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Auto das Barcas deste Inferno!

Com mote e palavras de Gil Vicente e tresloucadas tiradas de um tal Mário Jorge que
a tal jornada se afoita sem ajuizar de ser dotado para tal mester…
Lisboa, mês de Janeiro de 2014

Com:
Catarina na Classe dos Céus e Anjos sendo o ANJO;
Mariana na Classe dos Céus e Anjos sendo o Pandeireteiro-Mor (ajudante do Anjo);
Salomé na Classe dos Infernos, sendo o DIABO;
Daniela é a Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens;
Dinis é o FIDALGO da Bem-Aventurança;
Dora é a ALCOVITEIRA;
Margarida é o PARVO à-Maneira;
Bryan é o PARVO ESPERTO;
Inês é o DIABO Parvo (ajudante do diabo);
Gonçalo é o REPÓRTER HIPOCONDRÍACO;
Ana Madalena é a DAMA DO CONTRA;
Flávia é a DAMA DO PRÓ;

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1 . Visão anteprimeira
Entram todos em cena (menos o reporter e damas pró e contra), ar de Parvos, batuqueando
os pés.

Ai, que bela sensação… ão-ão-ão!


Ter o céu e o inferno…no-no!
Juntos no mundo moderno p’ra
cumprir a tradição!

Vimos agora juntinhos… nhos-nhos!


Começar a algazarra… arra-arra!
Mas não julguem que é só farra.
pois nós somos bem ladinos!

Toca a usar a moleirinha… nha-nha-nha!


P’ra ver o que se não diz… iz-i-iz!
Pois levantando a folia fica
a nu a porcaria!

Ai, que bela sensação… ão-ão-ão!


Ter o céu e o inferno…no-no!
Juntos no mundo moderno p’ra
cumprir a tradição!

Vamos agora acabar… ar-ar-ar!


Esta bela introdução… u-ção-ção!
Venh’ó Anjo e o Demónio!
Vai começar a função!
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Diabo Parvo interrompe a música.

Diabo Parvo – O Anjo e o Demónio não são agora.

Alcoviteira – Eu bem vos disse que devíamos ter ensaiado melhor


esta parte.

Pandeireteiro-Mor – A culpa é vossa, passavam os ensaios todos


na brincadeira.

Começam todos a discutir a atirar


as culpas uns para os outros e vão
saindo de cena.

Aparecem novamente a espreitar e


voltam à canção.

Ai, que bela sensação… ão-ão-ão!


Ter o céu e o inferno…no-no!
Juntos no mundo moderno p’ra
cumprir a tradição!
Saindo com risos, Parvos!

Entram em cena o Repórter e damas pró e contra

Repórter Hipocondríaco – (falando ao telemóvel) É como te digo, Zé Alberto!... Não sei o que é que
se está a passar mas são muitos. É um furo de reportagem… Não, não!... Eu fui lá mas a velha
disse que só falava se lhe pagássemos… Claro!... Pois é!... Além disso o cão nem era dela. Nada!...
Agora isto… Posso avançar?... Combinado!... Não sei, Zé Alberto!... Mas são muitos e fazem
chinfrim. (Gaja do Contra chega ao pé dele e toca-lhe; ele salta) Tire as patas, caraças!... Eu já te ligo, Zé
Alberto. Não me toque!... Então?!... Se calhar não lava as mãos há um mês. Passa-me micróbios
para a roupa e ainda apanho uma infecção rara e quino!

Dama do Contra – Eh, lá!... Tem calma, men!... Eu só te queria dar umas dicas. Tu queres saber
o que se está a passar?!... Eu posso informar!

Repórter Hipocondríaco – Ah, é?... Mas escusas de tocar na roupinha. Então… despeja!

Dama do Contra – Despeja?... És mesmo bronco!... Mas cá vai: aqui vai começar a Revolução! É
o povo, a malta nova, a começar a dar uns piparotes na situação. Isto começa aqui com a
maluqueira e só acaba com os leões da Assembleia da República a serem devolvidos a África!

Repórter Hipocondríaco – Tu tomaste o quê, pá?!... G’anda maluca!... Tens as análises em dia?
Ainda me infectas com qualquer porcaria e assim!
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Dama do Pró – Senhor Repórter, preste bem atenção: esta moça não é boa da cabeça. O que se
vai passar não tem nadica de revolta. É apenas um saudável exercício artístico, de louvor a
Mestre Gil, que em boa hora fundou nosso Teatro!

Dama do Contra - Mas quem és tu, ó delicadinha?!... Dou-te duas voltas no ar e, não tarda, ficas
a morder o pó.

