Você está na página 1de 57

MEU QUERIDO

ANARQUISTA

Comédia de Atilio Bari

1
PERSONAGENS:

Agustin, o velho anarquista, uns 70 anos

Paloma, sua filha, uns vinte e sete anos

Marcela, namorada de Paloma, uns quarenta anos

CENÁRIO:

Sala bem simples, de um pequeno apartamento

no centro de São Paulo.

2
PRIMEIRO ATO

ABRE O PANO.

SOBRE A MESA DA SALA, UMA PANELA TAMPADA.

PALOMA ENTRA EM CENA. TRAJE DE VIAGEM, UMA MOCHILA, ETC.

PERCORRE O AMBIENTE COM O OLHAR DE QUEM ESTEVE AUSENTE MUITO

TEMPO. ABRE A PANELA, OLHA E SE AGRADA COM O CONTEÚDO. SENTA-

SE, CANSADA.

ENTRA AGUSTIN, ROUPAS MEIO SURRADAS, UM TANTO SUJAS, BONÉ,

VINDO DA RUA. TRAZ UM PEQUENO EMBRULHO.

OLHAM-SE POR INSTANTES.

AGUSTIN Paloma!

PALOMA Papai!

PASSADA A SURPRESA, ABRAÇAM-SE FORTEMENTE.

AGUSTIN Você não avisou...

PALOMA Preferi fazer uma surpresa.

AGUSTIN Quanto tempo faz?

PALOMA Uns... sete anos?

AGUSTIN Oito. Oito anos. E três meses... e alguns dias... e umas horas...

RIEM.

3
AGUSTIN Lembro bem. Foi logo depois do meu aniversário, não foi?

PALOMA É... acho que foi... Como é que o senhor está?

AGUSTIN Velho. Estou velho. Mais do que naquele tempo. Mas tive sorte: pelo

menos não morri, o que seria muito pior, não? Pelo menos para mim. E

você?

PALOMA Bem, eu também estou mais velha...

AGUSTIN Que bom! Jovens, envelheçam! Os jovens só podem ser levados a

sério quando envelhecem!, dizia o Nelson Rodrigues. Sabia que ele

não gostava de Marx? Dizia que o Marx era uma besta. Ele era um

anarquista, o Nelson. Não sei se ele sabia disso, mas era um

anarquista. Mas você não está mais velha... só está mais bonita.

Caramba! Você virou uma mulher!

PALOMA Ainda bem, né pai? Escuta: encontrei a dona Giselda aí embaixo...

AGUSTIN Ai! La vieja bruja!

PALOMA Ela estava tão nervosa que nem me cumprimentou direito. Eu morri de

vergonha! Papai, o senhor não toma jeito, né?

AGUSTIN O que foi?

PALOMA Ela me contou que estava passando pela avenida e de repente caiu um

saquinho na cabeça dela. Cheio de urina. Urina, pai! Molhou a coitada

inteirinha.

AGUSTIN Sei. E ela mandou examinar num laboratório, e pela densidade, pela

acidez, pela quantidade de leucócitos, ela deduziu: “Oh, essa urina é

daquele espanhol desgraçado”...

PALOMA Não, pai, foi mais simples: ela disse que na hora ela olhou pra cima e

viu o senhor com a cara pra fora de uma janela. E que quando o

senhor viu que era ela, se escondeu. Pai: é verdade isso?


4
AGUSTIN É! É, ué! Foi um acidente! Um imprevisto!

PALOMA Acidente, pai? Imprevisto? Jogar um saco de urina em cima de uma

velhinha é acidente?

AGUSTIN Primeiro que a dona Giselda não é uma velhinha, é uma velha.

Segundo que aquilo foi um acontecimento fortuito, uma consequência

indesejada no meio de uma operação complexa que estava

acontecendo ali... Aliás, o que é que a dona Giselda estava fazendo lá,

no meio daquela confusão?

PALOMA Que confusão, pai?

AGUSTIN Ah, isso ela não falou, né? Era uma reintegração de posse. Toda a

policia estava lá, advogados, oficiais de justiça, imprensa, o pessoal

dos sem-teto, uma puta confusão!

PALOMA Ela disse que tinha ido pintar o cabelo. Vai ver que foi no salão da

Rosa Baiana. A Rosa Baiana ainda tem o salão?

AGUSTIN Não, não tem mais...

PALOMA Mudou?

AGUSTIN O marido matou ela. Cinco tiros. Deu na televisão, até, você não viu?

Só que a câmera de segurança do prédio do lado gravou tudo, ele

pegou 30 anos. Burro. Mas já deve estar solto. Mas pra que ela vai

pintar o cabelo, ela acha que fica mais moça com o cabelo verde? “Oh,

está acontecendo uma reintegração de posse, vou pintar meus cabelos

de verde”...

PALOMA Não era verde, era azul. E o que que o senhor estava fazendo numa

reintegração de posse? O senhor não é sem-teto, sem-moradia, sem

nada! O que o senhor tem a ver com isso?


5
AGUSTIN Como “o que eu tenho a ver com isso”? Muito! Tudo! “Eu sou um

homem, e tudo que é humano me interessa”. Terencio disse isso, há

mais de dois mil anos! Ele escrevia comédias, mas falava sério. As

comédias são sérias, viu? As comédias...

PALOMA O senhor continua se envolvendo nessas maluquices, qualquer dia leva

umas cacetadas, ou vai preso, e tudo isso pra que? Por que?

AGUSTIN “Porque eu sou do tamanho do que vejo e do tamanho do que faço, e

não do tamanho da minha altura.”

PALOMA Terencio de novo?

AGUSTIN Não: Fernando Pessoa. Desgraciado, como era bom ele, hein?

O único defeito dele é que era português. Puta la madre que lo parió:

podia ter nascido... sei lá, em Valencia, na Catalunha, não?

PALOMA Não desvia o assunto...

AGUSTIN Filha: o prédio estava abandonado há anos, um baita prédio, foi

invadido, tinha um monte de família lá, há mais de seis meses,

organizados, usando o prédio, entende?, morando lá! Um prédio é pra

ser usado. As pessoas não tem onde morar e o prédio fica lá,

abandonado? E não é que o dono entrou com uma ação pra tirar todo

mundo de lá?

PALOMA Ué, mas se é o dono do prédio!

AGUSTIN É? E quem é o dono do prédio? O governo! O INSS! O governo não

deixa o povo ficar no prédio do governo!

PALOMA Pai! Pelo amor de Deus! Não é assim, invade e pronto! Tem leis, tem

os órgãos que cuidam dessas coisas...

AGUSTIN Por isso é que não tem que ter! Não tem que ter governo, nem leis,

nem controle, nem nada! As pessoas têm que se governar a si


6
próprias, têm que se controlar a si próprias, sem esse negócio de uns

mandarem e outros obedecerem, uns dizerem como é que deve ser

feito e os outros fazerem. Isso não é liberdade. Liberdade é cada um

fazer o que acha que deve ser feito para o bem de todos. Isso é

liberdade!

PALOMA Isso é sonho, pai! Utopia! Nunca funcionou!

AGUSTIN E daí? E daí que nunca funcionou? Isso não quer dizer que nunca vai

funcionar! E daí que é sonho?

“Que é a vida? Uma ilusão,

Uma sombra, uma ficção;

O maior bem é tristonho,

Porque toda a vida é sonho,

E os sonhos, sonhos são.”

Calderón de La Barca: Pedro Calderón de la Barca y Barreda

González de Henao Ruiz de Blasco y Riaño, esse sim, espanhol,

madrilenho. Eu sonho, e gosto de sonhar. Quero implantar uma nova

forma das pessoas viverem: a sonhocracia!

PALOMA Enquanto isso o senhor joga mijo nas velhinhas.

AGUSTIN Foi sem querer... Eu não enxergo bem de longe. A gente combinou de

cada um levar um saco de mijo pra jogar na policia. Eu olhei lá pra

baixo e joguei, não vi que era ela, só vi uma coisa verde, pensei que

era um capacete... Joguei...

PALOMA O senhor está precisando de óculos.

AGUSTIN Não, eu só não enxergo bem de longe. Mas não me interessa ver as

coisas de longe. Quando você se distancia das coisas, você fica

pequeno, sabe? “Sou do tamanho do que vejo”..., então eu quero estar


7
perto, eu quero estar dentro. Aí eu vejo as coisas grandes, e me sinto

grande também. No sé si me compreendes.

PALOMA Si. Te compreendo, papa.

PAUSA.

AGUSTIN Está com fome?

PALOMA Puchero?

AGUSTIN Ué! Como é que você adivinhou?

PALOMA Eu não adivinhei, eu xeretei. Já vi a panela com o grão-de-bico de

molho.

AGUSTIN Ah, danada! Estragou a surpresa.

PALOMA Não era surpresa, né? Você nem sabia que eu vinha.

AGUSTIN É verdade, eu não sabia... Olha, pro puchero ficar bom o grão-de-bico

tem que ficar de molho de um dia para o outro. Então, todo sábado eu

coloco meio quilo na panela e deixo aí, assim no domingo...

PALOMA O senhor faz puchero todos os domingos?

AGUSTIN É, quase... Sabe, lembra quando vocês... foram embora... a sua mãe

foi na frente, pisando duro, parecia um soldado alemão... mas você deu

uma paradinha na porta e disse: “domingo eu venho pra gente comer

um puchero”...

PALOMA Foi? Eu disse, é? Não lembro disso, pai.

AGUSTIN Claro que não, os jovens têm memória curta, os velhos é que se

lembram de tudo. Eu botei o grão-de-bico de molho, comprei um pouco

de coxão mole... Mas você não veio. Nem naquele domingo nem no

outro, nem no outro... Aí um dia você telefonou, dizendo que naquele

domingo você viria. Mas não veio. Várias vezes você me ligou, mas

8
não vinha. Mas eu sabia que um domingo você acabaria vindo, né?, e

eu não queria que você chegasse aqui e não tivesse puchero... Então...

PALOMA Então, todo sábado o senhor põe o grão-de-bico de molho...

AGUSTIN É... no domingo eu sento aqui na sala e vou descascando o grão-de-

bico, pensando na vida... virou uma espécie de ritual... É bom a gente

ter um ritual, sabe? Afinal, o que é um ritual? São essas coisas que a

gente faz, que são sempre as mesmas, do mesmo jeito, cheias de

sentimento, de carinho... uma espécie de cerimonia, que serve pra

gente evocar alguma coisa que é importante pra nós...

