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Estética

Material Teórico
Estética e Filosofia: Algumas definições

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Esp. André Luís Pereira dos Santos

Revisão Textual:
Prof. Ms. Luciano Vieira Francisco.
Estética e Filosofia: Algumas definições

·· Introdução
·· Arte e Filosofia
·· A experiência estética
·· Poética versus estética

Nesta unidade vamos discutir sobre as relações entre a Filosofia, o belo e a


arte. Porém, para iniciarmos essa conversa, é necessário que partamos de
algumas definições para que estabeleçamos um diálogo comum.
Leia com atenção os textos propostos e também fique atento aos detalhes
das obras analisadas. Essa trajetória também carrega em si uma educação
dos sentidos (do olhar, do escutar, do sentir), extremamente necessária
quando queremos adentrar no vasto universo das artes e tomá-lo como
tema de reflexão filosófica.

É bom lembrar que qualquer um que deseje trilhar a carreira filosófica, deve adquirir o
saudável hábito da leitura cotidiana. Ler todos os dias nos ajuda a manter a mente aberta
para novos conhecimentos, além de executar um exercício precioso para memória. Lembre-
se que o laboratório do filósofo é a biblioteca e a sua oficina é a escrivaninha.

Deste modo, leia com atenção o texto teórico e não deixe de perceber as relações que o texto
aponta entre os quadros, músicas e vídeos disponíveis na unidade. Faça anotações, retome
as leituras e não tenha medo de ter dúvidas e formular questionamentos a si. Pois, somente
assim, você vai mergulhar no mundo da reflexão filosófica.

Os livros e filmes indicados lhe ajudarão a ampliar suas reflexões sobre a arte e lhe proporão
novos caminhos de estudo.

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Unidade: Estética e Filosofia: Algumas definições

Contextualização

Comecemos nossa conversa olhando para o quadro abaixo:


Figura 1 – Mulher segurando uma balança

Johannes Vermeer (1632–1675)/Wikimedia Commons

Este é um quadro do pintor holandês Johannes Veermer, dificilmente alguém questionaria


a qualidade artística desse pintor e muito menos o valor de sua obra para a história da arte
ocidental. Justamente porque nossos olhos estão acostumados a um certo padrão de beleza
que não necessariamente é o mais correto ou o único possível. O conceito de arte vai muito
além de representações que somente intencionem se aproximar com perfeição da realidade.
A arte é uma forma de lidarmos com os grandes questionamentos da existência, de maneira
que as impressões de determinado artistas materializem visões, problematizações e ações que
comuniquem às outras coisas de seu interior, que se irmanam com o interior de outras pessoas,
produzindo novas relações e novas obras de arte.

Para Pensar
Reflita sobre as suas experiências em relação ao consumo de arte, pautado pelas
seguintes questões:
• Você já percebeu que a arte pode ser um itinerário de formação?
• O que uma obra de arte precisa possuir para que você a considere bela?
• Que critérios você costuma utilizar para decidir se determinada obra pode ser
considerada “Arte”?

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Importante:
Quando usamos o termo “itinerário de formação” estamos assumindo que podemos aprender
de inúmeras maneiras, trilhando trajetórias distintas das mais usuais:
Os itinerários de formação pressupõem que não há uma única maneira de se
formar, a escolar, mas múltiplos caminhos que se abrem à nossa escolha e que
propiciam uma autoformação, ou seja, a aquisição, mas também a construção,
elaboração, criação de valores, pensamentos, sentimentos que nos situam
no mundo, em suas múltiplas manifestações, sejam estéticas, sociais, éticas,
psicológicas etc. (ALMEIDA; FERREIRA-SANTOS, 2012, p. 142).

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Unidade: Estética e Filosofia: Algumas definições

Introdução

Eu não sei como conceber o bem, se afastar os prazeres do gosto, os prazeres


do amor, os prazeres do ouvido e as emoções agradáveis que causa à vista uma
forma bela (EPICURO).

Se pensarmos na frase de Epicuro que abre esse capítulo, veremos que o conceito de prazer
é fundamental em sua filosofia. Muitos entenderam erroneamente essa escolha epicurista de se
aproximar do prazer para afastar a dor, confundindo-a por uma predileção pelo excesso e pelos
prazeres mundanos. O que ele defende é exatamente o contrário: o equilíbrio e a moderação
em relação aos prazeres corpóreos, somando-se a isso uma busca constante pelos prazeres
do intelecto e do espírito. Prazeres que engrandecem a experiência de estarmos vivos, dando
sentido ao modo como existimos nesta terra.
Podemos considerar a experiência estética como algo que passa por essa dimensão. Ela se
relaciona com o prazer, intelectual ou sensorial, que sentimos ao entrarmos em contato com as
artes. A música, o cinema, a pintura, a leitura causa sensações de alegria e de tristeza, de euforia
e desconforto. Esse processo de apreensão da obra de arte, seja ela qual for, nos permite uma
reflexão prazerosa sobre o belo e suas virtudes. Talvez seja bom começar por aí.
Atualmente, a palavra estética é utilizada das mais variadas formas e com inúmeros sentidos
em nosso cotidiano. No entanto, ainda há muitas confusões acerca do significado mais forte
desse termo. É muito provável que você já tenha se perguntado porque algumas pessoas têm
tanto mau gosto e outras possuem um gosto apurado ao se tratar das coisas cotidianas como
vestir-se, decorar a casa ou cozinhar harmonizando sabor e equilíbrio? Talvez você ainda fique
se perguntando o que se estuda em um curso de estética corporal, por exemplo, ou a que se
refere a expressão “ele possui um ótimo senso estético”?
Em um sentido mais fraco podemos compreender a experiência estética como algo que está
presente em todas as produções culturais humanas, relacionando-a apenas à beleza artística
ou natural dos objetos, construções, vestuário entre outras coisas. Nesta acepção, podemos
relacionar a estética ao cuidado do corpo, a determinado conceito de bom gosto entre muitas
outras definições.
Porém, em uma definição mais apurada, em Filosofia, a estética é a própria experiência racional
que reflete sobre o belo, o fazer artístico e suas decorrências: O que é arte? Quais as fronteiras
entre o artístico e o artesanal? As manifestações artísticas são infinitas ou elas apenas se repetem e
se atualizam? Como podemos definir o belo e o sublime? Estas e muitas outras perguntas surgem
quando começamos a pensar na estética enquanto reflexão autônoma sobre as artes.

Arte e Filosofia
Muitos filósofos se debruçaram sobre o tema da arte. Dentre eles, Platão que julgou necessário
banir os artistas de sua cidade ideal, visto que a arte é produzida por meio da imitação das coisas
do mundo sensível que, por si só, já são também imitações do mundo das ideias. Aristóteles
que escreve sua poética reforçando a ideia de Mimesis (imitação) já presente em Platão, porém,

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levando-a a outro plano por meio da análise do efeito catártico do teatro grego, sobretudo,
pela identificação entre espectador e protagonista no processo de apresentação da tragédia. No
entanto, discutiremos isto em outro momento. Poderíamos citar ainda inúmeros exemplos dessa
relação entre arte e filosofia Entretanto, essas análises, em sua maioria, ainda têm dificuldade
em aproximar verdadeiramente a filosofia das artes.
Essa discussão somente começa a tomar força a partir das reflexões de Kant e de alguns
filósofos do romantismo alemão que começam a conceber a reflexão e apreciação artística
como um processo racional e pertencente à filosofia.
Entretanto, é Baumgarten quem irá primeiramente utilizar o termo estética, partindo
do conceito grego de aisthesis, que significa sensação ou experiência do sentir, entre outros
significados. Foi em seu trabalho Meditações filosóficas sobre as questões da obra poética,
de 1735, que foi utilizado pela primeira vez o termo “estética”, designando a Ciência que é
responsável pelo conhecimento sensorial enquanto instância de apreensão do belo e suas
correlações com a arte, contrapondo-se à lógica como conhecimento acerca do saber cognitivo.
Dentro desta significação, podemos conceber a estética como uma teoria do belo e de suas
manifestações por meio da arte. Nosso problema inicial, portanto, é o de compreendermos
alguns conceitos fundamentais da estética e da filosofia da arte, transitando por suas definições,
mas também por seus conflitos e seus problemas.

Glossário
Fruição artística: É o processo que experimentamos ao apreciarmos uma obra de arte, passando
pela contemplação que busca ampliar o entendimento das sensações provocadas pela obra a partir
das intenções do artista ou das decorrências que a própria obra sugere.
Juízo estético: Se pensarmos que podemos, em uma análise muito rudimentar, emitir juízos de
fato (aqueles que são emitidos sobre as próprias coisas) juízos de valor (aqueles que estabelecem
julgamentos morais, éticos ou estéticos sobre essas coisas). Então, podemos considerar os juízos
estéticos como aqueles que buscam julgar as características do belo e do feio, mais do que isso,
estabelecem relações sobre as sensações causadas por essa mesma experiência do belo.

Alguns teóricos fazem distinção entre a estética e a Filosofia da arte, considerando a primeira
como exercício de contemplação e fruição artística tendo como objeto o belo, por meio de uma
doutrina da sensibilidade; E a segunda como uma reflexão acerca dos parâmetros daquilo que
pode ser considerado como arte. Veremos que estes limites são muito tênues, tendo em vista
a multiplicidade das manifestações artísticas e o conceito de intencionalidade que permeia a
produção artística atual.

há quem sustente que a estética não é filosofia, ou porque ela é, antes, alguma
coisa intermediária entre a filosofia e a história da arte, ou porque ela não se
encarrega de dar uma definição geral da arte, ou porque, sendo a concreção
necessária em tais assuntos, os testemunhos dos artistas, as reflexões dos críticos
e historiadores e as doutrinas dos teóricos de cada arte em particular podem
substituir, validamente, toda estética filosófica e mesmo, reivindicar, por si sós,
o nome de estética, sem preocupar-se em ser prolongadas ou elaboradas em
teorias filosóficas, verdadeiras e propriamente ditas (PAREYSON, 1989, p. 16).

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Unidade: Estética e Filosofia: Algumas definições

A arte contemporânea levou a limites extremos a significação desses conceitos, estendendo


as fronteiras da arte e permitindo que muitas formas de reflexão artística surjam e se renovem
constantemente. Definir a Estética apenas como a parte da filosofia que trata da experiência do
Belo é reduzir substancialmente as possibilidades semânticas e filosóficas desses conceitos e,
por conseguinte, do próprio conceito de estética. É importante lembrarmos que aqui estamos
tratando do belo artístico. Fato esse que pressupõe uma multiplicidade de compreensões do
alcance desse termo, levando-nos a questionar o que realmente concebemos como os limites
entre beleza e feiura, ou seja, o não belo. Podemos, por exemplo, dizer que as pinturas de Jean
Michel Basquiat não são belas? Ou que os trabalhos de Jackson Pollock não tem qualidade
artística? Atualmente, aquilo que é, por muitos, considerado como grotesco, exótico ou estranho
pode, por intensão estética, questionar aquilo que normalmente chamamos de belo e equilibrado,
por meio de uma ressignificação desses conceitos.

A estética é filosofia justamente porque é reflexão especulativa sobre a experiência


estética, na qual entra toda experiência que tenha a ver com o belo e com a arte:
a experiência do artista, do leitor, do crítico, do historiador, do técnico, da arte
e daquele que desfruta de qualquer beleza, quer seja artística, quer natural ou
intelectual, a atividade artística, a interpretação e avaliação das obras de arte, as
teorizações da técnica das várias artes (PAREYSON, 1989, p. 17-18).

Desta maneira, nesta disciplina, por buscarmos abranger um campo teórico que dialogue com
a prática artística, assumimos uma identificação inicial entre esse dois conceitos: Pensaremos
inicialmente a estética como uma filosofia da arte, visto que seria uma limitação pensá-la apenas
como uma filosofia do belo e do sublime. Entretanto, este artifício metodológico não descarta,
em uma abordagem mais específica e teorética as diferenças de abordagem que possa existir
entre a estética e a Filosofia da arte.

Figura 1 – Cabeza, de 1982. Figura 2 – The She-Wolf, de 1943.

Fonte: Jean Michel Basquiat/Wikiart.org Fonte: Jackson Pollock/Wikiart.org

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Diálogo com o Autor
O filósofo que pretenda legislar em campo artístico ou que deduza, artificialmente,
uma estética de um sistema filosófico preestabelecido, ou que, em qualquer caso,
proceda sem considerar a experiência estética, torna-se incapaz de explicar esta última e sua reflexão
cessa de ser filosofia para reduzir-se a mero jogo verbal. Em primeiro lugar, a reflexão filosófica é
puramente especulativa e não normativa, isto é, dirige-se a definir conceitos e não a estabelecer
normas. A estética, portanto, não pode pretender estabelecer o que deve ser a arte ou o belo, mas
pelo contrário, tem a incumbência de dar conta do significado, da estrutura, da possibilidade e do
alcance metafísico dos fenômenos que se se apresentam na experiência estética. Além disso, não
se trata de “deduzir” de um sistema pré-formado as suas “consequências” na estética, seja porque
a estética não é uma “parte” da filosofia, mas a filosofia inteira enquanto empenhada em refletir
sobre os problemas da beleza e da arte, de modo que uma estética não seria tal se, ao enfrentar
tais problemas, implicitamente também não enfrentasse todos os outros problemas da filosofia
(PAREYSON, 1989, p. 17).

Jean Michel Basquiat (1960-1988) foi um artista plástico


nova-iorquino que iniciou sua carreira como grafiteiro, assinando
suas obras como “SAMO” (abreviação para a expressão “Same
Old Shit”, sempre a mesma merda, em tradução livre). Sua arte
é visceral e ainda hoje seus quadros valem milhões em leilões de
arte pelo mundo inteiro. Foi apadrinhado por Andy Warhol e teve
um relacionamento com a cantora Madonna, ainda em início de
carreira. Em 1996 teve sua vida retratada em um filme dirigido por
Julian Schnabel.
Fonte: Wikiart.org

Paul Jackson Pollock (1912-1956) foi um pintor norte-


americano que contribuiu profundamente no universo da pintura
abstrata a partir de uma concepção expressionista de sua arte. A
partir de uma técnica criada por Max Ernst, desenvolveu a técnica
do dripping (gotejamento), característica marcante de suas obras.
Além disso, pintava com a tela no chão e sem a utilização de
pincéis, como se seu inconsciente, seu corpo e a tela partilhassem
de uma mesma constelação .
Fonte: Wikimedia Commons

A experiência estética
Assim, para aprofundarmos nossa compreensão da arte, precisamos compreender o que é
a experiência estética. Para isso, podemos partir do seguinte questionamento: “A sensação de
prazer que sinto ao apreciar um objeto artístico pode ser universalizável?” Em outras palavras,

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Unidade: Estética e Filosofia: Algumas definições

é possível pensar um juízo estético de forma absoluta e universal? Ou ainda, não seria a arte
apenas uma maneira de representarmos subjetivamente aquilo que sentimos?
Se colocarmos a questão apenas dessa maneira, estaremos reduzindo substancialmente o
seu campo de compreensão, visto que, se no extremo a arte fosse apenas um modo subjetivo
e particular de representarmos nossos anseios interiores, de maneira alguma nos sentiríamos
tocados quando víssemos determinada pintura ou quando nos identificássemos com aquela
canção em que o compositor parece conhecer e partilhar de cada pedaço de nossas almas,
representando esses sentimentos em forma de som.
Assim, é possível que o juízo estético seja racionalizável e, apesar de partir de experiências
particulares, possa sim ser dotado de algum tipo de objetividade. Se algo nos é aprazível
artisticamente, isto é, nos causa prazer estético, é possível que esta sensação encontre ressonâncias
em outras pessoas e as toque da mesma ou de outras maneiras.
Pode parecer, desse modo, que o pensamento estético se coloca como algo diametralmente
oposto ao pensamento lógico matemático. Mas esta visão se enfraquece, por exemplo, quando
encaramos os quadros de M.C. Escher, matematicamente construídos e pautados, tanto na
criação como na interpretação, por um profundo conhecimento dos limites imaginativos da
geometria. Além disso, podemos destacar a construção extremamente racional presente na
produção contemporânea da música de concerto: O dodecafonismo de Schoenberg ou a
música eletroacústica do Maestro paulista Gilberto Mendes. Músicas que se preocupam mais em
estabelecer conceitos estéticos do que provocar emoções instintivas. Desse modo, é necessário
certo preparo e conhecimento para ouvi-las, visto que são músicas que exigirão também certa
reflexão e atenção para ser absorvidas em sua totalidade. Partindo destes exemplos, ainda há
alguma dúvida de que pode haver uma profunda construção racional no processo artístico?
Figura 5 - Répteis, de 1943.

Fonte: M.C. Escher/Wikiart.org

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Explore
• https://www.youtube.com/watch?v=6DKRtGjIaD4 (Gilberto Mendes – Beba Coca-Cola);
• https://www.youtube.com/watch?v=O6JrRwuY7Kk (Gilberto mendes – Nasce Morre);
• https://www.youtube.com/watch?v=veUJxETj7-c (Schoenberg – Pierrot Lunaire, w/score –
1ste Teil).

Trocando Ideias
Música de concerto: adotamos o termo música de concerto para descrever o tipo de música
que comumente é conhecido como clássica ou erudita. Pois, o primeiro termo pode remeter à música
realizada no período clássico e o segundo pode pressupor que haja uma elitização presente neste tipo de
música. Fatos que queremos evitar, visto que a música de concerto pode e deve ser usufruída por todos.

Do mesmo modo que o fazer artístico pode obedecer padrões científico-racionais, a apreciação
da arte também pode passar por uma experiência de objetividade se valendo também desses
parâmetros na compreensão do processo artístico. Mas é importante notar que ao mesmo tempo
que a experiência estética pauta-se pela compreensão teórica do dado ou do fazer artístico,
ela também se origina na percepção das sensações propiciadas tanto pela obra como pela
intencionalidade que a gerou.
Não é por menos que o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1984, p. 88) reclama uma
necessária compreensão do envolvimento do corpo no processo artístico. Tanto do ponto de
vista de quem realiza a arte como do ponto de vista de quem a consome. “Emprestando seu
corpo ao mundo é que o pintor transforma o mundo em pintura. Para compreender estas
transubstanciações, há que reencontrar o corpo operante e atual, aquele que não é um pedaço
de espaço, um feixe de funções, mas um entrelaçado de visão e de movimento”. Esse processo
é importante, pois, pela arte, experimentamos uma visão das coisas que até aquele momento
não havíamos percebido. Olhar para a obra de arte nos permite partilhar de um novo mundo,
construído sob a ótica de outros pontos de vista que se diferenciam e somam-se aos nossos.
Todo olhar é fruto de uma escolha, pressupõe uma intenção. O ato físico de “ver” está pautado
apenas pelo complexo processo ótico que a biologia de nossos corpos realiza para que as
imagens se transmutem em informações ao chegarem ao cérebro. Já a escolha do “olhar” é um
processo que alia esse ato com uma grande parcela de reflexão.
Deste modo, voltando a ideia do belo, só consideramos o belo artístico precioso quando
ele provoca os nossos sentidos, o que leva o intelecto a buscar uma apropriação desta
experiência, racionalizando-a. Porém, todo este caminho ocorre simultaneamente, reafirmando
a complexidade da experiência estética em nós.
Paralelamente a essa relação que se dá na percepção das sensações, advém o fato de que,
certa forma, a arte permite que dialoguemos com outras épocas e outras histórias. É como
se a experiência artística fosse atemporal e pudéssemos habitar o momento em que ela foi
concebida, o instante em que saímos desta realidade e nos inserimos na experiência de fruição
que aquela obra nos propicia, seja ela um filme, um poema, uma música ou uma escultura.
A respeito desse tema, tratando da música, o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1991, p. 25)
afirma que:

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Unidade: Estética e Filosofia: Algumas definições

A audição da obra musical, em razão de sua organização interna imobilizou,


portanto, o tempo que passa; como uma toalha fustigada pelo vento, atingiu-o e
dobrou-o. De modo que ao ouvirmos música, e enquanto escutamos atingimos
uma espécie de imortalidade.