Repórter Hipocondríaco – Tenham muita calma. Calma ó do Contra, calma ó do Pró!... Nada de
levantarem poeira que eu desconfio que anda por aí alguma poeira a pairar que me pode
provocar, em menos de nada, uma rinite aguda.

Dama do Contra e Dama do Pró - És completamente parvo!

Repórter Hipocondríaco – Ainda bem que as vejo de acordo. Até perdoo o insulto. Nem mais
uma palavra. O repórter sou eu. Afastemo-nos que estão a regressar carregados de tralha.
Deixem-me trabalhar. (tira o telemóvel e liga) Zé Alberto?... Achas que posso entrar em directo?...
Não?!... Faço a reportagem sozinho?... Eh, pá!... Então?!... E a imagem?!... Eu, não. Só tenho
telemóvel…. A sério?!... Vou tentar. (vai tentar filmar com o telemóvel, ao longo da representação) Caros
espectadores. Vamos ter oportunidade de assistir…

Dama do Contra e Dama do Pró – Cala a boca e deixa ouvir!

2. Primeira gaitada
Música de Arautada Real. Entrando…
Entra o Anjo e o Diabo a correr do meio do público.
Vão até à sua barca ver se está tudo em ordem.
Anjo – Queríamos, nobre público, representar-vos, singelamente, um auto de moralidade
composto por Gil Vicente por contemplação da sereníssima e mui católica rainha Lianor, nossa
senhora, e representado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei Manuel, primeiro
de Portugal deste nome….

Diabo – Lá querer queriam!...

Anjo – … não fora a intromissão de uma infernal criatura que em autor se arrogou…

Diabo – E em boa hora escrevinhou arejadas e soltas palavras, verdadeiros tições para alimentar
as brasinhas de renovado Inferno!

Anjo – Assim mesmo, esclarecido e resignado público, não nos furtaremos a travar mais esta
batalha entre o Bem e o Mal…
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Diabo – Ó bem-falante de asas curtas, se assim continuas, levarás tabefe de arreganhar olhos,
antes que ergas o dedo mindinho!... Á função, sem mais demora!

Anjo – Ó supremo ser, carrega-me a alma de paciência para aturar este cornudo!

Diabo – Eh, lá!... Quando menos se espera… transforma-se o Anjo em fera!

Anjo e Diabo ficam a picar-se um ao outro.

Pandeireteiro-Mor e Diabo-Parvo, entrando…

Os dois – Ó patrões!... Ó patrõezinhos!... Então quando é que começa a função?

Pandeireteiro-Mor – Leixai a disputa secular!

Diabo-Parvo – E toca a bailar!

Pandeireteiro-Mor – Extremosamente, como bons servos de Deus!

Diabo-Parvo – Cala a boca, ó camafeu!

Os dois – Isso é comigo?!...

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens (entrando) – Haja alguém com muito siso e


temperança, que entre e ponha em ordem estas andanças.

Pandeireteiro-Mor e Diabo-Parvo – Aqui-estou-Aqui-me-tens!

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens – Sou eu, muito obrigado!... E ordeno aos quatros totós
presentes que fiquem bem caladinhos enquanto desfio a introdução. Assim está bem!...
Primeiramente, no presente auto, se afigura que, no momento em que cada um de nós dá o
último suspiro…

Pandeireteiro-Mor – Ou morre por inteiro…

Diabo-Parvo – Ou estica o pernil…

Diabo – Bate a bota!

Anjo – Entrega a alma ao Criador!

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens – … no justo momento em que expiramos, chegamos


subitamente a um rio, o qual havemos de passar num de dois batéis que num porto estão, sendo
que um vai para o Paraíso e o outro para o Inferno. Por isso…
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Os outros todos - Às barcas, às barcas, houlá!... Que temos gentil maré!

3. Início do princípio
Música. Entram em cena a Alcoviteira, e cantam e dançam. E também a Dama Aqui-estou-aqui-me-tens.

Vamos dar entradas às barcas No cabaret,


no cabaret, isso é que é!

Tragam primeiro a Barca do Céu, dita


do Paraíso.
Há-de lá entrar quem tiver de seu, for
bom e tiver juízo

Venha depois a Barca do Inferno onde


tudo é moderno.
Quem lá entrar fica quente a valer, e
dizem que vai sofrer-

Estenda-se o rio agora e vamos já


bazar daqui p’ra fora!

Entram o Fidalgo da Bem-Aventurança, o Parvo-Esperto e o Parvo à-Maneira.

