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A MOSCA ou EDITE

Pedro Rezende Caldas

MANO
Eu estava pensando no quanto as coisas são difíceis e no quanto elas vêm à minha
cabeça tão rapidamente que parecem comportas abertas que eu sou incapaz de conter,
ou um enorme cano de esgoto, como naquele filme, cuja água me atira dezenas de
metros abaixo, me afoga, me enche de resíduos, depois me deixa como uma escultura,
uma grande sereia de lixo, na beira da praia e a praia na verdade é um Ferro Velho e daí
vêm os gatos e miam e miam e sobem no meu corpo morto e miam e miam e baforam
um bafo, bafo de onça, bafo de gato, bafo que acorda e aquilo já não sou mais eu, é
alguém diferente que gosta de usar couro e quer ser cada vez mais flexível.

GURIATÃ / GOR,
Quem está aí?

MANO
Eu. Não sei. Você ouviu o que eu disse?

GURIATÃ
Que queria ser mais flexível.

MANO
Sim... (pausa) uma banda aberta da minha janela sopra mais vida que muita gente. Eu
amo sentir o vento na minha pele. Deve ser porque eu não sei o que é frio de verdade.
Mas eu já fui a CWB.

GOR
Ali está o seu príncipe! O que você idolatra.

MANO
Eu gosto dele, mas ele é livre. Quer se mudar.
GOR
Para onde?

MANO
Impulso Nove, Jardins do Hipocampo. Está esperando.

GURIATÃ
O quê?

MANO
Precisa ser numa chuva-feira, 11.

GOR
Por quê?

MANO
Ele leu num livro.

GOR
Que coragem dele, ir e sua, deixar.

MANO
Eu sei.

(pausa)

GOR
Espera aí, chuvas-feiras não caem em dia 11.

MANO
Eu escrevi o livro.

GOR
Você precisa avisá-lo.

MANO
Ele sabe.

GURIATÃ
Como sabe?

MANO
Ele escreveu o livro que afirma que chuvas-feiras não caem em dia 11.

(Escuta música que alegra seu coração)

MANO
Não precisa doer o dia inteiro, tudo bem chorar de alegria. Eu soube que as lágrimas são
lindos cristais únicos.

GOR
E isso, em que livro você leu?

MANO:
Foi naquele filme que você viu comigo, mas você dormiu. Eu perguntei se estava
escutando e você respondeu...? (pausa, esperando resposta, sem êxito). E você
prometeu que prestaria atenção nas figuras.

GURIATÃ / GOR
Tem gente ali não quero chegar perto.

MANO: A gente vem sempre aqui. Você está me ouvindo?


GURIATÃ
Mas hoje é diferente não estamos sozinhos.

MANO
De qual cristal você gostou mais?

GURIATÃ
Hã?

MANO
Eu estou sozinho.

(pausa)

GOR
Claro que não. Você sempre tem o céu.

MANO
Não fale do céu quando sua cabeça só pensa em poesia, nunca em meteorologia.
OUTRA CENA

MANO
Quero ver um filme com vocês.

PIPOCA
Ótimo.

LONA
Que agradável.

MANO
Então vamos, é um que gosto muito. É sobre um cara que existe de verdade. Ele nunca
entendeu porque doía tanto até o dia que descobriu que existia de verdade. Acredito que
as estrelas também explodem por isso.

PIPOCA
Hoje fui comprar pão e tropecei

LONA
Como é?

MANO
Eu disse que o homem do filme estava morto. Que não sentia nada porque tinha a pele
cinza e os lábios azuis. Entenderam?

PIPOCA
Sim. Ralei o joelho.

LONA
Entendi. Isso é só a casca, o importante é o que está dentro.
MANO
Eu queria que vocês estivessem dentro da minha cabeça, usando qualquer coisa que lhes
deixasse com os olhos arregalados e a boca cheia. Nem que fosse de espanto, de sorvete.
De formigas. (pausa). Talvez... água de trombeta?

PIPOCA
Claro.

LONA
Muito agradável.
OUTRA CENA

MANO
Ele está vivo, não morto. Sente porque estava vivo e é por isso que dói tanto. É por isso
que dói tanto, é por isso que dói tanto. É por isso... Por serem suas as palavras lhe
cortam a garganta e não não existe vírgula já viu um raio parar no meio do caminho?
(pausa). Eu realmente não vi, mas. (pausa). Quem diria, o céu silencia antes de espirrar.
Primeiro espirra em pensamento... Quando ele pensa o raio pulsa e depois que pulsa o
céu fala, finalmente... Atchim. (imita trovão). Isso... o mundo cala quando o trovão fala.
Cala e escuta e não ousa mirar a própria face. Atchim (imita trovão).
OUTRA CENA

ODETE
Edite! Edite? Edite, o que está fazendo? Eu ouvi vozes, quem está aí?

EDITE
Mano estava aqui cuspindo de novo

ODETE
Não minta para mim.

EDITE
Não minto. Ele deu cusparadas pra todo lado, tome cuidado onde pisa.

ODETE
E de onde você o conhece? Foi da lanchonete? Da ponte?

EDITE
Fique tranquila, acredite, ele não faz o meu tipo. Por isso mesmo estou aqui, costurando
nosso enxoval.

ODETE
Hahahahahahahahahahahahahah

EDITE
Do que você está rindo?

ODETE
Edite, Edite. É de ti, Edite.

EDITE
E o que tem eu, Odete?

ODETE
Lembrei do dia em que cravei fundo o lápis, cravei com toda a minha força e sem
nenhuma esperança. E quando abri os olhos e fechei a boca, como um milagre, eu atingi
o teu peito e teu coração ficou da cor do grafite, jorrando tinta vermelha. Ele batia como
a minha voz grossa, implorando.

EDITE (dor)
Você está só na minha cabeça, está só na minha cabeça, só na minha cabeça, na minha
cabeça, minha cabeça, cabeça.

ODETE
Edite...

EDITE
Minha!

ODETE (prazer)
E mesmo assim, fui eu que o vi primeiro. Meu! Era eu na lanchonete. Eu cruzando a
ponte. Mano é criação minha.
OUTRA CENA

MANO /
Entendi. (pausa) Uma mosca azul na minha sala, a janela aberta enquanto escrevo.
Peguei o papel e a persegui por horas. Minhas palavras com certeza iriam espantá-la.
Espantam todo mundo. Basta eu abrir a boca para fazer um holofote acender sobre
qualquer coisa. Não consegui espantá-la. Ela queria me ouvir? Improvável. Ultrajante
de tão impossível, revoltante de tão irreal. Peguei uma sandália, esperei que ela baixasse
da lâmpada branca e desferi uma chinelada que a atirou longe, no corredor. Quando
olhei para o chão, não tive mais vontade de defenestrá-la. Não precisava que ela saísse
afinal, só precisava que estivesse morta. (pausa). Me abaixei, olhei bem em seus olhos,
seus dois grandes enormes olhos e disse: “Edite, eu vou inventar você.”

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