

PAULINO – Que era mais difícil o quê?

CARMELA – Voltar… Voltar aqui.

PAULINO – Não te deixavam?

CARMELA – Ali ninguém deixa ou não deixa.

PAULINO – Então…?

CARMELA – Ai, não sei… Olha que perguntão… E tu que tens feito?

PAULINO – Eu? Nada… Esperar-te… (Olha o palco e a sala.) É curioso…

CARMELA – Quê?

PAULINO – Isto… Este sítio… Um teatro vazio.

CARMELA – Porquê?

PAULINO – As coisas que…

CARMELA – (Olha o palco e a sala.) Sim, as coisas…

(Ficam os dois olhando, em silêncio.)

PAULINO – E tu onde tens estado?

CARMELA – Quando?

PAULINO – Todo este tempo… Desde que te foste…

CARMELA – Tenho estado… ali.

PAULINO – Sim, mas, onde?

CARMELA – Não sei. Era … um cruzamento de vias.

PAULINO – Um cruzamento?

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CARMELA – Sim: de linhas de comboio. Cruzavam-se duas linhas de comboio.

PAULINO – Queres dizer… uma estação?

CARMELA – Não, não havia estação. Só a caseta do guarda-freios, ou algo assim, no


meio do descampado.

PAULINO – Que estranho… Uma caseta…

CARMELA – Sim, mas não estava.

PAULINO – Não estava quem? O guarda-freios?

CARMELA – Nem ele, nem ninguém. A gente ia chegando, formava-se uma fila…

PAULINO – Uma fila? Punham-vos em fila?

CARMELA – Não nos punha ninguém. Iamo-nos pondo nós, ao chegar…

PAULINO – O costume, claro… E havia muita gente?

CARMELA – Pois ao princípio, não; mas pouco a pouco começou a haver…

PAULINO – E estava aquele tipo…, o desavergonhado da cabeça aberta?

CARMELA – Eu não o vi. Como não era dos mais desfocados…

PAULINO – Desfocados? Que queres dizer? (CARMELA não responde.) Queres dizer
que vos ides… que se vão… como que apagando?

CARMELA – Algo assim… (PAULINO, algo inquieto, toca-lhe na cara. Ela sorri.)
Não homem … Esses devem ser os mortos antigos, do princípio da guerra… ou de
antes. Não te preocupes: eu ainda… (Mudando vivamente de tema.) Sabes quem esteve
um bocado na fila?

PAULINO – Quem?

CARMELA – Não podes nem imaginar… Não adivinhas!

PAULINO – Como vou adivinhar? Com os mortos que…

CARMELA – É um que fazia versos, muito famoso. De certeza que adivinhas…

PAULINO – Ai, mulher, não sei…

CARMELA – Sim, homem, mataram-no mal começou a guerra, em Granada… É muito


fácil.

PAULINO – Garcia Lorca?

24
CARMELA – (Muito contente.) Sim!

PAULINO – Federico Garcia Lorca?

CARMELA – Esse mesmo!

PAULINO – Caramba! Garcia Lorca… Muito famoso… E esteve ali, contigo?

CARMELA – Comigo, sim, ali na fila… Só um pouco, ao princípio. Mas… nem vais
acreditar… sabes o que me fez?

PAULINO – Não. Que te fez?

CARMELA – Escreveu-me uns versos!

PAULINO – A ti?

CARMELA – Sim, a mim!

PAULINO – Escreveu-te uns versos , a ti?

CARMELA – É como estás a ouvir. Vê, trago-os aqui… (Tira um pedacito de papel.)
Com um lápis…

PAULINO – Deixa-me ver… Que importante: escrever-te uns versos… E são bonitos?

CARMELA – Não sei: não os entendo. Mas creio que sim…

PAULINO – (Pegando no papel.) Mostra, eu explico-tos … (Lê.) O sonho se… se…


Ufa, que letra…

CARMELA – Sim, é verdade!

PAULINO – (Lê:)

El sueño se… desvela por… los muros


de tu silencio blanco sin… sin hormigas…
pero tu boca… empuja las… auroras…
con… com… com pasos de agonia.

CARMELA –Muito classe, não é verdade?

PAULINO – (Perplexo, sem saber o que dizer.) Sim, muito… Claro, aqui ele quer
dizer… (Emudece.)

CARMELA – Eu, o que melhor entendo é isso da agonia.

PAULINO – Sim, isso sim. Isso entende-se muito bem… Em contrapartida, o das
formigas…

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CARMELA – De qualquer maneira , tens de reconhecer que é apenas um detalhe.

PAULINO – E é mesmo assim: pequeno detalhe… E mais, estando como está… (Volta
a ler:) De tu silencio blanco sin… Hormigas, diz aqui?

CARMELA – Sim: Formigas, formigas…

PAULINO – Estás a ver, que coisa… Silencio blanco sin hormigas…

CARMELA – E isso do sonho que se desvela, também dá pano para mangas.

PAULINO – Também, também… El sueño se desvela por… Muito bonito, muito


bonito, muita classe… (Devolve-lhe o papel.) Guarda-o bem, eh… Não o vás perder…
E escreveu-tos ali mesmo?

CARMELA – Ali mesmo. Com um lápis … Estava na fila, muito sério, algo apagado
já… Bem vestido…; com buracos, claro… Mas um senhor…

PAULINO – Era um senhor, sim… E um poeta grande. Eu sei uma poesia sua muito
forte. É aquela que começa:

Y yo me la llevé al rio
creyendo que era mozuela,
pero tenía marido…

CARMELA – Sim, eu também a conheço… Do “Romancer flamenco”, não é verdade?

PAULINO – Não, flamenco, não: gitano. El “Romancero gitano”.

CARMELA – Isso. Muito bonita, sim… Pois ali estava ele, e digo-te, olhando o chão,
muito sério, e eu vou e digo…

PAULINO – Havia formigas?

CARMELA – Onde?

PAULINO – No chão, ali para onde ele olhava…

CARMELA – E eu sei? Estava lá agora a reparar nisso, eu…

PAULINO – Sim, claro… Dizia por… Mas continua, continua…

CARMELA – Nisto, digo-lhe: “ O senhor não é daqui, pois não?”… Porque eu notava
um não sei quê… E ele vai e responde-me: “Pois você também não, conterrânea.” E aí
ficámos os dois falando de Granada… E acontece que conhecia a Carucas, uma prima
irmã da filha do primeiro marido da minha avó Mamanina, que tinha estado a servir em
sua casa…

PAULINO – Vê tu, como o mundo é pequeno…

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CARMELA – Isso mesmo lhe disse eu, e ele respondeu-me: “Muito pequeno, Carmela,
muito pequeno… Mas um dia crescerá”.

PAULINO – Disse-te isso?

CARMELA – Sim.

PAULINO – Crescerá?

CARMELA – Sim.

PAULINO – Que coisas… Crescerá…

CARMELA – É nesse momento que se aproxima o padre de Belchite, que quase não se
aguentava direito de tão molengo que estava…

PAULINO – Porquê, molengo?

CARMELA – Não sei muito bem… Vê-se bem que o atiraram do campanário abaixo…

PAULINO – Pobre homem…

CARMELA – Bem o podes dizer, sim…Se visses como suava…

PAULINO – Suar? Com este frio?

CARMELA – Dos apuros em que estava metido. Porque as pessoas já estavam a


começar a ficar zangadas.

PAULINO – Porquê?

CARMELA – Porque não dão a cara.

PAULINO – Quem não dá a cara?

CARMELA – Ninguém: nem Deus, nem a Virgem, nem a pombita…

PAULINO – Que pombita?

CARMELA – A que vive com eles.

PAULINO – Referes-te ao Espírito Santo?

CARMELA – Sim esse. Pois nem o Espírito nem ninguém.

PAULINO – Mas, mulher… Deus e a Virgem não vão andar por aí, a atender toda a
gente.

CARMELA – Bem, está bem… Mas, pelo menos, não sei: os anjos, os santos…

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PAULINO – Nisso tens razão.

CARMELA – S. Pedro, por exemplo… Onde está o S. Pedro?

PAULINO – E a mim é que me perguntas?

CARMELA – E, claro, pois está tudo em grande desordem e abandono.

PAULINO – Não há direito…

CARMELA – Havia uma mulher, muito aborrecida, que não parava de chamar por
Santa Engrácia… “ Mas, bom, dizia, onde está a Santa Engrácia, vamos lá ver? Passei a
vida a rezar-lhe e a pôr-lhe velas todas as sextas feiras… Mais de duzentos duros em
velas lhe terei posto. E agora, quê? Onde raio está a Santa Engrácia?”… E ali não
aparecia nem Santa Engrácia nem ninguém.

PAULINO – Pobre mulher: duzentos duros, já podes ver…

CARMELA – Atirados à rua… E claro, pois o padre era tudo desculpas, que tenham
paciência , que sim, que há-de vir alguém… Mas, qual quê! Ali nada…

PAULINO – (Interrompendo-a.) Ouve, Carmela…

CARMELA – Quê?

PAULINO – Eu… eu não sei o que é isto.

CARMELA – O que é, o quê?

PAULINO – Isto … O que nos está a acontecer… Que tu estejas aqui, morta, e que
possamos falar, tocar-nos… Não entendo como está isto a acontecer, nem porquê…

CARMELA – Eu tampouco, mas … estás a ver.

PAULINO – Juro-te que quase não bebi… E sonhar, já sabes que eu não sonho nunca…
ou quase.

CARMELA – Não, tu com ressonar, já…

PAULINO – Então como é possível?

CARMELA – Que queres que te diga… Ás tantas, digo eu, como há tantos mortos por
causa da guerra e isso, pois não cabemos todos…

PAULINO – Onde?

CARMELA – Onde há-de ser? Na morte… E por isso nos têm por aqui, esperando,
enquanto nos acomodam…

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PAULINO – Não digas tontices, Carmela. Tu pensas que a morte é… um armazém
conserveiro?

CARMELA – E tu que sabes, diz? Já morreste alguma vez?

PAULINO – Claro, aqui a única morta é a senhora… Pois, por pouco…! Onde já se viu
uma morta a comer um marmelo?

CARMELA – (Que de facto, tirou um marmelo e cheira-o.) Deu-mo o padre! E além


disso, não o estou a comer…

PAULINO – Mas, podes comê-lo? Sim… Anda, come-o e verás…

CARMELA – (Vacila.) Que acontece se o como?

PAULINO – Tu, come-o… (CARMELA, após duvidar, morde o marmelo. Triunfal:)


Quê?

CARMELA – Quê, quê?

PAULINO – Isso: que sentes?

CARMELA – Que está sensaborão.

PAULINO – (Surpreendido.) Sensaborão?

CARMELA – Sim; que não me sabe a nada.

PAULINO – A nada? Deixa ver… (CARMELA dá-lho. PAULINO morde um bocado.)