Fidalgo e Parvo Esperto – Olá fofuras!... Carninha boa!... Chicha de lamber os beiços!

Alcoviteira – Vade retro, criaturas babosas!

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens – Quem vos chamou aqui a terreiro?

Alcoviteira – Ide ver se chove!

Parvo à-Maneira - Na-na-na! Que viemos a correr a nove!

Parvo-Esperto – E de língua de fora ficámos para chegar em boa-hora!

Fidalgo da Bem-Aventurança – Chega de vozes de chiqueiro, ó Parvos enjeitados. Deixai passar


o bom fidalgo que tem que chegue para tão belas damas!

Alcoviteira – Tens a bolsa recheada?

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens – Palácios, quintas, mansões onde podemos pernoitar?

Alcoviteira – Ao menos uma carroça para nos levar a passear?!...


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Fidalgo da Bem-Aventurança – Nada disso tenho mas são largos e espaçosos os quartos do meu
coração para vos aconchegar às duas!

Alcoviteira – Nanja que eu sou roliça e ficava com as ancas entaladas no portão!

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens – Do teu coração não farei uso nem para um arroz de
miudezas!

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens – E eu nem perco tempo a comentar uma oferta tão


disparatada!

Parvo à-Maneira – Ora toma que já almoçaste!

Parvo-Esperto – Abristes-lhe o teu coração e elas escolheram dar-te nas trombas!

Fidalgo da Bem-Aventurança – São moças recatadas!... Não se comprometem assim no meio da


rua. Porém, em casa sua…

Parvo à-Maneira – Tenho para mim que qualquer delas em casa…. Sua, lá isso, sua!… mas… só
se pagares!

Parvo-Esperto – Bem observado colega!

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens – Isto é de mais!... Chega de remoques e farroncas!... Basta de


linguajar de pé-de-cabra!... Cada um em seu lugar!... Que o povão está de queixos caídos e não
tarda nada estão aborrecidos e nada há de pior que maltrapilhos com lazeira!... Ora guardem as
línguas nas bocas respectivas e façam um chega para lá à lascívia!...

Todos – Calma!... Muito vagar!... Olha o coração que te salta do peito com tanto entusiasmo!...

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens – Cambada de asnos!

Todos – Não é preciso ofender!

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens – Venha o ambiente mais conveniente!... Ocupem os vossos


postos, ó das Barcas!... E vocês vão para a fila! Ou tirem a senha que já vos chamam.

Os outros todos - Às barcas, às barcas, houlá!... Que temos gentil maré!

Repórter Hipocondríaco – Desculpe-me o atrevimento mas… não se importa de me filmar agora


um bocadinho para eu fazer um breve comentário? É que já me dói o braço!... Espere!... Segure
com um lenço ou assim. É escusado pôr os dedos. Desculpe!... Não se importa?

Dama do Contra – Eu não tenho lenço nenhum. Qual é o teu problema? Tens de tratar essa
pancada!... Dá cá isso!... Espera lá. Ó menina: deixa-me usar um bocado da tua roupa para
segurar aqui na… ‘câmara profissional’ do grande repórter!... Vá, fala!
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Repórter Hipocondríaco – Ai, que nervos!

Dama do Contra – Está a gravar!

Repórter Hipocondríaco – O momento a que acabamos de assistir retrata, no fundo, a chamada


guerra dos sexos…

Dama do Pró – Um momento! Fazes entender mas não percebes nada de horta!... Agora falo eu.
Isto, meus amigos, é a chamada educação negativa tanto na moda nos tempos que correm. E é
intolerável! Felizmente o meu amigo Nunocas está na 5 de Outubro e amanhã vai jantar a minha
casa. Terei, por isso, oportunidade de lhe dar uma palavrinha. Há que mudar também estas
poucas vergonhas. Albardaram o burro à vontade do dono. E destroem assim um texto nobre
que o Rei de então pagou.

Repórter Hipocondríaco – Pode fazer o favor de me largar?!... Deixe-me trabalhar, por favor!

Dama do Contra – Então e eu? Fico aqui pendurada a filmar e achas que vou ficar calada?!...
Não!... A isto chama-se falar verdade. É preciso fazer um retrato do que se passa. As mulheres
praticavam o que depois se chamou a mais velha profissão do mundo?... Há que dizê-lo! E
porque o faziam? Eram as condições sociais. Olhem os tempos de hoje…

Dama do Pró – Que é que têm de mal os tempos de hoje?!

Dama do Contra – Estando o mundo dominado pelos Infernos que só causam miséria, não tarda
muito para as mulheres terem de chegar à conclusão que só lhes resta vender o corpo para
poderem sobreviver. São as condições sociais. E se são… há que dizê-lo!