PALOMA Desculpe, pai, por ter feito o senhor descascar tanto grão-de-bico...

AGUSTIN Até que foi bom... peguei uma prática!

PALOMA E o que é que o senhor evoca no seu ritual do puchero?

AGUSTIN Ah, muita coisa... Evoco o passado, evoco a nossa vida, evoco a sua

mãe... evoco a saudade que eu sinto dela e de você, evoco...

Tengo miedo del encuentro

Con el pasado que vuelve

A enfrentarse con mi vida...

Tengo miedo de las noches

Que pobladas de recuerdos

Encadenan mi soñar...

Volver...Volver...

PALOMA Pai... (ABRAÇAM-SE, LONGAMENTE, COMOVIDOS) Tem tudo que

precisa pro puchero?

AGUSTIN Sim, claro... cebola, alho, linguiça calabresa, paio, salsão, tomate,

batata, tudo... Mas primeiro:

OS DOIS “Para comenzar el puchero, descascarar el garbanzo entero”... (RIEM)


9
PEGAM A PANELA DE GRÃO-DE-BICO E COMEÇAM A DESCASCAR.

PALOMA Sabe, eu sempre gostava dessa hora.

AGUSTIN Que hora?

PALOMA De descascar o grão-de-bico. Era sempre a hora em que a gente

aproveitava para conversar, né?

AGUSTIN Ah, sim, é verdade.

PALOMA Lembra quando eu falei que queria ser veterinária?

AGUSTIN Se lembro... sua mãe disse que era bom, assim você podia cuidar de

mim quando eu ficasse mais velho... Mas você acabou mudando de

ideia.

PALOMA Foi: no dia em que o professor levou a turma toda pra tirar uma bola de

gude do estômago de um cocker spaniel. Quase morri. Argh!... não,

aquilo não era pra mim...

AGUSTIN Aí você queria porque queria ser apicultora...

PALOMA Ai, meu Deus! O senhor lembra disso? Eu chegava em casa com potes

de mel, geléia real, vidrinhos de própolis...

AGUSTIN Eu não sabia que não podia comer nada de mel, que me dava

hemorroidas. Fiquei um tempão andando que nem pinguim, até que lá

no posto de saúde falaram que era o mel. Eu tive que me internar,

fazer uma operação... Ô operação desgraçada! A sua mãe chegou e

jogou tudo fora, o mel, as própolis, tudo. Fiquei no hospital... uns

quinze dias... e foi aí...

PALOMA Foi aí que aconteceu...

10
AGUSTIN É, foi aí que aconteceu. Caramba, já faz tempo, não?, mas ainda me

dói. Aquela miserable daquela enfermeira... Ela cuidava de mim com

tanto cuidado, com tanto carinho, a gente acabou... sabe?...

PALOMA Sei.

AGUSTIN Eu falava umas coisas bonitas pra ela, uns poemas, falava do Oscar

Wilde, do Bakunin... Não sei como é que a sua mãe descobriu...

PALOMA Porque ela era mulher, né pai? Mulher saca logo essas coisas. Homem

pode ser traído a vida inteira que não percebe, só se pegar os dois

pelados na cama. Ainda é capaz de duvidar. Mulher não, basta um

olhar diferente, um gesto, e pronto, já sacou tudo.

AGUSTIN Mas não precisava fazer o que ela fez, né? Foi embora sem mais nem

menos, assim, “tchau, vou embora”. “Fica lá com a tua deusa

do esparadrapo”. Ela falou isso: deusa do esparadrapo...

PALOMA Eu tinha que ir com ela, pai. Mamãe não ia saber se virar sozinha...

AGUSTIN Eu sei. No começo fiquei com uma puta raiva. Mas depois passou.

Você fez o que uma boa filha faria. O diabo é que a deusa do

esparadrapo desgrudou de mim rapidinho, e eu fiquei aqui, sozinho,

com as feridas ao vento... Mas sabe que hoje...

PALOMA Hoje o que, pai? O que é que tem hoje?

AGUSTIN Hoje eu sei que eu fui um tonto, hã? Outro dia eu estava pensando:

sabe aquelas florzinhas pequenininhas, tem amarelinhas, tem

vermelhinhas, que dão o ano inteiro, nas praças, na beira da estrada?

Elas dão tanta flor que no fim a gente se acostuma, nem percebe

mais...

PALOMA Sei...

AGUSTIN A sua mãe era assim. Lantana.


11
PALOMA Lantana? O que é isso?

AGUSTIN Eu perguntei no mercado: essas florzinhas se chamam lantana. A sua

mãe era uma lantana, uma flor delicadinha, pequena, que sempre

estava lá, então a gente nem percebia, nem notava mais.

PALOMA E a deusa do esparadrapo...? Ela era o que?

AGUSTIN Ah, ela era uma... uma orquídea, linda, exuberante... Eu me encantei

com a orquídea, pensei que ela ia florir sempre, que nem a lantana...

Mas ela durou pouco, e nunca mais floriu pra mim. Na verdade, depois

que eu saí do hospital, ela nunca mais... E eu fiquei sem flor

nenhuma...

PALOMA Perdeu o jardim... Trocou a lantana que floria a vida toda por uma

orquídea que só floriu uma vez. Bem feito, pai.

AGUSTIN Pois é. No fim, fiquei só com o adubo, o esterco... E pouco tempo

depois...

PALOMA Mamãe morreu. Foi um baque pra mim. Eu estava longe, me deu um

sentimento de culpa... Tinha ido fazer um curso de oceanografia...

lembra?

AGUSTIN Ah, a oceanografia... maré alta... maré baixa... molusco, ostra,

mexilhão...

PALOMA Não debocha, pai. Eu queria ser oceanógrafa. Se não fosse aquele

susto que eu passei com um tubarão em Fernando de Noronha...

AGUSTIN Que nem era tubarão, era golfinho. Você disse que ele fazia (IMITA O

SOM DO GOLFINHO)... Tubarão não faz isso...

PALOMA Mas eu não sabia, né? Quando eu voltei, mamãe já tinha...

AGUSTIN É, foi rápido... Mas você não sabe de uma coisa: ela já estava com

aquela doença quando foi embora.


12
PALOMA É mesmo? Como é que o senhor sabe?

AGUSTIN Quando vocês saíram, ela levou tudo, né? Fotografias, documentos,

tudo... mas sempre fica um rastrozinho, que nem nos filmes... sabe

aquele dos peritos, na tv... como é que é o nome? CSI?

PALOMA CSI.

AGUSTIN Esse! O que significa esse... CSI?

PALOMA Não sei, pai. Mas e daí?

AGUSTIN Daí que um dia eu precisava de alguma coisa pra guardar um resto de

goma de tapioca – sabe tapioca? Fui me meter a fazer aquilo, comprei

um pacotinho lá no mercadinho do Paco, segui a receita... ficou uma

coisa grudenta, quase me arrancou os dentes... Aí eu peguei um

potinho de louça que estava lá no fundo do armário, e quando eu abri

tinha uns papéis enrolados lá dentro... eram uns resultados de exames

da sua mãe... coisa feia, viu?

PALOMA Não diga, pai... Onde estão esses papéis? Na cozinha? Eu quero ver...

AGUSTIN Não, eu queimei tudo. Era muito doloroso guardar aquilo. Então eu

fiquei pensando, e fico pensando até hoje: será que ela foi embora por

causa da deusa do esparadrapo mesmo? Ou foi por que ela não queria

dar trabalho, preferiu ficar sozinha quando...

UM CURTO SILENCIO. CONTINUAM DESCASCANDO O GRÃO-DE-BICO,

PENSATIVOS.

AGUSTIN E você, filha? Me fale das suas coisas, vai...

PALOMA Eu? Bom, pai... depois da veterinária, da apicultura, da oceanografia...

eu fui trabalhar no Paraguai.


13
AGUSTIN Não diga! Foi fazer o que lá? Contrabando de cigarro?

PALOMA Imagina! Era um trabalho sério! Fui ser crupiê num cassino.

AGUSTIN Ah, tá... crupiê num cassino. Trabalho sério...

PALOMA Sabia que tem muito cassino no Paraguai?

AGUSTIN Deve ter muita gente burra, também. Por que pra entrar num cassino e

perder dinheiro tem que ser burro.

PALOMA Mas tinha gente que ganhava, viu? Poucos, mas tinha... Mas Paraguai

não dá, né pai? Então eu voltei pra cá, e logo arranjei outro emprego:

fui trabalhar num bingo em Ponta Porã.

AGUSTIN Num bingo em Ponta Porã? Bom, está certo: é o mesmo ramo, e você

já tinha experiência internacional...

PALOMA Pois é, mas daí fecharam os bingos, então eu arranjei emprego numa

locadora de vídeo...

AGUSTIN Lá em Ponta Porã?

PALOMA Não... em Corumbá.

AGUSTIN Ponta Porã, Corumbá... Nada como a vida agitada das metrópoles, né?

PALOMA Mas hoje em dia quem é que ainda aluga vídeo? Todo mundo compra

pirata, é mais barato. Fui despedida, e o cara, o dono da locadora, não

tinha dinheiro pra me pagar, então ele me deu uma maquina fotográfica

que ele tinha, uma puta máquina, digital, novinha, profissional, ele

quase não tinha usado, com um baita kit de lentes, tudo.

AGUSTIN Uma maquina? De tirar retrato?

PALOMA É! Então, o que que eu fiz: peguei o restinho de grana que eu tinha e fiz

um curso de... de...?

AGUSTIN Sei lá: astrofísica? Ranicultura? Do jeito que você é...

PALOMA Fotografia!
14
AGUSTIN Ahhhh... menos mal, né? Já tinha a máquina, precisava usar...

PALOMA E lá mesmo no curso eu arranjei um frila...

AGUSTIN Arranjou o que?

PALOMA Um frila... um freelancer... um trabalho autônomo...

AGUSTIN Ah, tá...

PALOMA ...com um pessoal de uma ONG que vai atrás de denuncias de trabalho

escravo, sabe como é?

AGUSTIN É impressionante a diversidade de profissões que te interessam. Nunca

vi ninguém com tantas vocações...