Está óptimo … (Continua comendo.) Como podes dizer que não sabe a nada? (Idem
com voracidade.) Eu acho-o no ponto: nem verde nem maduro de mais. E saboroso
como… (CARMELA pôs-se a soluçar num sussurro. PAULINO compreende, deixa de
comer e vai devolver-lhe o marmelo. Muito atordoado, não sabe o que fazer.) Carmela,
eu … Perdoa… Tu tinhas razão…

CARMELA – (contendo o choro). Tanto que eu gosto de marmelos…!

PAULINO – Carmela, por favor…, perdoa… eu não… (Oferece-lhe.) Queres?

CARMELA – (Rebenta em lágrimas.) Para quê? Se não me sabe a nada…, a nada…

PAULINO – Na realidade… sim que está um pouco sensaborão … Eu… (Subitamente


violento, atira o marmelo e repreende-a.) Porque o fizeste, Carmela? Porque tiveste que
o fazer, diz? Que mais te dava a ti a bandeira, nem a canção, nem o espectáculo inteiro,
nem uns, nem os outros, nem esta maldita guerra? No podias ter feito o número final e
boas festas? Quem te mandou a ti pores-te brava, a armares em corajosa, fazer-lhes
frente…?

CARMELA – (Furiosa, em choro.) Não me grites!

29
PAULINO – (Igual.) Tu é que não devias gritar!

CARMELA – Porque não?

PAULINO – Porque estás morta e os mortos não gritam!

CARMELA – Dizes tu, que não gritam! (Grita.)

PAULINO – Estás a ver!

CARMELA – Ver o quê?

PAULINO – O que conseguiste: tu, mais morta que … que uma ratazana morta, e eu…

CARMELA – Não me insultes!

PAULINO – Eu… pior que morto! Que pensavas ganhar, eh? Que iríamos nós ganhar a
armar em heróis? Não era já bastante ter aguentado quase dois anos de guerra com as
nossas “varietés”? Parece-te pouco esse heroísmo? “Carmela e Paulino, variedades do
mais fino”… Grande finura! Das capitais era esquecer, que há muita concorrência…
Era andar aldeia acima aldeia abaixo, com quatro baús… e o tonto do Gustavete, que é
como carregar com outro baú, porque nem serve para representar, nem para contra-
regra, nem para maquinista…

CARMELA – Não te metas com o Gustavete!

PAULINO – Isso: defende-o! Aí está Santa Carmela, padroeira dos anormais…

CARMELA – Para anormal, tu. Que se não tivesses dado tantos ares de artista para
com o tenente, não lhe tinha passado pela cabeça fazer-nos representar…

PAULINO – Ah, não? E que nos teriam feito?

CARMELA – Pois soltar-nos e deixar-nos abalar ao fim de duas horas…

PAULINO – Deixar-nos abalar? Deixar-nos abalar, sua ingénua? Mas, tu sabes o que é
uma guerra? Tu fazes ideia do que se está a passar por aí? (Indica para o exterior.)
Anda: vai dar uma volta e vais ver o que encontras… Assoma-te à escola e vê quantos
“meninos” ali meteram, e como estão crescidos, e como lhes fazem cantar a tabuada dos
sete … E de seguida olha à volta e vê quanta gente puseram a “passear” e depois
fizeram ”descansar” pela berma da estrada… Bom, e sem ir mais longe: olha o que
fizeram contigo…

CARMELA – Já chega, não?

PAULINO – Já chega, o quê?

CARMELA – De me atirar à cara que estou morta. Até parece que estás contente…

PAULINO – Contente eu …?

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CARMELA – Bastante me custa a mim, que nem o sabor dos marmelos sinto.

PAULINO – Como podes dizer que…? Mas se és tu quem…!

CARMELA – (Subitamente, como escutando algo.) Cala-te!

PAULINO – Que se passa?

CARMELA – Ouves?

PAULINO – (Escuta também.) Ouvir, o quê?

CARMELA – Não ouves nada?

PAULINO – De quê?

CARMELA – Bombas, tiros de canhão….

PAULINO – Não ouço nada…

CARMELA – Sim, lá longe… Bum. Brrruuum, bummm.

PAULINO – Não se ouve nem uma mosca, Carmela.

CARMELA – Eu sim. Longe, mas muito claro…

PAULINO – Vamos, não te assustes… É imaginação tua.

CARMELA – Digo-te que não. Ouço-o muito bem… Olha que se os matam outra
vez…!

PAULINO – A quem?

CARMELA – Até parece que os estou a ver… Sim… É ali… As vias… A caseta… Há
fumo… Explosões…

PAULINO – Carmela, por favor…, acalma-te… Como estás a ver isso que…? É
imaginação… Não se ouve nada, não se vê nada…

CARMELA – Vejo-o, sim… Caem muito devagar as bombas…, explodem de vagar…


Vejo a terra que salta… a metralha … ( Vai para a sua saída. Paulino retém-na.)

PAULINO – Estás aqui comigo, Carmela…, no teatro… Estás aqui… Onde vais?

CARMELA – Eles estão ali… Não fogem… estão quietos… andam devagar… param…
Vão matá-los outra vez!

Bruscamente desprende-se de PAULINO e sai correndo pela zona iluminada do fundo.

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PAULINO – Carmela, não…! (Sai atrás dela, mas num momento volta a entrar, como
impulsionado por uma força violenta que o faz cair no chão. A luz esbranquiçada
apaga-se.) Carmela! (Tenta levantar-se, mas está como que aturdido e além do mais,
magoado numa perna.) Carmela, volta! Volta aqui! Parti uma perna! Estou ferido,
Carmela! Parti…! ( Mas comprova que não e põe-se de pé, ainda ofuscado. Caminha
coxeando e volta a gritar, com menos convicção.) … uma perna! Não posso andar,
Carmela!... Preciso de ti! Não podes deixar-me assim! Fiquei coxo!...

(De repente, a cena ilumina-se brilhantemente, ao mesmo tempo que começa a soar a
todo o volume o passodoble “Mi jaca”. PAULINO, assustado, imobiliza-se, olha as
luzes e também a sala. Esfrega os olhos, apalpa a cabeça e antes de sair do seu
assombro, cai rápido o

PANO )

32
SEGUNDO ACTO

Os primeiros minutos transcorrem exactamente como no Primeiro Acto: obscuridade,


sonoro “clic”, luz de ensaios, entrada de PAULINO com a garrafa, olhares pelo palco,
trago, novos olhares, cruza – desabotoando a braguilha -, saída pela lateral oposta,
pausa, nova entrada – abotoando-se - , olhares e descoberta da grafonola ao fundo no
chão. Vai junto a ela e de cócoras tenta pô-la a funcionar. Ao comprovar que não
funciona, tem outra vez o impulso de partir o disco, mas contém-se, senta-se no chão e
dispõe-se a arranjá-la. Após várias manipulações tenta de novo pô-la em marcha e
desta vez sim, funciona. Soa então o disco que reproduz a canção militar republicana
«!Ay, Carmela!». PAULINO escuta-a quase integralmente, imóvel. Nos últimos
compassos começa a coçar distraidamente as pernas até que de repente, as olha, e
também as mãos, e o chão à sua volta… Levanta-se dando palmadas no corpo e
pisando com fúria.)

PAULINO – (Grita, raivoso.) Merda para as formigas de Deus! Merda para as putas das
formigas de Deus e da Virgem Santíssima!...

(Com os saltos o disco começa a repetir, uma e outra vez, parte do estribilho: Ay,
Carmela!... Ay, Carmela!... Ay, Carmela… Ao dar-se conta, PAULINO acalma-se
subitamente e olha como hipnotizado para a grafonola. Escuta inquieto à sua volta e
por fim, apressa-se a tirar o disco. Com ele na mão, volta a olhar em redor. Murmura:)

Isto não é natural… Isto é muita coincidência… Isto já é propositado. Aqui passa-se
alguma coisa… Há alguém aqui que… Porque eu não estou bêbado. E é entrar por aqui
e toma lá disto. São tudo coisas estranhas… Aquela que aparece sem mais nem menos,
a dita noite que regressa, as luzes que disparam todas… e agora, a grafonola, a fazer-
me truques de feira…!Vamos, homem! Um pouco de formalidade… (A um vago e
invisível interlocutor.) O que é que se passa? Lá por isto ser um teatro vazio já vale
tudo? Qualquer coisa e bumba, já está ? Vamos, homem!... Boas estão as coisas lá fora
para andar com fantasias… E o memos ainda é andar por aí todo o dia a mostrar o
sovaco… (Esboça a saudação fascista.) O pior é que, quando um tipo que não vai com
a tua cara… ou gosta dos teus sapatos, já está: «Vermelho!»… E depois como é que
uma pessoa faz para o deter … (Olhando o disco.) Ditosa tu, que já estás morta e podes
ver a tourada desde o camarote. Porque, o que serei eu, se sair inteiro desta corrida…
(Afastando pensamentos sombrios.) Mas enfim: haja peito para o que já está feito… E
morto à cova, vida nova. Aqui há que estar bem acordado, e andar de olho, e saber onde
se pisa, e arrumar-se a boa sombra… E se volto de vez em quando a este teatro, não é
para ninguém brincar comigo com magias baratas, nem com fantasmas, nem a…
(Brusca transição. grita implorante.) Carmela! Vem Carmela! Como estiveres, mas
vem! Com truques ou de mentira ou de teatro…! Tanto me faz! Vem, Carmela!...

(A cena ilumina-se bruscamente, como no final do primeiro acto, e volta a soar o


mesmo passo doble: «Mi jaca». Mas esta vez, além do mais, entra Carmela com seu

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vestido andaluz e um grande leque, desfilando e bailando garbosamente. PAULINO,
após o lógico sobressalto, reage com irritada decepção e retira-se, muito digno, para o
fundo. Fica ali de costas, com os braços cruzados; evidentemente de mau humor.
CARMELA executa o seu número sem reparar nele até que a meio da peça, a música
começa a descer de volume – ou a reduzir a velocidade – ao mesmo tempo a luz de cena
diminui e a dança extingue-se. Resta, finalmente, uma iluminação discreta, e
CARMELA, no centro, como ausente, quase imóvel, em truncada posição de dança.
Silêncio. PAULINO volta-se e olha-a. Continua irritado, não directamente com
CARMELA.)

É demais, não?

CARMELA – (Como que despertando.) Quê?

PAULINO – Não era preciso tanto, caramba…

CARMELA – Tanto, quê?

PAULINO – Tampouco há que exagerar, parece-me a mim…

CARMELA – Ai!, filho: não te entendo.

PAULINO – (Parodiando-se a si mesmo.) Carmela, vem, vem…! E, prrrooom… Que


coisa mais natural… E uma pessoa tem que engolir, e achá-lo bom, e aguentar-se, como
se tal coisa…

CARMELA – (Que, evidentemente, não entende nada, algo já chateada.) Bom,


Paulino: não dirás o que me queres vender...