Dama do Pró – Boca blasfema!... Se fosse antigamente lavava-te a boca com lixívia! Juventude
desbocada. Sem maneiras. Deixa estar que hei-de falar ao Nuno e ele, do alto da 5 de Outubro,
há-de pôr tudo nos eixos!

Repórter Hipocondríaco – Ora dêem-me cá o telemóvel. Já está quase tudo arrumado e pronto.
Vou-me sentar ali naquele lugar.

As outras – E nós também!

Diabo-Parvo e Pandeireteiro-Mor – (que estão a acabar de arrumar a cena) Sus! Sus!... Ora levantem
já daí esses cus!... Vai um chuveirinho?!.... (deitam perdigotos) Pffff!.... Pffff!.... Pffff!... (fogem os
outros três) Toca aqui, colega!... (riem-se)

Repórter Hipocondríaco – Valha-me o Santo Antibiótico! Fiquei todo cuspidinho!... E posso estar
infectado!

Dama do Contra – Ladinos do caraças!

Dama do Pró – Minha Santa Pipoca!


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(Afastam-se)

4. Pondo a mesa para o repasto


Diabo-Parvo disputa a organização dos lugares – bancos – com Pandeireteiro

Diabo-Parvo – Bem feito fica. Bem feito está!... Vieste tu, muitieramá!... Anda lá sonsinho!
Tanso! Põe ali aquele banco para a gente que virá!

Todos – Às barcas, às barcas, houlá!

Pandeireteiro-Mor – Momento!... Não tendes assento p’ra receber a canalha!... Hav’rá tempo
de partir! Mas primeiro, ó minha gentalha, cuidar de arranjar mais que palha, para arrefinfar os
cus!...

Diabo-Parvo – Dou louvores a Berzebu! Que linguajar tão porreiro, tem o anjinho companheiro!
Ora, sus! Que fazes tu?

Pandeireteiro-Mor – Despejo todo este leito e tu me hás-de ajudar. ‘Inda não hão-de zarpar que
não temos as barcas prontas!

Diabo-Parvo – Em boa hora! Feito, feito. Já está parado este leito. Estás contente, meu
farroncas?!

Pandeireto-Mor - ‘tou sim. Meu parvo!... Meu broncas!

Todos – Demora muito o arranjo?!

Os outros dois – Calem a boca, marmanjos!

Diabo-Parvo – Ó que caravelas estas!

Pandeireteiro-Mor – Põe as bandeiras que é festa!

Todos – Verga alta! Âncora a pique!

Os outros dois – Abaixem já esses cus! Tirai-os desse batel! Mas que tropa e que farnel!

Diabo-Parvo – Estais com pressa?!

Pandeireteiro-Mor – Então como é que isto começa?

Diabo-Parvo – Calhava bem uma loa, ao jeito de Nossa Senhora!

Pandeireteiro-Mor – Mangais com o Altíssimo?! Não perdeis pela demora!

Percebem que estão trocados.


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Diabo-Parvo – Eh, companheiro! Estamos trocados! O infernal sou eu, e tu és o sonsinho!

Pandeireito-Mor – ‘Inda bem que m’alembrais. Já todo torcido estava. Deve ser do balançar do
cais. Eu bem disse ao patrão que enjoava.

Os dois – Cada um em seu lugar. Toca!...

Anjo – Aqui está a Barca dos Céus! Louvado seja Deus!

Todos – Am’ai’n!

Pandeireteiro-Mor – E ao Pai… e ao Filho… e ao Espírito Santo!

Diabo – Esta é a Barca dos Infernos!... Entrará quem merecer!

Diabo Parvo – Para logo ficar de rabo a arder!... Viva o nosso Berzebu! No mundo não há como
tu!...

Os quatro das Barcas – Eis o Céu!... Eis o Inferno!... Duas barcas à vossa escolha!... Escolha, entre
e fique!... Escolha, entre e fique!... Sem hesitações!... Aproveite as promoções!

Entram todos a dançar

As mulheres cantam (Todas) - Gracias a la vida que me ha dado tanto, Me dio dos luceros que
cuando los abro, Perfecto distingo lo negro del blanco Y en el ancho cielo su fondo estrelado, Y
en las multitudes el hombre que yo amo!

Os homens cantam ( Parvo-Esperto; Fidalgo ) – E se elas querem um abraço ou um beijinho… nós,


pimba!... nós, pimba!...

Os quatros das Barcas – Organizem-se!!!

As mulheres – Tiramos à sorte!...