Esta ideia de imortalidade só é possível se pensarmos o arrebatamento que a arte nos provoca
como uma experiência única que cria uma conexão momentânea, dure o quanto durar este
instante, entre o artista, a obra e o espectador.
Outro grande filósofo que se debruça sobre esse tema é Gaston Bachelard (1978, p. 183)
que afirma que “se houver uma filosofia da poesia, essa filosofia deve nascer e renascer no
momento em que surgir um verso dominante, na adesão total a uma imagem isolada, no êxtase
da novidade da imagem”, ou seja, ela deve ser tomada no cerne da sua produção, olhando-se
para a poesia ela mesma e vasculhando o que ela apresenta enquanto fenômeno. Ainda sobre
isso ele defende que:

a imagem poética não está submetida a um impulso. Não é o eco de um passado. É


antes o inverso: pela explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos
e não se vê mais em que profundidade esses ecos vão repercutir e cessar. Por sua
novidade, por sua atividade, a imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo
próprio. Ela advém de uma ontologia direta (BACHELARD, 1978, p. 183).

Essa conexão entre a imagem e a apreensão de seu significado é fruto de uma representação
do que já foi. É como se o acontecido se tornasse presente por meio da imagem poética colocada.
Isto é, por meio da arte somos levados à lugares longínquos e dialogamos com os grandes
mestres de outros tempos. Quando vemos o Davi de Michelangelo ou os relevos assírios do
poderoso rei Assurbanípal estabelecemos uma ponte que nos fala desse lugar, dessas pessoas e,
por meio de um diálogo interno, nos transportamos momentaneamente até um outro contexto
sócio-espaço-temporal.

Poética versus estética

Mediante tudo isto gostaríamos de encerrar essa unidade pensando acerca de como a arte
foi teorizada através da história. Para isso, podemos identificar duas grandes tendências que
estabeleceram os vínculos entre a arte e a filosofia: A primeira remonta a Platão e Aristóteles e
busca compreender o processo artístico pelo viés da Poética; A segunda se estabelece a partir
do século XVIII e dá origem ao que conhecemos como estética.
Durante a Antiguidade clássica a arte era considerada uma técnica, tanto que a palavra grega
que traduz o vocábulo latino Ars é Techné. Deste modo, todo arte é uma Poiésis, ou seja uma
fabricação, uma construção. Toda produção que envolva uma fabricação humana por meio de
sua racionalidade, pode ser considerada uma poética, uma Ciência da produção. A obra de
arte, desta forma, é concebida em relação aos procedimentos e regras que permitiram a sua
construção. Aristóteles escreve uma Arte Poética e, nela, analisa a arte de produzir e compor
pela palavra, tanto escrita quanto falada, passando pelo canto, pelo teatro, pela dança e pela

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poesia. A poética passa por tudo isto e ainda mais. Essa tendência segue assim até meados do
século XVIII, em que os procedimentos e a nobreza dos temas determinam a qualidade das
obras de arte.
Com o surgimento das reflexões pautadas pela estética, primeiramente, as obras de arte
começaram a ser vistas como criações da sensibilidade, pautadas pelas sensações provocadas e
recebidas pelo nossos sentidos. Obviamente, o que se buscava nesse processo era uma relação ou
uma definição do belo. Pensando-se no artista, a estética começou a investigar como é possível
que esse belo ocorresse; pensando-se em quem consome a arte, buscou-se uma interpretação
das reações causadas por ela no sentido de uma aproximação de uma definição do bom gosto.
Deste modo, desde o final da idade média já havia uma discussão no sentido de estabelecer
os limites entre as artes liberais, ensinadas na universidade e as artes mecânicas, aquelas em
que, de uma forma ou de outra, se executam com a destreza manual. “Desde fins do século
XIV, em Florença, os pintores reivindicavam para a nova pintura nascida de Giotto o status
social de uma arte liberal comparável, por seu poder de criação e sua imaginação audaciosa
à poesia” (LACOSTE, 1986, p.7). É o surgimento da noção de estética um dos motivos que
permite a distinção entre artista e artesão. A arte começa a não mais ser definida pelos seus
procedimentos, como na poética. Como reflexão estética assume um estatuto de teoria geral da
arte, referindo-se tanto ao belo como aos aspectos técnicos, interpretativos e psicológicos, entre
outros, do processo artístico.
No entanto, as coisas não são tão simples como parecem aqui. Geralmente, todo tratado de
estética trata, na verdade, de seus problemas, visto que as definições que envolvem a teoria da arte,
assumem diferentes conceituações e significações em relação aos autores, artistas e críticos que as
formulam. De, certa forma, este passeio pelos aspectos mais diversos da estética, seus conceitos e
seus problemas, é o que humildemente pretendemos realizar durante as aulas desta disciplina.

Diálogo com o Autor


O belo é esse valor que é experimentado nas coisas, bastando que apareça, na
gratuidade exuberante das imagens, quando a percepção cessa de ser uma resposta
prática ou quando a práxis cessa de ser utilitária. Se o homem na experiência estética, não realiza
necessariamente sua vocação, ao menos manifesta melhor sua condição: essa experiência revela sua
relação mais profunda e mais estreita com o mundo. Se ele tem necessidade do belo é na medida em
que precisa se sentir no mundo. Estar no mundo não é ser uma coisa entre as coisas, é sentir-se em
casa entre as coisas, mesmo as mais surpreendentes e as mais terríveis, porque elas são expressivas.
Ora, um sentido se desenha na própria carne do objeto estético, como o vento que anima a savana;
um signo nos é feito, o qual nos remete a si mesmo: para significar, o objeto ilimita-se em um mundo
singular, e esse mundo é o que ele nos dá a sentir. Esse mundo que nos fala, nos diz o mundo: não
uma ideia, um esquema abstrato, uma vista sem visão que viria se acrescentar à visão, mas um estilo
que é um mundo, o princípio de um mundo na evidência sensível (DUFRENNE, 2002, p. 25).

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Unidade: Estética e Filosofia: Algumas definições

Material Complementar

Basquiat: traços de uma vida. Dir. Julian Schnabel. Estados Unidos, 1996 (duração 108min.).

GARCEZ, M. H. N. A estética de Luigi Pareyson: alguns princípios fundamentais e alguma


aplicação da articulista. [20--]. Disponível em: <http://dlcv.fflch.usp.br/node/52>. Acesso em: 15
out. 2014. (artigo esclarecedor sobre o pensamento estético do filósofo italiano Luigi Pareyson,
defensor do caráter filosófico da estética).

LACOSTE, J. A Filosofia da Arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. (livro fundamental para o
estudo das relações entre a arte e a Filosofia).

Moça com brinco de pérola. Dir. Petter Weber. Estados Unidos, 2003 (dur. 100min.).

Pollock. Dir. Ed Harris. Estados Unidos, 2000 (duração 122min.).

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Referências

BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Pensadores).

DUFRENNE, M. Estética e Filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2002.

FERREIRA-SANTOS, M.; ALMEIDA; R. Aproximações ao imaginário: bússola de


investigação poética. São Paulo: Képos, 2012.

LACOSTE, J. A Filosofia da Arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

LÉVY-STRAUSS, C. O cru e o cozido: mitológicas. São Paulo: Brasiliense, 1991.

MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Pensadores).

PAREYSON, L. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

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Unidade: Estética e Filosofia: Algumas definições

Anotações

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Estética
Material Teórico
Arte: O que é isto ?

Responsável pelo Conteúdo:


Profo. Esp. André Luís Pereira dos Santos

Revisão Textual:
Profª. Esp. Kelciane da Rocha Campos
Arte: O que é isto ?

·· Arte: O que é isto?


·· Por uma Definição de Arte
·· Arte como Cultura
·· Arte como Discurso
·· Formas e Expressões da Arte

Nesta unidade, vamos conversar um pouco sobre as propriedades e


fronteiras do que pode ser considerado artístico ou não.
Lembre-se de refletir sobre os exemplos apresentados e de realizar as
atividades com afinco.
Esse processo certamente ampliará sua visão do tema, preparando-o(a)
para compreender criticamente as situações cotidianas que estejam ligadas
à apreciação e, até mesmo, ao próprio fazer artístico.

Além de se apropriar dos textos da unidade, é importante que, aqueles que desejem se aprofundar
mais nas questões relativas entre arte e filosofia, criem um repertório de referências. O que isso quer
dizer? É imprescindível que um bom estudioso de estética conheça pelo menos parte da obra de um
bom número de pintores, escultores, dramaturgos, cineastas, literatos, entre outros, para que possa
ampliar sua compreensão do universo das artes. No material complementar, há a indicação de um site
com mais de 25.000 quadros que podem auxiliar seus estudos. Além desse, há um outro com vários
livros de arte (em inglês) que podem ser consultados e baixados gratuitamente.

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Unidade: Arte: O que é isto ?

Contextualização

Esta imagem é de uma escultura representando uma cabeça


de Ile Ifé, cidade do povo Iorubá, datada aproximadamente de
um período entre o século XII e o século XV depois de Cristo.
Ao olharmos para ela, encontramos traços semelhantes aos da
arte clássica ocidental. Porém, o que intrigou os arqueólogos
foi o fato de eles acreditarem que essa escultura não poderia
ter sido feita por africanos. Excetuando-se o preconceito dessa
afirmação, a arte africana por muito tempo foi vista como algo
exótico ligada apenas ao culto. Hoje sabemos que a produção
artística da África e de outros povos que vivem a ancestralidade
é extremamente elaborada e diversificada.
Britsh Museum - Ife head: Brass head of a
ruler Wunmonije Compound, Ife, Nigeria,
probably 1300s – early 1400s

Pense
Agora que avançamos um pouco em nossas discussões sobre a arte, partindo das ideias expostas
acima, reflita sobre os seus limites, levando em consideração as seguintes questões:
• Que critérios você costuma utilizar para decidir se determinada obra pode ser considerada “Arte”?
• Você já olhou para a produção artística de outros povos com curiosidade? Respeita o valor
artístico dessas manifestações?
• Já pensou naquilo que pode legitimar uma obra de arte como tal?

Glossário
Ancestralidade - processo pelo qual a pessoa se reconhece parte de uma herança ancestral, de
uma comunidade, uma origem comum. Por meio dela, acredita-se que não há dissensões entre
tempo e espaço. O passado, o presente e o futuro se confundem, dialogando com toda a história
de determinado povo.

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Arte: O que é isto?

Até agora, buscamos discutir sobre as relações possíveis entre a estética e a filosofia. No
entanto, propositalmente, não tentamos buscar definições específicas sobre a arte. Em algum
momento, você já se perguntou o que realmente seria a arte?
Primeiramente, é importante lembrar que, se nos aprofundarmos nessa discussão, surgirão
mais perguntas do que respostas. Assim, podemos considerar essa definição também como um
problema filosófico. Problema no sentido de que há divergências, conflitos e concessões em
relação ao campo artístico e também muitas maneiras de usufruirmos dele.
Desse modo, veremos que é uma tarefa muito difícil definir o que é arte. Essa palavra assume
diversas significações ao longo da história e se define de muitas maneiras. Por enquanto,
recorreremos a uma primeira definição apenas para iniciarmos a conversa.

Por uma Definição de Arte

No dicionário Houaiss, encontramos o seguinte significado para ela: “produção consciente


de obras, formas ou objetos voltada para a concretização de um ideal de beleza e harmonia
ou para a expressão da subjetividade humana”. Partindo dessa definição, vemos que a arte
tenta dialogar com o mundo em que vivemos e dar sentido à nossa existência. No entanto,
ela não está pautada somente por regras racionais. Certamente, a imaginação e a criatividade
são partes de nossa racionalidade. Porém, quando dizemos que a arte não se guia por regras
racionais, queremos dizer que ela, na verdade, tem a liberdade de exprimir sensações, intuições
e percepções que não necessariamente precisam ser provadas ou conduzidas racionalmente.
Mesmo a visão política de um artista é subjetiva, ou seja, faz sentido para ele. Podemos
partilhar de sua visão e refletirmos ou nos emocionarmos com ela. No entanto, aquilo que ele
produziu faz parte de um processo criativo que é somente dele. Não podemos exigir da arte
o mesmo rigor argumentativo que exigimos da ciência. Assim, aquilo que, em determinado
território ou determinada época é considerado belo e artístico, em outra pode não o ser. Além
disso, ela vai além da religião porque não se permite limitar por dogmas de fé ou por outras
verdades estabelecidas.
A arte é um diálogo com seu tempo, com aquilo que está acontecendo no momento em que
a obra é produzida. Mas algumas obras ultrapassam seu tempo e se tornam universais, refletindo
sobre questões que sempre serão atuais. Ezra Pound dizia que “os artistas são a antena da raça”,
isto é, teriam, segundo ele, uma sensibilidade maior em captar as questões essenciais do ser
humano. Ademais, o fazer artístico é uma maneira de perpetuar-se para além da morte, deixar
algo de significativo para os que vêm depois de nós, dar sentido ao fato de nos perguntarmos:
por que estamos aqui?

7
Unidade: Arte: O que é isto ?

Diálogo com o Autor

Artistas partilham da vocação, de acordo com suas disciplinas e artes, de fundir as


novas imagens da mitologia, ou seja, eles produzem as metáforas contemporâneas que nos
permitem compreender a natureza transcendente, infinita e abundante do ser como ele é.
Suas metáforas constituem os elementos essenciais dos símbolos que tornam manifesto o
esplendor do mundo como este é, isto em lugar de argumentar que este deveria ser de um
modo ou outro. Elas o revelam como é.
CAMPBELL, Joseph. Isto és tu: redimensionando a metáfora religiosa. SãoPaulo:
Landy, 2002. p.36.

Certamente, as pessoas não se perguntam se a Mona Lisa de Da Vinci é uma obra de arte
ou se uma grande ópera como o barbeiro de Sevilha, se tem valor artístico. Mas, ainda temos
dificuldades de perceber o poder artístico das manifestações culturais populares, como o bumba
meu boi, a congada e o maracatu. Vemos a arte africana como algo mais exótico do que artístico
e não sabemos muito bem como classificar a dança e a literatura dentro do campo das artes.
Antes de mais nada, é preciso que nos livremos de preconceitos e olhares estéticos limitadores
e empobrecidos quando buscamos compreender as fronteiras entre a arte e as outras formas
de conhecimento. A contadora de histórias Regina Machado costuma dizer que para adentrar
o maravilhoso mundo dos contos tradicionais é preciso virar o olho (2004. p. 89). Isto é, para
compreendermos verdadeiramente as narrativas da tradição oral, precisamos aprender a
olhar para as coisas de outra maneira, partilhar do instante criador, revivê-lo e ressignificá-lo,
vivenciando novas formas de compreensão da história que escutamos.
A arte exige um processo semelhante. É necessário reeducar o olhar para adentrar o universo
artístico, despir-se de interpretações pré-concebidas e colocar-se diante da obra como um
discípulo que até aquele momento não foi iniciado naquela linguagem, aprender com ela e
olhar com atenção para suas possibilidades de significação.

Diálogo com o Autor


Se admitirmos que o poder básico da imaginação é o de configurar imagens, é mais difícil perceber
que sua função primordial é configurar significações, responsáveis por um genuíno e pessoal
processo de aprendizagem.
MACHADO, R. Acordais: Fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias.
São Paulo: DCL, 2004. p. 31.

8
Assim, seria uma irresponsabilidade pensar a noção de arte como algo singular. Deveríamos
pensar então em discutir “as artes”. Visto que qualquer que seja a definição necessária de
“artes”, ela deve se conjugar de maneira plural.
Da mesma maneira, os parâmetros que podem estabelecer um estatuto para a obra de
arte são primordialmente culturais. Temos territórios que são pensados como espaços de
reconhecimento para as obras de arte: Os museus, as galerias, os teatros, entre outros. Abrigar
a arte nesses espaços corresponde a reconhecê-las como tal. Mas quem decide aquilo que
deve ou não ser exibido nesses espaços? Essa resposta também não é muito complexa. Pois
temos peritos, críticos, negociadores e historiadores da arte. Esses profissionais desenvolveram
com o tempo um discurso competente, rigoroso e de autoridade sobre os limites da arte.
Portanto, podemos começar nossa pequena apropriação do escopo da arte, partindo desses
dois parâmetros iniciais: o da cultura e o do discurso.

Arte como Cultura


Primeiramente, para entendermos o que é cultura, precisamos definir o que é natureza. Esse
conceito pode adquirir inúmeros significados. Natureza pode ser tanto um princípio vital quanto
a essência de um ser, ou ainda, como afirma Marilena Chauí, “tudo o que existe no Universo
sem a intervenção da vontade e da ação humanas. Assim natureza ou natural opõe-se à técnica
e a tecnologia (por esse motivo, opomos natural e técnico)” (CHAUÍ, 2010. p. 218).
Realmente, o que diferencia o ser humano dos outros animais é a capacidade de produzir
meios que alteram o seu ambiente, adaptando-o à sua realidade.

Pense
Leia o texto abaixo e reflita sobre as possibilidades de criação de cultura presentes no
processo artístico.
Cada instantejustamente
O homem, criador corresponde à intensidade
por escapar de um de
abstratamente momento de vida.contínuo,
um presente Ele é o esquecimento
na verdade do essa
passado com todo o acúmulo de conhecimentos e o despertar do presente em plenitude
é a única realidade temporal que ele vivencia, cria culturalmente uma noção de passado e riqueza. O
e uma
ato de criação é um ato de presença. Criar é viver no presente. Neste aqui e agora estão contidas as
noção de futuro. Assim, uma das definições possíveis que podemos dar à cultura é concebendo-a
nossas vivências individuais enriquecidas das vivências do mundo a que pertencemos. Este mundo
como
está a junçãonão
conosco, dospodemos
recursos nos
materiais
separaredele.
imateriais que nos
O momento auxiliam
criador, quandoa deixarmos nossa marca
vivido intensamente, é
naum
história daàhumanidade.
retorno unidade inicial. É, portanto, um momento de intensa alegria. Através da intuição, as
ideias se harmonizam. A intuição é a claridade que vem dentro de nós mesmos e não é buscada
fora, através de ensinamentos. Desperta num momento inesperado, quando o pensamento lógico
foi transcendido (...).
ANDRÉS, M. H. Os Caminhos da Arte. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 53.