PAULINO – Não, tu não tens a culpa, já o sei…

CARMELA – A culpa? De quê?

PAULINO – De nada, Carmela, de nada… Tu, já fazes bastante, coitada… Agora aqui,
agora lá… Ora viva, ora morta…

CARMELA – Olha o que eu te tenho dito: não abuses do coelho.

PAULINO – Quê?

CARMELA – Cai-te sempre mal. E com os nervos antes de começar, ainda pior.

PAULINO – De que é que estás a falar?

CARMELA – A quem é que passa pela cabeça comer um coelho inteiro, a menos de
duas horas de um espectáculo que nem Deus sabe como nos vamos sair? Mas não digas
que não foste avisado:«Pára, Paulino, que o coelho é muito traidor, quando não fazes a
digestão, ficas mal da tripa e já não acertas uma»… Mas tu:« Que não, Carmela, que
comer bem dá-me aprumo»… E estás a ver… Que sentes? Tonturas, febre? (Toca-lhe
na testa.)

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PAULINO – Não sinto nada… Estou perfeitamente…

CARMELA – Pois dizes umas coisas… e estás com uma cara…

PAULINO – E que cara queres que tenha?

CARMELA – Como querer, querer… a de «Car» Gable. Mas já me conformava se


estivesses com boas cores…

PAULINO – Estou pálido?

CARMELA – A atirar para o verde… Claro que eu… Olha que ter que fazer
espectáculo quase sem me pintar! E ainda por cima a regra que me está para chegar…

PAULINO – Como é que sabes?

CARMELA – Por causa do dente.

PAULINO – Qual dente?

CARMELA – Sempre te digo o mesmo: quando me está para vir a regra dói-me sempre
o dente do siso.

PAULINO – Isso são pressentimentos…

CARMELA – Pressentimentos? Pois isso é que me avisa.

PAULINO – Bom, não discutamos.

CARMELA – Está bem, mas onde vou eu arranjar panos?

PAULINO – E eu sei lá?

CARMELA – Claro. A ti tanto te faz. Como vós andais sempre secos…

PAULINO – (Que, durante o diálogo, foi «ingressando» paulatinamente na situação


definida por CARMELA.) Secos ou molhados, o principal é não ficar diminuída, fazer
das tripas coração e entregar a alma toda à coisa… (Com ânimo e decidido, vai tirando
de cena tudo o que possa estorvar a actuação: a grafonola, a garrafa…) Como se
estivéssemos a actuar no Ruzafa…

CARMELA – No Ruzafa! Ave Maria Santíssima! Tal e qual… Os cenários, a música,


os números… Tudo igual, igual. E Belchite, o mesmo que Valência…

PAULINO – Quero dizer… nós… nossa arte… Sempre há que dar o melhor ao público.
Estejamos como estivermos, tenhamos o que tivermos.

CARMELA – Pois a este público, como não lhe demos «cuscuz». Viste a quantidade de
mouros que andam por aí? (Vai arranjando o cabelo.)

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PAULINO – Pois, claro… Agora é que reparaste? Mouros, italianos, alemães… (Sem
ironia.) O Exército Nacional.

CARMELA – E é verdade o que disse o tenente?

PAULINO – De quê?

CARMELA – Desses milicianos que prenderam, e que vão trazer a ver-nos, e que
amanhã os fuzilam…

PAULINO – Bom… não sei… Parece que sim… Está-se a ver que o comandante quer
conceder-lhes uma… uma isso: uma última graça.

CARMELA – (Compõe o vestido indecorosamente.) Pois a mim não me faz graça


nenhuma. Estar a cantar e a bailar com uma dezena de condenados aí, a olhar para ti…

PAULINO – Creio que são estrangeiros, a maioria. Das Brigadas Internacionais.

CARMELA – Para mim, é como se fossem de Cuenca, pobres filhos… Vê-se-me o


soutien?

PAULINO – (Deita-lhe um olhar.) Não.

CARMELA – Ou ainda pior… Vir de tão longe para isto…

PAULINO – Mulher… não nos vai sair tão mal assim, vais ver…

CARMELA – Refiro-me aos que vão matar.

PAULINO – Ah, claro… Isso sim, coitados… De França, da América… Creio que até
há algum polaco.

CARMELA – Polaco! Estás a ver que exagero… Quem havia de dizer aquela mãe, lá
tão longe, que lhe iam matar o filho em Belchite?

PAULINO – Ninguém, desde logo.

CARMELA – De certeza que Belchite, em polaco, nem se consegue dizer…

PAULINO – Belchite? Há pois…! Nem Zaragoza, nem Badajoz, nem Lugo… E,


pensando melhor, nem Espanha.

CARMELA – Não, Espanha, sim, que é muito famosa. E se vêm aqui a lutar, por
alguma coisa será.

PAULINO – Sim, mas… saber como se diz…

CARMELA – À sua maneira, mas dirão. Senão, como teriam aqui chegado?

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PAULINO – Quem não chega é o público… (Olha para o fundo da sala.) E o tenente…
olha para ele na cabine, como está tranquilo, com Gustavete, fumando como um
marajá…

CARMELA – E ainda por cima, como é comunista, não poderá nem rezar…

PAULINO – Quem? O tenente, comunista?

CARMELA – Não: a sua mãe.

PAULINO – Qual mãe?

CARMELA – A do polaco. Não são comunistas, os dessas Brigadas?

PAULINO – Mais ou menos… Mas as suas mães, não é preciso.

CARMELA – Certamente que também… (Vai-se alterando.) Mas estás a ver: nem rezar
pelo filho, poderá.

PAULINO – (Consentindo.) Bom… na volta, nem vai saber… Polónia está lá muito
longe.

CARMELA – Essas coisas, as mães acabam sempre por saber.

PAULINO – (Tratando de aliviá-la.) Até pode ser que seja órfão…

CARMELA – Órfão, ainda por cima! Pobre filho! Polaco, comunista, órfão e vir morrer
numa terra que nem sequer sabe com se pronuncia… (Cada vez mais agitada.)

PAULINO – (Já inquieto.) Bom, Carmela: não te ponhas assim…

CARMELA – Que não me ponha assim? Vê-se bem que tu nunca foste mãe…!

PAULINO – Nem tu tampouco, Carmela…

CARMELA – (Muito alterada.) Claro que não! Porque tu não quiseste, que és um
egoísta! E se não me chego a impor, não nos tínhamos casado nem pelo civil…

PAULINO – (Francamente preocupado, vigiando, além do mais, a cabine.) Está bem,


mulher, está bem… É como estás a dizer… Mas agora não é o momento de … Olha:
parece que o tenente já se está a preparar. Já deve ter acabado a procissão.

CARMELA – Isso sim! Muita procissão, muita missa, muito rosário, e a seguir…
fuzilar órfãos!

PAULINO – Faz o favor de te calar… E prepara-te, que o tenente está a dizer-nos não
sei o quê… Creio que a tropa já está a chegar. Estás a ouvir? (Para a lateral.) Já está aí
Gustavete ?

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CARMELA – (Indignada.) Sim…, mas, sabes o que te digo? Que o número da bandeira
não o faço.

PAULINO – Que dizes? (Trata de puxá-la para fora de cena.)

CARMELA – O número com a bandeira republicana não tenho vontade de o fazer.


Pobres filhos! Vão fuzilá-los e ainda por cima fazer-lhes engolir o vexame com a
tricolor…

(Faz-se escuro bruscamente. Passos precipitados no palco. Continuam a dialogar, com


voz contida, no escuro.)

PAULINO – Digo, que te cales! Já está! Vamos a começar! Ao teu sítio! Gustavete:
prepara a música!

CARMELA – Pois digo-to que não o faço. Podes ir inventando já alguma, porque eu
não faço o número a gozar com a bandeira. Ainda por cima, pobres filhos…

PAULINO – Mas, desde quando te importa a ti coisa alguma, a bandeira da República?


Que mais te dá a ti gozar com ela ou com as ceroulas do Alfonso XIII ? Gustavete, em
marcha! O público está a entrar na sala!... Nós somos artistas, não? Não temos nada a
ver com a política. Fazemos o que nos pedem, e boas festas.

CARMELA – Ah, sim? E se te pedem o número dos traques?

PAULINO – Isso não é a mesma coisa! Os traques não têm nada a ver com a política!

CARMELA – Pois para mim é o mesmo… Ou pior.

PAULINO – Que é pior para ti? … Bom, não me importa. Queres, descomplicar as
coisas agora?... Os papéis… Onde porra pus eu os papeis? … De certeza que a
grafonola funciona?... Sabes quando é a tua entrada, Carmela? … Carmela! Onde te
meteste?... Já estão a entrar… Madre mia, quantos oficiais!... Aquele não é Franco? O
general Franco ?... Carmela! Viste a Carmela, Gustavete? Estava aí faz um momento…
Funciona a grafonola? Os papeis, menos mal! E o meu barrete? Onde está o meu
barrete? Que fiz eu com…? Aqui está! E Carmela?... Carmela! Pode-se saber onde…?

CARMELA – Aqui estou.

PAULINO – Onde foste? A fazer o quê?

CARMELA – Mijar.

PAULINO – Agora é que foste mijar?

CARMELA – Não quererás que o faça depois, quando estiver a dançar…

PAULINO – Bom, basta de conversa de chacha … Todo o mundo preparado? Quando o


tenente der a luz… Eh, Gustavete? E tu, Carmela, sabes quando é a tua entrada? Não te
desorientes que me deixas dependurado… E como é a minha primeira frase?... «Eternos

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salvadores da Pátria invicta…» Não, ao contrário: «Invictos salvadores da Pátria
eterna…» A mama, Carmela…

CARMELA – Quê?

PAULINO – Essa mama, que te está a sair…

CARMELA – Não… Se já te disse que me vou a ficar em bragas…

(Ilumina-se de repente o palco e no momento, soa o passodoble «Mi jaca». Entram


simultaneamente, cada um por sua lateral, PAULINO e CARMELA, ele desfilando
marcialmente, com barrete de soldado posto e uns papéis na mão, e ela bailando
garbosamente e abanando um leque no qual, com toda a evidência, leva escrita uma
nova letra do passodoble.)

CARMELA – (Após os acordes iniciais, canta:)

Mi Espanha,
Que vuela como el viento
Para hacerle un monomento
Al valor de su Caudilho.

Mi Espanha
Está llena de alegria
Porque ya se acerca el dia
De ponerse cara al sol.

(Ao terminar, PAULINO enquadra-se no proscénio, frente ao público, e estende o


braço direito em saudação fascista. Repara que leva os papéis nessa mão e muda-os
para a mão esquerda. Ordena depois as folhas, aclara a voz e lê com ênfase, que
apenas dissimula a sua insegurança.)