PALOMA Pai, eu saí pelo Brasil inteiro fotografando gente, em cada lugar, viu?

Nos cafundós do Pará, do Maranhão, Goiás, até entre os índios, sabe?

Gente trabalhando nas piores condições, sendo explorada de todas as

maneiras... revoltante...

AGUSTIN Minha filha, a única forma do ser humano não ser oprimido por um

semelhante é que ninguém tenha poder. O poder transforma o aliado

em subalterno, o companheiro em submisso. O poder é o pai da

propriedade privada, e a propriedade privada é a mãe da exploração

do homem pelo homem.

PALOMA Olha, é verdade, viu, pai...

AGUSTIN Claro que é! Proudhon já dizia isso em mil oitocentos e titica, cem anos

depois o Enrico Malatesta também dizia, e hoje, duzentos anos depois,

o que se vê ainda é exploração, escravidão, ambição... Males

capitalistas!

PALOMA Sabe, eu mandei um monte de fotografias pro Greenpeace, meu sonho

era trabalhar com eles, sair pelo mundo fotografando tudo... Mas eles

15
nunca me chamaram... Pronto... grão-de-bico descascado... Vamos

fazer de frango ou de carne?

AGUSTIN Ah, de carne! Eu trouxe coxão-mole! Frango não, não gosto de frango,

me lembra a época da guerra: não tinha carne pra gente comer, nem

pão, nem açúcar, nem nada. Mas da carne é que eu sentia mais falta.

PALOMA Deve ter sido difícil...

AGUSTIN Eu era pequeno, foi antes da gente ir pro Brás, a gente morava no

interior e tinha uma criaçãozinha de galinha. Comemos frango e

tomamos caldo de galinha a guerra inteira. Quando a guerra acabou eu

já estava quase cacarejando. Não posso nem sentir o cheiro...

PALOMA Deixa que eu levo pra cozinha...

AGUSTIN A-a-ah! Eu levo! E pra comemorar, vamos saborear um legitimo filho da

Espanha. Espera aí. (SAI PARA A COZINHA)

PALOMA Filho da Espanha? Que filho da Espanha é esse? É de comer ou de

beber?

AGUSTIN VOLTA, ESCONDENDO A GARRAFA.

AGUSTIN Um Toro Loco Tempranillo.

PALOMA Touro Louco? O que é isso?

AGUSTIN (EXIBE UMA GARRAFA DE VINHO, MEIO EMPOEIRADA)

Diretamente de Valencia, terra das flores, da luz e do amor.

PALOMA (APLAUDINDO) Êêêê...

AGUSTIN Valencia

Es la tierra de las flores de la luz y del amor

16
Valencia

Tus mujeres todas tienen de las rosas el color

Valencia

Al sentir como perfuma en tus huertas el azahar

Quisiera

En la tierra valenciana mis amores encontrar

Um bom vinho é poesia engarrafada, já dizia o Cuberos, lá do Brás...

Lembra dele?

PALOMA Nossa! Claro! Anarquista, não era?

AGUSTIN Úh! Da cabeça aos pés, com tudo o que tem no meio! Saudade do

Cuberos, viu?... Mas você lembra dele?

PALOMA Pai, o senhor estava sempre metido com aquelas coisas do sindicato, a

mamãe sempre trabalhando que nem louca, costurando pra ganhar

uma graninha extra... Eu ia pra sapataria do Cuberos, ficava lá...

AGUSTIN Ué! Eu nunca soube disso!

PALOMA Ih, pai, o senhor não sabe de quantas coisas o senhor não sabe... O

senhor admite que não foi um pai muito presente, né? Lembro de uns

versinhos que ele me disse, eu era pequena, mas nunca mais esqueci.

AGUSTIN É mesmo? Que versinhos?

PALOMA Eles não sabem

Que o sonho comanda a vida

Que sempre que alguém sonha

O mundo pula e avança

Como bola colorida

Nas mãos de uma criança.


17
AGUSTIN SE EMOCIONA.

AGUSTIN Um adepto da sonhocracia... que nem eu... Danado, o Cuberos, viu?

Ele ficava lá na sapataria dele batendo as tachinhas e pensando em

mudar o mundo. A gente achava que um dia todo mundo ia se unir, os

sapateiros, os verdureiros, os consertadores de guarda-chuvas, os

marceneiros, todo mundo, e a gente ia criar juntos, assim, uma nova

forma de viver, e alguma coisa grandiosa ia acontecer.

PALOMA Tudo vale a pena, se a alma não é pequena... Esse também é do

Fernando Pessoa, né? O que importa se as coisas não forem como a

gente sonha? Sabe, pai, aquelas tochas acesas, daquelas a gente vê

nos filmes de aventuras? Pode chover, pode soprar a maior ventania, e

a tocha não apaga. Algumas pessoas são assim, que nem essas

tochas. Acho que o Cuberos era assim. O senhor é assim, pai. Uma

tocha acesa, num filme de aventuras...

AGUSTIN Uma tocha acesa num filme de aventuras... Puxa... acho que foram as

palavras mais bonitas que alguém poderia falar sobre mim. Que bom

que você disse isso, acho que eu estava precisando ouvir alguma coisa

assim... (SUA VOZ EMBARGA) Vamos brindar, vamos... Esta é a

ultima garrafa da ultima partida que o Paco recebeu. Ele reservou pra

mim. Agora ele só vende aqueles vinhos em garrafinha de plástico.

PALOMA Nossa! Eu sei qual é!

AGUSTIN Esta está guardada desde... ah, não sei... esperando um dia especial

para ser aberta. Sabe que o vinho é uma bebida que melhora com a

idade? Por isso que quanto mais velho eu fico, mais eu gosto.
18
PALOMA Um vinho sempre vai bem, né? “Um bom vinho, nas vitórias é

merecido, e nas derrotas é necessário”.

AGUSTIN Oh, boa frase! De quem é?

PALOMA Napoleão Bonaparte... Li num biscoitinho da sorte, sabe aqueles

biscoitinhos chineses?

AGUSTIN Ah, o Napoleão entendia de vitórias e de derrotas... Mas num

biscoitinho chinês? O que tem a ver os chineses com Napoleão? Isso é

que é globalização! Eu gosto de uma que diz assim: “Um copo de vinho

para molhar a mente, assim quem sabe eu diga algo inteligente”.

RIEM.

AGUSTIN Ah, tem outra: “Só beberei leite no dia em que as vacas comerem

uvas”.

RIEM.

AGUSTIN Essa é do Jean Gabin, um ator francês maravilhoso. Você não era

nascida. Anarquista, morreu de ataque cardíaco. Anarquistas não

deviam morrer de ataque cardíaco.

PALOMA Ué! Por que? Deviam morrer como?

AGUSTIN Ah, um anarquista não devia ter uma morte comum, é injusto! Um

anarquista devia ter um fim glorioso: devia ser fuzilado por um pelotão,

enforcado em praça pública, guilhotinado que nem o Ravachol, que

explodiu um quartel inteiro, sozinho; ou pelo menos assassinado na

prisão, que nem o Luigi Lucheni, que matou a Sissi, a Imperatriz,

aquela bobalhona... Pega umas taças lá na cozinha...

PALOMA (SAINDO) Esses caras eram assassinos, pai! Terroristas!

19
AGUSTIN Assassinos não: terroristas sim! Assassinos... Sabia que o índice de

suicídio de operários na China é o maior do mundo? Eles não estão

aguentando a competição absurda entre eles, imposta pelo capitalismo!

Produção, produção, produção! Na Espanha os banqueiros estão

tomando de volta as casas das pessoas, porque elas não conseguem

pagar as prestações! Quanta gente já se matou por causa disso! Nos

Estados Unidos o maior problema de saúde sabe o que é? Sabe o que

é?

PALOMA (LÁ DA COZINHA) Não sei...

AGUSTIN É a obesidade, veja só! Eles comem demais num mundo onde milhares

de pessoas morrem de fome! Então me diga: quem é assassino?

Quem são os assassinos?

PALOMA (VOLTANDO) Passei uma água nas taças, estavam super

empoeiradas... Mas e aí, pai? Aí vai um cara e explode uma bomba

num hotel, joga um avião nas torres gêmeas, mata um monte de gente

que não tem nada a ver!

AGUSTIN Claro! Os americanos jogam bombas de Napalm em cima de

Hiroshima: 140.000 mortos, gente que não tinha nada a ver. Na India,

os ingleses tomaram as todas as terras, virou tudo um latifúndio inglês,

cobravam imposto até do sal. Resultado: mataram mais de 3 milhões

de hindus, de fome. E no Afeganistão? Dez mil crianças morrem por

ano, perdem as pernas porque estão jogando bola... Kaká! Neymar! e

aí pisam nas minas terrestres que os russos plantaram lá e bum! A

grande maioria dessa gente toda era gente que não tinha nada a ver.

Um terror!

PALOMA Claro que é um terror, mas e esses outros que eu falei? São o que?
20
AGUSTIN Terroristas! A única resposta possível ao terror é o terrorismo. Quando

o inimigo é tão forte, tão prepotente, tão dono da verdade, não há outra

forma de reação, só pelo terrorismo. Quantos morreram nas torres

gêmeas? 3.000 pessoas? Isso não é nada! É troco! Tro-co! Tchin-

tchin?

PALOMA Tchin-tchin...

AGUSTIN Ao Cuberos... à sua mãe... e à minha querida veterinária-oceanógrafa-

crupiê-fotógrafa e sei lá o que mais!

PALOMA Ao meu querido anarquista!

ABRAÇAM-SE E BEBEM.

AGUSTIN Vamos a hacer el puchero?

PALOMA Si, por supuesto! Lembra da canção que mamãe cantava?

AGUSTIN Claro!

Tanto vestido blanco, tanta farola

Y el puchero a la lumbre com agua sola

OS DOIS Alirón! Tira del cordón si vas a Valencia

Donde irás amor mio sin mi licencia...

SAEM CANTANDO.

21
SEGUNDO ATO

DIAS DEPOIS, NOITE.

AGUSTIN E PALOMA ARRUMANDO A MESA - TRES PRATOS.

AGUSTIN Se eu soubesse que a gente ia ter visita, tinha pedido uns pratos

emprestados do Paco. Ele tem um jogo de porcelana do casamento

dele. Aliás, foi a única coisa que sobrou do casamento dele.