9
Unidade: Arte: O que é isto ?

Você já deve ter ouvido a história de Mowgli, que foi criado por lobos, ou mesmo a de
Tarzan, criado por macacos. Além disso, podemos acrescentar a história de Robinson Crusoé,
náufrago solitário que, pelo seus conhecimentos, altera a realidade da ilha em que se viu
obrigado a sobreviver. Os dois primeiros casos são baseados nas histórias de crianças que foram
criadas por animais e, justamente por isso, imitavam e reproduziam comportamentos animais.
Realmente, é muito improvável que uma criança criada por lobos ou por macacos adquirisse
características humanas, visto que essas são culturais, geradas pela convivência, mas, sobretudo,
aprendidas por intuição, por convivência ou por ensino. Porém, no terceiro caso, o de Crusoé,
há verossimilhança na concepção dessa história. É perfeitamente possível que uma pessoa com
recursos à mão reproduza o que recebeu como herança de aprendizado; o homem cria a partir
daquilo que aprendeu.
Desse modo, como arte e cultura se relacionam? Ora, as manifestações artísticas obedecem
aos padrões e costumes da região, da tradição em que estão inseridas. Logo, as definições do
que é ou não artístico se estabelecem por padrões culturais e se multiplicam tanto quanto o ser
humano se difere em seus povos e suas culturas.
Decorre daí que a arte não pode ser considerada natural. Podemos, por exemplo, encontrar
uma paisagem magnífica e esteticamente avassaladora. No entanto, não podemos considerar
essa paisagem como uma obra de arte, visto que não houve a intervenção de um artista em
sua produção. Obviamente, pode haver proporção, equilíbrio de cores e texturas nessa imagem,
entretanto ela é fruto de um ordenamento da natureza que está submetido à regularidade
do meio ambiente, provocado por leis universais a que nós também estamos racionalmente
submetidos. A paisagem só se torna arte quando é representada artisticamente por meio de uma
técnica: a pintura ou a fotografia, por exemplo.
Apontamos anteriormente que o termo “arte” tem origem na palavra latina Ars, que é a
tradução do termo grego Téchné, “técnica” ou um “saber fazer”. Gostaríamos de retornar a essa
discussão para reforçá-la com alguns dados.
Na antiguidade, havia uma identificação necessária entre a arte e a técnica. A técnica pode
ser definida como toda ação ou atividade do homem que, guiada por regras, visa à fabricação
de alguma coisa. Tanto o artesão quanto o artista utilizam-se de seu ofício no sentido de produzir
ou criar uma obra. Por isso, nessa perspectiva, podemos conceber a técnica, ou a arte, por meio
de uma oposição ao que é casual ou espontâneo. Isto é, por extensão, também ao que é natural.
Na verdade, até o século XVIII, podemos entender a arte como uma maneira que o ser humano
encontrou de usar a natureza em seu favor, um saber fazer.
É somente a partir do século XVIII que se inicia uma separação de concepções que distingue
a técnica das belas-artes (a pintura, a escultura, a música, a dança, o teatro e a literatura).
O ato de transformar a natureza, dominando-a, consolida-se como tecnologia, o que não
deixa de ser um artifício, ou seja, algo não natural. Esse processo leva a uma separação de
concepções que leva as artes a se definirem por sua utilidade. Desse processo de reflexão,
surgem dois grupos distintos, classificados a partir da finalidade de suas ações.
O primeiro reunindo as artes mecânicas, que conjugam aquelas práticas e saberes que são
úteis na manutenção da vida cotidiana. Fazem parte desse grupo a agricultura, a culinária, a
arquitetura e a medicina, por exemplo. Mas também os artesanatos, como a marcenaria, a
tecelagem, a jardinagem, a joalheria e a tapeçaria, entre outros. Essas formas de arte acabaram
por constituir mais o campo das “técnicas”, perdendo gradativamente o estatuto de “arte”.

10
No segundo grupo, ficaram as artes que possuem por finalidade a produção do belo e as
sensações análogas à sua contemplação: A música, a poesia, o teatro, a escultura e a dança,
entre outras. Essa parte das artes mecânicas consiste naquilo que nos acostumamos a chamar
de belas-artes e, portanto, a tudo que hoje procuramos conceber como artístico.
Desse modo, fica muito claro que há, nesse processo, uma contraposição entre utilidade e
beleza. O que, em um olhar mais superficial, pode levar a uma falsa interpretação de que as
belas-artes sejam ocupações supostamente inúteis.
De forma alguma. Atualmente, há um consenso de que a arte traduz e materializa de forma
particular sentimentos, sensações, visões de mundo, concepções políticas e críticas sociais de
maneira que outras formas de conhecimento e outras linguagens não poderiam propiciar. Tanto
como fenômeno social quanto como experiência estética, em todos os lugares, a arte e os
artistas são imprescindíveis na construção histórica e social da humanidade.
Assim, podemos pensar que o artista constrói uma visão particular do mundo que ultrapassa
a forma com que as outras pessoas lidam e percebem cotidianamente esse mesmo mundo,
partindo de coisas que, de alguma forma, sempre estiveram lá, mas foram ressignificadas pela
intervenção pessoal do artista, produzindo algo que dialoga com os outros em uma perspectiva
inovadora e essencial.

Trocando Ideias

Vik Muniz
Ao pensarmos na relação entre o artista e a sociedade, o papel
desempenhado pelo fotógrafo e artista plástico Vik Muniz é
fundamental. Um dos mais reconhecidos e respeitados nomes
brasileiros no circuito internacional de arte, suas obras dialogam
com a sociedade, não só pelo produto final, mas também
pelo processo de criação. Muitos de seus trabalhos consistem
em releituras de grandes obras, feitas a partir de materiais
cotidianos e inusitados como chocolate, café, material reciclável,
açúcar, entre outros. Foi a partir da série “Crianças de Açúcar”,
Fonte: Wikiart.org

realizada na ilha de St. Kitts, no Caribe, que o artista começou


a ficar conhecido mundialmente. Nesta série, ele fotografou sete
crianças filhas de trabalhadores que ganham sua vida na colheita
de cana-de-açúcar, trabalho árduo e desgastante. Vik recriou os
retratos dessas crianças modelando-as com açúcar. A metáfora
que se coloca aí é muito importante. Pois, o produto da subsistência dessas famílias é também o que
se insere no processo de criação da obra. Ele conviveu com essas famílias, conhecendo um pouco de
seus anseios e agruras, tornando assim a sua obra indissociável de sua produção. O doce do açúcar
se choca com o amargor da exploração do trabalho infantil e da luta pela subsistência daqueles que
são esquecidos pela sociedade.

Desse modo, retornando então aos critérios que nos permitem definir e classificar a arte, para
alguns as obras de Mozart podem ser definitivas e muito mais complexas do que as de Ernesto
Nazareth. Seguindo a mesma linha de pensamento, Rafael ou Da Vinci sempre serão mais
reconhecidos do que Almeida Júnior ou Rubens Caribé? Não necessariamente.

11
Unidade: Arte: O que é isto ?

Da mesma forma que Mozart pode não fazer o menor sentido para um índio bororo ou a
pintura clássica não tocar de maneira alguma uma senhorinha que pita seu cachimbo de fumo
de corda no interior de Minas Gerais, a apreciação e a definição do que é artístico também
é cultural, no sentido de que os especialistas em arte vão estabelecer critérios que permitam
perceber quão mais universais são os questionamentos a que uma obra nos leva. Talvez a
coisa não seja tão simples, mas algo que propicie reflexões estéticas diversas em pessoas de
diferentes origens certamente pode merecer o estatuto de “Arte”, mas há um consenso que se
dá por meio do discurso para que isso aconteça.

O derrubador Brasileiro

José Ferraz de Almeida Júnior (1850–1899)/


José Ferraz de almeida Júnior foi

Wikimedia Commons
um pintor brasileiro que durante a
segunda metade do século XIX retratou
as características do povo brasileiro em
seus quadros. Ficou famoso por assumir
o regionalismo como tônica de suas
obras, retratando a simplicidade da
cultura caipira, por meio de personagens
anônimos e intrigantes.

Pense

Vamos refletir sobre a frase abaixo e sua interpretação pela filósofa Marilena Chauí. Você já havia
pensado na obra de arte da maneira que este texto propõe?
O artista é aquele que fixa e torna acessível aos mais “humanos” dos homens o espetáculo de
que participam sem perceber.
MERLEAU-PONTY, M. A Dúvida de Cézanne. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril
Cultural, 1984. p. 120.
A obra de arte “fixa e torna acessível” o mundo em que vivemos e que percebemos sem nos
darmos conta dele e de nós mesmos nele. A obra de arte nos dá a ver o que sempre vimos sem
ver, a ouvir o que sempre ouvimos sem ouvir, a sentir o que sentimos sem sentir, a pensar o que
sempre pensamos sem pensar, a dizer o que sempre dissemos sem dizer. Por isso, nela e por ela,
a realidade se revela como se jamais a tivéssemos visto, ouvido ou até mesmo dito, sentido ou
pensado. Eis por que o artista é o que passa pela experiência de nascer todo dia para a “eterna
novidade do mundo”.
CHAUÍ, M. Iniciação à Filosofia. São Paulo: Ática, 2010. p. 246.

12
Arte como Discurso

Quando defendemos que uma das maneiras primordiais de definirmos a arte se dá pelo
discurso, na verdade estamos especificando a noção de que o belo também é aquilo que se
define como tal, por meio do que afirmamos sobre cada obra específica. A fala do especialista,
portanto, legitima certos objetos como obras de arte dignas de atenção e afasta outros do
domínio das coisas que podem ser consideradas como dotadas de valor artístico. Tomemos
as artes plásticas, por exemplo. O Estudioso que se debruça sobre os tratados de história da
arte, que frequenta museus pelo mundo e tem contato com inúmeros objetos de valor artístico
incontestável, desenvolve também a condição, o discurso e o vocabulário necessário para nos
orientar na interpretação da arte, dotando-nos de parâmetros para também percebermos as
nuances e significações impregnadas nas obras de maneira específica.
Podemos acrescentar o fato de que se um desses estudiosos escolhe expor determinado
quadro ou escultura em uma galeria ou em um museu, o próprio fato dessa exposição já
reconhece aquele objeto como algo dotado de valor artístico, sendo, portanto, esteticamente
interessante e compartilhável. O que estamos querendo dizer é que a anuência do
especialista, por meio de seu discurso, legitimou a presença daquela obra em um território
que é primordialmente da arte. O que, nesse momento, seria o mesmo que dizer: “Estamos
afirmando que este objeto é uma obra de arte e merece ser observado com mais atenção”.
Assim, todo esse processo permite que a crítica tenha não só o poder de decidir o que é
artístico e o que não é. Além disso, os especialistas podem também inserir as obras e os artistas
em uma escala de excelência que segue parâmetros específicos, gerando a possibilidade de
classificarmos alguns objetos artísticos como obras-primas e alguns artistas como gênios.
Antigamente, o conceito de obra-prima estava ligado às corporações de ofício. Imaginemos
uma guilda de escultores, por exemplo. Sua oficina, além de ser o local que abriga a sua produção,
também era um ateliê em que se aprendia o ofício de esculpir, seguindo as orientações de um
mestre de ofício, alguém que dominava plenamente os meandros ligados a aquele determinado
tipo de criação técnica ou artística. Nesse lugar, o aprendiz deveria adquirir maestria e dominar
gradativamente todos os processos envolvidos no ato de produzir uma escultura. Sua primeira
obra, realizada com perfeição e maestria, era julgada pelos artistas que já dominavam aquela
técnica e era também considerada como sua obra-prima. Com o passar do tempo esse conceito
mudou, vindo a designar a obra mais perfeita ou a melhor obra de um artista.
Mas em que isso se relaciona ao papel no discurso na obra de arte? Simples e ao mesmo
tempo complexo. A ideia de obra-prima hoje não se relaciona diretamente com um saber fazer.
Atualmente, os critérios que os especialistas usam para determinar isso são menos precisos e
exigem uma percepção diversa daquela que os mestres de ofício usavam para julgar o trabalho
de seus pupilos.
Por outro lado, não podemos apenas alegar que o consenso é uma maneira de determinarmos
a grandeza de um artista. Como anteriormente apontamos, aquilo que hoje é considerado
grande e majestoso, amanhã pode tornar-se ultrapassado e simplório. Na música, por exemplo,
esse fenômeno ocorre com frequência. Determinados estilos e compositores são exaltados em
uma época, enquanto que logo depois são deixados de lado. Porém, esse aspecto relaciona-se
mais ao fato de encararmos a música prioritariamente como objeto de consumo. Entenderemos
isso melhor quando, em outro momento, tratarmos do conceito de indústria cultural.
13
Unidade: Arte: O que é isto ?

Dessa maneira, legitimar a arte parte de uma equação complexa que relaciona, entre outros
fatores, a qualidade do artista, a maestria da obra, o consenso da crítica, a anuência do público
e a prova do tempo. Esses fatores se interconectam, influenciando-se mutuamente, permitindo
que estabeleçamos parâmetros mínimos na apreciação da obra de arte. Entretanto, não podemos
afirmar que a competência dos especialistas e autoridades tragam segurança na definição do belo
artístico. Os estetas e críticos de arte, por muitas vezes, demonstram inconstância, contrariedades
e falta de objetividade em seu trabalho, trazendo mais confusão ao processo de quem quer se
iniciar no mundo da estética.
Todavia, é a partir desse caldeirão de influências que podemos nos aproximar dos grandes
mestres e aprender a traçar rumos que nos levam ao caráter múltiplo da arte, que consiste
em uma linguagem construída por meio da racionalidade, sem se prender aos rígidos
requisitos da lógica científica. O processo artístico, então, fala muito mais dos fenômenos e
sensações que a experiência artística nos provoca do que de certezas, regularidades e solidez
na interpretação das obras.
Na mesma linha desta discussão, talvez valha a pena lermos a feliz definição de Umberto Eco
para a arte, pautada sobre o seu conceito de Obra Aberta.
Tem-se discutido, de fato, em estética, sobre a “definitude” e a “abertura” de
uma obra de arte: e esses dois termos referem-se a uma situação fruitiva que
todos nós experimentamos e que frequentemente somos levados a definir:
isto é, uma obra de arte é um objeto produzido por um autor que organiza
uma seção de efeitos comunicativos de modo que cada possível fruidor possa
compreender (através do jogo de respostas à configuração de efeitos sentida
como estímulo pela sensibilidade e pela inteligência) a mencionada obra,
a forma originária imaginada pelo autor. Nesse sentido, o autor produz uma
forma acabada em si, desejando que a forma em questão seja compreendida
e fruída tal como a produziu; todavia, no ato de reação à teia dos estímulos e
de compreensão de suas relações, cada fruidor traz uma situação existencial
concreta, uma sensibilidade particularmente condicionada, uma determinada
cultura, gostos, tendências, preconceitos pessoais, de modo que a compreensão
da forma originária se verifica segundo uma determinada perspectiva individual.
No fundo, a forma torna-se esteticamente válida na medida em que pode ser
vista e compreendida segundo multíplices perspectivas, manifestando riqueza
de aspectos e ressonâncias, sem jamais deixar de ser ela própria (...). (ECO,
1991, p. 40).

A intenção do artista ainda permanece lá na obra, no entanto não se pode negar que o
espectador contribui grandemente com o seu olhar, enxergando significados onde o artista, nem
em sonho, teve o intuito de propiciar. A obra se torna aberta porque literalmente se abre para o
surgimento de novos significados a cada novo olhar. E, quanto mais formas de se olhá-la, mais
significados serão gestados.
O discurso competente pode nos aproximar da fruição das obras, entretanto é na regularidade
de nosso contato com a arte que podemos compreender os detalhes que permitem o seu
consumo, levando-nos a experiências estéticas de tirar o fôlego. Ao tomarmos, por exemplo,
um vinho de Bordeaux ou um espumante do novo mundo, somente compreenderemos a
complexidade de seus sabores e aromas se possuirmos um repertório extenso de sensações
causadas, além dos vinhos daquela região, por outros vinhos de outras cepas (uvas) e de

14
outras regiões. Da mesma maneira, a arte também necessita ser experimentada extensivamente
para que possamos traçar paralelos, percebermos referências e citações e, sobretudo, nos
aproximarmos daquela obra em sua totalidade. Talvez o termo totalidade não seja o mais
adequado nessa definição, visto que as grandes obras sempre permitiram que surgissem novas
interpretações e novos aspectos a se descobrir.

Formas e expressões da arte

Quando falamos de arte, é muito comum assumirmos a pintura como sua representante
mais ilustre. Porém, apesar de, historicamente, haverem se construído escalas e hierarquias
para artistas e manifestações artísticas, a arte se expressa de muitas maneiras e não podemos
dizer que uma expressão da arte é melhor ou mais apurada do que as outras. Pensemos na
dança, por exemplo. Há tanta dificuldade para se atingir o domínio técnico nas artes do corpo
como o há na arte pictórica. Além disso, a execução de uma peça de Alexander Scriabin ao
piano ainda exige anos e anos de muito estudo e dedicação. Desse modo, todas as expressões
da arte possuem campos de ação e de investigação próprios, denotando tanto esforço quanto
o necessário na obtenção do domínio técnico pertencente a aquela forma de vivenciar a arte.

Fazendo um grande esforço, podemos, de maneira geral, classificar as manifestações


artísticas nestes cinco grandes campos: as artes plásticas, as artes cênicas, as artes literárias, a
dança e a música.
No entanto, quando falamos de arte, geralmente nos esquecemos, por exemplo, de que
os escritores também são artistas e produzem obras de arte literárias. Só recentemente os
grafiteiros começaram a ser reconhecidos como artistas. Uma bailarina ainda hoje sofre para ser
verdadeiramente reconhecida em sua profissão. Além disso, alguns críticos ainda insistem em
considerar o cinema mais como um entretenimento do que como uma forma de arte.
Essas questões estão longe de ser solucionadas. Mas, refletirmos sobre elas é uma maneira de
fazermos essa discussão avançar, visto que podemos pensar na arte também como uma forma
de aprendizado e uma forma de nos relacionarmos com o mundo. Como vimos, a definição da
arte pode ser algo complexo e nebuloso sob alguns pontos de vista.
Em filosofia, a compreensão estética do belo e dos limites da arte passa por todas essas
expressões. São todas formas de criar. Porém, o processo criativo estabelece uma fronteira que
se dá mais pela atitude e pela conceituação do que por um esforço de definição rígido e preciso.
Portanto, não é demasiado afirmarmos que qualquer que seja a maneira de definirmos a arte e
suas expressões, chegaremos à conclusão que essas definições serão sempre sócio-históricas, visto
que se inserem em um campo de significação que se constrói culturalmente. As concepções de arte
de cada povo, de cada território, são estabelecidas segundo seus costumes, suas crenças e o seu
pensamento. Desse modo, é extremamente ilusório pensarmos que seja possível a uma definição
particular de arte abarcar todo o universo artístico, em todos os tempos e todos os espaços.