Os homens – Ficamos com o que resta!...

5. O desfile

Entra Parvo Esperto


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Parvo-esperto – Oh, que desgraça é a minha!... Estava eu a meio do banquete… engasguei-me


co’o croquete… e fiquei com o ar parado!... Morri de morte matada. Assi… em menos de nada!

Diabo-Parvo – Não te valeu o INEM?

Parvo-esperto – Chegaram muito atrasados. Anda co’os carros avariados. E chegados me


olharam… me cuspiram e escarraram, dizendo ser culpa minha.

Diabo – Ui, mas que belo tratante amaneirado em fidalgo!... Vens do lado dos mandantes?

Parvo-esperto – Se quereis dizer governante… pois sim, desses eu era!

Diabo-Parvo – Nem sabes o que te espera!

Diabo – Pois aqui não tens lugar!

Parvo-esperto – Eu sou de boas famílias!

Diabo-Parvo – Pruquê?! Tinhas buganvílias na tua mansão de Verão?

Parvo-esperto – Tinha era muito dinheiro! Mas morri tão de repente, que ficou para meus
parentes, que em vez de chorar se riram.

Diabo – Vai ali bater ao lado que não queremos os Infernos mal frequentados.

Diabo Parvo – Sim, não queremos os infernos mal frequentados.

Parvo-esperto – Ó dessa Barca! Vais para o Paraíso?

Anjo – Ora tende lá juízo!... Quem julgas vós que aqui entra?

Parvo-esperto – Eu creio que posso entrar.

Pandeireteiro-Mor – E que fizeste para ganhar lugar?

Parvo-esperto – Um ror de coisas! Ganhei dinheiro!... Castiguei o meu caseiro por não me dar
os bons-dias como é mester fazer-se à fidalguia. Deixei-lhe os filhos sem pão. Mas tive toda a
razão!

Pandeireto-Mor – E aquela malvadez de roubar as velhinhas?

Parvo-esperto – Tirava-lhes só o dinheiro. Ficavam com as bolsinhas!... E mais vos digo:


sentava-me à direita do Presidente.

Pandeireteiro-Mor – Atirava ele o osso para o tapete? Chegava-te à cova de um dente?


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Parvo-esperto – Zombais, ó cornudos?!... Se na terra ‘inda estivesse… pagavam a língua de


palmo.

Diabo – É melhor dizeres um salmo. E vai para a Barca dos Céus. Com a falta de procura com que
estão, hoje em dia, aceitam qualquer porcaria.

Anjo – Não abras mais a boca e entra! Cala!... Senta!... Vai lá para trás!...

Parvo Esperto entra na barca do Céu, os outros ficam a co


mentar o aspeto do Parvo Esperto

(Música de entrada de Personagem)

Entra Parvo à Maneira

Pandeireteiro-Mor – Isto é que vai uma crise, patrãozinho!... Lá vem outro!... Que mal cheira!...

Parvo à-Maneira – Devo ir para a direita ou para a esquerda?

Diabo – Anda cá, meu maganão! Até no colchão guardavas dinheiro! E emprestavas dinheiro aos
pobres que aquele fez. Onze por cento ao mês cobravas tu!... Onzeneiro!... Entra cá que vais
servir de lenha no meu braseiro!

Parvo à-Maneira – Posso perguntar primeiro onde vai a barca?

Diabo-Parvo – À comarca dos Infernos! Vou-te roubar os cadernos onde apontavas tudo. Que
um dia também me emprestaste dinheiro para comprar uns favores!... Parvo fui em ir nas tuas
cantigas! Tem lábia até p’ró Diabo, carago!

Parvo à-Maneira – Nessa Barca é que não vou! (vai à Barca dos Céus) Hou da barca! Houlá! Hou!
Estás quase a partir?

Anjo – E onde queres tu ir?

Parvo à-Maneira – Eu vou para o Paraíso!

Diabo-Parvo – Tem juízo!... Se ele entrar na Barca, patrãozinho, não tarda que no caminho nos
dê a volta a cabeça! Traz a bolsa pendurada e vai querer comprar tudo. Ou jogar ao chinquilho
ou à bisca lambida. Chegamos aos Céus com a Barca perdida!

Parvo à-Maneira – Vejo que não sou bem vindo! Volto pois um pouco atrás! (volta à Barca dos
Infernos) Cavalheiros!... Tenho uma proposta a fazer: leixai-me voltar ao mundo e trazer o meu
dinheiro! Porque ali o camarada, quer-me matar à lambada!

Anjo – Morrias segunda vez?... Bela história! De tal não há memória!