PALOMA Não precisa, pai, não é uma visita, é a pessoa mais especial do mundo

que está chegando, e essa pessoa não está interessada em pratos,

está interessada em mim.

AGUSTIN Mas que convencida! Sei... Visitas são gente chata. Uma vez o José

Oswaldo não quis limpar a boca no meu guardanapo por que estava

usado.

PALOMA Claro, né, pai! O senhor limpa a sua bocona cheia de molho e depois

passa o guardanapo pra ele! Eu sei que o senhor fez isso por que não

suportava o coitado.

AGUSTIN Eu nunca tive nada contra o José Oswaldo.

PALOMA Tá bom...

AGUSTIN Nem a favor... Mas que nome, hein? Já vi José Carlos, José Mário,

José Luiz... mas José Oswaldo Antonio, só esse que você arranjou.

PALOMA Ele era boa pessoa, pai.

AGUSTIN Sim, era. Demais, até. Certinho, metódico, educado, trabalhador,

inteligente, responsável, atencioso, honesto, cuidadoso. Acho que até

fiel ele era.

22
PALOMA Era, sim. Tudo isso. Eu achava que ele era o amor da minha vida. Mas

não deu certo, fazer o que?

AGUSTIN Nunca ia dar certo, Paloma. Ele era um contador, e você queria ser

oceanógrafa, apicultora, crupiê – imagina! Pra ele tudo tinha que bater:

o débito com o crédito, o exigível e o realizável, a entrada e a saída...

Aliás, pensando em vocês dois: quem era o ativo e quem era o

passivo?

PALOMA Ai, para com isso, pai. Que coisa! O senhor só não gostava dele

porque era contador.

AGUSTIN Claro! Contador é uma pessoa que a gente só lembra quando precisa

resolver um problema que a gente não sabia que tinha, e ele resolve de

um jeito que a gente nunca vai entender. Mas o outro que você

arranjou era pior...

PALOMA Quem? O Piter?

AGUSTIN Não... Que Piter?

PALOMA O Piter que tinha uma lojinha de xerox...

AGUSTIN Não, desse eu nem sabia. Aquele outro... como era o nome dele?

PALOMA O Celsão? Que tinha uma casa de esfiha junto com o pai?

AGUSTIN Não, esse eu também não sabia.

PALOMA Ah, o professor de biologia pesqueira, do curso de oceanografia... Não,

esse o senhor não conheceu. O André? Ah! O Frederico!

AGUSTIN Isso! O tal Frederico! Mas escuta, filha: todos esses foram “o amor da

sua vida”?

PALOMA É... foram...

AGUSTIN Então você deve ser um gato, deve ter sete vidas.

PALOMA Dois gatos, pai. Quase três...


23
AGUSTIN O Frederico era aquele que escrevia reclames, não é?

PALOMA Ele era redator de publicidade. Dos bons.

AGUSTIN Ai! Me cago em los publicitários! Puta la madre que lo pariu! Ele só

falava por slogans! Satisfação garantida ou seu dinheiro de volta. 1001

utilidades. Desce redondo. Abuse e use. Vende mais porque é

fresquinho, é fresquinho porque vende mais.

PALOMA Terrivel contra os insetos!

AGUSTIN Lugar de gente feliz!

PALOMA O caldo nobre da galinha azul!

AGUSTIN A primeira faz tchan...

PALOMA A segunda faz tchun, e...

OS DOIS Tchan tchan tchan tchan…

RIEM.

AGUSTIN A publicidade é o meio mais violento que o capitalismo usa para atingir

os seus objetivos. A publicidade faz você gastar o que não tem pra

comprar o que não precisa, e pra que?

PALOMA Ué! Pra gente ficar feliz, não é? Comprar coisas, consumir, também

deixa a gente feliz, não deixa?

AGUSTIN Pra dar mais lucro para os patrões. Para a publicidade não existe

gente, só existem consumidores. Tudo vira coisa, tudo vira produto:

não é só a margarina, é a dignidade, o sonho, o amor, a vida, a

virgindade, tudo vira produto. E que fim levou o Frederico?

PALOMA Ah, ele não era nenhuma Brastemp... vivia me enchendo o saco com

teorias de comunicação, semiótica, estratégias publicitárias. Acabou


24
assim, acabando... Pra dizer a verdade, pai, nenhum deles nunca me

satisfez. Não que eles fossem... sei lá, ruins..., nada disso. Quase

todos foram muito bons comigo, alguns até demais.

AGUSTIN Infinitos enquanto duraram...

PALOMA O senhor tem razão sobre o contador: ele queria me tornar uma pessoa

toda certinha, como se eu fosse um... balancete... e com saldo

positivo... Eu até tentei mas...

AGUSTIN Bom, seria pior se ele fosse advogado. Advogado é aquele sujeito que

se especializou em tragédia: (AGRIDE A MESA COM UM GARFO)

assassinato, fraude, divorcio, essas coisas. Quando você fosse se

separar ia gerar um processo de dez mil páginas.

PALOMA Ah, pai, você está generalizando... Não tem uma toalha pra gente por

na mesa?

AGUSTIN Acho que tem uma na gaveta de baixo lá do armário.

PALOMA SAI PRA BUSCAR A TOALHA.

AGUSTIN Olha, filha: um advogado com um processo na mão é mais perigoso do

que o Rambo com um canhão. Advogado não! Tudo menos advogado!

Olha, eu não acredito em Deus, mas no diabo sim. E eu acho que o

diabo tem sempre o Código Civil debaixo do braço. E lá em Fernando

de Noronha, quantos nativos você namorou? Como se chama quem

nasce em Fernando de Noronha?

PALOMA VOLTA COM A TOALHA.

25
PALOMA Sei lá... Fernandense? Noronhense? Fernando-noronhense? Só o

professor de biologia pesqueira. Ele era um chato, só falava do mar e

de peixes.

AGUSTIN E do que iria falar um professor de biologia pesqueira em Fernando de

Noronha? Vai ver ele queria que você fosse uma arraia, uma

barracuda, uma golfinha...

PALOMA Eu acho que no fundo nenhum deles me via como eu era, eles me viam

como eles queriam que eu fosse...

AGUSTIN Sei... o da casa de esfiha queria que você estivesse sempre fresquinha

e saborosa... O da lojinha de xerox queria que você fosse a cópia

perfeita de alguém...

PALOMA É... mais ou menos isso...

AGUSTIN Eu entendo... E tentar fazer uma pessoa ser o que não é, é tolher a

liberdade dela. Se uma pessoa quer mudar alguém é porque ela acha

que esse alguém não é bom do jeito que é; isso se chama

desaprovação, e desaprovação não é amor. “É preciso defender a

vossa liberdade e o direito de ser como sois, porque cada um de vós

conhece os seus próprios desejos e as suas próprias necessidades”...

PALOMA Que lindo, pai...

AGUSTIN Acho que é de um árabe aí, não lembro o nome. Espero mesmo que

você tenha encontrado alguém que não te desaprove.

PALOMA Essa toalha está com cheiro de guardado...

AGUSTIN Ah, deve estar. Estender a toalha sobre a mesa... isso é uma coisa que

só as mulheres sabem fazer com arte. É um gesto milenar, carregado

de significados... isso também é um ritual, evoca a história do mundo,

26
das pessoas reunidas em torno do pão, do vinho... Eu nunca me

atreveria a estender uma toalha na mesa...

PALOMA Sabe, pai: agora eu achei o amor da minha vida.

AGUSTIN Engraçado... parece que eu já ouvi isso antes...

PALOMA Não, pai! Agora é de verdade! Sabe quando você encontra mesmo

uma alma que conversa com a sua? Uma pessoa que te cerca de

carinho sem te sufocar? Que se doa sem exigir retorno? Que me

mostra as qualidades que a gente pode ter, mas ama os meus

defeitos? Que não me cobra nada mas me recompensa por qualquer

coisinha, insignificante que seja?

A CAMPAINHA TOCA. AGUSTIN OLHA NO RELÓGIO.

AGUSTIN E que ainda por cima é pontual...

PALOMA Encantadoramente pontual... Ai, estou nervosa... Faz quase um mês

que não nos vemos... Estou bem?

AGUSTIN Sempre está. Deixa que eu abro a porta.

AGUSTIN SAI DE CENA PARA IR ABRIR A PORTA. PALOMA SE AJEITA,

ANSIOSA. POUCO DEPOIS, AGUSTIN VOLTA.

AGUSTIN Ih, filha, lamento, hein, mas não é “o amor da sua vida”... É uma moça,

está procurando por você. (PARA A COXIA) Pode entrar, por favor...

MARCELA ENTRA. ELA E PALOMA SE OLHAM, DEPOIS SE ABRAÇAM E

SE BEIJAM LONGAMENTE. AGUSTIN ESTÁ PARALIZADO.


27
PALOMA Pai...

AGUSTIN CONTINUA PARALIZADO.

PALOMA Pai!

AGUSTIN Hã?

PALOMA Quero lhe apresentar a Marcela, ela é o...

AGUSTIN Não, não precisa dizer... (AINDA PARALIZADO)

MARCELA VAI ATÉ ELE E PEGA SUA MÃO.

MARCELA Muito prazer, seu Agustin. Paloma fala muito do senhor, eu estava

ansiosa para conhece-lo...

AGUSTIN Eu também... quero dizer... prazer... também...

LONGO SILENCIO, MARCELA E PALOMA SE ABRAÇAM DE NOVO.

AGUSTIN CONTINUA PARALIZADO.

PALOMA Um mês, Marcela! Não sei como eu aguentei!

MARCELA Seu Agustin, eu vou lhe dizer uma coisa: a sua filha é uma mentirosa!

AGUSTIN É?...

MARCELA Não foi um mês: foram só 29 dias.

AS DUAS RIEM.

AGUSTIN Eh, eh...


28
PALOMA Eu sei... contei cada dia, cada hora, cada minuto...

MARCELA Linda...

OUTRO BEIJINHO.

PALOMA Você chegou na hora. Como sempre. A gente tinha justamente

acabado de arrumar a mesa, não é, papai?

AGUSTIN É...

MARCELA Que bom! Olha, a viagem foi bem mais cansativa do que eu pensava,

viu? E o ônibus parou em cada lugar que só vendo, não dava nem

vontade de comer aquelas coisas lá...

PALOMA Você não quer descansar um pouco, antes? Tomar um banho? A gente

espera, né, pai?