15
Unidade: Arte: O que é isto ?

Como vimos, cada cultura possui conceitos próprios para o que é arte. Dentro desse
grupo específico esses conceitos são absolutos e verossímeis. Todavia, se compararmos essas
concepções com as de outro grupo, elas se tornarão relativas. Toda definição de arte está
relacionada ao tempo e ao espaço vivenciado por grupos específicos, criadores e herdeiros
de cultura. Assim, há muitos modos de se especificar o que é arte. São definições mutantes e
abrangentes que, no diálogo entre si, nos aproximam daquilo que o homem contemporâneo
concebe como arte, deixando o campo aberto para que novas definições sejam inseridas nesse
grande arcabouço poético-teórico.

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Material Complementar

Textos
ECO, U. A Definição da Arte. Lisboa: Edições 70, 2008.
HAUSER, A. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes,1998.

Filmes
• Lixo Extraordinário, Direção de Lucy Walker. Reino Unido/Brasil, 2010 (Duração 90 min.).
• O Sorriso de Monalisa, Direção de Mike Newell, Estados unidos, 2003 (Duração 125 min.).

Sites
• Publicações gratuitas do Metropolitan Museum of Art (Museu Metropolitano de Arte), de
Nova York (Em inglês).
h t t p : / / w ww.me tmu se u m.org /researc h/m etpublic ations/titles- with- full- text -
online?searchtype=F

• Site da National Gallery of Art (Galeria de Arte Nacional), que disponibilizou para
download gratuito 35 mil imagens de obras de arte em alta resolução.
https://images.nga.gov/en/page/show_home_page.html

17
Unidade: Arte: O que é isto ?

Referências

ANDRÉS, M. H. Os Caminhos da Arte. Petrópolis: Vozes, 1977.

CAMPBELL, J. Isto és tu: redimensionando a metáfora religiosa. São Paulo: Landy, 2002.

CHAUÍ, M. Iniciação à Filosofia. São Paulo: Ática, 2010.

ECO, U. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 1991.

MACHADO, R. Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias.


São Paulo: DCL, 2004.

MERLEAU-PONTY, M. A Dúvida de Cézanne. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril


Cultural, 1984.

18
Anotações

19
Estética
Material Teórico
O belo, o gênio e o gosto no pensamento estético

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Esp. André Luís Pereira dos Santos

Revisão Textual:
Profª. Esp. Kelciane da Rocha Campos
O belo, o gênio e o gosto no
pensamento estético

·· A Estética Kantiana
·· Hegel e a Arte

Nesta unidade nos ateremos ao problema que, por muito tempo, foi
considerado um dos problemas centrais da estética: a questão do belo.
Para isso, iniciaremos a conversa a partir das reflexões do filósofo prussiano
Immanuel Kant, que tratou intensamente desse tema em seu livro Crítica da
Faculdade do Juízo.
O que é um juízo de gosto? Quais os padrões e limites da beleza?
Partindo dessas questões, abriremos um diálogo com conceitos fundamentais
para o estudo estético-filosófico da arte.

Lembremos que é de extrema importância que você leia as obras dos filósofos que estamos
estudando, visto que o que realizamos aqui é apenas um recorte de suas ideias principais.
A filosofia exige muito estudo e reflexões pessoais. Mais do que a sua participação nas aulas
e atividades, é necessário que você também dedique um tempo à necessária leitura dessas
obras, descobrindo novas ideias e aprimorando seu conhecimento filosófico.

5
Unidade: O belo, o gênio e o gosto no pensamento estético

Contextualização

Leia o texto a seguir e reflita sobre a experiência estética. Ela, enquanto dimensão participativa
do sensível, expressa o belo. Mas como poderemos, então, definir esse conceito?
“Todas as Belezas contêm, como todos os fenômenos possíveis, algo de eterno e algo de
transitório, de absoluto e de particular. A beleza absoluta e eterna não existe, ou melhor, ela
não é mais que uma abstração que desflora na superfície geral de diversas belezas. O elemento
particular de cada beleza provém das paixões e, como temos nossas paixões particulares, temos
nossa beleza”.
Baudelaire, C. Do heroísmo da vida moderna. In: Coelho, Teixeira. A modernidade
em Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 24.

Para Pensar
Reflita sobre suas concepções de beleza, partindo das seguintes indagações:
• O que é o belo?
• Será que o belo é o mesmo para cada um?
• Como podemos definir uma ideia universal de beleza?

6
A Estética Kantiana

Até aqui já traçamos um caminho considerável na


definição da estética e da arte. Entretanto, nesta
unidade gostaríamos de pensar esses conceitos a partir
de sua origem. Desse modo, é impossível pensar sobre
a filosofia da arte sem levar em consideração as
filosofias de Kant e de Hegel, que, de certa forma,
estabeleceram os parâmetros para toda reflexão que
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tenha como objeto o universo artístico.


O filósofo Immanuel Kant (1724 -1804) foi um
pensador que passou toda a sua vida na pequena
cidade de Königsberg, pertencente à Prússia Oriental.
Seu pensamento é um ponto de convergência entre
o pensamento que o antecede e as filosofias que
se delineariam durante os séculos XIX e XX. Seus
estudos sobre os limites da metafísica contribuíram
grandiosamente para a consolidação da filosofia crítica. Somam-se a isso seus trabalhos sobre
a conduta humana (na fundamentação da metafísica dos costumes) e seus estudos sobre a
estética, que se configuram na Crítica da Faculdade do Juízo.
É importante notar que Kant ultrapassa fronteiras ao extrapolar a mera análise racional
na estética. Sua investigação expande os limites do que pode ser conhecido por nosso Juízo,
envolvendo, além da razão, as emoções, a percepção sensível e a memória.
Até as reflexões kantianas, toda possibilidade de pensamento sobre o belo se reduzia geralmente
a interpretações que não se desvencilhavam do próprio objeto. Somente após as reflexões que Kant
realiza na Crítica da Faculdade do Juízo, é que se começa a pensar o belo como algo que é dotado
de algum tipo de subjetividade, extrapolando a relação que se estabelece com o próprio objeto.

Juízo de Gosto
Em Kant, o gosto pode ser considerado como a faculdade de julgar
esteticamente, dando ao indíviduo conceber as coisas e obras de arte como
belas ou não. Desse modo, o fundamento do prazer estético não encontra
satisfação na materialidade do objeto, mas nas sensações de agradabilidade
que surgem da sua contemplação. Assim, não existem finalidades subjetivas
que se pautem por interesses, nem finalidades objetivas pautadas pelo
bem. Esse juízo, na verdade, expressa uma finalidade sem fim, atendo-se
à representação formal do objeto, gerando a possibilidade de uma relação
harmônica entre as faculdades representativas e a sensação do prazer.

Portanto, pensar a universalização do juízo de gosto é eminentemente compreender que este


não tem um princípio objetivo, visto que o que está em jogo não é a determinação de um objeto.
Porém, sua necessidade é assegurada, por exemplo, pelo princípio do senso comum, isto é, em
um princípio que se aproxima mais do sentimento que do conceito, na definição do que seja o

7
Unidade: O belo, o gênio e o gosto no pensamento estético

aprazível. Entretanto, pressupondo-se a possibilidade de um assentimento universal em relação


ao que é belo, a necessidade, nesse juízo, assume, baseada em uma fundamentação pautada
pela sensibilidade, também a possibilidade de uma representação objetiva desse belo artístico.
Se pensarmos na tradição platônica, tanto a partir do próprio Platão quanto na linhagem que
leva até Plotino, a noção de belo é algo que está intrinsecamente relacionado ao mundo das
ideias. Tanto para um como para outro, o belo em si somente é possível nesse lugar, visto que
o mundo sensível é apenas uma cópia inacabada deste. Isso quer dizer que no mundo sensível,
corruptível por natureza, os seres apenas teriam participação em maiores ou menores graus
da ideia do belo em si. Nesse sentido, na tradição socrático-platônica, o belo era um atributo
objetivo, sem levar em conta a questão da subjetividade.
É a partir do pensamento kantiano que há uma mudança de perspectiva na compreensão do que
é estética, por meio de sua filosofia crítica. Apesar de podermos traçar paralelos entre o pensamento
estético de Kant e o da tradição platônica, para ele o objeto sensível quando considerado belo
se relaciona ao arquétipo que o garante como tal, por meio da faculdade do juízo, que, quando
atribuída pelo senso comum, recebe a denominação de gosto. Desse modo, para Kant, “gosto é a
faculdade-de-julgamento de um objeto ou de um modo-de-representação, por uma satisfação, ou
insatisfação, sem nenhum interesse. O objeto de uma tal satisfação chama-se belo” (KANT, 1980,
p. 215). Por inferência, podemos, então, chegar à seguinte definição para o belo: “O belo é aquilo
que, sem conceitos, é representado como um objeto de satisfação universal (ibidem)”.

Diálogo com o Autor


Quanto ao agradável, cada qual admite que: seu juízo, ele funda sobre um sentimento
privado e pelo qual ele diz, de seu objeto, que este lhe agrada, restringe-se, também,
meramente a sua pessoa. Por isso aceita de bom grado que, se ele diz: o vinho das ilhas
Canárias é agradável, um outro lhe corrija a expressão e lhe recorde que ele deve dizer: é
agradável para mim; e assim não somente no gosto da língua, do palato e da garganta, mas
também naquilo que pode ser agradável aos olhos e ouvidos de cada um. Para um a cor
violeta é suave e amável, para outros morta e extinta. Um gosta do som dos instrumentos de
sopro, o outro do dos instrumentos de cordas. Discutir sobre isso, com a intenção de reputar
como incorreto o juízo de outros, que é diferente do nosso, como se fosse logicamente
oposto a este, seria tolice; quanto ao agradável, vale pois a proposição fundamental: cada
qual tem seu próprio gosto (dos sentidos) (...).
Com o belo, o caso é inteiramente outro. Seria (exatamente ao inverso) ridículo se alguém,
que imaginasse algo sobre seu gosto, pensasse legitimar-se com isto: esse objeto (o edifício
que vemos, a roupa que aquele veste, o concerto que ouvimos, o poema que é apresentado
para julgamento) é belo para mim. Pois não deve denominá-lo belo, se apraz meramente a
ele. Atrativo e agrado, muita coisa pode ter para ele, com isso ninguém se preocupa; mas se
ele dá algo por belo, presume em todos essa mesma satisfação: julga, não meramente para
si, mas para todos, e fala então da beleza como se fosse uma propriedade das coisas. Diz,
por isso, a coisa é bela; e não conta com a concordância de outros em seu juízo da satisfação,
porque eventualmente os houvesse encontrado muitas vezes em concordância com o seu,
mas a exige deles. Censura-os, se julgam de outro modo, e nega-lhes o gosto, do qual, no
entanto, exige que eles o tenham; e nessa medida não se pode dizer: cada qual tem seu gosto
particular. Isso equivaleria a dizer: não há nenhum gosto, isto é, nenhum juízo estético que
pudesse ter pretensão legítima ao assentimento de todos. (KANT, 1980, p. 215-216).

8
A própria ideia de gosto não pode subsistir sem a ideia de razão, visto que podemos considerar
a própria subjetividade como uma forma de interpretar a realidade, que se relaciona aos olhares
de cada um de maneira particular. Dizer que algo é subjetivo, desse modo, é inseri-lo em uma
análise da realidade que é objetiva e passível de racionalização.
Imaginemos a seguinte situação: um homem entra em uma casa muito bem decorada e, ao
olhar para a parede em frente à porta de entrada, se depara com o quadro mais belo que já viu
em toda a sua vida. Como ele pode justificar a sua visão e garantir que outras pessoas tenham
a mesma percepção que ele?
Vamos hipoteticamente pensar que há pelo menos duas possibilidades de resposta para essa
pergunta. Na primeira, ele apenas diz: –– É belo porque é belo, ora! Não sei te explicar, mas
sinto que nunca vi nada tão bonito na minha vida. Na segunda, imaginenos que ele diga:
–– Ora, esse violeta das flores completa lindamente esse azul do céu. O artista combinou de
maneira exemplar todos esses pigmentos, gerando, de maneira quase que perfeita, a sensação
de uma deliciosa tarde no campo.
Podemos argumentar que no primeiro caso sua resposta não foi muito racional, porque se
baseou mais em sensações do que em argumentos. Já no segundo caso, sua resposta foi mais
reflexiva, portanto mais complexa e racionalizada.
Kant, entretanto, argumentaria que há racionalidade nas duas tentativas de explicação para a
percepção desse homem. Na primeira, apesar de não carregar argumentos muito precisos, há a
racionalização de uma percepção sensorial que produz uma sensação que se traduz em um juízo de
gosto, mesmo que isso houvesse ocorrido de maneira inconsciente. Isso implica que, ao julgarmos
um objeto artístico, a beleza se refere primordialmente ao prazer subjetivo que experimentamos ao
nos relacionarmos com ele do que com uma qualidade objetiva do próprio objeto.
Ao utilizarmos o termo “beleza,” estamos estabelecendo que o seu lugar não advém do
entendimento, tanto quanto conceito quanto como manifestação. Se em filosofia, até Kant,
podia-se pensar no belo como uma manifestação universalizável daquilo que é aprazível ou
prazeroso para os sentidos, sendo, portanto, passível de ser compartilhado e comunicado aos
outros, a partir de Kant há uma transposição da significação do belo, que vai do objeto para o
juízo que emitimos acerca dele.
Porém, essa definição não é tão simples assim. Como vimos no texto de Kant, quanto a
aquilo que é agradável podemos pensar em gostos particulares. Por exemplo, a sensação que
nos causa a areia da praia quando nela pisamos pode ser prazerosa para alguns e detestável
para outros. O mesmo se dá com as gotas da chuva caindo em uma barraca de acampamento.
Para uns, torna-se um momento romântico; para outros, torturante. Aquilo que agrada ao gosto
é particular e efêmero.
Mas quando dizemos que algo é belo, é como se clamássemos a concordância do outro.
O belo não pode ser belo apenas para mim, senão perderia o sentido. Algo que se pretenda belo
deve, portanto, ser passível de universalização.
Assim, ao reclamarmos a beleza para algo, é quase impossível não sermos tendenciosos,
pois, nesse instante, é como se pretendêssemos que nossa opinião seja universal, visto que a
emitimos quase com a pretensão de um juízo lógico.

9
Unidade: O belo, o gênio e o gosto no pensamento estético

Desse modo, para Kant, não há como concebermos um juízo estético se não compreendermos
que ele se insere na subjetividade pura. A originalidade de seu pensamento surge da afirmação
de que o juízo de gosto nasce do aprazível na reinvindicação de uma universalidade. Dizer que
determinada coisa é bela é, na verdade, mesmo que implicitamente, requerer que esse prazer
estético adquira validade universal para todos os seres racionais.
Se acompanhamos com atenção essa cadeia de raciocínios, fica fácil perceber que deve,
então, haver uma relação necessária na arte entre o processo de perceber o belo e o processo
de produzi-lo. “Para o julgamento de belos objetos, como tais, é requerido gosto; para a bela-
arte mesma, porém, isto é, a produção de tais objetos, é requerido gênio” (KANT, 1980, p.249).
Podemos considerar o gênio como o talento para a bela arte. Porém, discutimos até agora a
ideia de beleza sem fazer uma distinção que é fundamental no pensamento estético de Kant: a
distinção entre a beleza natural e a beleza artística.
“Uma beleza natural é uma bela coisa; a beleza artística é a bela representação de uma coisa” (idem).
Para julgar uma beleza natural, segundo Kant, não necessito de um conceito prévio daquilo que
o objeto deva ser. Não preciso me ater ao fim (à finalidade material) que gerou aquela forma. Já
no produto da arte, é necessário que intencionemos o que aquela coisa deva ser, não apenas olhar
para sua materialidade. Essa ideia de intencionalidade e causalidade reafirma o diálogo preciso
que o artista deve realizar no entrecruzamento entre imaginação, entendimento e realização.

Diálogo com o Autor


(...) Assim, consiste o gênio, propriamente, na proporção feliz, que nenhuma ciência pode
ensinar e nenhum estudo pode exercitar, de encontrar Idéias para um conceito dado, e por outro
lado, encontrar para estas a expressão, pela qual, a disposição mental subjetiva assim causada,
como acompanhamento de um conceito, possa ser comunicada a outros. Este último talento é
propriamente aquilo que se denomina espírito; pois para exprimir o indizível no estado-da-mente
quando de uma certa representação e torná-lo universalmente comunicável, que essa expressão
consista em linguagem, ou pintura, ou plástica, isso requer uma faculdade de apreender o jogo
rapidamente transitório da imaginação e unificá-lo em um conceito (Que justamente por isso é
original e inaugura uma nova regra, que não pode ser inferida de nenhum princípio ou exemplo
precedente), que se deixa comunicar sem a coação de regras (KANT, 1980, p. 254).

Portanto, não existe, para Kant, uma ideia que se remeta ao belo em si, como defendia
Platão. O belo consiste naquilo que nos agrada sem a necessidade de haver qualquer interesse
racional ou sensível nesse processo. Para julgarmos algo como belo, devemos assumir como
critério principal o prazer que ele desperta. Não há um conceito de belo, o que pressupõe que
também não pode existir um modelo de belo que sirva de padrão e nos oriente na formulação
dos juízos estéticos.
Desse modo, é na representação que fazemos dos objetos sensíveis que está presente o belo, é a
sensibilidade que o julga e o reconhece como tal. Aquele que vivencia a experiência subjetiva de sentir
prazer com determinado objeto artístico é que atribuirá a qualidade do belo a esse mesmo objeto.
Para Kant, então, o belo é produzido pela faculdade subjetiva de formular juízos estéticos,
que é comum a todos os seres humanos, garantindo a sua universalidade por meio de uma
fundamentação que reside na universalidade e na unidade do próprio espírito humano.