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Parvo à-Maneira – Bastava-me meio dia para cobrar o que me devem e carregar umas arcas
assim… bem cheias!

Anjo – Cala a boca! Entrarás! Já te não quero aturar!

Diabo-Parvo – Entra! Entra, onzeneiro!... E servirás de madeiro na viagem que faremos! O


tratante!... Adiante!... Vai para a ré!...

Parvo à Maneira entra na barca do Inferno, os outros ficam a comentar o aspeto do


Parvo Esperto.

Dama Aqui-estou-aqui-me-tens passa a varrer o palco e sai.

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens – Mas que bestas!

Os dos Barcas – Diga?!

Entra Fidalgo da Bem Aventurança com dores de barriga.

FIDALGO da Bem-Aventurança – Eu sou Joane, o Parvo, e venho aqui para entrar da melhor
maneira na barca mais afamada. Morri, faz nem meia hora, de… de… de caga merdedeira. E
morri de tal maneira, que ao acordar e ver-me morto, morri outra vez de susto. Tinha a barba
por fazer e os olhos arremelgados. E os cueiros molhados de tanta caganeira. Soma: acabei por
morrer mesmo sem adoecer.

Diabo – Não te conhecemos nós doutra maneira? Bem te conhecemos os jeitos.

Anjo - Escolhe a barca que quiseres. Embarca Joane, o Parvo. Embarca onde quiseres!

FIDALGO da Bem-Aventurança – Estava a ver que não! Nesta Barca do Inferno é que não!...
Hiu!... Hiu!... Barca do cornudo. Pêro Vinagre, beiçudo… Sapateiro da Candosa! Antrecosto de
carrapato! Hiu! Hiu! Caga no sapato, filho da grande aleivosa! Perna de cigarra velha, caganita
de coelha, pelourinho da Pampulha! Mija n’agulha! Vou-me lá, ao Anjo bom! Tem feições
desencardidas! E logo depois da partida talvez eu quebre o disfarce e toda nele me enlace.
Virgem Maria!

Fidalgo da Bem Aventurança entra na barca do Céu, os outros ficam a


comentar o aspeto do Fidalgo.

(Música de entrada de Personagem)

Entra a Alcoviteira, disfarçada de Sapateiro


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Alcoviteira – Ó da barca! Ó do batel! Sou um sapateiro honrado! Morri, mas trouxe o farnel.

Os das Barcas – Outra que vem disfarçada! Vamos lá fazer de conta, senão a história se alonga!
Escolhe a barca!

Alcoviteira – Assi’?! Sem mais nem menos?!... Oh, meu Deus! Ai que canseira! Trabalhei a vida
inteira, consertando sapatinhos, sapatões e botifarras… Eis-me chegado aqui… e dizem que
escolha as amarras… Que faço… para onde is?

Os da Barca dos Céus – Para os Céus, com paragem no Paraíso.

Os da Barca dos Infernos – E nós outros ao Inferno. Expresso! Não há paragens!... Temos casa
de banho, mini-bar e ar condicionado! E também circuito interno de vídeo e escolha de posto
de rádio!

Diabo Parvo – Não temos wi-fi?

Diabo – Mandei tirar, agora só net por cabo. Tu não largavas os tuk tuks.

Alcoviteira – Não é tuk tuks, é tik toks.

Todos entram em cena

(Música do Tik Tok)

Todos Fazem a coreografia

Todos saem, fica Alcoviteira e membros das barcas.

Alcoviteira – O Expresso deve ser mais caro…

Diabo Parvo – Com o que roubaste em vida deve chegar para o bilhete.

Diabo - Até compravas a Barca por inteiro!

Alcoviteira – Pois sim! Cá vou!...

Entra música de coral religioso. Sons de tempestade. Relâmpagos. Flashes de luz .


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6. Perdoai-nos os pecados
Ajoelham todos e oram.

Diabo Parvo vai buscar as orações e distrubui por todos

Todos – Perdoai-nos os pecados. Mas não fizemos por mal. Se merecemos castigo… que seja
bem pequenito. Estou aflito!... Bem aflito!... Bato no peito, a preceito!... Até me vou flagelar!...
Ai!... Ui!... Dói-dói!... Chiça, que mói!... Ai!... Ui!... Eu cá não fui, decerto, o mais pecador!... Ele
há tantos importantes, deputados, governantes!... E nenhum é castigado!... Comem bem. São
anafados. Ficam-nos com os ordenados. As pensões e as reformas. E nunca são castigados! Tiram
dinheiro à cultura e ninguém lhes vai à cornadura! Destroem a educação e todos têm perdão!...
Por isso, Deus, tem juízo!... E dá-nos o Paraíso nesta Terra em que vivemos!... Oremos!.... Ah….
Mum-mum-mum-mum-mum… E vamos continuar! Não sem antes jejuar!...
Ah…. Mum-mum-mum-mum…

Música ‘We are the champions! – Queen’ – dança-macaca!!!