AGUSTIN É...

MARCELA Não, não, não! Eu atravessei este país quase que de ponta a ponta,

num ônibus fedido, nesse verão escaldante, quarenta graus, sabe por

que, seu Agustin?

AGUSTIN É... quero dizer: não sei...

MARCELA Por dois motivos: pra rever a Paloma, claro, e pra experimentar o seu

famoso puchero! Sabe que a primeira vez que a Paloma me falou do

seu puchero foi lá no Araguaia?

AGUSTIN É..?

MARCELA Lembra, Paloma? No rio Javaés, aquela tarde, a gente estava...

Lembra?

PALOMA Claro que lembro. Jamais vou esquecer...

MARCELA Bom, e além do mais eu estou com uma fome assim... de leão!

(BRINCA COM PALOMA) Ruáááárrrr...


29
AS DUAS SE ABRAÇAM NOVAMENTE, RINDO MUITO, TROCAM BEIJINHOS.

AGUSTIN SÓ OLHA.

MARCELA Mas antes de mais nada, tem uma coisa muito importante que eu

preciso fazer.

PALOMA O que?

SUSPENSE.

MARCELA Lavar as mãos!

AS DUAS RIEM.

PALOMA Ai, caramba! Ela sempre faz isso, pai! A gente pensa que ela vai dizer

alguma coisa importante, e vai ver não é nada... Ela é uma brincalhona,

uma palhaça... Minha palhaçona adorável...

AGUSTIN Hã-hã...

PALOMA Olha, o banheiro é ali, a ultima porta...

MARCELA Tá... já volto...

MARCELA SAI.

PALOMA O que o senhor achou dela, pai? Ela não é maravilhosa?

30
AGUSTIN Maravilhosa? Carajo, Paloma! Que mierda es esa? Que estás

haciendo? Me pones chalado?

PALOMA Pai! Calma! O que é isso? Escuta: depois que eu conheci a Marcela eu

percebi a diferença entre o que eu sentia antes, aquelas paixõezinhas

fogo de palha, e o que é amor realmente. O amor não é só desejo, não

é só contato, é mais que isso: é paz, é confiança, é cumplicidade, é

harmonia... É tudo aquilo que a gente deseja ter mas que só consegue

se o amor é de verdade. E só a gente mesmo é que sabe quando é de

verdade. Não é assim, pai?

AGUSTIN Sei lá, pode ser o que você quiser! Mas... existem amores... e amores...

PALOMA Não, amor mesmo é só um, é amor e pronto. É simples de sentir, só é

complicado de explicar.

AGUSTIN É, é muito complicado. Complicado demais! Paloma, o que é isso?

Você já fez tanta besteira na vida, mas agora...

PALOMA Besteira? Que besteira? Agora o que, pai? Fala!

AGUSTIN Agora... isso!

PALOMA Isso? Isso o que? Marcela não é isso, Marcela é tudo!

AGUSTIN Paloma, você é jovem, eu entendo que tem aquelas ideias de querer

mudar a ordem natural das coisas, tem esses impulsos, é coisa própria

mesmo da juventude, mas tudo tem limite!

PALOMA O que o senhor está querendo dizer? Que eu não sei o que eu quero?

Que eu sou uma leviana que me liguei a uma pessoa sem mais nem

menos só pra escandalizar, pra “mudar a ordem natural das coisas”?

Não é nada disso, não, pai. Muito pelo contrário: hoje eu tenho certeza

de que ninguém é feliz sem ter um amor verdadeiro.


31
AGUSTIN Pero que amor verdadeiro es eso? Com una... tortillera? Uma

cachapera?

PALOMA A ninguém pode ser negado o direito de viver intensamente um grande

amor!

AGUSTIN Por supuesto, carajo! Pero para el hombre una mujer, para la mujer, un

hombre! Compreendes, si? O no?

PALOMA Não! Não compreendo! Por que é que tem que ser um homem?

AGUSTIN Ué! Por que! Por que sim! Tem que ser um homem!

MARCELA VOLTA.

MARCELA Um homem? Estão esperando alguém? Quem?

AGUSTIN É... eu estava esperando um homem... mas não veio...

UM CURTO MAL ESTAR.

PALOMA Ah! Vou buscar o puchero!

PALOMA SAI EM DIREÇÃO À COZINHA. AGUSTIN E MARCELA OLHAM-SE.

MARCELA ENSAIA UM SORRISO, AGUSTIN VIRA O ROSTO. PALOMA

VOLTA COM A PANELA.

PALOMA (ENTOANDO UMA INTRODUÇÃO DE TOURADA) El puchero del

señor Agustin! Olé!

MARCELA Olé!
32
AGUSTIN ... olé...

SENTAM-SE, PALOMA SERVE OS PRATOS. COMEÇAM A COMER, EM

SILENCIO. POR FIM, MARCELA PUXA A CONVERSA.

MARCELA Hummm... está maravilhoso esse puchero. Admiro os homens que

sabem cozinhar. Acho até que cozinhar é uma atividade mais

adequada para o homem do que para a mulher. Isso vem lá da época

das cavernas, em que era o homem quem saia para a caça, destripava

os animais, fazia o fogo, tudo. Sabem que na Roma antiga, os

escravos é que faziam as comidas? Na Grécia também.

AGUSTIN (DURO) É... pra certas coisas, um homem é mais adequado...

PALOMA Pois é, né... então... é isso... Cozinha é lugar de facas, sangue,

vísceras, fogo. Pra essas coisas, é melhor um homem, mesmo...

MARCELA Diferente da mulher, não é verdade? A mulher é romântica, carinhosa,

delicada... O homem é braço, musculo, força. A mulher é coração. Por

isso, para o amor, nada melhor do que a mulher.

AGUSTIN Certo! Tanto é que a natureza, que é sábia, fez um para o outro. Para o

homem, a mulher; para a mulher, o homem. É assim que tem que ser,

ora! Para a passarinha, o passarinho, para a tartaruga, o tartarugo,

para a capivara, o capivaro...

PALOMA Nossa, tá uma delicia o puchero, não? Marcela, não quer por um

pouquinho mais de sal? Eu vou por no meu...

PALOMA AGITA O SALEIRO, NERVOSA.


33
MARCELA Quer dizer que... é assim que tem que ser? Vamos ser sinceros? É isso

que está lhe incomodando, não é, seu Agustin? O “é assim que tem

que ser”.

AGUSTIN Vamos ser sinceros: é, ué! Por supuesto!

MARCELA E quem é que determina que alguma coisa tem que ser assim ou tem

que ser assado?

AGUSTIN Ora, quem determina... sei lá, ninguém determina, faz parte da ordem

natural... Vai dizer que não existe uma ordem natural das coisas?

PALOMA Ai, pai, outra vez essa tal de ordem natural das coisas...

MARCELA Claro que existe uma ordem natural. Concordo.

PALOMA Ué! Você concorda, Marcela?

MARCELA Depois da noite vem o dia, é uma ordem natural. A gente nasce, vive e

morre, é uma ordem natural. Isso todo mundo entende.

PALOMA Bom, isso sim...

MARCELA Mas agora me diga, seu Agustin...

AGUSTIN Iiiihhh...

MARCELA Pela ordem natural os pais deveriam morrer sempre antes que os

filhos, mas muitos filhos morrem antes dos pais. Pela ordem natural

das coisas isso não deveria acontecer, mas acontece, não acontece?

PALOMA Nossa, é verdade, pai. Acontece...

AGUSTIN Mas a ordem natural das coisas é que os pais morram antes dos filhos.

Isso que você falou aí contraria a ordem natural.

MARCELA Uma passarinha namorar outra passarinha também...

PALOMA ENGASGA.
34
AGUSTIN Exatamente! Contraria a ordem natural das coisas!

MARCELA Antigamente, seu Agustin, quem pegava tuberculose morria, não

morria? Essa era a ordem natural das coisas naquele tempo. Hoje não

morre mais.

AGUSTIN Aí é diferente. É a evolução, a medicina, o progresso...

MARCELA Não é só a ciência que progride; os costumes também evoluem. Sem

dizer que há coisas que a gente nem sabe se são ordens naturais ou

não. Quantas coisas que a gente pensa que é verdade indiscutível, vai

ver foram criadas por nossos antepassados e transmitidas através dos

séculos, porque eram mais convenientes ou mais vantajosas para uma

parte da sociedade.

AGUSTIN Certas ordens naturais são imutáveis.

MARCELA E outras não, por que não são ordens naturais, são dogmas! As

pessoas aceitam e nem sabem por que.

AGUSTIN Você está confundindo tudo. A gente sabe o que é uma ordem natural

das coisas e o que não é uma ordem natural das coisas, todo mundo

sabe. (FAZ MENÇÃO DE SAIR DA MESA)

MARCELA Desculpe, mas a gente não sabe. Senta aí, seu Agustin. Não foge não!

PALOMA Vocês querem tomar alguma coisa? Uma coquinha...

MARCELA A gente não sabe tudo, não. A gente não entende tudo, não. A

sabedoria humana é muito limitada. Pra ter sabedoria, seu Agustin, é

preciso entender a verdade. A verdade é aquilo que a realidade nos

mostra. Então, é preciso entender a realidade para se chegar à

sabedoria.

35
AGUSTIN Ah, isso é um sofisma! O queijo suíço é cheio de buracos. Quanto mais

queijo, mais buracos. Mas quanto mais buracos, menos queijo. Então,

quanto mais queijo, menos queijo. Puro sofisma! Pura dialética!

PALOMA Ah, ah, ah, ah... boa essa… quanto mais queijo menos queijo...

AGUSTIN Você fala como se fosse um... um... Qual é a sua profissão? O que

você faz na vida, além de subverter a ordem natural das coisas?

PALOMA Ah, sabe pai, ela... ela... ela faz um trabalho importante, em regiões de

conflito lá no...

AGUSTIN O que ela é? Guerrilheira?

PALOMA Não... é que ela... ela trabalha com os extrativistas, as populações

indígenas lá do...

MARCELA Eu sou advogada.

AGUSTIN DÁ UM PULO, DERRUBA A CADEIRA. PALOMA CORRE PRA

ELE.

AGUSTIN Ah, não! Ah, não! Advogado, não! Não, não, não... Isso não!

PALOMA Senta, pai...