10
Hegel e a Arte
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831) foi um filósofo
que nasceu na cidade de Stuttgart na Alemanha, estudou no
seminário de Tübingen, e traçou as bases do movimento
filosófico conhecido como idealismo alemão, atraindo para si
muitos admiradores, como também muitos críticos e detratores.
Pensando-se acerca de suas reflexões sobre arte, veremos
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que, logo nas primeiras páginas de seu “Curso de Estética”, ele


procura delimitar o seu alcance, definindo-a como uma ciência
que trata do belo na arte. Porém, cabe aqui um esclarecimento.
Somente aquilo que é artístico pode ser pensado pela estética,
já que, como vimos, a arte é um fenômeno cultural. Certamente
existem coisas, situações e paisagens belas. Mas, quando
tratamos dessas coisas pressupomos um outro tipo de beleza.
Hegel afirma que se a reflexão estética tratasse do belo em geral, o nome mais apropriado para
ela seria kalistica (Belo em grego se diz Kálos). Ao contrário disso, a estética em seu significado
original seria uma ciência dos sentidos (aisthesis).
Como demonstrado também por Kant, as obras de arte devem ser compreendidas,
filosoficamente, mais pelas sensações que propiciam do que pelos atributos inerentes a elas
mesmas. Ou seja, perante o turbilhão de manifestações do belo que nos tocam e sensibilizam,
é impraticável produzir uma espécie de regulação dos princípios artísticos tanto quanto uma
definição objetiva que estabeleça o caráter desse belo. Afirmar isso é compreender que, para
Kant, a razão do sentimento estético se fundamenta no próprio juízo, não em uma categoria do
belo que se pretenda construir por meio do próprio objeto.
Hegel reconhece no pensamento estético de Kant um avanço em relação a outras teorias,
pois vê nele um reconhecimento da possibilidade de unificação entre espírito e natureza por
meio da arte. No entanto, ele recusa a teoria kantiana no sentido em que implicitamente esta
reconduza à separação desses elementos, pois se prende demasiadamente à contradição entre
sujeito e objeto.
Esta obra é dedicada à estética, quer dizer: à filosofia , à ciência do belo e,
mais precisamente, do belo artístico , pois dela se exclui o belo natural “ A
primeira frase das monumentais Lições sobre estética, de Hegel, proclama a
ruptura com Kant , para quem “não há nem pode haver nenhuma ciência do
belo”. Desprezando a etimologia, a estética (que era em Baumgarten, tal como
é em Kant, a ciência, possível ou impossível, do sensível) torna-se em Hegel a
filosofia do belo, e o belo já não é um julgamento de origem subjetiva mas uma
Idéia que existe na realidade, em obras de arte reais e históricas. “Inicialmente
, temos diante de nós uma única representação, a saber, que existem obras de
arte. (LACOSTE, 1986, p.42)

É importante notar que para Hegel, a razão se confunde com a própria história e com o
próprio tempo. Ou melhor, é ela que dá sentido ao tempo. Se pensarmos em toda tradição
idealista anterior a Hegel, podemos observar que há uma necessidade de manter o campo das
ideias dotado de certa perenidade e imutabilidade.
11
Unidade: O belo, o gênio e o gosto no pensamento estético

De fato, a Filosofia, preocupada em garantir a diferença entre a mera opinião


(“eu acho que”, “eu gosto de”, “eu não gosto de”) e a verdade (“eu penso
que”, “eu sei que”, “isto é assim porque”), considerou que as idéias só seriam
racionais e verdadeiras se fossem intemporais, perenes, eternas, as mesmas em
todo tempo e em todo lugar. Uma verdade que mudasse com o tempo ou com
os lugares seria mera opinião, seria enganosa, não seria verdade. A razão, sendo
a fonte e a condição da verdade, teria também que ser intemporal.
É essa intemporalidade atribuída à verdade e à razão que Hegel criticou em
toda a Filosofia anterior. (CHAUÍ, 2013, p.?)

Na verdade, a preocupação de Hegel é demonstrar que qualquer mudança ou transformação


na razão é uma obra racional de si mesma. Se pensarmos em conceitos importantes em sua
filosofia, como os de ideia, natureza e espírito, veremos que a ideia se constitui como o princípio
inteligível da realidade; a exteriorização da ideia no espaço e no tempo é a natureza, e o espírito
é o retorno da ideia para si mesma.
Em relação à arte, o espírito possui a intuição da sua essência absoluta, por meio de um objeto
sensível; isso quer dizer que podemos considerar o belo como a ideia concretizada sensivelmente.
Portanto, no instante artístico, o infinito é capturado e apreendido de maneira finita.
Desse modo, Hegel caminha na contramão das teorias que pressupõem o subjetivismo da
estética por meio do gosto, ao reafirmar a possibilidade de um reconhecimento científico e
objetivo do belo. Essa objetividade se torna possível porque o belo, para ele, consiste em um
momento essencial do desdobramento do Espírito absoluto, em que a ideia se expressa em uma
forma determinada. A obra de arte realiza o elo mediador entre o que se encontra efemeramente
dado na exterioridade e sua correlação no pensamento puro. Esse processo, para Hegel, acaba
por suprimir a contradição entre sujeito e objeto, interconectando-os.
Mas como isso se dá? Como esse conceito do belo é elaborado?
Partamos então de um primeira definição do Belo (natural): “O belo é a Ideia enquanto
unidade imediata do conceito e de sua realidade, isto é, ele é a ideia na medida em que essa
sua unidade está presente de modo imediato no aparecer sensível e real. A existência inicial da
ideia é, pois, a natureza e a primeira beleza é a beleza natural (HEGEL, 2001, p. 131).
Para compreendermos em plenitude essa definição, é importante que também entendamos
como Hegel define alguns termos fundamentais na interpretação de seu pensamento, tais como
conceito e ideia. Somente poderemos traçar uma interpretação precisa da noção de belo para
esse pensador se trilharmos esse caminho em busca dessas definições.
O termo conceito, por exemplo, é crucial na construção da estética hegeliana. A condição
de possibilidade de uma definição do belo em geral é construída por meio das decorrências
advindas desse termo. Qual é, então, o significado do termo conceito na filosofia de Hegel?
Devemos ter em mente que, para ele, os conceitos não consistem em representações abstratas
da realidade. Nem mesmo podemos considerá-los como sínteses ideais de uma universalidade.
Para Hegel, os conceitos possuem um caráter bastante complexo. Isto é, eles não estão
apenas ligados a um plano representativo que aponte apenas para aspectos cognitivos. Na
verdade, eles possuem um forte caráter ontológico, visto que a realidade é um desenvolvimento
necessário dos conceitos. Desse modo, estes possuem certa predominância sobre aquela.

12
“Em primeiro lugar, o conceito mergulha de tal modo imediatamente na objetividade que ele não
aparece propriamente enquanto unidade ideal subjetiva, mas antes, inanimado, transformou-se
totalmente em materialidade sensível” (ibid.).
Partindo-se desse pressuposto, o conceito pode ser entendido como uma potência que se
realiza efetivamente na própria realidade sem, no entanto, perder-se em seus próprios meandros.
Por extensão, surgem várias interpretações possíveis para ele: força interior, plano inicial, eu
cognoscente, ideal normativo, entre outros. O conceito conjuga, assim, várias determinações
por meio de uma unidade.
Para ilustrar essa noção, podemos pensar na imagem da planta contida na semente ou da
árvore contida no broto. A semente representaria o conceito e a planta estaria contida dentro
dela. Para que uma se transforme na outra, é necessário que a semente negue sua condição de
semente e se realize como planta. De maneira análoga, é dado potencialmente no interior do
próprio conceito todo o seu processo de autorrealização que se nega, partindo de um outro de
si para que haja a sua realização.
Entretanto, deixemos claro que não há um esgotamento do conceito nessa negação. Na
passagem que há entre o universal abstrato e a particularização, não há uma anulação total da
particularidade do conceito. Ela está nele contido por meio de sua forma universal, portanto
esse processo de negação de si também se apresenta, de certa forma, como unidade afirmativa.
Mais do que isso, como a particularização de uma realidade colocada pelo conceito a partir de
si mesmo. “Pois, ele já é em si, segundo sua própria natureza, esta unidade e por isso cria a
realidade a partir de si mesmo como sendo sua, na qual, por conseguinte, na medida em que
ela é o autodesenvolvimento dele, ele nada abdica de si, mas apenas se realiza a si mesmo nela,
e por isso permanece em unidade consigo em sua objetividade” (HEGEL, 2001, p.121).
Desse modo, o conceito é constituído como unidade de suas variadas determinações por
meio da realidade objetiva, apresentando-se como um infinito que abarca o finito, ou seja, se
realiza, mas não se esgota.
Podemos compreender o conceito como uma singularidade verdadeira, visto que constitui
um universal que se conjuga na unidade de seus atributos particulares.
Hegel ilustra essa imagem, por exemplo, com a interpretação do conceito de ouro. Esse
conceito possui uma série de determinações físicas e químicas, como cor, peso, densidade, entre
outras, que estabelecem uma unidade na conceituação daquilo que compreendemos como ouro.
É importante, assim, percebermos que o conceito é como uma totalização de caráter concreto. Isto
é, a realidade que aparece como fenômeno é particular, mas também consiste em uma abstração do
todo, ela é autodesenvolvimento do conceito e este é unificação concreta de suas particularidades.
Mas o que Hegel compreende pelo termo concreto? Ao utilizar essa denominação, nada
encontra de comum à noção de mundo sensível. Para ele, concreto é o que se une em diferentes
etapas de sua própria realização. O conceito, dessa maneira, é livre, pois não se limita pela
realidade objetiva, sendo esta o outro de si do conceito.
A força que rege o conceito na filosofia hegeliana é justamente essa característica que permite
que este não perca sua universalidade em uma objetividade que se dispersa, antes ele se revele
enquanto unidade por meio da própria realidade.

13
Unidade: O belo, o gênio e o gosto no pensamento estético

A ideia é o elemento que faz a ponte, como unidade do conceito, entre a realidade (particular
e objetiva) e a universalidade ideal.

Diálogo com o Autor


Falamos do belo enquanto ideia no mesmo sentido em que se fala do bem e do verdadeiro
como ideia, a saber, no sentido de que a ideia é pura e simplesmente substancial e universal,
a matéria absoluta - e não certamente sensível -, a estabilidade do mundo. Compreendida
de modo mais determinado, porém, como inclusive já vimos, a ideia não é apenas
substância e universalidade, mas justamente a união do conceito e de sua realidade, o
conceito produzido no seio de sua objetividade enquanto conceito (HEGEL, 2001, p. 155).

Levando isso em consideração, Hegel conclui que a verdade se expressa na ideia, pois ela não
se baseia na concordância entre sujeito e objeto, visto que essas duas categorias são abstrações
parciais do verdadeiro real que se expressa no conceito, algo que é infinito e abarca o particular,
estabelecendo a realidade como autodesenvolvimento de si. O verdadeiro, assim, é aquilo que
se encontra em harmonia e consonância com esse conceito. Daí resulta que a ideia é a condição
de manifestação da verdade. Tudo o que existe somente é verdadeiro porque consiste em uma
efetivação do conceito.
Retomemos, então, a ideia do belo. Dialoguemos uma vez mais com Hegel.

Diálogo com o Autor

Denominamos o belo de Idéia do belo. Isso deve ser entendido no sentido de que o próprio
belo deve ser tomado como Idéia e, na verdade, como Idéia numa Forma determinada,
enquanto ideal. A Idéia em geral nada mais é, pois, do que o conceito, a realidade do conceito
e a unidade de ambos. Pois o conceito enquanto tal ainda não é a Idéia, embora muitas vezes
conceito e Idéia sejam empregados promiscuamente; apenas o conceito presente em sua
realidade e posto em unidade com ele é a Idéia (HEGEL, 2001, p.121).

O belo, dessa maneira, define-se como o aspecto da ideia que aparece no sensível. Podemos
concluir, então, que a verdade e a beleza, nessa concepção se coincidem. A beleza, assim, é o
resultado da relação entre a forma sensível e o conceito exposto por ela.
Como podemos, então, compreender as diferentes manifestações da arte nesse processo?
As várias manifestações e correntes artísticas corresponderiam aos muitos modos de se
conceber a ideia e às muitas modalidades com as quais incorporamos o conceito à realidade. Em
seu curso de Estética, Hegel traça um caminho que distingue três dessas modalidades relativas
a três formas fundamentais de se conceber a arte, a saber: a arte simbólica, a arte clássica e
a arte romântica. Segundo Hegel, se investigarmos com afinco a história da arte, veremos
muito claramente que a arte simbólica está em busca do ideal, a clássica consegue atingi-lo e a
romântica consegue ultrapassá-lo.

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Ainda, na análise de Hegel, a arte evolui como reprodução da dialética da ideia infinita
que expressa sua negação no finito, em um processo contínuo que nega novamente a própria
negação em uma síntese entre o finito e o infinito. O que podemos destacar nesse processo é
uma correspondência entre os graus de interiorização do espírito, em uma escala crescente, que
vai da Arquitetura, arte do espaço vazio, até a poesia, arte puramente subjetiva e interior.

Explore
No volume Friedrich Hegel da Coleção Educadores, há uma pequena coletânea de textos
que tratam da questão da Arte (pp. 96-100) em Hegel. A leitura desse material certamente
ajudará na compreensão de alguns conceitos expostos nesta unidade, fornecendo novos
subsídios para a sua formação.
Pleines, Jürgen-Eckardt. Friedrich Hegel (Coleção Educadores) - Sílvio Rosa Filho (org.).
Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. (pp. 96-100). Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me4671.pdf.

Conclusão

Podemos perceber que o pensamento estético, tanto o de Kant quanto o de Hegel, baseia-
se em reflexões complexas que se misturam às concepções filosóficas de cada pensador. É
impossível compreendermos plenamente a filosofia da arte, seja de quem for, se não partimos
dos pressupostos básicos em que cada filósofo fundamenta suas ideias.
Desse modo, é importante lembrar que esse estudo não deve parar por aqui. Reforçamos
o aviso de que nossas reflexões são apenas um recorte teórico-interpretativo de um processo
reflexivo muito maior. Busque ler os textos originais dos autores citados e construir suas próprias
interpretações. Existe uma série de comentadores e de livros de apoio que podem lhe ajudar
nesta jornada. Pois como diz uma célebre afirmação de Kant:

A filosofia é uma simples ideia de uma ciência possível, que em parte alguma
é dada in concreto, mas de que procuramos aproximar-nos por diferentes
caminhos, até que se tenha descoberto o único atalho que aí conduz, obstruído
pela sensibilidade, e se consiga, tanto quanto ao homem é permitido, tornar a
cópia, até agora falhada, semelhante ao modelo. Até então não se pode aprender
nenhuma filosofia; pois onde está ela? Quem a possui? Por que caracteres se
pode conhecer? Pode-se apenas aprender a filosofar, isto é, a exercer o talento
da razão na aplicação dos seus princípios gerais em certas tentativas que se
apresentam, mas sempre com a reserva do direito que a razão tem de procurar
esses próprios princípios nas suas fontes e confirmá-los ou rejeitá-los.
(KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2001. p. 661).

15
Unidade: O belo, o gênio e o gosto no pensamento estético

Material Complementar

Textos
• Deleuze, G. A Idéia de Gênese na Estética de Kant. Revue d’esthétique, v. XVI, nº 2,
abr-jun, Paris, PUF, 1963, pp. 113-136. Disponível em <http://pt.scribd.com/doc/7253398/
Gilles-Deleuze-a-Ideia-de-genese-Na-Estetica-de-Kant>.
• BRAS, G. Hegel e a Arte: uma apresentação à Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1990.
• HYPOLLITE, J. Gênese e estrutura da fenomenologia do espírito de Hegel. São
Paulo: Discurso Editorial, 1999.

Sites
• Sociedade Kant
http://www.sociedadekant.org/

• Cadernos de Filosofia Alemã


http://ficem.fflch.usp.br/node/9

16
Referências

• DUFRENNE, M. Estética e Filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2002.

• HEGEL, G. W. Cursos de Estética. Vol. I, II e III. São Paulo: Edusp, 2001.

• KANT, I. Textos selecionados. Seleção de Textos de Marilena de Souza Chauí; Traduções


de Tania Maria Bernkopf e outros. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

• ________. Crítica da Faculdade do Juízo. Forense Universitária (edição Digital) formato ePub.

• LACOSTE, J. A Filosofia da Arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

17
Unidade: O belo, o gênio e o gosto no pensamento estético

Anotações

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Estética
Material Teórico
Algumas possíveis funções da arte: a necessidade da arte

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Esp. André Luís Pereira dos Santos

Revisão Textual:
Profa. Esp. Kelciane da Rocha Campos.
Algumas possíveis funções da arte: a
necessidade da arte

·· Introdução
·· Apolíneo x dionisíaco
·· Arte e necessidade
·· A arte e suas funções
·· A arte e o sagrado
·· A arte como ato político

Nesta unidade, discutiremos alguns aspectos ligados ao fato de não


podermos dissociar a história da humanidade de sua produção artística.
A arte acompanha o ser humano desde tempos remotos, desempenhando
várias funções ao longo da história. Quais são algumas delas e como elas
são extremamente importantes em nosso cotidiano são questões que
buscaremos discutir a partir de agora.

Nesta unidade, partimos de uma reflexão sobre a obra de Kandinsky. Essa escolha de recorrer
a obras de grandes artistas nos ajuda a compreender os caminhos da arte. Esse contato com
o trabalho de artistas consagrados ajuda a preparar o olhar para perceber as nuances das
diversas manifestações artísticas.
Além disso, recomendamos que você leia, ao menos, os primeiros capítulos do Nascimento
da tragédia, de Nietzche, buscando um aprofundamento em seus conceitos, que, de certa
forma, delineiam todo processo de criação e de fruição artística.
Por fim, busque pesquisar outras formas de se compreender e utilizar a arte, ampliando o
seu olhar sobre o tema.

5
Unidade: Algumas possíveis funções da arte: a necessidade da arte

Contextualização

Leia o texto abaixo e reflita sobre os questionamentos propostos.


A arte e nada mais que a arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, grande aliciadora da
vida, o grande estimulante da vida.
A arte como única força superior contraposta a toda vontade de negação da vida, como o
anticristão, antibudista, antiniilista ‘par excellence’.
A arte como a redenção do que conhece – daquele que vê o caráter terrível e problemático
da existência, que quer vê-lo, do conhecedor trágico.
A arte como a redenção do que age – daquele que não somente vê o caráter terrível e
problemático da existência, mas o vive, quer vivê-lo, do guerreiro trágico, do herói.
A arte como a redenção do que sofre – como via de acesso a estados onde o sofrimento é
querido, transfigurado, divinizado, onde o sofrimento é uma forma de grande delícia.

(Nietzsche, F. Vontade de potência § 853. In Obras incompletas. Coleção Os Pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1978, p. 28.)

.
Para Pensar
• Nietzsche classifica a arte como “o grande estimulante da vida”. Que implicações
estão envolvidas nessa afirmação?
• Encarar o destino e as vicissitudes da vida é uma forma de dotá-la de significado?
• Será que o ser humano necessita mesmo da arte? Que sentidos ela pode assumir
em nossas vidas?

6
Introdução

As primeiras cores que me causaram grande impressão foram o verde-claro e


cheio de seiva, o branco, o vermelho-carmim, o preto e o amarelo-ocre. Essas
lembranças remontam a meus três anos. Vi essas cores em diferentes objetos
que hoje não visualizo tão claramente quanto as próprias cores.
Kandinsky

A experiência da arte é avassaladora para aqueles que dela escolheram se servir. Certamente,
alguns foram por ela escolhidos. As palavras de Kandinsky nos levam a iniciar essa discussão
nos aprofundando nessas sensações. Para ele, a cor é fundamental, talvez até mais que os
objetos que as apresentam. As cores comunicam: quentes, frias, acolhedoras ou insuportáveis.
Representam estados de alma e possibilidades de relações entre as pessoas e as coisas. Mas, por
um paradoxo que se reencontrará em Klee e Kandinsky, o quadro, pelo próprio fato de deixar
de imitar a natureza a fim de exprimir uma necessidade interior, adquire certa autonomia, torna-
se acima de tudo uma superfície colorida (LACOSTE, 1986, p.57).
Fonte: Wassily Kandinsky/Wikiart.org

A abstração presente no seu quadro “Amarelo, Vermelho, Azul” nos leva a uma experiência
de fruição e arrebatamento que parte da condição íntima que o artista nos comunica por meio
das cores. Talvez nos intriguem as significações dessa composição, no entanto algo nela clama o
nosso olhar para a reflexão, conduzindo-nos por diversas sensações e emoções quando olhamos
para ela.