PAULINO – «Invictos salvadores da Pátria eterna: hoje, vós, cérebro, coração e braço
do Glorioso Levantamento que devolveu a Espanha o orgulho do seu destino imperial,
haveis cumprido uma proeza mais, das muitas que já marcaram esta Cruzada redentora.
Na vossa marcha invencível para a reconquista do solo nacional, durante anos
manchado e desgarrado pela anarquia, o comunismo, o separatismo, a maçonaria e a
impiedade, hoje haveis liberado pelas armas esta heróica vila de Belchite. A Quinta
Divisão de Navarra do Corpo do Exército Marroquino, sob o comando do invicto
general Yagüe, escreveu com o seu sangue imortal outra gloriosa página no livro de
ouro da História semi… sempi… sempiterna de Espanha…, esse livro que inspira, dita e
encaderna com pulso seguro e mão firme nosso eguer…» não, «nosso egre…», sim,
«nosso egrégio», isso, «egrégio Caudilho Franco, a quem esta noite queremos
oferecer…» (Muda de folha.) «… quatro quilos de morcelas, dois pares de ligas pretas,
duas dezenas de…» (Interrompe. Olha aterrado o público.) Não, perdão… (Olha
furioso para CARMELA que, ausente, está arranjando um sapato. Amarrota a folha e
guarda-a no bolso.) Perdão, foi um engano… (Procura entre as folhas.) Queremos
oferecer… oferecer… Está aqui! (Lê.) «… queremos oferecer esta modesta Soiré
Artística, Patriótica e Recreativa», é isto, «… com a que uns humildes artistas
populares, a Carmela e o Paulino, Variedades do mais Fino… (Ambos saúdam.) …em

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representação de todo o povo espanhol…» (Sorri humilde.) Bom de quase todo… (Lê.)
«… espanhol, guiados fraternalmente por um artista e soldado italiano, da Divisão
“Littorio” do Corpo Trupe Volontarie… (Indicando a cabine.) … o Tenente Amelio
Giovanni de Ripamonte, em representação do povo italiano, que é o mesmo que dizer
da alma jovem, ‘récia’ e cristã do Ocidente…» (A extensão da frase faz-lhe perder o
alento e o fio. CARMELA adverte-o e dá-lhe com o seu leque.) … Isto… Bom…
pois… «de Ocidente queremos honrar, dedicar e entreter as tropas vitoriosas do
Glorioso Exército Nacional de Libertação…» (Dá-se conta de que acabou o parágrafo
e repete, fechando o período.) «…Nacional de Libertação.» Ponto. (Desculpa-se com
um sorriso forçado.) Perdoem, eu… Estas belas palavras não… Quero dizer que o
tenente é que as…

CARMELA – (Cortando-lhe a palavra.) Quer dizer, senhores militares, que aqui o


Paulino e a Carmela, para vos servir, vamos fazer-vos uma gala, coisa fina, para que os
senhores se divirtam, e da melhor vontade, não faltaria mais nada, ainda que, estão a
ver: com uma mão à frente e outra a trás, como quem diz, porque nos apanharam de
surpresa, e de forma que, pouco brilho vamos dar a esta pândega da libertação, porque
dir-me-ão vocês como é que uma pessoa pode brilhar com estes trapos, ainda que
vontade não me falte, nem a este tampouco, digo-lhes eu, nem graça, bolas, que onde a
há, há, e onde a não há, pois não a há… agora que a mim, isso da última graça, digo-
lhes a verdade, ainda há pouco o dizia a este, é ou não é verdade? Pois não me parece
bem, sim, as coisas são como são, que por muito polaca que uma pessoa seja, uma mãe
sempre é uma mãe…

PAULINO – (Com humor forçado, após várias tentativas de a fazer calar.) E mãe há só
uma, e a ti te encontrei na rua!... Muito bem! Sim, senhores: esta é Carmela, uma artista
de raça e elegância que, depois de passear o seu garbo pelos melhores palcos de
Espanha, chega aqui, a este simpático Teatro Goya, de Belchite, para pôr a sua arte aos
vossos pés…

CARMELA – (Brincalhona.) Daí que, olho, não me vão pisar com essas botifarras… A
arte, digo…

PAULINO – (Com falso riso.) Que oportuna! Esta é Carmela, sim, senhores: todo o sal
de Andaluzia e o açúcar de… de… (Falham-lhe os conhecimentos agrícolas.)

CARMELA – De Jiloca, então… ainda que seja de beterraba.

PAULINO – Nunca lhe falta a chispa… quando se trata de agradar ao público…

CARMELA – Isso é verdade: que eu, ao público, amo-o muito, tenha lá o aspecto que
tiver… Os senhores estão a ver, por exemplo, tão sisudos aí, com as pistolas e os sabres
… Pois para mim é como se fossem os meus primos de Zamora… que andam sempre
com a coisa de fora… (Ri com falso pudor.) Ui! Senhores perdoem! Que esta é uma
brincadeira que fazíamos eu e minhas irmãs…

PAULINO – (Sobrepondo-se a um súbito ataque de tosse.) Basta, basta, Carmela…


Que este digníssimo público merece outra categoria de … de ditos… Como estão a ver,
senhores: à nossa Carmela não fazem falta papéis para encher um palco com os seus
gracejos… Mas a mim, sim… ( Folheia os seus.) A mim, sim… Porque agora vinha

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aquela de … aquela… (Encontra-o.) Aqui está! Sim, senhores: isto… (Lê.) «E como
símbolo de esta fraternidade artística, que é também a dos nossos povos, o espanhol e o
italiano, unidos na luta contra a hidro…», não, «contra a hidra... a hidra vermelha,
oferecemos-lhe esta dança ale… alegro… alegórica – patriótica intitulada: Dois Povos,
dois Sangues, duas Vitórias»…

CARMELA – Primeiro eram três, porque o tenente queria que Gustavete, que é o
técnico… e outras coisas, fizesse de alemão, e assim entravam todos na dança… Bom,
menos os mouros, mas esses… (Gesto vago.) Pois, é como lhes digo: eu, de espanhola,
Paulino de italiano… que a verdade é que o fala muito bem, o italiano, digo…E
Gustavete de alemão, que, ainda que seja baixote, tem uma cabeça quadrada e o cabelo
um pouco espetado…

PAULINO – Bom, Carmela… Não creio que a estes senhores lhes interesse…

CARMELA – Deixa que lhes explique, para que vejam que vontade não nos falta…
Pois, onde é que eu ia: Gustavete de alemão, queria o tenente. Mas acontece que o
desgraçado está com umas frieiras nos pés que quase não pode nem andar, quanto mais
dançar, digam-me lá…

PAULINO – Efectivamente senhores: tínhamos pensado…

CARMELA – Mas, nem pensem: até ensaiámos um bocado, esta tarde, porque vontade
não nos falta… Mas, se vissem… (Ri.) O pobre Gustavete…! (Séria.) De forma que
dissemos: Tu, Gustavete, à grafonola. Não vão pensar estes senhores que queremos
gozar com eles…

PAULINO – Efectivamente, senhores, efectivamente… Nós…

(O «tenente» produz bruscas mudanças de luz.)

Mas já basta de explicações e passemos sem mais à dança… (Consulta os papéis.) …«à
dança alegórica – patriótica intitulada: Dois Povos, dois Sangues, duas Vitórias»…

CARMELA – Vou já dizer: primeiro eram três, mas… (Gesto de PAULINO.) Já vão
ver como vão gostar…

(E entram os dois, cada um por uma lateral. Com a música de uma rasca marcha
italiana, PAULINO e CARMELA executam uma dança cuja rústica coreografia
corresponde aproximadamente ao que ensaiaram no primeiro acto. Ao terminar, saem
de cena juntos e, num momento, volta a entrar PAULINO e produz-se uma mudança de
luzes.)

PAULINO – (Lê.) « Respigando ao acaso na copiosa e vigorosa poesia épica que em


pouco tempo generosamente gerou o Glorioso Levantamento Nacional e sua
Sacrossanta Cruzada de Libertação, encontramos este formoso “Romance de Castilha
em armas” que, com versos ao mesmo tempo rudes e delicados, estendem uma ponte de
valor e heroísmo entre o passado e o presente. Seu autor: Federico de Urrutia»… (Lê
com rapsódica entoação.)

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En el Cerro de los Angeles,
Que los ángeles guardaban,
Han fusilado a Jesus!
Y las piedras se desangran!
Pero no te assustes, madre!
Toda Castilla está en armas!
Madrid se ve ya muy cerca.
No oyes? Franco! Arriba Espanha!
La hidra roja se muere
De bayonetas cercada.
Tiene las carnes abiertas
Y las fauces desgarradas.

Y El Cid, con camisa azul,


Por el cielo cabalgava…

Allá lejos, en el pueblo,


Bajo la iglesia dorada,
Junto al fuego campesino
Miles de madres rezabam
Por los hijos que se fueron
Vestida de azul el alma.

No llores, madre, no lhores,


Que la Guerra está ganada!

Y antes que crezcan los trigos


Volveré por la cañada,
Y habrá fiestas en el pueblo
Y voltearán las campanas
Y habrá alegria en las mozas,
Y alegrias en las guitarras…

(Ouvem-se soluços nos bastidores e ruído de alguém que funga sem parar. PAULINO
dá-se conta, inquieto.)

y desfiles por las calles


y tambores e dulzainas
y banderas de Falange
sobre la iglesia dorada.

Madrid se ve ya muy cerca!


Toda Castilha está en armas.
Y el Cid, comn camisa azul
Por el cielo cabalgaba…

(Irrompe em cena CARMELA, chorando como uma Madalena.)

CARMELA – (Ao público.) E Polónia, é o quê? Será que lá, não há mães? E caramba se
está perto…!

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(Após uns segundos de terror, PAULINO reage e adopta uma atitude de jovial
apresentador.)

PAULINO – (Ao público.) E com esta entrada… surpreendente, passamos ao nosso


próximo número… que é um gracioso diálogo revisteiro … tirado da bonita comédia
ligeira musical… (Nota-se que está improvisando desesperadamente.) estreada com
grande êxito na passada temporada… no Teatro Tivoli, de Barcelona…, com o título …
«De Polónia a Daroca… um tiro que me toca»…

(CARMELA, do espanto, passa ao desgosto. Não o «tenente», que efectua várias


mudanças de luz. PAULINO, em rápida transição, acata as suas ordens.)

Não?... Pois não… Sim, foi um engano… (Ao público enquanto folheia os papeis.) Não,
senhores: não é este o nosso próximo número… Foi um engano… O diálogo revisteiro
vem depois… E, além disso, é outro… Quero dizer que, de Polónia, nada… Nem de
Daroca… Foi engano… Confundimos a comédia… e o número… e tudo… (Encontra a
folha.) Aqui está… Que lhes dizia? Agora vem… Sim, é isso… «Suspiros de Espanha»
(A CARMELA.) Prepara-te, menina… (Ao público.) Sim, senhores: seguidamente,
Carmela cantará para vocês o bonito passo doble do maestro Alvarez «Suspiros de
España» … (Para a lateral, enquanto CARMELA arranja o vestido.) Gustavete,
preparado? (Ao público.) «Suspiros de España», sim: um pasodoble muito espanhol e
muito castiço, ou seja, muito bonito… Com todos vós, senhores e senhoras… que digo,
não: só senhores… Carmela e «Suspiros de España»!