7. O regabofe
Frade, no meio da confusão (é Parvo à-Maneira, disfarçado)

Parvo à-Maneira – Corpo de Deus consagrado! Pela Fé de Jesu Cristo, que eu nem posso
entender isto! Que dizes Mundo encantado? Pois hei-de ser condenado? Eu, um Frade tão
afamado em Portugal e Além-Mar?! Sou Frade de tantas virtudes que nem sei qual delas diga.
Ai, que me dói a barriga!

Anjo – Frade!... Que pouca vergonha! Se vens dessa maneira no Céu te não quero! Pois o nosso
Pai austero deu-me boas instruções: não levarei fanfarrões, nem padres pantomineiros.

Diabo – Entra na minha Barca, gentil Frade mundanal! A Belzebu te encomendo. Cantarás e
bailarás. Quero que haja alegria na viagem que faremos.

Parvo à-Maneira – Terei de viajar co’o demo?! Ai, de mim! E como?...?!... Com tanto salmo
rezado?!...

Parvo-Esperto – Razão tens tu, ó fradeco!... Pois se na barca dos Céus, viajam certos padrecos
que gostam de meninos que brincam com bonecos!

Parvo à-Maneira – Vade retro! Pois excomungo tal Barca. E ao Inferno me vou que melhor lá
estou!
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Os do Inferno – Assim é que é!... Ora alça aqui os pés!

Os das Barcas – Ás Barcas! Às Barcas! Houlá! Que chegou gentil maré!

Todos os que estão fora de cena – Atenção senhores passageiros com destino ao Além Mundo,
devem dirigir-se às portas de embarque!... Partida prevista para daqui a quinze minutos!... Pi-
pi-pi!... Corrigimos a informação: partida daqui a um quarto de hora!... A Transtejo-Xaolin deseja
a todos um excelente fim!...

Aparece Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens.

Dama Aqui-estou-aqui-me-tens – Hou das Barcas! Hou lá! Hou lá! Faltamos nós!

Entra Alcoviteira

Alcoviteira (tom falso) – Comadre!... Amiga do peito!... Companheira!... (a outra ignora-a) Chega para
lá, ó madame! Aqui não há quem te queira! Tem maneiras!

Alcoviteira rouba uma trouxa à Dama

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens – Cheguei primeiro, ó piolhosa!... Não querem lá ver o povo a


pôr-se em bicos de pés?!

Alcoviteira – Então?!... Ó menina!... Tanto fel, tanto azedume!... Não me parecem bem esses
modos!...

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens – Cala a boca, ó serigaita!

Alcoviteira (para o da Barca) – Aguarda-me rapaz! Está aqui Brízida Vaz!

Diabo – Bem disse que vinha disfarçada, agora vais bater à porta ali ao lado.

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens – Cavalheiro! Cavalheiro! Aqui-estou-Aqui-me-tens, chegou


primeiro!

Diabo Parvo – Parecem bem carregadas! Que trazeis em vossa trouxas?

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens - Seiscentos virgos postiços e três arcas de feitiços que nom
podem mais levar.

Alcoviteira – Três almários de mentir, e cinco cofres de enlheos, e alguns furtos alheos assi em
jóias de vestir, guarda-roupa d'encobrir, enfim - casa movediça; um estrado de cortiça com dous
coxins d'encobrir.

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens - A mor cárrega que é: essas moças que vendia.


16

Alcoviteira – Daquestra mercadoria trago eu muita, à bofé!

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens (muito chateada) – Trouxeste a carga toda!... Até os restos da boda
que nunca pudeste ter!... Aleivosa!... Pespineta... Fedúncia!... Marabunta fedorenta!

Anjo – O que é que elas disseram?!

Diabo - Não percebemos patavina!

Pandeireteiro - Armam linguagem fina só para nos enganar!...

Diabo Parvo - Ó donas! Toca a falar direito!

Alcoviteira – Deixem-me entrar já a mim que sou uma mártir tal!... Tenho levado açoites e
suportado tais tormentos, que não há ninguém igual! Peço-vos de giolhos!... Cuidais que trago
piolhos, anjo de Deus, minha rosa?! Eu sou aquela preciosa que dava as moças a molhos…

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens – E que criava as meninas para os cónegos da Sé!... Passai-me


a mim, por vossa fé. Eu sou uma apostolada, angelada e martelada, e fiz coisas mui divinas.