Wassily Kandinsky foi um pintor Russo, nascido em 1866. Viveu na França e na


Alemanha, onde lecionou na Bauhaus, importante escola de artes e arquitetura,
sendo um dos precursores do abstracionismo nas artes visuais. Seu quadro
Amarelo-Vermelho-Azul foi criado em 1925. O uso das cores primárias e de figuras
geométricas como círculos, triângulos e quadrados, além de outras formas abstratas
nos leva a uma experiência de profunda reflexão. Se dividirmos o quadro em duas
partes, veremos que de um lado predominam amarelos e vermelhos sobre um fundo
azul. Cores quentes sobre uma cor fria. Porém do outro lado, a situação se inverte:
predominam cores frias sobre um fundo quente. O retângulo vermelho, quase
disposto no centro, chama o olhar e o direciona a passear pelo quadro. É como se
tivéssemos portas que nos levassem entre a regularidade do dia e as incertezas da
noite, em um movimento de vai e vem.
7
Unidade: Algumas possíveis funções da arte: a necessidade da arte

Essa contraposição de opostos é uma característica que nos ajudará a estabelecer e discutir
alguns conceitos. A escolha de iniciarmos essa unidade com essa pequena reflexão sobre
Kandinsky leva-nos a algumas indagações: que funções podemos atribuir à arte? Qual é a
necessidade da arte em nossas vidas? Podemos encontrar alguma utilidade ou tirar algum
proveito do fato de nos envolvermos com as artes?

Apolíneo x dionisíaco

É possível que você já tenha ouvido falar de Nietzsche e da complexidade de seu pensamento.
Gostaríamos de introduzir dois conceitos que se tornaram célebres em uma de suas obras de
juventude, O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo (1992, p.27): o apolíneo e
o dionisíaco.

Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não apenas à


intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão [Anschauung] de que o
contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do
dionisíaco, da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos
sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas reconciliações (...).

É por meio dessa conceituação que Nietzsche começa a traçar os liames daquilo que ele
denominou como as condições trágicas do ser humano. Não é por acaso que ele escolhe
os dois deuses gregos ligados à arte para representar essa dicotomia de origens e objetivos,
presente de maneira natural no homem. São as figuras de Apolo e Dionísio que dão forma a
essa reflexão. Para ele, o povo grego representa o ímpeto de encarar as vicissitudes e desafios
do mundo sem recorrer a desculpas moralistas e posturas derrotistas escondidas sobre o traço
da humildade. Além disso, segundo ele, foram os gregos que demonstraram domar com
maestria as irregularidades dos impulsos inerentes à espécie humana. Desse modo, abre-se uma
contraposição representada por esses dois deuses, em que Apolo representaria a regularidade,
a ponderação, a pureza, a moral, isto é, a ordem presente naquilo que constrói. Enquanto que
Dionísio, o deus da música, representava a desmedida, o excesso, a orgia, o desejo, ou seja,
aquilo que não se conforma, a arte não-figurada. Essas duas tendências humanas, segundo
Nietzsche, por vezes caminham harmonicamente, em outras nutrem a dissensão e a discórdia. A
relação constante entre o apolíneo e o dionisíaco é o que gera a tragédia grega, em que haveria
uma composição entre a alma (na figura de Apolo) e o corpo (na figura de Dionísio). Não há
possibilidade de que uma arte possa ser completamente apolínea ou completamente dionisíaca.
Toda criação que o ser humano realiza geralmente está pautada por esses dois princípios, de
maneira que eles se completem. Do dionisíaco provém o princípio da criatividade, o ímpeto que
gera o instante criador. Enquanto que do apolíneo advém a regularidade, a harmonia e a ordem
necessárias para a produção de uma obra de arte.

Assim, o pensamento do Jovem Nietzsche pressupõe que o homem não goza naturalmente de
uma boa índole. A ciência e a racionalidade também não garantiriam que o homem realizasse

8
seu destino de maneira ética. A arte, em seu pensamento, desempenharia o papel de restaurar a
cultura trágica, sobretudo por meio da música de Richard Wagner, segundo ele, expressão própria
do renascimento da tragédia grega. Para ele, os valores humanos, assim como a razão, estão em
crise. O que levaria à necessidade de superá-los, através da contestação de seu caráter absoluto.

Diálogo com o Autor


Nietzsche introduz, desde logo na estética, dois princípios a que dá o nome de dois
deuses gregos. Apolo e Dionísio encarnam, com efeito, duas “pulsões artísticas da
natureza”. Cada uma dessas pulsões manifesta-se na vida humana por meio de estados psicológicos.
O sonho manifesta e satisfaz a pulsão apolínea, e a embriaguez a pulsão dionisíaca. Nietzsche,
que fala aqui a linguagem de Schopenhauer, descobre na contemplação serena do sonhador que
deixou de lutar e de querer, uma confiança inquebrantável no principium individuationis: Apolo
será, portanto, o deus da individualidade, da medida, da consciência. “Conhece-te a ti mesmo” e
“Nada de excesso” não são o anverso e o reverso de uma mesma sabedoria deífica? A embriaguez
dionisíaca, pelo contrário, rasga esse “véu de Maya” da individualidade e essa ilusão da consciência,
para celebrar selvaticamente a reconciliação do homem e da natureza: “O homem já não é artista,
tornou-se obra de arte: o que se revela aqui no estremecimento da embriaguez é, em vista da
suprema voluptuosidade e do apaziguamento do Uno originário, o poder artista da natureza inteira”
(LACOSTE, 1986, p. 67).

Arte e necessidade

Possivelmente, você deve estar se perguntando: quais as relações entre o que acabamos
de discutir e a necessidade que o ser humano historicamente demonstra nutrir em relação à
arte? Não queremos simplesmente assumir interpretações dicotômicas ou maniqueístas em
relação à arte. No entanto, esse embate, entre a embriaguez de Dionísio e a lucidez de Apolo,
perpassa a trajetória do homem sobre a terra de maneira constante. Quantas vezes não temos
um desequilíbrio existencial que nos leva a querer produzir e refletir sobre o que está ocorrendo
conosco? Um devaneio que nos intriga e nos coloca em movimento. Porém, se não somos ao
mesmo tempo tomados pela mão harmônica de Apolo, que nos guia pela técnica e pelo ofício,
nada conseguimos realizar.

Esse processo de obtenção e perda que vem da inspiração aponta também para outra
característica fundamental da arte, que muitas vezes legamos a um segundo plano: somos seres
fadados à morte, pequenos rastros na existência do planeta, inevitavelmente condicionados a
enfrentar o nosso fim. Essa pode parecer uma definição demasiadamente trágica. Mas quando
adquirimos essa consciência da finitude, começamos uma busca incessante para dar significado

9
Unidade: Algumas possíveis funções da arte: a necessidade da arte

ao fato de estarmos aqui cerceados por nossa própria liberdade. Buscamos, assim, produzir e
beber gotas de imortalidade. Se não podemos nos tornar biologicamente imortais, tornamo-nos
imortais por nossas obras.

Diálogo com o Autor


Uma psicanálise das artes plásticas consideraria talvez a prática do embalsamamento
como um fato fundamental de sua gênese. Na origem da pintura e da escultura,
descobriria o “complexo” da múmia. A religião egípcia, toda ela orientada contra a morte, subordinava
a sobrevivência à perenidade material do corpo. Com isso, satisfazia uma necessidade fundamental
da psicologia humana: a defesa contra o tempo. A morte não é senão a vitória do tempo. Fixar
artificialmente as aparências carnais do ser é salvá-lo da correnteza da duração: aprumá-lo para a
vida. (...) Assim se revela, a partir das suas origens religiosas, a função primordial da estatuária: salvar
o ser pela aparência. E provavelmente pode-se considerar um outro aspecto do mesmo projeto,
tomado na sua modalidade ativa, o urso de argila crivado de flechas da caverna pré-histórica,
substituto mágico, identificado à fera viva, como um voto ao êxito da caçada.
É ponto pacífico que a evolução paralela da arte e da civilização destituiu as artes plásticas de
suas funções mágicas (Luís XIV não se faz embalsamar: contenta-se com o seu retrato, pintado por
Lebrun). Mas esta evolução tudo o que conseguiu foi sublimar, pela via de um pensamento lógico,
esta necessidade incoercível de exorcizar o tempo. Não se acredita mais na identidade ontológica,
de modelo e retrato, porém se admite que este nos ajuda a recordar aquele e, portanto, a salvá-lo de
uma segunda morte espiritual (BAZIN, 1991, p.19).

Quando um artista consegue captar algo incrivelmente original e avassaladoramente


significativo, mesmo que ele não queira, essa obra inevitavelmente o ultrapassa. Perdura para
além de quem a criou e dialoga com aqueles que estão no futuro, assim como com aqueles que
estão no passado e também no presente. Isto é, transmite uma mensagem que, por natureza, é
universal e atemporal.
Apenas os artistas, especialmente os do teatro, dotaram os homens de olhos
e ouvidos para ver e ouvir, com algum prazer, o que cada um é, o que cada
um experimenta e o que quer; apenas eles nos ensinaram a estimar o herói
escondido em todos os seres cotidianos, e também a arte de olhar a si mesmo
como herói, a distância e como que simplificado e transfigurado – a arte de se
“pôr em cena” para si mesmo (NIETZSCHE, 2001, p. 106).

Essas experiências que as artes nos proporcionam servem também para que nossa existência
seja dotada de sentido. O ser humano é o único ser que produz arte por “vaidade” estética, mas
que também constrói hipoteticamente a obra em sua mente antes de realizá-la no sensível, que
deliberadamente se enfeita para atrair a atenção dos outros e para tornar o seu ambiente mais
aconchegante e hospitaleiro.
No entanto, somente aqueles que dominam certas técnicas, macetes e conhecimentos podem
produzir arte. Podem captar percepções desconexas e sensações difusas, reordenando-as em
novas experiências de fruição e reflexão. O artista, desse modo, é um sabedor que sintetiza
ideias e conceitos flutuantes em experiências concretas geradoras de sentimentos e reflexões:
contos, poemas, canções, afrescos, telas, esculturas, entre muitas outras coisas. Essa constelação
de vivências, condensadas na obra, provoca novas pessoas a sentir e compartilhar novas

10
sensações de prazer, satisfação ou repulsa. Desse modo, quando se compreende o valor do
processo artístico, não há como ficarmos isentos mediante uma manifestação artística. A arte
nos completa, nos sacia, nos ensina, nos questiona e nos transforma.

Fonte: The Joy of Life, Henri Matisse, 1906

Talvez agora o título dessa unidade comece a fazer sentido para você. Ele foi inspirado no
título de um livro do poeta, escritor e filósofo austríaco Ernst Fischer, A necessidade da arte.
Leiamos um trecho de suas reflexões:
Para conseguir ser um artista, é necessário dominar, controlar e transformar a experiência
em memória, a memória em expressão, a matéria em forma. A emoção para um artista não é
tudo; ele precisa também saber tratá-la, transmiti-la, precisa conhecer todas as regras, técnicas,
recursos, formas e convenções com que a natureza – esta provocadora – pode ser dominada e
sujeitada à concentração da arte. A paixão que consome o diletante serve ao verdadeiro artista;
o artista não é possuído pela besta-fera, mas doma-a (FISCHER, 1987, p. 14).
Será que não podemos vislumbrar aqui um pouco daquilo que Nietzsche nos concede ao
perceber que forças contrárias concorrem em nossos processos de criação e apreciação da arte?
Para ser artista, é preciso dar forma à energia latente que resta do encontro da memória com
o ímpeto da criação. Essa experiência, dionisíaca por natureza, só adquire sentido quando o
traço apolíneo permite que as mãos produzam a síntese, o produto concreto dessa experiência.
Isso aponta para um processo que nos une, que nos arranca da individualidade criadora e nos
leva para a compreensão de que toda criação artística somente toma sentido se pressupor que
é necessária a existência do outro para relacionar-se com ela.
Se fosse da natureza do homem o não ser mais do que um indivíduo, tal desejo
seria absurdo e incompreensível, porque então como indivíduo ele já seria um
todo pleno, já seria tudo o que era capaz de ser. O desejo do homem de se
desenvolver e completar indica que ele é mais do que um indivíduo. Sente
que só pode atingir a plenitude de se apoderar das experiências alheias que
potencialmente lhe concernem, que poderiam ser dele. E o que um homem
sente como potencialmente seu inclui tudo aquilo de que a humanidade, como
um todo, é capaz. A arte é o meio indispensável para essa união do indivíduo
com o todo; reflete a infinita capacidade humana para a associação, para a
circulação de experiências e ideias (Ibid., p. 13).

Portanto podemos, por meio dessas reflexões, perceber que a relação do ser humano com
a arte é extremamente necessária. Mas, como vimos, a arte não se conjuga como um processo
singular. As manifestações artísticas se definem de muitas maneiras e muitas vezes se contradizem.
Isso nos leva a pensar que, em decorrência disso, a arte pode assumir inúmeras funções. Por
11
Unidade: Algumas possíveis funções da arte: a necessidade da arte

uma escolha didática, discutiremos apenas três delas. Porém, você pode discutir, encontrar e
formular hipoteticamente muitas outras. Faça isso como recurso de formação e aprendizado.
Verá que esse processo de estudo pode ser muito frutífero.

A arte e suas funções

Arte e prazer: o entretenimento


A relação das pessoas com a arte se dá de múltiplas maneiras. Alguns possuem uma
necessidade tão profunda de estar em contato com a arte que transformam sua vida em uma
jornada estética em busca do belo. Entretanto, para outros, a arte é apenas um belo passatempo.
Podemos dizer que as duas posturas são válidas. Um filme, por exemplo, nunca toca duas
pessoas da mesma maneira. Isso se dá porque os olhares também são diversos, visto que vêm
de pessoas com gostos, manias e histórias de vida diferentes. O nosso referencial artístico muda
conforme entramos em contato com diversos tipos e concepções estéticas.
No entanto, em alguns momentos, certos tipos de obras de arte, ainda que reconhecidas como
tal, são concebidas apenas como uma forma de entretenimento. O que isso quer dizer? Uma das
funções da arte também é entreter-nos. Como assim? Isso mesmo. Tornar as dificuldades dessa
vida mais leves e suportáveis. Nessa linha de pensamento, podemos inserir as comédias, tanto
as teatrais como as cinematográficas. Um filme de Charles Chaplin certamente nos leva a sorrir,
mas não podemos negar o caráter poético de suas obras e de suas imagens. A estética criada
por Chaplin no cinema é profundamente artística e ao mesmo tempo nos entretém. O mesmo
podemos dizer de Woody Allen ou de Frederico Fellini.

Pense
Leia o texto abaixo e reflita sobre a experiência de transporte e suspensão temporal que o
cinema realiza em nós.
O que um bom filme é capaz de fazer? Um bom filme nos coloca no calor de uma história feita
a distância, nos jogando secretamente em sua comicidade, em seu terror ou na sua mais densa
normalidade. Nos faz sair do lugar sem nos mover, nos emprestando experiências e, como se num
exercício iniciático, nos envolvendo com ritos que jamais suporíamos. É como se suas imagens
encarnassem uma soberania momentânea e, saltando da tela para a imaginação, levasse o espectador
a subjetivar um mundo-outro, que vai involuntariamente afastá-lo de seu lugar e aproximá-lo – se
ocorrer receptividade – de um outro de si mesmo. E nesse momento tudo cessa e a mais profunda
cerimônia aparece para situar seu jogo e todas as suas expressões sobre a celebração de quem
escolheu viver esse eclipse do real. (OLIVEIRA, 2011, p. 142).

É justamente a possibilidade de vivermos novas experiências que desponta quando pensamos


no potencial da arte enquanto entretenimento. Sobre o olhar mais aprofundado, veremos que
a arte nunca é somente criada para entreter. Mesmo que esse seja o objetivo inicial, sempre
encontraremos novos motivos agregados a este: emocionar, justificar ou apresentar uma visão

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de mundo, além de muitos outros. Se pensarmos no teatro clássico, por exemplo, essa ideia
de que há sempre muito mais por trás de uma suposta ingenuidade na arte do entretenimento
aparece com mais evidência.
A palavra teatro vem do grego e significa “lugar de onde se vê”1 Esse conceito, a uma
primeira vista, pode sugerir que o apreciar teatral trata-se de uma atividade por natureza passiva.
A própria ideia de espectador também sugere uma acentuação dessa visão. O espectador é
aquele que observa2 . Alguém que de fora enxerga algo que acontece em outro plano, o palco,
configurando-se apenas como testemunha de algo que acontece à frente de seus olhos em que
ele mesmo não tem participação efetiva.
Porém, há no fazer teatral algo de agregador e orgânico que só se dá na junção do ator e da
plateia, mesmo que em alguns momentos essas figuras se confundam. Se pensarmos em uma
perspectiva aristotélica, podemos especificar que tipo de passividade há no olhar dessa espécie
de espectador. Aristóteles, em sua poética, realiza uma análise das formas textuais gregas,
principalmente a tragédia, a partir da ideia de imitação e de catarse.
É pois a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa
extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos
distribuídas pelas diversas partes do drama, imitação que se efetua não por
narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o “terror e a piedade, tem por
efeito a purificação (catarse) dessas emoções” (Aristóteles, 1987, p. 205).

O teatro seria uma forma de colocar o espectador em identificação com o protagonista,


sofrendo suas angústias e vivenciando suas alegrias. É como se momentaneamente houvesse
uma suspensão do juízo, como se naquele momento não existisse outra realidade senão aquela
que se apresenta no instante em que se dá o espetáculo. As dores e as angústias que o espectador
trouxesse consigo seriam substituídas pelo sentimento causado pelo desfecho no fado dos
protagonistas. Assim, o que observa terminaria o espetáculo purgado de suas angústias. Esse
processo seria conhecido como catarse. O dicionário Houaiss define catarse como a “descarga
de desordens emocionais ou afetos desmedidos a partir da experiência estética oferecida pelo
teatro, música e poesia” (Houaiss, 2007). Também encontramos uma derivação no verbete
que diz “purificação do espírito do espectador através da purgação de suas paixões, esp. dos
sentimentos de terror ou de piedade vivenciados na contemplação do espetáculo trágico” (Id.
Ibid.). Haveria uma suplantação do que o oprime pelo enredo vivenciado na tragédia. Desse
modo, o espectador é levado a um certo modo de pensar regido por uma ideologia que pertence
a uma classe dominante. “A comédia é (...) imitação de homens inferiores” (Aristóteles, 1987,
p. 205), assim como a tragédia é uma imitação de homens superiores, de atitudes elevadas. Há
uma imitação dos ideais aristocráticos, criando um desligamento da realidade que o espectador
vive, remetendo-o por instantes a uma realidade que não lhe pertence. Excetuando-se as
hierarquias aristocráticas presentes na estruturação da sociedade grega, o sentimento da catarse
ainda permanece no processo artístico.
É justamente essa experiência que ainda vivenciamos ao assistirmos telenovelas ou ao
ouvirmos aquela música de que gostamos tanto. Portanto, sob esses aspectos, vivenciar a arte
também é vivenciar uma experiência de transformação interior, pois ao nos entregarmos um
pouco para a obra que estamos apreciando, também nos colocamos disponíveis para receber
outras influências e lições advindas dessa conexão artística.