(E sai dando, mais que um suspiro, um forte suspiro, enquanto soam já os acordes
iniciais do pasodoble.)

CARMELA – (Avança até ao proscénio, evoluindo e cantando.)

Quiso Dios com su poder


Fundir cuatro rayitos de sol
Y hacer com ellos una mujer.
Y al cumplir su voluntad
En un jardin de España naci
Como la flor en el rosal.

Tierra gloriosa de mi querer


Tierra bendita de perfume y pasión
España en cada flor a tus pies
Suspira un corazón.

Ay de mi. Pena mortal.


Por qué me alejo España de ti?
Por qué me arrancas de mi rosal?

Quiero yo volver a ser


La luz de aquel rayito de sol
Hecho mujer por voluntad de Dios.

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Ay madre mya. Ay quién pudiera
En luz del dia y al rayar la amanecia
Sobre España renacer.

Mis pensamientos han revestido


El firmamento de besos mios
Y sobre España como gotas de rocio
Los dejo caer.

En mi corazón España há venido


Y el eco llevará de mi cancion
A España en um suspiro.

(Apenas se extingue o último acorde, CARMELA mostra o seu braço ao público.)

De galinha! A pele, digo… Põe-se-me a pele de galinha cada vez que canto esta canção.
A vocês não? Eu, é que sou muito ‘sentida’ e sinto tudo muito. Paulino diz que o que eu
sou é uma histérica, mas ele, o que é que ele sabe? Com esse sangue de ‘amendoada’
que tem, que nunca se lhe altera… (Sufoca um riso atrevido.) Se eu vos contasse…!
(Com intenção, ao ver entrar PAULINO, canta «Ay, mamá Inés! Ay, mamá Inês…!»

PAULINO – (Ofuscado.) Muito bem, muito bem, Carmela… Mas essa canção não toca
esta noite…

CARMELA – (Continuando com a sua broma.) Ah, não? Que pena…!

PAULINO – (Ao público.) Os senhores compreendam… Preparamos este sarau em


muito poucas horas… e não pudemos ensaiar… e claro, está tudo um pouco… um
pouco…

CARMELA – Um pouco não Paulino: um muito. Com estes senhores não há que estar
com disfarces que parvos é que eles não são…

PAULINO – (Alarmado.) Não, que …!

CARMELA – Eles já se aperceberam… (Indica um ponto da sala, nas primeiras filas.)


Sobretudo aquele oficial gordinho e com bigode que, pela sucata que leva em cima,
deve ser pelo menos general… e que não se riu uma única vez em toda a noite.

PAULINO – Basta, Carmela…

CARMELA – (Ao mesmo interlocutor.) Não é verdade, alma minha, que já deste conta?
(Gesto lisonjeiro.) Porque, é o que eu digo: a estes senhores não há mais que ver-lhes a
cara para ver logo que são entendidos na arte fina, ainda que se lha apresente com pouco
brilho e aos tropeções, como agora nós… (Transição.) O que me sabe mal é o de
aqueles pobres filhos que, além de não entenderem nada, vão partir para o outro mundo
com uma má impressão… (PAULINO vai fazê-la calar, mas ela muda de tema.) Mas,

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bom já me calo… senão o PAULINO fica nervoso… Eu, é que, quando estou diante do
público, entra-me uma coisa que me disparo toda e já não há quem me pare…

PAULINO – Efectivamente, senhores… É… “el duende” da arte… a magia do


tablado… que Carmenzita tem nas veias desde que … ainda uma criança assim… já
ganhava a vida cantando e bailando… pelos caminhos da sua Andaluzia…

CARMELA – Pelos caminhos, não, Paulino…Que nem uma cabra… Pelas ruas e pelas
tavernas e por… (Gesto pícaro.)

PAULINO – Naturalmente que pelos caminhos, não… Era… um adorno poético…


(Consultando os papéis.) Mas ela sempre sentiu isso… essa coisa… a magia… “el
duende”… a magia…! Aqui está! Sim, senhores… E, para magia, a do Mago… (Sinal
de cumplicidade.) Pau-li-ching… (Saúda.) e sua ajudante… Kal-men-lang…(Apresenta
Carmela. Faz um sinal para bastidores e soa uma tosca música ‘orientaloide’. Lê, ao
mesmo tempo que Carmela esboça com fastio estranhas ondulações de corpo e
braços.) «Atenção senhores, muita atenção. Porque vamos entrar agora no mundo do
mistério e da fantasia, pela mão do misterioso Professor Pau-li-ching e da fantástica
Senhorita Kal-men-lang… (Saudação.) que os vão assombrar a vocês com assombrosos
poderes». (A CARMELA. ) Preparada Senhorita? (CARMELA afirma, sem deixar de
ondular.) Muito bem… (Para o fundo da sala.) Luzes misteriosas, por favor…
(Mudança de luzes.) Vejam, senhores, como este vosso servidor, com os seus mágicos
poderes, é capaz de recompor magicamente o que se destrói… (Tentando ser gracioso.)
Coisa muito útil nestes tempos… (Subitamente sério.) Bom, perdão… Quero dizer…
Enfim, onde íamos: esta gravata por exemplo… (Mostra ao público a sua gravata.)
Observem que está em perfeito estado… Pois bem, vejam senhores.(Tira do bolso uma
tesoura fazendo-a chasquear e estende-a teatralmente a CARMELA.) Senhorita Kal-
men-lang: é a sua vez.

(CARMELA, sempre com os seus estranhos movimentos, pega na tesoura, mostra-a ao


público, dá uma volta em redor de PAULINO fazendo-a chasquear ao ritmo dos seus
passos e por fim, pega com cuidado a parte mais larga da gravata e vai-a cortando de
baixo para cima. Vai atirando ao público cada pedaço e quando já não resta mais que
o nó, separa-se de PAULINO, mostra o resultado e saúda,)

Terão visto que aqui não há truque… A gravata foi fatiada como um chouriço, e aí têm
os senhores os seus pedaços… Pois bem, prestem muita atenção e comprovem os meus
poderes mágicos…

(Leva solenemente as mãos ao peito, realiza ali misteriosos passes enquanto roda sobre
si próprio e ao ficar de novo de frente para o público, mostra a gravata … intacta.)

«Vualá»!... que em francês quer dizer: «Olhem para ela»…

(Ambos saúdam cerimoniosamente, à maneira “oriental”.)

Mas isto não é nada, senhores! Seguidamente, vamos apresentar-lhes um número


portentoso, que tem causado a admiração de todos os públicos em Paris, Londres,
Moscovo… (Assusta-se.) Não: quero dizer… em Berlim… em Roma… em
Salamanca… em Zamora… Enfim, em muitos sítios… Carmela, a corda!

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(Gesto decidido para Carmela, que está distraída, olhando uma zona concreta da sala:
ali onde supostamente se situam os milicianos prisioneiros.)

Carmela!

CARMELA – (Sobressaltada.) Que é? (Reage e põe-se a ondular.)

PAULINO – A corda, senhorita Kal.

CARMELA – Qual corda?... Ah, sim… (Dirige-se à lateral, desaparece por uns
segundos e regressa com uma corda que leva presas várias molas de roupa. Entrega-a
a PAULINO que, quando a vai receber, repara nas molas.)

PAULINO – (Irritado sem pegar na corda, indica-lhe as molas.) Por favor senhorita…

CARMELA – (Dando conta, desmancha o seu personagem e tira as molas.) Ui! Sim!
É que antes pus a estender as minhas…

PAULINO – (Interrompendo-a.) Senhorita, por favor…

CARMELA – Pronto, pronto… (Atira as molas pela lateral e volta ao seu


personagem.)

PAULINO – (Pegando na corda.) Vejam, senhores, esta magnífica corda do mais puro
sisal, forte e resistente como um cabo de aço… mais ou menos… (Estica-a e mostra a
sua resistência.) Nem dez homens a conseguiriam romper… Pois bem: minha ajudante,
aqui presente, vai atar-me com ela as mãos e os pés, e eu, graças aos meus mágicos
poderes… vou libertar-me com um pequeno suspiro! Vamos, senhorita Kal!

(Dá a corda a CARMELA e estende os braços diante de si, com os punhos juntos.
Continua falando enquanto CARMELA lhe ata as mãos com a ponta da corda.)

Ate-me a senhora com todas as suas forças, sem disfarce nem ilusão… Aperte, aperte…
que vejam estes senhores o impossível que seria para qualquer mortal desfazer esses nós
marinheiros por… (Em voz baixa.) Nem tanto, bruta… (Alto.) Estes nós marinheiros por
meios naturais… ou inclusivamente artificiais… Sim, senhores: só com meios
sobrenaturais, por assim dizer, ou seja… mágicos… (A CARMELA.) Bom, mulher: já
está bem… (Ao público.) Por assim dizer. E agora os pés… (Enquanto Carmela, de
cócoras, lhe ata os pés com a outra ponta, mostra ao público, as mãos.) Aqui têm,
senhores, uns ligamentos… ou ligaduras… ou seja: uma atadura que, nem queiram
saber… Ninguém seria capaz de …

(A corda é um pouco curta, de forma que CARMELA, para lhe atar os pés, obriga
PAULINO a encurvar-se em incómoda e pouco airosa atitude.)

Mas, bom… Que se passa aqui, senhorita…?

CARMELA – A corda, que não dá para mais.

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PAULINO – Já estou a ver, já… Mas, enfim, não é preciso que…

CARMELA – Ato-te ou não te ato?

PAULINO – Sim, claro, senhorita… Ate-me, ate-me, mas… (Em voz baixa.) Lembras-
te dos nós?

CARMELA – (Idem.) Que nós?

PAULINO – (Idem.) Os que te ensinei.

CARMELA –(Idem.) Ai, filho… Sei lá eu?

PAULINO – (Idem.) Mas, bom… Então, o que é que fizeste?

CARMELA –(Idem.) Pois, atar-te.

PAULINO – (Idem, inquieto.) Mas, assim…? De qualquer maneira?

CARMELA – (Idem.) Não, homem: com nó de porqueiro.

PAULINO – (Angustiado.) Nós de porqueiro? E que é isso? (Com um salto brusco –


pois tem já os pés atados – separa-se de CARMELA, que cai sentada no chão. Ao
público, encurvado, com falsa jovialidade.) Bem, senhores! Pois já está! Aqui me têm
… atado como… como um leitão! O que acontece é que … houve uma… falha
técnica… (Afasta-se com ridículos saltos para a lateral.) Acontece que… os meios
sobrenaturais…, ou seja, mágicos… Pois, isso: que esta noite parece que não vão a …
Daí que o número portentoso não… não está a ponto… De modo que… os senhores
desculpem!