Alcoviteira – Também criavas meninas?! Ora, adeus! Nem Santa Úrsula converteu tantas
meninas como eu! E todos acharam dono e ficaram bem na vida!

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens – Se teimas em passar à frente ainda te ferro o dente ó lãzuda,


mal-cheirosa!

Alcoviteira – Olhai, a dama babosa! Andavas pelos salões a roçar-te nos calções das senhorias!...
Ou julga que eu não sei as porcarias que fazias?!

Dama Aqui-estou-Aqui-me-tens – Ai, que eu perco o ar de sonsa e vou-te às trombas!

Alcoviteira – Agarrem-me! Tenho-lhe um asco tamanho qu’inda a esgatanho!

As duas – Acudi!... Ó da guarda!... Peixe frito!... Não me matem, senão eu grito!...

Música de Paso Doble. Encenação de luta .

Alcoviteira e Dama envolvem-se em agressões.

Entram todos e começam a fazer apostas em quem irá vencer a batalha.

Pára a musica.
17

Repórter Hipocondríaco – (ao telemóvel) Alô?!... Zé Alberto?!... Não, não!... Não é tourada. Anda
é tudo à lambada, não tarda nada. Mas eu estou a fazer a reportagem. O melhor que posso.
Como?!... Não tenho a Segurança Social em dia?!... Estou a dever dinheiro às Finanças?!...
Ouve… É tudo um mal-entendido. Sabes como são esses gajos. Repete lá, por favor, que eu não
ouvi… Estou despedido?!... Mas eu ainda nem assinei contrato… Tens alguém mais barato?...
Mas eu ainda não recebi nem um chavo… Estou?!... Estou?!.... Desligou, o coirão!

Dama do Contra – Estás a ver, ó estagiário?!... Virou-se o mundo ao contrário. Se queres


trabalhar ainda tens de pagar. E agora que vais fazer à bonita reportagem?

Repórter Hipocondríaco – Vai tudo para o Facebook, o Youtube, e… o raio que os parta! E vou
dizer o que me fizeram!

Dama do Pró – Deixe lá, não se enerve. Para quem é que trabalhava? Qual era a sua estação? É
que eu tenho uns amigos a quem posso bichanar ao ouvido. Se se portar bem… Se eu quiser…
eles podem muito… é que podem mesmo. Não é para me gabar mas tenho umas ‘conections’
muito importantes.

Repórter Hipocondríaco – Não me toque! Que nojo!

Dama do Pró – Ai ele é isso?!... Nojo?!... Então vais andar de rojo. Nunca mais és contratado.
Mal-educado!... Insolente!... Palmo de gente!...

Dama do Contra – Olha só a velhaca!... Queres que te lambam os pés?!... Vamos voltar outra
vez ao come e cala?!... Armem lá outra vez a tourada que vamos alisar o lombo à empertigada!
(cena de luta e zaragata)

Dama do pró e contra envolvem-se em agressões.

Volta a música Paso Doble.

Envolvem-se todos em agressões.

Anjo – Já chega, que pouca vergonha, tudo a andar daqui para fora.

Diabo– Chega!... Toca a entrar! Temos gentil maré! As Barcas vão zarpar!

Pandeireteiro-Mor – Chefe, ainda temos mais no rol!

Diabo-Parvo – O mesmo digo eu, Patrão! Ainda faltam mais tratantes!

Anjo – Pois quem, não me dizes?


18

Pandeireteiro e Diabo Parvo – Um avarento!... Um corregedor!... Um procurador!... E até um


enforcado!

Anjo – Gente da alta finança e um qualquer desgraçado!...

Diabo - Manda-os para as listas de espera para saberem como é! Daqui a dois anos voltamos
cá!

Pandeireteiro – Ficam podres.

Diabo Parvo - e mal-cheirosos!

Anjo e Diabo – Nanja! Pois já cheiravam!...

Todos – Às Barcas! Às Barcas! Houlá! Que temos gentil maré!

Enquanto fazem a coreografia final movimentam as barcas.


Cantam.

Todos - Estas Barcas sem igual


estão agora de partida.
A Morte depois da Vida
é um destino banal.

Ó povo, não cales, diz!


Com olhos sempre matreiros. Despacha os
onzeneiros que te fazem infeliz.

Vai à luta, vai à luta!


Vai à luta, vai à luta!
Anda, vai à luta!

FIM

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