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[Um jovem, no centro do palco, a operar uma pequena máquina.

À sua frente, uma


rapariga da sua idade.]

O jovem:
Passo o seu cartão pelo leitor
Cabelo negro como um corvo
Quando a luz bate da forma certa
Fica azul, de certa forma
Coberto por um gorro
Passo o seu cartão pelo leitor
Uma bola de menta por cima do seu waffle
Um livro entre o seu tronco e o seu braço
Kafka?
Não sabia que as pessoas em Lisboa conheciam Kafka
Passo o seu cartão pelo leitor
Porte pequeno, mas parece maior
Talvez seja dos piercings e eyeliner…
Ou as botas de salto alto que traz
A sua saia de pregas permite-me ver a coleção de arte nas suas pernas
Como medalhas de honra
A confiança talvez seja o que a faça parecer tão…
(a falar para a rapariga) – “Por favor, meta o seu PIN”
(volta ao monólogo interno)
Ela inclina-se na bancada perto do… meu espaço
Cheira bem, não consigo identificar o que é
Mas decerto que existem venenos menos intoxicantes
Segura no dispositivo (como poucos fazem)
E menciona (como muitos fazem)
(A rapariga) – “O brilho no ecrã é muito forte.”
(O rapaz, em monólogo interno) De facto, é um brilho que acaba por encadear