1 Do grego, théatron ou ‘lugar onde se assiste a um espetáculo, espectadores, o próprio espetáculo’ (< gr. théa ‘espetáculo, vista, visão’
+ o suf. -tron ‘instrumento’, donde, lit., ‘máquina de espetáculo’). Cf. Dicionário eletrônico Houaiss –Versão 2.0a – abril de 2007.
2 Do lat. Spectátor óris ‘espectador, contemplador, observador’; ver espec-; f.hist. 1789 spectador. Id. Ibidem.

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Unidade: Algumas possíveis funções da arte: a necessidade da arte

A arte e o sagrado

Falar da arte e não tocarmos na experiência do sagrado seria uma falha inconcebível, pois
desde tempos imemoriais essas duas coisas caminham juntas, separando-se e juntando-se
novamente no meio desse caminho.
Nesse sentido, há uma interpretação clássica de que a pintura rupestre, aquela feita nas
cavernas do período paleolítico, carrega implicitamente uma forma de magia. O homem desse
período, antes de capturar os animais com suas lanças e flechas, capturava-os magicamente
com seus desenhos.
Como já se observou, existem dois diferentes motivos dos quais derivam as
obras de arte: algumas são produzidas simplesmente para que existam, outras
para serem vistas. A arte religiosa criada puramente em honra de Deus e mais ou
menos todas as obras de arte destinadas a suavizar a carga que pesa e oprime
o coração do artista compartilham dessa função em segredo com a arte mágica
da idade da pedra lascada. O artista paleolítico que estava empenhado apenas
na eficácia da magia terá, não obstante, derivado uma certa satisfação estética
de seu trabalho, embora considerasse a qualidade estética da obra meramente
como meio para alcançar um fim prático (HAUSER, 1998, p. 6 e 7).

Essa interpretação é valida, mas há muitas outras variáveis envolvidas quando pensamos
o espaço do sagrado dentro da arte. Se já na pré-história essas relações se demonstravam,
também em todos os lugares e em todas as religiões esse espaço é contemplado, seja pela
música, seja pela dança, seja pela pintura, seja pela encenação. Nas religiões indianas, por
exemplo, todos esses aspectos se conciliam. Também na religiosidade africana é impossível se
separar essas coisas. Não há sociedade que não tenha em algum momento recorrido à ligação
entre arte e religiosidade na construção de sua identidade. Se pensarmos na Igreja, durante
o Renascimento, veremos essa ligação de maneira quase constante. Michelangelo produziu a
serviço da Igreja, Rafael, Donatelo e Da Vinci também. Se ampliarmos nosso olhar pensando
em outras formas de arte, veremos que a maioria dos grandes compositores, como Bach, Vivaldi
e Mozart, produziram concertos para a liturgia das missas. É como se o sagrado, intangível e
abstrato, também clamasse por uma sistematização concreta e palpável. É como se as forças
incomensuráveis da divindade adentrassem por um canal que transforma a sua presença em
arte, permitindo que a sensação causada por essa presença seja experimentada por todos.
Porém, com o racionalismo científico, a revolução industrial e a sociedade de consumo, essa
experiência do Sagrado toma um novo rumo e dessacraliza a natureza e com ela também
a arte. “O conceito de dessacralização da arte, repetido a exaustão, hoje confundido com a
destituição das pretensões burguesas de construir uma nova aristocracia, data da Renascença
com a entronização do homem como centro de interesse e a abolição da ideia religiosa na arte”
(Klintowitz, 1999, p. 8).
Porém, é importante ressaltar que essa dessacralização começa, na verdade, como um
afastamento da Igreja católica e de seu predomínio sobre as artes, no sentido de adquirir-se
liberdade de temas e de pesquisa, apontando para uma recusa desse cerceamento moral que

14
poderia ser gerado por esse processo. Com essa tendência e o avanço da sociedade industrial,
também se desumanizam as relações, e o homem começa a ser visto ora como meio de produzir
lucro ora como mercadoria.
No entanto, atualmente, há um esforço de vários grupos no sentido de ressignificar essa
relação entre o sagrado e a arte. Essa experiência não se dá mais na ritualística, mas no desejo
de compartilhar com as outras pessoas seus receios e certezas, alegrias e angústias, criando uma
constelação de sensações que se apresenta por meio da comunhão de ideias e da coexistência
pacífica. Além disso, o homem começa a se reconhecer na sua integralidade, sem analisar-se
dissociadamente, separando mente e corpo, emoção e razão. Essa experiência plena da existência
também começa a se construir como experiência mística, prenunciando uma “ressacralização”
das artes.

Diálogo com o Autor


Na sociedade de tempo histórico, a arte, por algum tempo, especializou-se em criar o
novo e ser condutora da evolução das formas. Agora, ela se quer ainda mais abrangente.
De muitas maneiras, a arte retoma a função totêmica exercida na sociedade ritualística de tempo cíclico e
pretende ser uma expressão total, participante, formadora e estimulante. Centro espiritual.
A causa primeira desse retorno é o fracasso do pragmatismo como método de vida e da bem
aventurança material como objetivo. (...) O homem quer que as conquistas científicas, técnicas,
sociais, vinculem-se às poéticas da vida (Klintowitz, 1999, p. 16).

A arte como ato político

Há uma discussão, nos círculos intelectuais relacionados à arte, acerca de duas grandes
concepções do trabalho artístico: o da arte pela arte e a da dita arte engajada. Quando um
artista assume claramente determinada postura sociopolítica, podemos dizer que há um
engajamento, uma escolha de abraçar uma causa e lutar empenhadamente por ela. Essa ideia
de comprometimento político aparece com muita frequência no universo das artes. Artistas
ligados aos movimentos sociais, ou aqueles que lutaram contra as ditaduras em seus países,
certamente possuem essa característica. Podemos citar, como exemplos, o pintor Diego Rivera,
no México; a cantora Mercedes Sosa, na Argentina; o compositor Chico Buarque de Holanda,
em nosso país; entre muitos outros.
Uma forma interessante de iniciar essa discussão é pensando no trabalho do diretor de teatro
e dramaturgo alemão Bertolt Brecht.
Há pouco, conceituamos, nesta unidade, o teatro aristotélico, que a partir de agora
denominaremos como teatro clássico ou tradicional, para que possamos entender a viragem
que se dá no conceito de teatro na contemporaneidade, a partir dos trabalhos de Brecht, e
como essa noção afeta de maneira substancial o processo teatral.

15
Unidade: Algumas possíveis funções da arte: a necessidade da arte

Muito do que se produziu em teatro na contemporaneidade se deve às pesquisas de Brecht,


que revolucionou as concepções vigentes até então sobre o fazer teatral. Ele questionou o teatro
tradicional e buscou reavaliar a ideia aristotélica de catarse.
Na verdade, o que importa gerar com o teatro é o distanciamento. Segundo Brecht, “distanciar
um acontecimento ou um caráter significa antes de tudo retirar do acontecimento ou do caráter
aquilo que parece óbvio, o conhecido, o natural, e lançar sobre eles o espanto e a curiosidade”
(Brecht apud Bornheim, 1992, p. 243). Trazer o espectador de uma atitude passiva para uma
atitude de reflexão perante aquilo que ali se apresenta. “Nossa atitude nasce de nossas ações,
nossas ações nascem da necessidade; quando a necessidade está organizada, de onde nascem
então nossas ações? Quando a necessidade está organizada, nossas ações nascem de nossa
atitude” (Brecht apud Koudela, 1991, p.14).
Mas antes de chegar nessa concepção, o dramaturgo desenvolveu um extenso trabalho com
as peças didáticas, até chegar à ideia de teatro dialético:
(...) Os atuantes atuavam para si mesmos. Formávamos ensembles com
operários que nunca haviam pisado em um palco (...). O único princípio que
nunca ferimos foi o de submeter todos os princípios à tarefa social que tínhamos
por objetivo cumprir em toda obra (Brecht apud Koudela, 1991, p. 9).

O intuito da peça didática é a formação de quem atua. A formação de si mesmo é possível a


partir de situações e jogos teatrais que se colocam para os atores.
Desse modo, o distanciamento consistiria em produzir um efeito contrário ao da catarse
aristotélica. Neste, a catarse promovia uma situação de envolvimento e identificação com o
protagonista, levando mais um sentimento de sublevação do que a uma racionalização do
fato ocorrido no palco. Em Brecht, o jogo teatral e o distanciamento colocam o espectador em
contato direto com a ação. Ele é convidado a tomar uma posição mediante aquilo que vê. Não
é apenas um espectador passivo, mas alguém que constrói suas próprias reflexões por meio de
uma experiência didática de vivenciar situações de conflito ético, moral ou ideológico, presentes
nas peças.
O caráter político da arte de Brecht se dá, além do conteúdo, predominantemente na forma.
O modo como a construção das peças acontece denota uma escolha política que privilegia a
formação de quem as assiste. Ao contrário, em muitas das manifestações, a contestação política
mostra-se presente predominantemente em seu conteúdo. No entanto, em Brecht, há uma escolha
democrática que pressupõe, como uma ação necessária, formar politicamente tanto quem atua
quanto quem assiste. Podemos identificar como trabalhos que têm essas características as peças
de Sartre, o teatro de Plínio Marcos, as obras do grafiteiro Banksy, entre outros.
Porém, para terminamos essa conversa, gostaríamos de deixar uma pequena provocação
destilada pelo artista plástico recifense, Paulo Bruscky:
Acho que o artista expressa o que sente. Você primeiro tem que conhecer sua
aldeia para depois conhecer o mundo. Acho que arte é transformação, é expor
a fratura exposta da sociedade. A arte é a última esperança. É a denúncia,
embora ela seja uma utopia. Não existe arte pela arte apenas. O artista é um
ser social e só o fato de o ser é por si só um ato político. (FERNANDES, 2014)

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Material Complementar

Textos
KANDINSKY, W. Olhar sobre o passado. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
FISCHER, E. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.

Filmes
O fabuloso destino de Amélie Poulain. Direção de Jean-Pierre Jeunet. França, 2001
(Duração 122 min.).

Sites
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand - MASP
»» http://www.masp.art.br/
Museu de Arte Contemporânea - MAC USP
»» http://www.mac.usp.br/

17
Unidade: Algumas possíveis funções da arte: a necessidade da arte

Referências

ARISTÓTELES. Poética. Coleção Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

BAZIN, A. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.

BORNHEIM, G. Brecht: A estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992.

FERNANDES, Marcus. Arte em questão: engajamento político ou função estética? Disponível


em: - http://www.leiaja.com/cultura/2014/07/10/arte-em-questao-engajamento-politico-ou-
funcao-estetica/ . Acesso em 05 dez. 2014.

FISCHER, E. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.

HAUSER, A. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

KLINTOWITZ, J. A ressacralização da arte. São Paulo: Edições Sesc, 1999.

KOUDELA, I. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991.

LACOSTE, J. A filosofia da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

NIETZSCHE, F. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo. São Paulo:


Companhia das Letras, 1992.

OLIVEIRA, L. 2011. Passeando com Jia Zhang-ke por Still Life in ALMEIDA R. & FERREIRA-
SANTOS. O cinema como itinerário de formação. São Paulo: Képos, 2011.

18
Anotações

19
Estética
Material Teórico
Estética e simbologia na obra de arte

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Esp. André Luís Pereira dos Santos

Revisão Textual:
Profa. Esp. Kelciane da Rocha Campos
Estética e simbologia na obra de arte

·· Estética e simbologia na obra de arte


·· A iconografia e a iconologia de Panofsky
·· Por uma interpretação das obras de arte
·· Considerações finais

··Determinar o significado do termo simbologia, relacionando-o ao trabalho


da estética e das artes.
··Introduzir o conceito de análise de uma obra de arte, a partir de alguns
conceitos estabelecidos pelo filósofo e crítico de arte Erwin Panofsky.
··Introduzir o conceito de leitura de uma obra de arte, a partir das ideias de
Antônio Costella.

Nesta unidade, é importante que você leia os textos com um pouco mais de atenção, visto
que eles possuem um caráter simbólico mais apurado. Tome notas de suas leituras, pois a
unidade está repleta de conceituações e definições que se não forem compreendidas podem
tornar-se confusas. Além disso, a unidade propõe algumas formas de análise e leitura das
obras de arte. Exercite o seu senso estético buscando aliar esse conteúdo teórico às obras
que você conhece, física ou virtualmente.

5
Unidade: Estética e simbologia na obra de arte

Contextualização

Fonte: ”A Primavera” 1482, Sandro Botticelli (1445–1510)/Wikiart.org

Ficino encomendou esse quadro de Boticcelli para seu jovem discípulo Lorenzo de Médici
como um talismã contra a melancolia. Segundo a historiadora Frances Yates, ele é carregado
de simbologias que transmitiriam apenas influências saudáveis e rejuvenescedoras. O uso de
talismãs e objetos para fortalecer a concentração era comum na magia natural. (Cf. YATES, F.
Giordano Bruno e a tradição hermética. São Paulo: Cultrix. 1995, p. 90).
Mas em que isso se relaciona com nossas discussões sobre estética? Muitas vezes olhamos
para um quadro e apenas os elementos que se encontram nele não são suficientes para
compreendermos de maneira completa as significações de uma obra. Isso se dá porque uma
das maneiras de expressão da arte reside em seus símbolos. Mas o que são símbolos? Como eles
se relacionam à arte? Como lê-los? Como compreendê-los? São essas questões que colocarão
em movimento nossas reflexões durante esta unidade.

6
Estética e simbologia na obra de arte

Uma representação não se produz sem agir sobre o corpo e o espírito.


Emile Durkheim

Você já deve ter visto em algum lugar uma obra do pintor holandês Vincent Van Gogh. Caso
não tenha tido essa experiência, e ainda mesmo se a teve, observe a imagem abaixo:

Fonte: ”Still Life - Vase with Twelve Sunflowers” 1888, Vincent van Gogh/Wikiart.org

Podemos pensar que as escolhas estéticas que o pintor realiza ao conceber um quadro sejam
aleatórias. Entretanto, há em sua pintura uma simbologia explícita que demarca um território de
significações muito preciso e elaborado. O quadro “Doze girassóis numa jarra” representa uma
fase em que há uma entrega pessoal à cor. Van Gogh somente foi verdadeiramente reconhecido
enquanto artista após a sua morte. Porém, na época em que produziu esse quadro, estava
extremamente empolgado com a possibilidade de montar uma comunidade de artistas em
Arles, no sul da França. Esse quadro, e a série que ele integra, foi produzido como um presente
para o amigo Paul Gauguin, que ele julgava que o ajudaria nessa empreitada.
O girassol, com sua trajetória cotidiana sensível ao deslocamento solar, torna-se uma metáfora
da sacralidade do amor na sua relação entre a luz divina e a alma humana. O amarelo, nessa
acepção, remete à amizade, e a simbologia dessa cor no universo de Van Gogh plenifica de
significados a sua relação com o amigo Gauguin.

7
Unidade: Estética e simbologia na obra de arte

Todavia, a comunidade não saiu do plano das ideias, e seu amigo, depois de dois meses,
acabou desistindo de permanecer junto a ele devido a inúmeros desentendimentos.
Talvez essa seja uma boa maneira de iniciarmos nossa discussão. Nenhuma obra de arte
é um objeto inútil. O utilitarismo na arte empobrece de significações o processo criativo. Pois
cada peça de coleção, cada canção executada desdobra-se em um feixe de representações,
significados e simbologias.
O nosso imaginário é dotado de uma capacidade inesgotável de produzir símbolos e lidar
com as suas decorrências e significações. Nossa capacidade de produção e recepção simbólica
se agrega ao fato de que podemos transmutar representações e crenças em sistemas organizados,
produzindo cultura.
O caráter social da produção artística só se realiza quando ela é fruída pelos
outros, porque a obra existe para ser consumida, para ser comunicada além das
barreiras do tempo e do espaço. O fruidor capta essa experiência identificando-
se com ela, reconhecendo nela os atributos de humanidade que o autor soube
incorporar. Portanto, a arte só tem significado quando outros se apropriam
dessa significação. (SUBTIL, 2010, p. 259.)

A arte pode ser encarada por meio das relações simbólicas em que se insere. Uma das
maneiras de nos aproximarmos desse conceito é entendermos algo que Vigotsky chamou de
mediação. Para ele, a relação entre o homem e o mundo é uma relação mediada por sistemas
simbólicos. Lembrando que o símbolo, em seu significado original, quer dizer “aquilo que nos
une”. O verbo grego symbállein ou symballesthai significa aquilo que é jogado junto, o “unido
a partir de um só arremesso”. Desse modo, symbállein é a designação de uma conjunção.
Só há símbolo quando há uma conjunção de partes, quando há “o sentido do todo, que faz,
precisamente, como que as partes sejam partes integrantes, ou melhor, integradas nesse todo”
(Cf. SOUSA, 1981, p. 83).
Desse modo, as relações sociais entre uma pessoa e o mundo exterior são o suporte para as
funções psicológicas, pensadas a partir de um processo histórico.
Vigotsky (...) trabalha com a noção de que a relação do homem com o mundo
não é uma relação direta, mas fundamentalmente, uma relação mediada.
As funções psicológicas superiores apresentam uma estrutura tal que entre o
homem e o mundo real existem mediadores, ferramentas auxiliares da atividade
humana. (KOHL, 1993, p. 27.)

Por funções superiores ele entende a capacidade que o ser humano tem de abstrair e imaginar,
formular hipóteses e estabelecer conceitos complexos, como tomar uma decisão a partir de uma
mudança em uma rotina ou situação previamente dada.
Essa capacidade de lidar com representações que substituem o próprio real é que
possibilita ao homem libertar-se do espaço e do tempo presentes, fazer relações
mentais na ausência das próprias coisas, imaginar, fazer planos e ter intenções. (...)
Essas possibilidades de operação mental não constituem uma operação direta com
o mundo real fisicamente presente. A relação é mediada pelos signos internalizados
que representam os elementos do mundo, libertando o homem da necessidade de
interação concreta com os objetos de seu pensamento. (Idem, p. 35.)

8
A música, por exemplo. é signo do mundo que nos cerca, representa esse papel mediador entre
a intenção de um compositor, a interpretação de um executante e o entendimento de um ouvinte.
Ela é signo e reflexão do mundo real, tornando-se símbolo das intenções que a produziram.
Há uma questão cultural na ideia de fruição musical que faz com que haja um cruzamento
entre as esferas artísticas. A música, sobretudo a que se veicula na mídia, assume um sentido
plural, visto que atualmente a produção artística não pode ser concebida sem a utilização ou ao
menos a alusão a uma variedade de suportes midiáticos e uma confluência de manifestações
culturais. O gosto musical hoje é quase que inevitavelmente influenciado pela performance.
A fruição auditiva vem ligada à imagem, o vídeo alia-se à sonoridade e cria algo novo. Além
disso, as práticas corporais como a dança também confluem nessa determinação do gosto. A
performance é fundamental na cristalização dessas preferências.
Essa natureza pública da performance teria a função de encurtar as distâncias
entre o íntimo, o particular, a composição e a exposição social e cultural por
meio da interpretação. Assim, é válido afirmar que ela se configura como
mediação entre produção e fruição, dela depende a objetivação do fato
musical. (SUBTIL, 2010, p. 262.)