(E sai de cena com um último salto. CARMELA, que já se levantou, fica sozinha em
cena, algo perplexa.)

CARMELA – Bom, pois… não sei que dizer-lhes… O que acontece é que não pudemos
ensaiar. E assim, claro…

VOZ DE PAULINO – (Desde a lateral, furioso, num sussurro audível.) Carmela! A


tesoura!

CARMELA – O quê?... Ah, sim… A tesoura… (Tira-a do seu decote e vai à lateral,
sem deixar de falar com o público.) Claro, pois tudo vai como vai… Porque a esta vossa
servidora não gosta… (Estende a tesoura, que alguém pega.) fazer ridículo assim… Já
antes o dizia ao tenente… (Para o fundo da sala.) Não é verdade senhor meu tenente?
Verdade senhor que faz pouco tinha eu uma zanga de Maria Santíssima por vir esta
noite fazer um papelão aqui… e ainda por cima com este vestido, que nem uma
«facha»… ?

(A mão de PAULINO sai da lateral e com um brusco puxão, tira CARMELA de cena.
Após uns segundos de irados cochichos, reaparece PAULINO esfregando os pulsos e
tratando de recuperar a dignidade.)

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PAULINO – Bem, senhores… Vocês nos saberão desculpar por… Mas, claro, a magia
tem os seus caprichos que… Enfim, vamos continuar a nossa ‘soiré’ com… (Olha os
papéis.) com… sim, com esse mundo tão nosso e tão castiço de… a zarzuela! Sim,
senhores: Carmela e este vosso servidor… Carmela… (Gestos para a lateral.) e este
vosso servidor vamos cantar para todos vós… para todos vós, o famoso duo… o famoso
duo… Carmela! (Com falso humor, ao público.) Para um duo são precisos dois pelo
menos… não? Carmela!

CARMELA – (Entra, finalmente, realizando complicadas operações na parte superior


do seu vestido.) Já vou!... (E acrescenta em sussurro.) Bruto.

PAULINO – (Ao público.) Aqui a temos… finalmente! (Sussurrando.) O que é que se


passava?

CARMELA – (Igual.) O soutien.

PAULINO – O quê?

CARMELA – O soutien… rompeste-mo, com o puxão…

PAULINO – E como fizeste?

CARMELA – Fazer o quê? Tirei-o…

PAULINO – (Inquieto.) Vê o que fazes, não vás dar algum espectáculo…

CARMELA – A culpa será tua.

PAULINO – (Em voz alta ao público.) Bem, senhores… Resolvido felizmente um…
um pequeno problema… técnico… passamos sem mais demora… ao nosso seguinte
número, que é, como lhes estava dizendo, ao famoso duo de Ascención y Joaquim, da
zarzuela “ La de manojo de rosas”… (A CARMELA.) Preparada? (Ela confirma desde a
lateral.) Preparado? (Para o fundo da sala.) Preparati?... Quero dizer… Tuto presto,
mio tenente? (Mudança de luzes.) Andiamo súbito… (Interpretando para CARMELA.)
“Quero ‘dizer-lha’ uma coisa”.

CARMELA – (Idem.) “Diga-me você o que for, porque eu ‘lho’ escuto todo”.

PAULINO – “Todo”?

CARMELA – “O que me não ofenda”.

PAULINO – “Antes de a ofender eu, que se me caia a língua. Se eu…”.

CARMELA – “Quê?”

PAULINO – “Se eu…”.

CARMELA – “Termine. Está com medo?”.

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PAULINO – “Não creia. O que tenho para ‘dizer-lha’ digo-o às boas”.

Canta:

“Hace tiempo que vengo al taller


y no sé a qué vengo”.

CARMELA – (Idem.) “Eso es muy alarmante,


Eso no lo comprendo”.

PAULINO – “Cuando tengo una cosa que hacer,


No sé lo que hago”.

CARMELA – “Pues le veo cesante,


Por tumbón y por vago”.

PAULINO – “En todas partes te veo”.

CARMELA – “Y casi siempre en mi puerta”.

………………………………………………………………………………………….

Continuam cantando o famoso duo e durante a interpretação, CARMELA vai dando


sinais visíveis de desassossego, enquanto olha nervosa para a zona da sala em que
estão os milicianos. Ao terminar o número – ou talvez antes -, CARMELA parece ter
chegado a uma resolução: dirige-se seca ao público, perante estupefacção de
PAULINO.

CARMELA – E com este bonito duo, senhores militares, acabou-se a festa… Porque
me veio a regra muito forte, e estou a ficar doentíssima…

PAULINO – (Urra, alarmado.) Que dizes, louca? (ao público, tratando de galhofar.)
Outra saída da… incorrigível Carmela, que tem a língua muito solta… Desculpem um
momentinho …

Sai de cena, arrastando furioso a CARMELA. Ouvem-se discutir em bastidores,


distinguindo-se frases como:

VOZ DE CARMELA – Digo-te que não o faço!

VOZ DE PAULINO – Fazes sim!

VOZ DE CARMELA – Não faço, não!

VOZ DE PAULINO – Muda-te!

VOZ DE CARMELA – Não me mudo!

VOZ DE PAULINO – Tens que entrar!

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VOZ DE CARMELA – Não me apetece!

VOZ DE PAULINO – Gustavete, veste-a!

VOZ DE CARMELA – Nem penses, Gustavete!

VOZ DE PAULINO – Aqui mando eu, que sou o director da companhia!

(Após outras frases ininteligíveis, entra PAULINO muito alterado, tentando controlar-
se.

PAULINO – (Ao público.) E agora sim, senhores… Agora sim que vamos a interpretar
para todos vós um divertido diálogo revisteiro…, ainda que não seja o que anunciei
antes, porque antes me equivoquei, como já se devem ter dado conta… Pois bem, sim:
da divertida comédia leviana e musical “ El Doctor Toquemetoda”… que com tanto
êxito se representou em Madrid faz duas temporadas, escolhemos um gracioso e picante
diálogo… que o tenente Ripamonti teve a… a ideia de … arranjar, para adaptar às
coisas de hoje em dia… (Lança olhares, entre inquieto e encolerizado para a lateral.)
Claro, que … acontece que… quer dizer… pode não sair tão divertido… porque
acontece que… Bom, que Carmela se encontra algo mal disposta… (Tenta sorrir.) Já
sabem: coisas de mulheres… E é possível que nos saia… algo sem brilho… (Enérgico
para CARMELA.) Mas o que é para fazer, fazemos… Caramba se o fazemos! De cabo a
rabo… Não faltava mais nada! E agora mesmo… (Para a cabine.) Luci, mio tenente!
(Nova mudança de luz. PAULINO roda sobre si mesmo e coloca uns óculos e um nariz
postiço. Passeia pela cena interpretando um doutor ligeiramente afeminado. Dirige-se
a um interlocutor invisível.) Que voltem amanhã, enfermeira. Você está-me a ouvir?
Hoje já não recebo mais ninguém. Que se vão todas, todas… (Monologa.) Que
barbaridade! Este êxito profissional vai acabar comigo. Todos os dias o consultório
cheio… E noventa e nove por cento dos pacientes… “pacientas”…! Quero dizer:
senhoras, mulheres, fêmeas… De toda a idade, condição e estado: casadas, solteiras,
viúvas, separadas, jovens, velhas, virgens, mártires… Que martírio, o meu! E
certamente que a culpa é deste meu apelido que as atrai como moscas: Serafín
Toquemetoda… Que cruz! (Para cima.) Papá: odeio-te! Porque não te havias de chamar
Fernandez, como toda a gente? (Para a lateral.) Você, vá-se também, enfermeira. Não
preciso dos seus serviços até à manhã… (Para si.) Os seus serviços… Outra que tal!
Mais que uma enfermeira, parece uma modelo de roupa interior . À mais pequena
oportunidade, upa! Já me está a mostrar a combinação… E as pausasinhas que faz de
cada vez que me chama… (Tentando fazer voz feminina.) “Doutor… Tóqueme…
toda…” Que falta de vergonha! (Soam umas pancadas da lateral.) Batem à porta!
Quem será?

VOZ DE CARMELA – (Evidentemente sem vontade, enquanto soam novas batidas.)


Abra-me a porta, por favor, doutor!

PAULINO – Não estou! Quero dizer… não está! O doutor não está!

VOZ DE CARMELA – Não é o senhor, o doutor Toquemetoda?

PAULINO – Não, senhora… Sou o seu ajudante. O doutor já se foi embora faz tempo.

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VOZ DE CARMELA – Não importa. Abra-me, que é um caso de vida ou morte.

PAULINO – Então não lhe sirvo, porque eu só sei receitar Cerimalte.

VOZ DE CARMELA – Se não me abre, ficarei à porta até de manhã, até chegar o
doutor.

PAULINO – (Para si.) Céus, que compromisso! Não tenho outro remédio que deixá-la
entrar e, se conseguir, fazê-la sair… (Finge abrir uma porta na lateral .) Passe minha
senhora. Mas já lhe digo que eu…

(Entra CARMELA coberta com um sobretudo/gabardina muito larga. Toda a sua


actuação é, evidentemente, forçada, mecânica, reprimindo um crescente mal estar.

CARMELA – O senhor é o doutor Toquemetoda. Não me queira enganar. Reconheço-o


pela fotos que saem nos jornais.

PAULINO – Não me está você a confundir com o doutor Marañon, que sai muitas
vezes?

CARMELA – Sair, sim que sai. Mas disseram-me que entrar, entra muito pouco…

PAULINO – E você, o que é que tem?

CARMELA – Eu? Calores.

PAULINO – Vamos, vamos… Quais calores…

CARMELA – Sim, doutor: calores. Ponha-me você o seu termómetro, que logo os
sente.

PAULINO – Pois o que acontece é que tenho o termómetro… avariado.

CARMELA – Ponha-mo e verá como o faço funcionar.

PAULINO – E, para além disso, tem você algum outro sintoma?

CARMELA – Muitos tenho, doutor. Mas será melhor… (Vacila.) Será melhor… (Fica
calada em atitude pouco amável.)

PAULINO – (Improvisando.) Sim, será melhor que… (Cada vez mais inquieto, trata de
induzir CARMELA a continuar.) Que tire a roupa, não?... para que possa reconhecê-la…
(Vencendo a sua resistência, tira-lhe a gabardina: o seu corpo está envolto pela
bandeira republicana. PAULINO volta ao seu papel, alterado pela atitude de
CARMELA.) Vamos, vamos… Essas cores não me agradam nada… Nota-se que você
teve … alguma intoxicação.

CARMELA – (Cada vez mais contra vontade, lançando olhares para a suposta zona
dos prisioneiros.) Tem razão, doutor… Mas a coisa vem-me … de nascença…

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PAULINO – Como é isso? (Perante o silêncio de CARMELA.) Diga, diga… Como
é…?