E encadeado fiquei
Acabo por lhe dizer o que digo sempre
Daquelas frases que temos para situações recorrentes
Que sai sem pensar
(A falar com a rapariga) – Oh sim, mas na altura do Natal há sempre luzes por todo o
lado.
(volta ao monólogo interno)
Ela fica a olhar para mim confusa
Eu, envergonhado, sorrio
Ela devolve-me o sorriso
Dentes perfeitamente alinhados
Mas não aparentava ter usado aparelho
Sabem como às vezes dá, simplesmente, para perceber?
(A rapariga) – Que calor, estas máquinas abafam muito o sítio.
(O rapaz, em monólogo interno)
Eu sorrio e abano a cabeça, concordando
Ela tira o gorro
E ali. Estão. Eles!
Um par
Perfeitamente alinhados e dobrados
De… de…
Cornos! Chifres!
Preto-obsidiana. Brilhantes
A sair da testa, que subiam e percorriam a parte superior da cabeça.
Rentes ao seu escalpe
Com tranças feitas do seu cabelo
A decorá-los
Eu não sou especialista em… Queratina
Ou cornos em geral. Parece de ovelha? Búfalo?
Eu não sei, mas também não ia ver ao Google, porque estava demasiado ocupado a estar
a olhar feito parvo
Ora, aí está algo que nunca tinha visto
De todas as tatuagens, piercings, espigões, implantes ou sabe-se lá mais o que…
De todas as lojas de waffles que existem em Lisboa, a menina independente, senhora
“sou-confiançuda-devias-crescer-um-par” decidiu vir à Waffle&Co.
Claro que sim, não me faltava mais nada!
Os segundos pareciam minutos e os minutos, horas…
Estava a tentar processar tudo isto.
Maquilhagem ou… Implantes? Ou talvez…
E agora a ficar cada vez mais consciente do quão estimulado estava
E do quão estimulado estava
Bem no fundo, lá bem no fundo
Abdómen, coxas, virilhas.
Já tinha visto mulheres com chifres em filmes e jogos imensas vezes
Mas ver assim de perto é
Assombrosamente estonteantes
E começamos a perceber o fascínio, o apelo
Excitou-me e esmoreceu-me simultaneamente
Enquanto o meu lado religioso gritou, também senti os chakras alinharem-se
Já nem sei o que estou a dizer, ou… a pensar.
Francamente, foi como receber uma daquelas chamadas dos bancos e quem está do
outro lado tem a voz mais bonita de sempre em que que só apetece dizer: Agora não
posso, mas por favor ligue-me outra vez. A sério, não se acanhe…”
A voz que viria daqueles lábios vermelhos
Sinceramente se aqueles lábios estivessem sequer perto de…
Meu Deus!
Ela sabe o que está a fazer, a reação que causa
E ela gosta
Já o tinha visto antes e gostava
Dá-lhe aquela injeção de adrenalina
Ela tem chifres e são estas as reações que recebes quando tens chifres.
E como um robô automatizado eu pego no recibo e meto na caixa de waffle, pego na
caixa de waffles e meto num saco, pego no saco e meto-o na sua mão e aí parei. Há um
momento em que ambos estamos a puxar levemente e ela levanta a sobrancelha.
Foi então que eu disse:
(A falar com a rapariga) Tenho a certeza de que…
Já te perguntaram isto, mas…
Creio que a questão que desejo colocar neste preciso e exato momento é…
Ham…
Porquê?
(A rapariga) Porquê? Essa é nova, geralmente é “Como?”.
(O rapaz) Pois… Mas é mesmo…. Porquê?
(A rapariga) Bem, para conseguir fazer coisas como
(O rapaz, em monólogo interno) E como que num piscar de olhos ela aproxima a cabeça
dela perigosamente perto da minha.
Os seus lábios perigosamente perto dos meus e…
Dá-me uma cabeçada.
Não forte o suficiente para doer, mas forte o suficiente para sentir.
Eu largo o saco e ela sorri
Ao sair, ela saltita pela loja, sem uma única preocupação no mundo
E fica a olhar para mim
Durante o caminho TO-DO
Até chegar à porta
E é nessa altura que, através da montra
Porque ainda estou a segui-la com o olhar
Ela para e com o seu dedo indicador
Faz-me uma moção de… (de forma sedutora) “Vem cá”
(rapariga sai de palco)
Estou no meio do trabalho, mas também tenho namorada e também não foi essa merda
que me parou.
Lancei-me para a entrada
Que neste momento servia de saída
Apenas disse:
(para trás de si como que a falar com colegas de trabalho) VOU À PAUSA
Passo pelas portas e as multidões afogam-me
Domingo na Baixa da Grande Lisboa
Passo pelos mendigos e pedintes
O ocasional cigano que me pergunta
(com sotaque de mafioso) TÁXIXE? QUERES HAXIXE?
O mercado abundante de bijuteria e mulheres aos gritos
Ela já tinha alguma distância de mim
Bastante
Ela olha para trás e sorri
Apercebo-me de que estava prestes a meter-me no meio da rotunda quando um Tuk-Tuk
me buzinou, quase acertando-me
Quando levanto a cabeça, a distância entre nós aumentara
Ela olha para trás e sorri
Olho para ambos os lados e passo a rotunda no meio, desviando-me de carros velhos
demais para andarem em circulação e das “tartarugas ninjas” dos serviços de entregas.
Acabo de passar este rio Styx
E ela volta a ganhar distância
Olha para trás e sorri
Agora já estou em modo de corrida
Tusso e tento encher os pulmões de ar enquanto ela parece um pequeno Obikwelu, só
que em vez de corrida é de saltos
Estou quase a chegar onde ela está, no meio da Rua Augusta e agora está mais longe
Como se o espaço e o tempo encolhessem e esticassem ao mesmo tempo
Um salto espacial
O Terreiro do Paço
Entre as pessoas, não consigo deixar de notar as que comem waffles
Daqueles em forma de pila
(ironicamente) A concorrência
Como lhe chama o meu patrão
Parece que acabei de ser empurrado para uma piscina e forçado a sair.
Os camones olham para mim e tiram fotos
Riem-se e comentam línguas que nunca tive paciência para ter o interesse de querer
tentar aprender.
(Como que a falar com os turistas, ofegante) Epá, vão pró caralho!
(de volta ao monólogo interno) Das minhas articulações juro que consigo ouvir o ranger
e chiar de algo que está enferrujado.
Do outro lado da estrada, vejo-a
Um carro passa
Ela desaparece
(preocupado) Onde é que ela está? Para onde foi? Tenho de a encontrar
(um suspiro de alívio) Ali está ela
E a música e barulho dos artistas de rua a baterem em caixotes do lixo faz-me dançar e
rodopiar durante uma eternidade
Passo pelas mulheres que levam os carrinhos de bebé
Velhas demais para serem bebés lá dentro e vejo, de passagem, um cão
O ridículo da situação agrava-se quando as pessoas passam e pedem para ver, como se
fosse a coisa mais natural de sempre
Percorro a longitude do Terreiro até ver que está parada
A olhar para o rio, junto a uma escadaria, entre dois pilares semi-submersos, que vão
dar ao fundo
Ou a Atlântida
E estamos sozinhos
As suas costas viradas para mim
Só se ouve os sons do rio
E estamos sozinhos
O seu cabelo flutua como as nuvens que nos rodeiam
Nem as gaivotas cá estão
E estamos sozinhos
(A rapariga) Diz-me, gostas de fatias paridas?
(O rapaz, a recuperar o folgo) Hum… sim,
(A rapariga vira-se e vai em direção ao rapaz. Aponta para o início das escadas)
(A rapariga) Olha, tens ali!
(O rapaz em monólogo) Não questionei. Fui.
No chão estava uma fatia de pão
Rodeada do que parecia ser uma… Placenta.
Risos ecoam à minha volta e quando me viro
Ela está à minha frente
(A rapariga) É realmente uma… Delícia (risos)
(O rapaz em monólogo)
E os seus lábios estão nos meus
E ela morde-os
E ela tem chifres
E ela agarra-me no cabelo
E ela tem garras
E ela agarra-me no pescoço
E ela tem chamas à sua volta
Dou um passo atrás e vou escadas abaixo
(Pausa)
Perco a consciência e sou acordado momentos depois por um polícia que levou a
política dos donuts demasiado a sério
(Entra o Polícia em Cena)
(O Polícia) Vá rapaz, levanta-te que isso não é para nadar, olha o lodo!
(O Polícia sai de cena)
(Pausa longa)
(O rapaz)
Estou em casa
Levo as mãos à cara e vejo o meu reflexo
Sinto os altos na cabeça, da queda
E as feridas nos lábios
E sinto-me tonto
E arranhões no pescoço
E as feridas são frescas
E estou tão pálido
Neste momento só me vem à cabeça…
Só a mim…
Ricardo Antunes

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