MARCELA Já vi que o senhor Agustin não aprecia o direito...

AGUSTIN Não, eu não aprecio mesmo o direito. Eu desprezo, eu rejeito, eu

abomino, eu odeio, eu tenho horror...

PALOMA Senta, pai...

MARCELA Seu Agustin, nós não somos bichos. Nós somos seres humanos,

racionais, vivemos em sociedade, e viver em sociedade pressupõe um

conjunto de regras, de controle, de normas de conduta, entre uma

pessoa e outra, entre o cidadão e o estado, os poderes, as empresas...


36
AGUSTIN Estado! Poderes! Empresas! Só faltou você mencionar o demônio!

PALOMA Senta, pai... calma...

AGUSTIN SENTA.

AGUSTIN Proudhon! Sabe o Proudhon? O filósofo, o escritor? Não sei se

estudam Proudhon na faculdade de Direito, é a mesma coisa que um

investidor de Wall Street ler o livro sagrado do Tibet... Pois o Proudhon

dizia mais ou menos assim: Aquele que puser as mãos sobre mim pra

me governar ou me controlar, é um usurpador, um tirano, e eu o

declaro meu inimigo.

MARCELA A gente estuda anarquismo no curso de Direito, sim, seu Agustin. E

deve ter investidores de Wall Street que lêem o livro sagrado do Tibet,

por que não? O senhor está sendo radical e intolerante.

AGUSTIN O que? Eu?

MARCELA E o radicalismo e a intolerância levam ao autoritarismo. O senhor está

sendo autoritário no seu anarquismo, e anarquismo não tem nada a ver

com autoritarismo. O senhor é uma incoerência, uma contradição.

PALOMA Calma, amor... ãh... calma, Marcela....

AGUSTIN Autoritário não. Intolerante pode ser que eu seja, mesmo. Sou

intolerante com uma sociedade que não pratica a igualdade social e

econômica de todas as pessoas, com um capitalismo que explora o

trabalho de muitos em proveito de poucos, que impõe governantes,

regras e religiões para controlar e minar as energias naturais do ser

37
humano, que impede a união livre entre as pessoas em busca da

felicidade delas, sou intolerante com qualquer tipo de...

MARCELA Ôpa! O que foi que o senhor disse aí?

AGUSTIN O que?

PALOMA Nossa, ele falou tanta coisa... qual parte?

MARCELA A união livre das pessoas, não foi isso? O que quer dizer a união livre

das pessoas?

AGUSTIN Ué, o que quer dizer... A união livre das pessoas, oras...

MARCELA Imagino que seja qualquer tipo de união livre, entre qualquer tipo de

pessoas, não?

AGUSTIN Eu sei onde você quer chegar, eu estou entendendo o seu jogo. Você

quer me por numa sinuca. Advogada espertinha...

PALOMA Ah, ela é, viu? A Marcela é a pessoa mais...

MARCELA O senhor é que está se colocando numa sinuca. O senhor é que

defendeu a vida inteira todo e qualquer tipo de liberdade, que cada um

deveria fazer o que bem entendesse desde que não prejudique os

demais, e agora está se sentindo acuado por suas próprias palavras.

AGUSTIN Defendi, defendo e defenderei!

MARCELA Pois a união livre das pessoas pressupõe que qualquer pessoa, de

qualquer classe social, de qualquer raça, de qualquer sexo, deve ter o

direito de se unir a outra, de acordo com a sua conveniência, a sua

afinidade... e os seus sentimentos...

PALOMA Gente, esse papo está ficando muito...

AGUSTIN Você está interpretando as coisas do seu jeito...

MARCELA Vocês, anarquistas, nunca lidaram muito bem com certas questões.

AGUSTIN Que certas questões? Que conversa é essa?


38
MARCELA Vamos ser claros, seu Agustin. Os anarquistas nunca souberem direito

como tratar de questões como... liberdade sexual... amor...

AGUSTIN Ah, francamente, você não sabe o que diz! Fomos nós, anarquistas,

que falamos em liberdade sexual antes de todo mundo! Fomos nós,

anarquistas, que criamos o conceito de amor livre. Depois os hippies é

que transformaram naquela esbórnia!

MARCELA Pouquissimos anarquistas trataram de homossexualidade. Rarissimos

foram os que consideraram lícito o amor entre duas pessoas do mesmo

sexo. Como o nosso, o meu e da sua filha.

PALOMA ENGASGA.

MARCELA E os poucos que falavam disso eram discriminados pelos outros

anarquistas. Esses temas sempre foram meio que tabus pra vocês.

AGUSTIN Imagina. O anarquismo não comporta nenhum tabu.

MARCELA Bakunin! O senhor conhece Bakunin, é claro.

AGUSTIN Você está maluca? Qual o anarquista que não conhece Bakunin? É a

mesma coisa que perguntar a uma criança se conhece o Pato Donald!

PALOMA Ah, eu adoro o Pato Donald... o Pateta... o...

MARCELA Foi um dos expoentes do anarquismo, não foi?

AGUSTIN Sim, claro, um dos maiores, todo mundo sabe...

MARCELA E Nechayev?

AGUSTIN Ah: Sergei Nechayev, claro! Esse foi um revolucionário, um anarquista

praticante, ele pregava a violência politica... queria libertar o povo do

Czar Alexandre II...


39
MARCELA Ele queria assassinar o czar...

AGUSTIN Pois é, então: pra libertar o povo...

MARCELA Eram amantes, não eram? Bakunin e Nechayev.

AGUSTIN Imagina! Que bobagem!

PALOMA Gente! Que babado!

MARCELA Não sou eu que afirmo, muitos historiadores falam das cartas de amor

entre os dois...

AGUSTIN Nunca foi provado.

MARCELA Nem desmentido. As cartas estão aí...

AGUSTIN Mas o que importa isso? Eles foram grandes homens! Expoentes!

Heróis!

MARCELA Tem razão! Nada! Não tem a menor importância se eles eram amantes

ou não. Se eram homossexuais ou não. Tanto Bakunin quanto

Nechayev nunca deixarão de ser os grandes homens que foram. Não

tem importância nenhuma se eles se amaram ou não, se eles foram

para a cama ou não.

AGUSTIN TITUBEIA.

MARCELA Mas é curioso saber que uma das poucas pessoas que defenderam as

liberdades sexuais no anarquismo foi justamente uma mulher.

PALOMA É mesmo?

AGUSTIN Que mulher?

MARCELA Emma Goldman. Como o senhor vê, eu estudei anarquismo na

faculdade de direito...

40
AGUSTIN Uma grande mulher. Uma ativista de primeira!

MARCELA Concordo: uma mulher corajosa, discutia publicamente um assunto que

até hoje os anarquistas preferem evitar. Vocês que se sentem tão

superiores, tão donos da verdade, tão defensores de uma forma de

organização social utópica, poética...

AGUSTIN Não é poesia, não é utopia! É uma filosofia política, com teorias,

métodos e ações que pretendem implantar uma nova forma de ordem.

Quase deu certo na Espanha... se os anarquistas não tivessem sido

traídos... Anarquia é ordem, uma ordem baseada na liberdade!

Pregamos a liberdade, todos os tipos de liberdade!

MARCELA Todos os tipos de liberdade? Quais? Quais tipos de liberdade?

AGUSTIN Ora, todos! Liberdade de pensamento, de associação, de expressão,

de escolher a sua forma de organização social, todas!

MARCELA Todas? A liberdade sexual também?

AGUSTIN (TITUBEIA) Sim... claro... também...

MARCELA Sim, claro, também... Quase todo mundo é assim, não são só os

anarquistas. Aceitam todos os tipos de liberdade - na casa dos outros.

Mas não na sua casa, não com a sua filha.

AGUSTIN PARALIZA.

PALOMA Marcela...

MARCELA As pessoas, seu Agustin, têm necessidades e desejos profissionais,

políticos, emocionais, físicos, diferentes umas das outras. Mas

continuam sendo pessoas. Somos seres variados, plurais. Cada um de

nós é um mundo de valores, de crenças, de desejos. Não somos


41
clones uns dos outros, somos seres estranhos, somos complexos,

somos diferentes, ainda bem! e sermos diferentes é o que nos iguala.

Se há um sonho de igualdade para os seres humanos, ele só poderá

se tornar realidade quando a gente entender as nossas diferenças.

PALOMA “É preciso defender a vossa liberdade e o direito de ser como sois,

porque cada um de vós conhece os seus próprios desejos e as suas

próprias necessidades”... Papai disse isso, outro dia, e eu achei lindo.

Ele dizia que não aceitar uma pessoa do jeito que ela é é uma forma de

desaprovação, e desaprovação não é amor. Lembra, pai? E só o amor

constrói...

AGUSTIN Sim, eu me lembro...

LONGA PAUSA, TODOS VOLTAM AO PUCHERO.

MARCELA Paloma tinha razão.

PALOMA Eu?

AGUSTIN Tinha razão no que?

MARCELA O seu puchero é mesmo muito bom, seu Agustin.

AGUSTIN É o único prato que eu sei fazer bem... O de hoje está um pouco...

pesado. Eu... já estou satisfeito... Vou pegar o colchonete... a Marcela

pode dormir no meu quarto, eu fico aqui na sala...

PALOMA Não precisa, pai... Ela dorme comigo... quer dizer, no meu quarto...

AGUSTIN E você? A cama é estreita, vocês vão ficar... ah, sim... está bem... bom,

eu vou deitar...

PALOMA Boa noite, pai... (BEIJA-O)

MARCELA Boa noite, seu Agustin...


42
AGUSTIN (HESITANTE) Boa noite... Ah, escuta, Paloma...

PALOMA Sim, pai?

AGUSTIN Só o amor constrói é muito brega, minha filha...

TROCAM UM SORRISO. PALOMA ESTÁ TRISTE.

MARCELA Quando o amor acenar, siga-o,

Mesmo que os caminhos

Sejam ásperos e íngremes

PALOMA Debulhe esse amor

Até deixa-lo nu,

Triture esse amor

Até deixa-lo branco,

Apalpe esse amor

Até deixa-lo macio.

MARCELA Aí, pegue esse amor

E leve-o ao fogo,

Para que se transforme em pão,

Para sustentar o corpo...

PALOMA E alimentar o coração...

ABRAÇAM-SE. RECOLHEM OS PRATOS E SAEM.