CARMELA – (De repente.) Veja você, doutor, eu nasci de um mau passo, já me está a
entender, de um descuido.

PAULINO – Compreendo: de um resvalo “abrileiro”. Na primavera, já se sabe… E,


sem dúvida, que desse mau nascimento, lhe veio uma má criação…(Silêncio de
CARMELA. PAULINO improvisa o que sem dúvida é o papel dela.) Certamente que …
alguma das suas amas lhe deu maus leites…

CARMELA – (Seca.) Isso mesmo.

PAULINO – (Assumindo cada vez mais as réplicas que ela não diz.) E certamente
que… ao fim de poucos meses… começaram a sair-lhe… Quê?.Quê? Diga… Manchas
vermelhas na pele, não é verdade?

CARMELA – (Igual.) Isso mesmo.

PAULINO – (Suando, com o esforço de salvar a duvidosa comicidade da cena.) E


como era muito doente, não é verdade?; pois todos queriam dar-lhe remédio… Não é
assim?... E uns davam-lho pela frente… e davam-lho por trás.. (Manipula
obscenamente CARMELA.) Uns pela frente pela frente e outros por trás, uns pela
frente…

De repente, desde um lugar indeterminado – talvez desde a sala -, entoada por vozes
masculinas em que se adivinham acentuações diferentes, escuta-se a canção popular
republicana:)

El ejército del Ebro,


Rumba, la rumba, la rumba, va
Una noche el rio pasó,
Ay Carmela, ay Carmela… (etc.)

CARMELA – (Desprendendo-se violentamente de PAULINO.) Vai-te a dar por trás à


tua mãe! (E junta-se ao canto dos milicianos, ao mesmo tempo que abre e desprende a
bandeira à volta do seu corpo despido, coberto apenas por uma grandes bragas pretas.
A sua imagem não pode deixar de evocar a patética caricatura de uma alegoria plebeia
da República.)

PAULINO – (Aterrado.) Carmela! Os… o… as… as mamas!

Tudo aconteceu muito rapidamente, ao mesmo tempo que a luz começou a oscilar e a
adquirir tonalidades irreais. Também o canto – e outros gritos e golpes que tentam
calá-lo – soa distorcido. PAULINO, tratando degradar a desafiante atitude de
CARMELA, recorre à sua mais humilhante bufonada: com grotescos movimentos e
grosseiras posições, começa a emitir sonoras ventosidades à sua volta, para a tentar
salvar fazendo-a cúmplice da sua paródia.

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PAULINO – (Improvisa, angustiado e falsamente jocoso.) Estes são os ares… que a
você lhe convém…! E estas as melodias… que merece! Tome por aqui…! Tome por
acolá…! Si, dó, ré, mi…Si, dó, ré, fá!

A luz extingue-se, excepto uma vacilante claridade sobre a figura de CARMELA.


Também decrescem as vozes e os sons de cena, ao mesmo tempo que se insinuam,
inquietantes, sinistros, os sons próprios de um fuzilamento: passos marciais sobre
terra, vozes de comando, uma cerrada descarga de disparos. Enquanto se apagam os
ecos, faz-se totalmente o

ESCURO

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EPÍLOGO

No Escuro, ouve-se a voz de PAULINO que, desde fora de cena, grita :” Já vou, já
vou…!” Ouve-se o “clic” e acende-se a luz de ensaios. Entra PAULINO acabando de
vestir uma camisa azul com uma vassoura debaixo do braço.

PAULINO – (Fala para o fundo da sala.) Já vou… É que estava pondo isto…(Brinca
inseguro.) Fica-me bem?... (Sério.) Bom, já está… (Examina o palco, falando sempre
com o suposto ocupante da “cabina”.) Ou seja: varrer isto, limpar um pouco, colocar
os cinco cadeirões, as bandeiras, o crucifixo… ah, e as colchas … Está feito… E
depois… sim: levar a grafonola a arranjar, não nos vá falhar… (Começa a varrer.)
Numa hora, todo pronto. E se me despacho, até posso encontrar umas flores para
enfeitar o crucifixo, ou as bandeiras, ou… Bom: eu arranjo-as e tu dizes-me onde as
queres, eh Gustavete?... Agora, se não te parece bem, nada de flores, como queiras…
Ouve… (Olhando para o fundo.) Ainda estás aí? Não te esqueças de dizer ao presidente
da câmara… Porque vais a essa reunião, não?... Pois diz a dom Mariano como me estou
a portar, eh? Tu já sabes que a mim, vontade não me falta… Que vejam que comigo
podem contar seja para o que for… E, se vier a propósito, comenta-lhe aquilo do lugar
de vereador… Se puder sacar umas pesetas para ir andando, ao menos enquanto durar a
coisa… Logo, já veremos o que… Mas, enfim, o principal é que saibam que estou com
a lei… Trigo limpo, vamos… Estás a ouvir-me? Estás aí, Gustavete? (Olha e escuta.)
Vai-te, homem: outro que se despede à francesa… ou à italiana… (Continua varrendo
em silêncio.)

Entra a luz esbranquiçada da lateral do fundo. A pouco e pouco aparece CARMELA


com o seu vestido de passeio. Vem mordiscando algo que guarda na mão. Atravessa
todo o fundo lentamente, sem reparar em PAULINO, que também não dá pela sua
presença, pára quando está à beira de sair. PAULINO, que está varrendo o proscénio,
põe-se subitamente a dar varredelas no chão, furioso.

Olha para elas, que engraçadinhas!... A mãe que as pariu… Esta terra vai acabar por ser
comida pelas formigas… (Coça-se.) E a mim, os percevejos...

CARMELA – (Olha-o e exclama, surpreendida.) Paulino!

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PAULINO – (Tem uma reacção ambígua que, finalmente se resolve em seca
hostilidade, continua varrendo.) Que é?

CARMELA – Mas, como tu te puseste, filho ?

PAULINO – Eu?

CARMELA – Sim: essa camisa… Que mal te fica!

PAULINO – Pois estás a ver…

CARMELA – Onde a arranjaste?

PAULINO – Deram-ma. A outra estava já…

CARMELA – Mas esta, com essa cor tão…

PAULINO – (Áspero.) Eu gosto.

CARMELA – Bom, homem, bom… Aconteceu-te alguma coisa ?

PAULINO – A mim? Nada.

CARMELA – Sim, comigo… Porque me falas assim?

PAULINO – Não se passa nada.

CARMELA – Tens a certeza?

PAULINO – De certeza.

CARMELA – Pois não levantes tanto pó, homem, que o chão não te fez mal nenhum…
Que maneira de varrer… Dá cá, deixa-me a mim… (Vai pegar na vassoura; ele
rechaça-a, brusco.)

PAULINO – Não… O que se passa é que já estou farto!

CARMELA – De quê?

PAULINO – De ti!

CARMELA – De mim? Estás farto de mim?

PAULINO – Bom … de ti não. De… disto… (Gesto vago, que a inclui a ela.) Tanto
truque, tanta mentira…

CARMELA – Não gostas que eu venha?

PAULINO – Não!... Ou sim, mas… Não, não gosto!

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CARMELA – Porquê?

PAULINO – (Após uma pausa.) Acaba por ser pior…

CARMELA – (Após uma pausa.) Ou seja, que … sou mentira?

PAULINO – Tu me dirás…

CARMELA – Mas, estou aqui, contigo…

PAULINO – Bom: estar…

CARMELA – Dá-me um beijo.

PAULINO – Um beijo! Vamos anda… Não faltava mais… Um beijo…

CARMELA – Sim, dá-mo: a ver o que acontece.

PAULINO – Aos mortos não se dão beijos.

CARMELA – Sim, mas… Um só, a ver…(Acerca-se.)

PAULINO – (Retira-se.) Para ver, o quê?

CARMELA – O que é que se passa? Agora tens-me repugnância?

PAULINO – Não, mas…

CARMELA – Acreditas que tenho vermes em cima de mim?

PAULINO – Dizes cada coisa!

CARMELA – Pois o asturiano, bem que anda atrás de mim…

PAULINO – Que asturiano?

CARMELA – O da cabeça aberta… Bem, não é asturiano, mas quase: de Miranda de


Ebro. Só que foi nas Astúrias onde… Chama-se, Pedro… Pedro Rojas.

PAULINO – E anda atrás de ti?

CARMELA – E como!

PAULINO – Um tipo sem vergonha… Mas a mim tanto se me dá.

CARMELA – Ah, a ti, tanto te dá …

PAULINO – Claro: esse está tão morto como tu… Ou mais.

CARMELA – Pois dá cá uns apertões que nem queiras saber…

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PAULINO – Apertões? E tu deixas, claro… (Reage, furioso.) E a mim que me importa!
Já me estás a dar a volta outra vez!

CARMELA – Em que te estou a dar a volta, eu?

PAULINO – Em que me estás a dar a volta, dizes tu!... Mas, tu acreditas que, com a
minha idade, ainda acredito em fantasmas?

CARMELA – Ouve tu: ouve bem, que eu, não tenho nada a ver com fantasmas.

PAULINO – Pois se não és um fantasma, e me apareces por aqui, estando tu morta, e eu


vivo, e de verdade, e aqui estamos, guerreando-nos como sempre, pois… vejamos!

CARMELA – Vejamos, o quê?

PAULINO – (Rendendo-se.) E que sei eu…

CARMELA – (Após uma pausa, oferecendo-lhe o que leva na mão.) Queres?

PAULINO – Que é?

CARMELA – Trigo.

PAULINO – Trigo?

CARMELA – Sim: trago comigo um punhadito.

PAULINO – E come-lo assim, cru?

CARMELA – Absolutamente, não lhe noto o sabor… Mas entretém-me mastigar…


Queres?

PAULINO – Não, obrigado…(Nova explosão de raiva.) Vamos a ver! È que não me


apareces na Calle Mayor, ou na Puerta del Pozo, ou no Economato, ou no Centro
Agrícola …! Ali sim que se passam coisas de verdade, como quando chega o autocarro
com os que regressam à terra, e os falangistas os recebem á cacetada… Ou aqui mesmo,
no mesmo instante, à frente de Gustavete…! Ou mais tarde, quando isto estiver cheio de
gente de verdade… Mas, não senhora: ela apresenta-se aqui quando estou sozinho, e o
teatro vazio, e ainda por cima quer que eu acredite… E ainda por cima conta-me os
apalpões que lhe dá esse Pedro Rojas!

CARMELA – (Baixinho.) Também me deu isto… (Tira uma colher.)

PAULINO – Quê?

CARMELA – Esta colher… Ofereceu-me a sua colher…

PAULINO – (Estupefacto.) A sua colher… (Rebenta em gargalhadas furiosas.) A sua


colher! Pedro Rojas ofereceu-lhe a sua colher! É de morrer! Vejam senhores! O

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desavergonhado cabeça rachada do Pedro Rojas ofereceu a Carmela a sua colher! Não
percam esta!...