43
TERCEIRO ATO

DOIS MESES DEPOIS.

AGUSTIN ENTRA, TRAZ UMA SACOLA E UM JORNAL.

AGUSTIN Cheguei! Caracoles, que frio que está lá fora! Passei no Paco, comprei

as coisas... cenoura, tomate, cebola, tudo... e um pouco de lagarto, não

tinha coxão-mole.

VAI TIRANDO AS COISAS DA SACOLA.

Sabe que o Paco vai fechar o mercadinho? Vendeu pra uma

construtora, uma incorporadora, sei lá. Compraram quase tudo ali em

volta, vão fazer um prédio, uns vinte andares, com garagem, área de

lazer, churrasqueira, tudo. Uma fortaleza, com grande sistema de

segurança, vai ficar todo mundo trancado lá dentro. O marido, a

mulher, os três filhos, tudo em 35 metros quadrados, uma beleza. O

Paco diz que vai ter play-ground. Antigamente era quintal, agora eles

botam lá um escorregador de plástico e vira play-ground. A sacadinha

virou varanda gourmet, a salinha de ginástica virou fitness. Onde é que

eu vou comprar as coisas? Faz uns cinquenta anos que eu só compro

no Paco. Teve um dia que o Paco estava com febre e não abriu, então

eu fui naquele outro, o super, hiper, sei lá... Fiquei uns quarenta

minutos perdido lá dentro, eu queria comprar aveia, no fim saí com

cotonete, café solúvel, miojo... eu odeio miojo... e uma caixinha que

não sei do que que era... a embalagem era bonita, eu comprei... e


44
esqueci da aveia. Por isso que eu gosto do Paco, lá não tem marketing,

não tem embalagem bonita, a gente vai, compra o que precisa e

pronto. Ah, escuta: o jornal! Cê tá me ouvindo? Saiu no jornal, vem ver!

Você vai ter uma surpresa! Vem ver, caraco!

MARCELA ENTRA.

MARCELA Êh, calma, seu Agustin! Estava na cozinha...

AGUSTIN Fazendo o que?

MARCELA Fazendo o que! Descascando o grão-de-bico, ora... Saiu no jornal?

Cadê?

AGUSTIN VAI ABRINDO O JORNAL.

AGUSTIN Saiu, e tem até uma fotografia...

MARCELA Ôpa, com foto e tudo? Um sucesso!

AGUSTIN Agora, adivinha quem é que saiu na foto?

MARCELA O senhor!

AGUSTIN Não.

MARCELA Vai dizer que fui eu...

AGUSTIN Também não. Olha aqui...

MARCELA O Paco?!? Essa não! Justo o Paco que nem queria ir...

AGUSTIN Mas foi, de tanto que eu insisti, falei pra ele “que diabo de anarquista é

você, que não sai mais do mercadinho, tá achando que é empresário,

agora”?

45
MARCELA Também, é claro que ele tinha que sair na foto... só dá ele, com esse

baita símbolo de anarquista pintado na careca... E quem é essa menina

de cabelo laranja, cheia de piercings, essa que está abraçada com ele?

AGUSTIN Mas que menina o quê! É o neto dele, o Ratazana. Ele tem uma banda

de rock anarco-punk, se chama...

MARCELA Ratazana? Pensei que era o ursinho carinhoso...

AGUSTIN Vermes da Discórdia, a banda se chama Vermes da Discórdia. Uma

vez o Paco me chamou pra ver uma apresentação deles. Você tinha

que ver o Ratazana cantando...

MARCELA É? Ele canta bem?

AGUSTIN Ô! Eu achei que ele estava vomitando no palco. Passei uma semana

tomando calmantes, não conseguia dormir... Mas é boa gente, ele.

Bom garoto... Traz o grão-de-bico pra cá, a gente descasca junto.

MARCELA (LENDO) “Cerca de cinquenta pessoas participaram da manifestação

contra a obrigatoriedade do voto”... Olha que safados! Cinquenta

pessoas! Tinha mais, não tinha?

MARCELA SAI PRA BUSCAR A PANELA.

AGUSTIN Eu acho que tinha umas duas mil, três mil, sei lá. Mas não importa, o

que interessa é que deu repercussão, está vendo? A gente só precisa

de um fato e uma foto, pronto. As pessoas vêm isso no jornal e

começam a pensar: por que cargas dágua eu sou obrigado a votar?

Pra que serve o voto? Pra eleger um governo? E pra que serve o

governo? Pra nada. O governo não serve pra nada, e se o governo não

serve pra nada o voto também não serve pra nada.


46
MARCELA VOLTA, AMBOS SE SENTAM E COMEÇAM A DESCASCAR.

MARCELA O senhor sabe muito bem que eu não concordo com isso. Não

totalmente. A gente precisa de governo, sim. De bons governos.

AGUSTIN Se é governo não é bom. Se é bom não é governo. Os governos só

existem para se sustentar a si próprios. O rei só se preocupa com o

reinado, não com o reino. Eles só querem é faturar os impostos e

empregar a parentada. Sabe, eu tinha um amigo, o Cuberos, que

nunca declarou imposto de renda.

MARCELA Não diga...

AGUSTIN Só uma vez: quando veio um fiscal da Receita junto com um oficial de

justiça, e queriam levar a geladeira dele embora pra quitar uns débitos

lá... Aí ele fez uma declaração, escreveu umas coisas num papel e

pronto. Mas nunca mais fez. Isso é governo? Levar a geladeira do

Cuberos é uma ação governamental?

MARCELA Existem, sim, bons governos. Está certo que têm sido raros por aqui,

mas existem. E aí eu concordo: numa verdadeira democracia votar é

um direito do cidadão, e não uma obrigação. Muitos juristas também

concordam.

AGUSTIN Você fala isso por que é advogada. Advogados vivem das leis que os

governos fazem, é o ganha-pão de vocês. Se não existissem leis não

haveria advogados.

MARCELA Errado. Mesmo se não existissem leis nem governos, os advogados

teriam que existir. O senhor sabe qual é o mínimo de pessoas que o

mundo precisaria ter para a raça humana continuar existindo?


47
AGUSTIN Ué, sei lá... se existir pelo menos uma pessoa a raça humana estaria

existindo, não?

MARCELA Mas acabaria quando essa pessoa morresse.

AGUSTIN Certo. Duas, então. Um casal... Mas um casal de um homem e uma

mulher, por que se fossem dois homens ou duas mulheres, a raça

humana acabaria do mesmo jeito quando eles morressem... Sei que

você não gosta desse assunto, mas está vendo como a união mais

natural é entre um homem e uma mulher?

MARCELA Pode ser a mais natural, mas não é a única. Uma coisa é a reprodução

da espécie, outra coisa é o amor, e o senhor sabe que o amor é cego,

né?

AGUSTIN Cego, louco, manco, surdo, ele é tudo. Até burro o amor é.

MARCELA Mas voltando ao tema: para a raça humana continuar existindo não

basta um casal: é preciso existir pelo menos três pessoas: um homem,

uma mulher e um advogado pra resolver os conflitos entre eles.

RIEM.

AGUSTIN Olha, eu até concordo, viu? Do jeito que o ser humano é...

MARCELA É melhor por as coisas na geladeira.

AGUSTIN Toma... mas deixa os tomates, precisa picar e tirar as sementes. Essa

manifestação de ontem me cansou... A pior coisa para um anarquista é

ficar velho. Não pode mais correr da policia, vai jogar uma bomba

desloca o braço, vai xingar o prefeito, sai aquela vozinha rouca que

ninguém entende... Felizes os anarquistas que foram fuzilados ainda

jovens.
48
MARCELA (SAINDO, COM AS COISAS NAS MÃOS) O senhor queria ter sido

fuzilado quando era jovem, seu Agustin?

AGUSTIN Se eu queria ter sido fuzilado? Não sei... depende... Acho que não... A

Paloma telefonou? Mandou alguma mensagem aí no seu... como é que

se chama? Lépi... lépi...

MARCELA (LÁ DE DENTRO) Laptop!

AGUSTIN Isso. Laptop!

MARCELA Ela não ligou, não. Nem mandou mensagem. Mas ela deve estar bem.

AGUSTIN É... ela deve estar bem... Se não estivesse já tinha ligado.

MARCELA VOLTA, PEGA OS TOMATES E COMEÇA A PICAR.

AGUSTIN Laptop... Você já viu que tem uns que são menores ainda? Eu vi na

televisão, eles tem nome de chocolate, como é que se chama?

Tablete?

MARCELA Tablet.

AGUSTIN É... tablete...

MARCELA Táblet, seu Agustin. A silaba tônica é a tá. Táblet. E o t do final é mudo.

AGUSTIN TIRA OS SAPATOS E MASSAGEIA OS PÉS.

AGUSTIN Tá… ble... t... táble...t... táblet... Olha, eu acho que até seria bom se

ela não viesse amanhã.

MARCELA A Paloma? Por que?

AGUSTIN Não, não é por nada, é que o puchero fica melhor com coxão-mole,

sabe? Mas não tinha, eu trouxe lagarto, não fica tão bom...
49
MARCELA Mesmo assim eu ainda ficarei mais feliz se ela vier. Ela nem sabe que

eu resolvi ficar por aqui, pensa que eu voltei pro Pará...

AGUSTIN Como é que se chamam lá as ilhas pra onde ela foi? Abraão?

MARCELA Salomão. Ilhas Salomão, no Pacífico.

AGUSTIN Ah, isso, sabia que tinha alguma coisa de bíblico...

MARCELA Mas de lá ela talvez fosse pra Coréia, Japão... esses países que são

contra a proibição da caça às baleias...

AGUSTIN Não entendo aquela menina. Largar tudo assim pra se enfiar nesses

lugares... Dois meses fotografando baleia...

MARCELA Ela sempre quis trabalhar no Greenpeace. Paloma é uma aventureira,

uma pessoa que ama a liberdade, uma idealista. Às vezes a gente faz

as coisas por que sente que tem que fazer, sabe?

AGUSTIN Você também é assim, não é?

MARCELA Seu Agustin, a minha família tem um escritório de advocacia, dos

grandes, atende clientes poderosos, empresas, grupos financeiros. Eu

podia estar lá, no ar condicionado, ganhando um dinheirão. Mas fui me

meter com os madeireiros lá do Pará. Santa Maria do Urará, já ouviu

falar?

AGUSTIN Nunca.

MARCELA Eu também não, até que fui parar lá. É uma reserva extrativista, tem

um punhado de gente morando, cercados de madeireiros por todos os

lados, armados até os dentes. Dali saem balsas e mais balsas

carregadas de madeira ilegal, são quadrilhas organizadas, e quem se

opõe eles matam, matam as lideranças, matam os juízes, queimam as

casas... uma terra sem lei.

AGUSTIN Mas se não tem lei, não precisa de advogado!


50
MARCELA Eu tentei dar voz ao pessoal da reserva, organizei núcleos de

moradores, fiz denuncias em Brasília, defendi alguns religiosos que

estavam marcados de morte, escrevi artigos para os jornais do Pará, fiz

um monte de coisas. Até que os jagunços começaram a me ameaçar,

deram tiros nas paredes da casa onde eu morava, a coisa ficou feia...

Eu achei melhor vir embora.

AGUSTIN Fez bem. E o pessoal de lá, como é que ficou?

MARCELA Bem, eu preparei alguns deles, acabaram se tornando lideranças. Fiz

com que eles entendessem que não deveriam esperar nada do

governo, da igreja, de ninguém. Eles têm que tomar o destino deles

nas mãos. Não é fácil, mas é o único jeito, naquele fundão de mundo...

AGUSTIN É isso mesmo! Governo!... Igreja!... Quem fica esperando, fica

esperando. O mundo quem faz é a gente. Mas quem diria! O que te

deu na cabeça de ir pra lá?

MARCELA Pois é! Sabe que nem eu sei! Eu tinha lido sobre isso em alguma

revista, achei que tinha que ir, e fui. Foi lá que eu conheci a Paloma, é

a parte boa da história. Por isso eu entendo essa coisa dela, essa

inquietação que ela tem...

AGUSTIN Sei... é um ponto de vista que nunca tinha me ocorrido. Eu nunca

consegui entender direito essas loucuras dela... Ela sempre foi tão...

inconstante, indefinida, volúvel. Você... você sabe que ela é volúvel,

não sabe?

MARCELA Sei. Sei e estou preparada, pode acreditar, seu Agustin. Ela é tão

jovem, uma menina... E o mundo é tão vasto, tão cheio de... de

encantos... Acha que eu já não pensei muito sobre isso?

51
AGUSTIN É... Por que você sabe, quem é que entende as mulheres, né? Quer

dizer, você é mulher, então você talvez... não sei... você é mulher mas

você é... não sei, você entende as mulheres?

MARCELA Seu Agustin, cada um de nós é um mundo. Quem é que entende o

mundo?

AGUSTIN Pois é. Você convive com uma pessoa anos e anos, e aí um dia

descobre que não sabe quase nada dela. A minha mulher, por

exemplo: eu demorei dez anos pra descobrir que ela não usava bucha

pra tomar banho. Eu pedia pro Paco a melhor bucha que ele tinha,

aquela bem gordinha, grande. Ela nunca usava, ela tinha lá uma

esponjinha... dez anos eu demorei pra descobrir. Mas eu amava ela. E

eu amo a Paloma.

MARCELA Eu também. Eu também amo a Paloma. Seu Agustin, o senhor já parou

pra pensar que a coisa mais anarquista do mundo... é o amor?

AGUSTIN Não... Nunca pensei nisso...

MARCELA As pessoas amam de qualquer jeito. Ama se for branco, ama se for

preto, ama se for israelense, ama se for palestino, se for pobre, se for

rico, se for feio, se for bonito, se for homem, se for mulher. Quando o

amor bate, a gente ama de qualquer jeito. Ama as qualidades, ama os

defeitos...

AGUSTIN É... tem razão. Acho que não existe mesmo nada mais anarquista do

que o amor. A gente ama até quem a gente achava que rejeitava. A

gente ama até a namorada da filha da gente.

MARCELA Ah, seu Agustin... que bom ouvir isso, porque eu também amo o

senhor... apesar de ser tão diferente de mim... Mas a gente tem uma

coisa em comum...
52
AGUSTIN A Paloma, né?

MARCELA A Paloma. Nós dois amamos aquela maluca...

ABRAÇAM-SE COM TERNURA.

MARCELA Sem essa de cansado, hein, seu Agustin?

AGUSTIN Não, não, eu estou bem. Chegou a hora da ação, não é isso? Vamos

lá! Como é que vai ser a coisa, afinal? Qual é a estratégia? Você sabe

que desse assunto aí eu não estou muito por dentro, né?

MARCELA Na verdade é uma causa que eu nem sei se interessa ao senhor, se

não interessar pode falar, não tem problema.

AGUSTIN Claro que me interessa. Qualquer causa humana, desde que seja justa,

me interessa. “Eu sou um homem, e tudo que é humano me interessa”.

Terencio disse isso, há mais de dois mil anos! Ele escrevia comédias,

mas falava sério. Você sabe que comédia é coisa séria, não?

MARCELA Sim, eu sei. O caso foi assim: os dois são namorados. Olha, é preciso

deixar claro que não são dois caras levianos, não são baixaria, nem

estavam a fim de escandalizar ninguém. Eles só estavam andando de

mãos dadas, e na hora de se despedirem eles se beijaram. Coisa

normal.

AGUSTIN Sim, sim, coisa normal... Se beijaram? Os dois? Na boca?

MARCELA Ué! Claro! Pessoas que se amam se beijam na boca! É natural!

AGUSTIN Mais ou menos natural, né...

MARCELA Já discutimos isso infinitas vezes, seu Agustin.

AGUSTIN Eu sei, eu sei... E daí, o que aconteceu?

53
MARCELA O que aconteceu foi que um segurança achou que era um ato obsceno,

ofensivo, sei lá o que, fez um escarcéu e enquadrou os rapazes, levou

os dois pra uma delegacia, foi um constrangimento total. Um absurdo!

O segurança se investiu de uma autoridade que ele não tinha. Não

tem. Foi preconceituoso, homofóbico.

AGUSTIN Eu sei como é. Na certa ele agiu assim por que se sentiu no exercício

de um poder que o patrão incutiu nele, e ele se achou importante por

que na cabeça dele ele estava defendendo os interesses do patrão.

MARCELA Exatamente. Só que no caso, não tem propriamente um patrão, foi

numa praça pública, numa feirinha...

AGUSTIN Bom, se foi numa praça pública o patrão dele é o governo. Juntou duas

coisas que eu abomino: patrão e governo. E aí, o que é que vai

acontecer?

MARCELA O que vai acontecer é que eu abri uma página na internet e chamei

centenas de casais, masculinos e femininos, vamos dizer assim, e

vamos fazer uma cerimonia do beijo. Todo mundo vai se beijar na

feirinha, na mesma hora, ao mesmo tempo. É isso. Vamos?

AGUSTIN Todo mundo vai se beijar na feirinha... Os homens, as mulheres, todo

mundo... Vai ser uma... uma...

MARCELA Um ato de afirmação.

AGUSTIN É, é isso que eu ia dizer: um ato de afirmação... Tá bom, então vamos.

Deixa eu por os sapatos...

MARCELA Ah, preciso pegar umas coisas, já ia esquecendo.

MARCELA SAI.

54
AGUSTIN Casais masculinos e casais femininos... Mas vai ter casais de homem e

mulher também, não? Quer dizer: ainda existe, né?

MARCELA Sim, vai ter de tudo.

AGUSTIN Vai ter de tudo... isso é o que me assusta mais...

MARCELA VOLTA COM UMA BANDEIRA GAY E DUAS TIRAS. COLOCA

UMA NA CABEÇA DE AGUSTIN.

MARCELA Pronto. Agora sim, podemos ir...

AGUSTIN Mas precisa disso, mesmo? Não fica muito... ostensivo? E se eu sair

no jornal com essa coisa na cabeça? O que que o Paco vai pensar?

MARCELA O Paco eu não sei, mas o Ratazana eu aposto que vai adorar. Vamos,

senão a gente se atrasa.

AGUSTIN Vamos. Ah, escuta: vai ter policia lá?

MARCELA Provavelmente. Foi divulgado, comentado... Aí sempre tem policia, né?

AGUSTIN Então, espera um pouco... (SAI APRESSADO)

MARCELA Ai, caramba... Seu Agustin, o que o senhor vai fazer? A gente vai se

atrasar. Seu Agustin!

LONGA PAUSA.

MARCELA Seu Agustin, o que o senhor está fazendo? Está demorando muito!

LONGA PAUSA.

MARCELA Ô seu Agustin, vamos! Caramba!

55
AGUSTIN VOLTA COM UMA GARRAFINHA DE PLÁSTICO NAS MÃOS.

MARCELA O que é isso?

AGUSTIN Mijo! Pra jogar nos guardas!

MARCELA Seu Agustin...

AGUSTIN Vamos, vamos, a praça já deve estar cheia... estou louco pra ver essa

beijação... vamos...

SAEM, ANSIOSOS.

O TELEFONE TOCA, A SECRETARIA ELETRONICA ATENDE.

VOZ DE AGUSTIN – Alô... não posso atender agora por que não estou em casa. Se

puder ligar mais tarde é melhor. Mas se quiser deixar um recado,

espera que vai tocar um sinalzinho e depois do sinalzinho você pode

deixar o recado. Abaixo o capitalismo! Viva o anarquismo!

PALOMA (AO TELEFONE) Pai! Sou eu, Paloma! Estou em Papua, pai, na Nova

Guiné. Como é que o senhor está? Aqui está tudo bem. Tudo ótimo!

Pai, deixa eu te dizer: eu acho que encontrei o amor da minha vida.

Agora é de verdade. Quer dizer, acho que é. Ele fala numa língua que

se chama motú, é um dialeto daqui. Eu já aprendi umas palavras. Olha,

pai, ele é... é... bom, ele não é branco, tá? Bom, deixa eu desligar. Já

percebeu que nesse domingo eu não vou poder ir, né? Talvez no

próximo. Ou no outro... Prepara um puchero pra mim! Beijos! Te amo,

meu querido anarquista. Tchau...

56
A LUZ VAI CAINDO AO SOM DO TU, TU, TU DO FINAL DA LIGAÇÃO, ATÉ

SILENCIAR POR COMPLETO.

BLACK-OUT FINAL.

57

Você também pode gostar