CARMELA – Pois olha que a ti…

PAULINO – (Pára subitamente de rir.) A mim, o quê?

CARMELA – (Rebenta em gargalhadas.) Essa camisa que te ofereceram!... Que


pareces uma beata na Sexta Feira Santa!

PAULINO – (Seco.) Não vejo onde está a graça.

CARMELA – (Rindo.) Porque ainda não olhaste para ti!... (PAULINO põe-se de novo a
varrer, muito digno. Ela vai pouco a pouco deixando de rir. Aproxima-se dele,
conciliadora, e trata de lhe tirar a vassoura. Ele resiste.) Anda, dá-ma…

PAULINO – (Debilmente.) Não, deixa-me… (Mas finalmente cede. Ela dá-lhe o


punhado de trigo que trazia na mão e põe-se a varrer.)

CARMELA – Eu serei uma mentira, mas isto é varrer de verdade…

PAULINO – (Olhando-a.) Pior ainda…

CARMELA – É pior de todas as maneiras… Ou não?

PAULINO – Sim, mas…(Começa distraidamente a comer os grãos de trigo.) Claro


para ti é muito fácil: desapareces e acabou-se… Quem tem que continuar aqui, e
aguentar toda a merda, sou eu. Tu não tens a menor ideia do que se está a passar… As
tropas já se foram daqui, e dizem que tomaram já Quinto, Alcañiz, Caspe… E que vão
chegar ao mar em poucos dias… Se a Catalunha não resistir…

CARMELA – Agora que me falas na Catalunha… Encontrei-me com duas catalãs


muito divertidas.

PAULINO – Ah! Sim?

CARMELA – As duas chamam-se Montse, claro… Mas não se parecem nada.

PAULINO – Que coisas…

CARMELA – Uma, a mais jovem, que é de Réus, disse que já está ansiosa por
começarmos a fazer alguma coisa.

PAULINO – E que vão fazer, estando… como estão?

CARMELA – A coisa é essa. Porque diz Montse… mas a outra, a mais velha… que
existem muitas maneiras de estar morto…

PAULINO – Não me digas…

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CARMELA – Assim como há muitas maneiras de estar vivo.

PAULINO – Isso é verdade…

CARMELA – E, como diz Montse, se nos pomos…

PAULINO – Qual?

CARMELA – A mais jovem, a de Réus… Pois que se…

PAULINO – E a outra, a velha, de onde é?

CARMELA – Não é velha, só que tem mais anos que Montse.

PAULINO – Bem, pois, de onde é essa Montse?

CARMELA – Qual?

PAULINO – A mais velha, a que não é de Réus…

CARMELA – E isso que importância tem?

PAULINO – Não, nenhuma… É para não as confundir.

CARMELA – Pois não sei, não mo disse.

PAULINO – Que estranho…

CARMELA – Estranho? Porquê?

PAULINO – Porque os catalães, dizem sempre:”Sou catalão de Manresa… ou de


Figueras… ou de…”

CARMELA – Bom, pois Montse não mo disse, vê lá tu.

PAULINO – Que estranho … Na volta, faz-se passar por catalã, e não o é.

CARMELA – Mas, vamos a ver, alma de Deus: porque se faria passar por catalã, essa
pobre mulher?

PAULINO – E que sei eu… Nem a conheço… Mas há gente muito estranha por aí…

CARMELA – Tu sim, é que és estranho!

PAULINO – A outra, pelo contrário, estás a ver, diz seguido:”Sou catalã de Réus”. O
normal.

CARMELA – Mas, bom, a ti o que é que te interessa? O que eu te ia contar ou o seu


lugar de nascimento?

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PAULINO – Tens razão: conta, conta…

CARMELA – Já não sei onde ia…

PAULINO – Em Réus… Bom, o que dizia a de Réus…

CARMELA – Ah, sim… Pois dizia Montse que nos podíamos pôr à procura dos que
não se conformam em apagar-se…, ou seja, os maciços, como lhes chama Montse… e
juntar-nos, e fazer algo assim como um clube, um grupo, ou um sindicato…, ainda que
Montse diga que, de sindicatos, já basta… mas com isso a outra Montse fica muito
picada, porque diz que…

PAULINO – Ouve.

CARMELA – O quê?

PAULINO – Já estou baralhado… qual é a Montse que diz que…?

CARMELA – (Forte.) Sabes o que te digo?

PAULINO – Quê?

CARMELA – Que não se chamam Montse, tá. Nenhuma das duas. Nem são catalãs,
nem de Réus, nem são nada.

PAULINO – Ora, bolas...

CARMELA – Uma é anarquista e a outra comunista, tá.

PAULINO – Toma porrada.

CARMELA – A ver se entendes. Uma da FAI e outra do PSUC.

PAULINO – E não se mataram, logo que se viram uma à outra?

CARMELA – Matar como, se já estão mortas? Pelo contrário: fizeram-se muito


amigas… Discutem muito, isso sim, e chamam-se de tudo, e em catalão, mas não passa
disso… Sem se baterem, já agora, para quê?

PAULINO – Bom, e esse clube…?

CARMELA – Ou lá o que for, logo se verá… Pois para fazer memória.

PAULINO – Que queres dizer?

CARMELA – Sim: para contarmos tudo o que se passou, e porquê, e quem fez isto, e
que disse aquele…

PAULINO – E para quê?

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CARMELA – Para recordar tudo.

PAULINO – A quem?

CARMELA – A nós… e aos que forem chegando…

PAULINO – (Depois de uma pausa.) Recordar tudo…

CARMELA – Sim, guardá-lo… Porque os vivos, enquanto tiverdes a pança cheia e a


gravata posta, esqueceis tudo. E há coisas que…

PAULINO – Isso é comigo? Pensas que me esqueci de alguma coisa?

CARMELA – Não, não digo por ti… Ainda que, lembra-te… Tu, deixa que passe o
tempo, e depois falaremos…

PAULINO – Depois falaremos… Quando?

CARMELA – Bom: é uma maneira de dizer.

Há um silêncio. Ficam os dois ensimesmados, como em processos diferentes.

PAULINO – E quando esse tal te aperta, que sentes?

CARMELA – Depois falaremos… Lá.

PAULINO – Diz… que sentes?

CARMELA – Lá chegareis todos, e falaremos…

PAULINO – É verdade que te belisca o rabo…É sim?

CARMELA – Uns e outros…

PAULINO – Os operários, quando vêem um rabo fácil…zás!, beliscão.

CARMELA – Metralhados, ou fuzilados, ou mortos à paulada…

PAULINO – Assim… (Dá-lhe um beliscão no rabo.) Sentes?

CARMELA – Ou na cama, de uma constipação mal curada…

PAULINO – Não sentes nada?... Se queres, deixo que me dês um beijo…

CARMELA – Mais cedo ou mais tarde…

PAULINO – Não me ouves? Beija-me uma vez, a ver o que acontece…

CARMELA – Na guerra, ou na paz, ou noutra guerra, ou em…

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PAULINO – Então beijo-te eu…(Beija-a. Ela parece ausente.) Gostas?

CARMELA – Porque os vivos não aprendem nada com os erros, nem ao tiro…

PAULINO – Gostas, Carmela? Sentes alguma coisa? (Beija-a outra vez.)

CARMELA – Nem ao tiro…

PAULINO – (Irritando-se.) Diz-me se sentes alguma coisa, porra! (Beija-a e abraça-a


com violência.) Então?

CARMELA – Mas lá vos esperaremos…

PAULINO – (Furioso e assustado.) Porque não me respondes? (Abanando-a.) Carmela,


diz-me alguma coisa! Olha para mim! Que se passa contigo?

CARMELA – E recordando…recordando…

PAULINO – (Dá-lhe uma bofetada.) Vê lá se sentes isto!

CARMELA – E depois falaremos… Depois falaremos…

PAULINO – (Sacode-a violentamente.) E isto! E isto! (Abraça-a com brutalidade.)


Carmela!

CARMELA – (Olhando surpreendida, para a sala.) Olha-os!

PAULINO – (Sobressaltado, afrouxa o braço e volta-se.) Quê? Quem está aí?

CARMELA – Aí, na sala… (Sorridente.) Olha-os…

PAULINO – Quem? Não há ninguém aí…

CARMELA – Sim… Não os vês? Na sala, tão jeitosos…

PAULINO – Quem são os que estão na sala?

CARMELA – Os milicianos… Os das Brigadas: o polaco, os franceses, os


americanos…

PAULINO – (Olhando, inquieto, a sala.) Não digas disparates, Carmela…

CARMELA – (Aos “milicianos”.) Olá, compadres…

PAULINO – Carmela, por favor… Foram fuzilados outro dia… e eu vi como os


atiravam para uma vala, com muitos outros…

CARMELA – (Sem o escutar.) Quê, a passar um bocado?

PAULINO – Digo-te que não há ninguém… E muito menos, esses…

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CARMELA – (Igual.) O mesmo que eu… Aqui não se está mal.

PAULINO – Por favor, Carmela… Vem comigo, vamo-nos daqui…

CARMELA – E agora, melhor que na outra noite, não é verdade?

PAULINO – Que um vivo tenha visões, ainda vá, mas… Que as tenha um morto!...

CARMELA – Que mal passámos, eh! Porque eu, parecia contente, cantando e bailando,
mas… a dor estava cá dentro…Uma profissional…

PAULINO – Isto é demasiado, Carmela… Eu vou-me.

CARMELA – Não…(Ri.) Isso da dor cá por dentro é uma maneira de falar, uma coisa
que se diz aqui…

PAULINO – Digo-te que me vou, Carmela… Já só falta aparecer por aqui o tal da
cabeça rachada...

CARMELA – Ouçam! E como é que nos entendemos?... Porque vós, não sei como
falais, mas eu entendo… E a mim entendeis-me? Ai, que engraçado! (Ri.) A ver se
resulta que… como morrestes em Espanha, pois já falais o espanhol… Que acontece!...
O mesmo que ao nascer num país…! Pois isso!

PAULINO – Não aguento mais, Carmela… Adeus… Depois falaremos…

CARMELA – (Continua muito divertida.) Ao menos assim, já sabereis dizer onde


morrestes… A ver, tu, polaco: diz Belchite… Sim, é isso… Belchite… E Aragão, sabeis
dizê-lo?... Aragão… Não: A-ra-gão… Assim: Aragão… Espanha sim, que a dizeis bem,
não é verdade? Não… (Risonha.) Assim, não… Assim: nha… Espanha… nha… Sim é
muito fácil… Espanha… Espanha…

PAULINO atravessou a cena com a grafonola, sem olhar CARMELA.


Inexplicavelmente, começa a escutar-se a canção “Ay, Carmela”. PAULINO detém-se,
apanhado de surpresa, olhando à sua volta. CARMELA, que não parece escutar a sua
canção, continua ensinando a pronunciar Espanha.

ESCURO FINAL

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