Diálogo com o Autor

“(...) A música relaciona-se de uma variedade de modos à gama dos sistemas simbólicos humanos
e suas competências intelectuais. Além disso, precisamente por não ser usada para comunicação
implícita ou para outros propósitos evidentes de sobrevivência, sua centralidade continuada na
experiência humana constitui um enigma desafiador. O antropólogo Lévy-Strauss dificilmente está
sozinho entre os cientistas ao alegar que se pudermos explicar a música poderemos encontrar a chave
para todo o pensamento humano – ou ao inferir que a falha em levar a música a sério enfraquece
qualquer explicação sobre a condição humana.” (GARDNER, 1994, p. 96.)

A música, por seu caráter imprevisível e dionisíaco, leva-nos a experimentar diversos estados
de espírito: amedronta-nos, alegra-nos, entristece-nos, acolhe-nos e nos aproxima. A experiência
musical é simbólica porque sempre nos remete a sensações que nos vêm por associação ou
recordação. Por que dentro de uma discussão sobre estética e filosofia é importante pensar a
música? Vejamos uma possível resposta para essa questão:
Se considerarmos a cultura como ‘o conjunto de significações produzidas pelo
homem’, a música que permeia as relações sociais pode ser encarada como
produtora de significados e dotada de forte valor social, sendo até mesmo
possível conhecer a sociedade a partir dela. (BROUGÈRE, 1997, p. 69.)

Desse modo, podemos considerar a música como uma arte que, em sua natureza, é simbólica.
Mas não somente isso, ela produz e ressignifica símbolos constantemente. Mesmo se pensarmos
nas inúmeras manifestações musicais, veremos que há uma recorrência simbólica em todas elas.
As músicas de cortejo, como as das congadas, dos maracatus e dos moçambiques, remetem a
intricados rituais religiosos e a encenações que remetem a passagens históricas da tradição afro-
brasileira e portuguesa. A recorrência ao figurino e a interpretação completam o arcabouço de
significados que se sintetizam no acontecimento que se dá na apresentação. Uma ópera como a

9
Unidade: Estética e simbologia na obra de arte

Flauta Mágica, de Mozart, também se encontra repleta de simbologias e referências ao universo


maçônico, por exemplo. O que podemos compreender dessa discussão até agora?
Certamente, ao buscarmos compreender a arte que se coloca à frente de nossos olhos, nos
depararemos com inúmeras possibilidades de interpretação, por meio de também inúmeras
significações e relações. Mas gostaríamos de acrescentar a essa discussão uma pequena reflexão
de Rudolf Arnheim em seu livro Intuição e intelecto na arte (1989, p. 3.):
Os historiadores e os críticos podem dizer muitas coisas úteis sobre um
quadro sem qualquer referência a ele como obra de arte. Podem analisar seu
simbolismo, atribuir seus temas a origens filosóficas ou teológicas, e sua forma
a modelos do passado; podem também usá-lo como um documento social, ou
como uma manifestação de uma atitude mental. Tudo isso, contudo, pode se
limitar ao quadro como um transmissor de informações factuais e não precisa
se relacionar com seu poder de transmitir o testemunho do artista através da
expressão formal e do conteúdo. (...) Isso equivale a dizer que, a menos que
tenha apreendido intuitivamente a mensagem estética de um quadro, o analista
não pode esperar lidar intelectualmente com ele como uma obra de arte.

Desse modo, não podemos compreender nenhum aspecto da arte como uma manifestação
isenta de significações. Na pintura, cada traço, cada cor é fruto de uma escolha que visa
comunicar algo. Um filme de arte, por exemplo, denota (em seus planos, suas cenas, suas falas,
suas referências) estruturas simbólicas complexas que nunca são apenas o que, literalmente,
captamos com a nossa visão da tela. Os filmes de Buñuel, Fellini ou Antonioni sempre estão
carregados de significados que exigem um esforço de interpretação além daquilo que nos é
dado como execução cinematográfica. É o que, em algum momento deste curso, chamamos
de possuir repertório. Não entenderemos completamente um filme, como o Fabuloso destino
de Amélie Poulain, se não compreendermos que nesse filme, o vermelho e o verde têm uma
função primordial na representação do universo onírico da protagonista. Nesse sentido, as cores
são fundamentais na comunicação de que quando elas predominam estamos em um universo
criado dentro da poderosa imaginação de Amélie, isto é, vivenciamos seus devaneios.
Esse caráter simbólico da arte é próprio da condição humana. Sob um olhar mais aprofundado,
veremos que o ser humano não se relaciona com as coisas exteriores de maneira imediata; cria
relações artificiais que, na verdade, o levam a lidar consigo mesmo.
O homem não pode fugir à sua própria realização. Não pode senão adotar as
condições de sua própria vida. Não estando mais num universo meramente
físico, o homem vive em um universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a
religião são partes desse universo. São os variados fios que tecem o emaranhado
da experiência humana. Todo o progresso humano em pensamento e experiência
é refinado por essa rede, e a fortalece. (CASSIRER, 2012. p. 48.)

Ernst Cassirer é um filósofo alemão de origem judaica, que realiza uma inversão na maneira
como a tradição filosófica compreende aquilo que define o ser humano. Segundo ele, a definição
do homem apenas como um ser racional é imperfeita e incompleta. É claro que a racionalidade
é um traço fundamental da condição humana, no entanto o que expressa nossa verdadeira
natureza é a capacidade de produzir símbolos. Antes de ser um ser lógico, o homem é um ser
que simboliza, daí surge para ele a ideia de Homo Symbolicus.

10
Mas o que isso tem a ver com a relação entre filosofia e arte? Podemos dizer que tudo. A arte é
uma das maneiras mais recorrentes que o ser humano encontrou de produzir simbologias e lidar
com elas. Como vimos, a arte sintetiza concepções, crenças e sensações como manifestações
materiais ou imateriais, que na verdade se apresentam de maneira primordialmente simbólica.
Tal como todas as outras formas simbólicas, a arte não é uma simples
reprodução de uma realidade dada, pronta. É um dos meios que levam a uma
visão objetiva das coisas e da vida humana. Não é uma imitação, mas uma
descoberta da realidade. Contudo, não descobrimos a natureza através da arte
no mesmo sentido que o cientista usa o termo “natureza”. (...) A linguagem e a
ciência dependem de um único e mesmo processo de abstração; a arte pode ser
descrita como um processo contínuo de concreção. (CASSIRER, 2012, p. 235.)

Compreender o processo artístico envolve, dessa maneira, entender que a arte não expressa uma
mera imitação da natureza e de suas coisas, como se pensava dos gregos até a modernidade. Não
podemos entender o papel do artista como uma maneira de atingir essa mimética com perfeição.
A arte, hoje, expressa em manifestações concretas o espírito dos povos, das épocas e das ideias de
maneira simbólica. Une significados que extrapolam os dados que se apresentam nessa concreção.

A iconografia e a iconologia de Panofsky

Há um grande historiador da Arte, chamado Erwin Panofsky, que defende que em uma obra
de arte, a forma não pode estar dissociada do conteúdo. Para ele, as cores e as linhas, as luzes
e as sombras, os volumes e os planos, embora deliciosos enquanto espetáculo para os olhos,
devem ser compreendidos como portadores de um sentido mais do que visual. Desse modo,
em sua compreensão das artes visuais, é a iconografia que encarna o método que permite aos
especialistas pesquisar e extrair os conteúdos submersos na obra de arte. Para isso, ele define
três níveis de análise da imagem, dotados de métodos e princípios próprios.
No primeiro nível, o da análise pré-iconográfica, o observador trabalha apenas com aquilo
que pode ser reconhecido visualmente sem referência a elementos e recursos exteriores. No
segundo, o da análise iconográfica, o observador relaciona a imagem a uma história conhecida,
a um grupo ou ainda a um assunto conhecido. No terceiro nível, o da análise iconológica,
busca-se decifrar a significação da imagem, levando-se em consideração o estilo do artista em
relação ao estilo cultural dominante, o tempo e o espaço em que ela foi produzida, as referências
internas e externas que ela apresenta, assim por diante.

11
Unidade: Estética e simbologia na obra de arte

Diálogo com o Autor

Ao concebermos assim as formas puras, os motivos, imagens, estórias e alegorias, como manifestações de
princípios básicos e gerais, interpretamos todos esses elementos como sendo o que Ernst Cassirer chamou
de valores “simbólicos”. Enquanto nos limitarmos a afirmar que o famoso afresco de Leonardo da Vinci
mostra um grupo de treze homens em volta a uma mesa de jantar e que esse grupo de homens representa
a Última Ceia, tratamos a obra de arte como tal e interpretamos suas características composicionais e
iconográficas como qualificações e propriedades a ela inerentes. Mas, quando tentamos compreendê-Ia
como um documento da personalidade de Leonardo, ou da civilização da Alta Renascença italiana, ou de
uma atitude religiosa particular, tratamos a obra de arte como um sintoma de algo mais que se expressa
numa variedade incontável de outros sintomas e interpretamos suas características composicionais
iconográficas como evidência mais particularizada desse “algo mais”. A descoberta e interpretação
desses valores “simbólicos” (que, muitas vezes, são desconhecidos pelo próprio artista e podem até diferir
enfaticamente do que ele conscientemente tentou expressar) é o objeto do que se poderia designar por
“iconologia” em oposição a “iconografia” (PANOFSKY, 1986, pp. 52 e 53).

Fonte: ”The Last Supper” 1495, Leonardo da Vinci/Wikiart.org

A etimologia das palavras iconografia e iconologia pode nos ajudar a compreender melhor a
estrutura da análise que Panofsky busca realizar acerca do conceito de significação na obra de arte.
A palavra iconografia é a junção de dois termos gregos, eikon e graphein. O primeiro pode
ser traduzido como “imagem” e o segundo é um verbo que pode ser traduzido por “escrever”.
Desse modo, pode-se entender a iconografia como um processo de descrição e classificação
das imagens. Há uma apreensão dos elementos expressos na imagem, todavia não há uma
investigação sobre a origem das mesmas.
Por outro lado, na palavra iconologia, há uma troca do sufixo “grafia” pelo sufixo “logia”,
que pode ser traduzido por “estudo de” ou “investigação acerca de”, deriva da palavra grega
“logos”, que significa “pensamento” ou “razão”. Levam-se em consideração os elementos que,
constituintes do conteúdo intrínseco de uma obra de arte, devem explicitar-se quando houver a
intenção de que essas percepções sejam comunicáveis.
Achou complicado de entender? Voltemos, com um pouco mais de profundidade, aos níveis
da análise iconográfica.

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O primeiro nível, chamado de pré-iconográfico, também pode ser denominado significado
primário ou natural, “é apreendido pela identificação das formas puras”. Assim, relaciona-se
ao modo como as linhas e cores estão dispostas. Mas, também como os objetos, personagens
e cenários que compõem o quadro se configuram dentro de determinada composição. “O
mundo das formas puras assim reconhecidas como portadoras de significados primários ou
naturais pode ser chamado de mundo dos motivos artísticos. Uma enumeração desses motivos
constituiria uma descrição pré-iconográfica de uma obra de arte” (Ibid., p. 50).
O segundo nível, também chamado de significado secundário ou convencional, é
caracterizado pelo fato de ligarmos os temas percebidos, em um primeiro momento, aos
conceitos que estão expressos nesses temas. Por exemplo, na iconografia cristã, a estátua de
São José porta um lírio, não há como representá-lo dentro dessa tradição sem o uso desse signo.
Ainda podemos, por exemplo, pensar na figura do deus indiano Ganesha, que possui toda uma
simbologia própria, repleta de significações. Nesse nível de compreensão, importam menos as
imagens que os conceitos a que elas se remetem.
No terceiro nível, também conhecido como significado intrínseco ou conteúdo, a amplitude
de significações abarca um campo maior, pois nelas se apreende, pela determinação de princípios
subjacentes, “a atitude básica de uma nação, de um período, classe social, crença religiosa ou
filosófica - qualificados por uma personalidade e condensados numa obra” (Ibid., p. 53).
Podemos sintetizar essas definições na tabela abaixo:

Princípios
Corretivos de
Objeto da Ato da Equipamento para
Interpretação
Interpretação Interpretação a Interpretação
(História da
Tradição)
História do estilo
I. Tema primário ou (compreensão da
natural – (A) fatual, Descrição pré- maneira pela qual,
Experiência prática
(B) expressional iconográfica sob diferentes
(familiaridade com
– constituindo o (e análise condições históricas,
objetos e eventos)
mundo dos motivos pseudoformal). objetos e eventos
artísticos. foram expressos
pelas formas).
História dos tipos
(compreensão da
II. Tema secundário Conhecimento de
maneira pela qual,
ou convencional, fontes literárias
sob diferentes
constituindo o Análise iconográfica. (familiaridade com
condições históricas,
mundo das imagens, temas e conceitos
temas ou conceitos
estórias e alegorias. específicos).
foram expressos por
objetos e eventos).

13
Unidade: Estética e simbologia na obra de arte

História dos
sintomas culturais
Intuição sintética
ou “símbolos”
(familiaridade
III. Significado (compreensão da
com as tendências
intrínseco ou maneira pela qual,
essenciais da
conteúdo, Interpretação sob diferentes
mente humana),
constituindo o iconológica. condições históricas,
condicionada pela
mundo dos valores tendências essenciais
psicologia pessoal
“simbólicos”. da mente humana
e Weltanschauung
foram expressas por
(visão de mundo).
temas e conceitos
específicos).
Fonte: PANOFSKY, 1986, pp. 64 e 65.

Voltar ao pensamento de Panofsky, no momento que nos encontramos, é imprescindível,


visto que a simbologia na arte, sobretudo nas artes visuais, deve muito às suas análises.
Mas como podemos ampliar essa discussão e encontrar outros parâmetros para discutir a
interpretação das obras de arte?

Por uma interpretação das obras de arte

É importante lembrar que, apesar de podermos estabelecer alguns parâmetros que nos ajudam a
interpretar a arte, não podemos tomá-los como verdades absolutas. Panofsky, ao tratar da questão
da iconologia, afirma que, para uma análise de uma obra em relação ao contexto em que ela se
insere, é necessário que se utilize uma espécie de intuição sintética, “que pode ser mais desenvolvida
num leigo talentoso do que num estudioso erudito” (p. 62). Pois há uma série de fatores que, por
si só, são subjetivos e necessitam ser analisados e comparados para se chegar a uma visão ampla
do assunto. Tal qual realiza um clínico quando profere seus diagnósticos baseados em uma leitura
intuitiva dos sintomas envolvidos para se tipificar determinada enfermidade em um paciente.
O historiador de arte terá de aferir o que julga ser o significado intrínseco da obra ou
grupo de obras, a que devota sua atenção, com base no que pensa ser o significado
intrínseco de tantos outros documentos da civilização historicamente relacionados a
esta obra ou grupo de obras quantos conseguir: de documentos que testemunhem
as tendências políticas, poéticas, religiosas, filosóficas e sociais da personalidade,
período ou país sob investigação. Nem é preciso dizer que, de modo inverso, o
historiador da vida política, poesia, religião, filosofia e situações sociais deveria fazer
uso análogo das obras de arte. É na pesquisa de significados intrínsecos ou conteúdo
que as diversas disciplinas humanísticas se encontram num plano comum, em vez
de servirem apenas de criadas umas das outras (Ibid., p. 63).

Algum tempo atrás, caiu em nossas mãos um livro chamado Para apreciar a arte, de Antonio
F. Costella. Desse modo, gostaríamos de finalizar esta unidade discutindo alguns critérios que ele
propõe para uma possível interpretação das obras de arte.

14
Ele inicia sua reflexão afirmando que a época em que vivemos agora é extremamente frutífera
para a fruição da arte, pois nunca, na história da humanidade, se reproduziram tantas obras com
fidelidade de cor, de maneira impressa ou eletrônica. Os cantores eruditos deixaram de se restringir
às salas de concertos e arrastam multidões para ouvi-los em estádios lotados. A arte erudita, antes
restrita a determinada classe social, pode ser consumida tanto em concertos públicos quanto em
áudio, vídeo ou na própria rede, em sites especializados.
Embora essas reproduções não carreguem a mesma experiência estética que se dá quando temos
a obra original à nossa frente, antigamente, se quiséssemos conhecer a arte francesa do século XVIII,
teríamos que viajar até Paris e visitar o Museu do Louvre. Hoje podemos lidar com obras de todas
as épocas e lugares sem, necessariamente, sairmos de casa.
Porém, o acesso é apenas o primeiro passo. Para se compreender a arte, é necessário que,
minimamente, dominem-se certos conceitos que, por convenção, nos ajudam a determinar as
significações inerentes a uma obra.
Para isso, Costella traça uma série de dez pontos de vista envolvidos na interpretação artística: o
factual, o expressional, o técnico, o convencional, o estilístico, o atualizado, o institucional, o comercial,
o neofactual e o estético. “(...) Se imaginarmos a obra como uma sala dotada de dez lustres, parece-
me óbvio que a cena estará mais iluminada quando as dez fontes luminosas estiverem acesas”
(COSTELLA, 2001, p. 15). Obviamente, o que ele propõe é apenas uma maneira ampla de se
enxergar a arte fundamentada nos diversos aspectos que o trabalho com a arte pode suscitar.
(...) Do mesmo modo que não haverá uma fronteira rigorosa entre o halo
luminoso de um lustre e o do outro, assim também os dez enfoques, não
obstante individuáveis, devem fundir-se. Na mente do observador traquejado
eles estarão sempre íntima e simultaneamente acesos. (Ibid.)

Pensemos brevemente acerca de cada um desses pontos de vista.


Ponto de vista factual: assim como na análise pré-iconográfica de Panofsky, esse aspecto
da interpretação se dá a partir daquilo que a obra exibe ou apresenta objetivamente. Isto é, as
cenas e objetos representados em um quadro, os sons em uma música, a coreografia em um
bailado, assim em diante. Essa apreensão do conteúdo se realiza descritivamente, levando-se
em consideração os elementos constitutivos de determinada obra.
Ponto de vista expressional: podemos defini-lo como a parcela da obra que “mexe” com
o sentimento do observador. É um atributo que está presente na obra e que afeta o observador,
visto que as reações deste não são produzidas aleatoriamente. A habilidade do artista induz
sensações e sentimentos que promovem essas reações de maneira quase unânime. Assim,
Guernica, de Picasso, é um quadro incômodo quando analisado com atenção. Assim como o
filme Dançando no escuro, de Lars Von Triers, tornou-se insuportavelmente doloroso para a
maioria daqueles que o assistiram.
Ponto de vista técnico: é muito importante compreendermos que a produção de uma obra
também é fruto de um domínio técnico, que se dá nas escolhas dos elementos materiais e imateriais
que se envolverão em sua produção. Se o observador conhece um pouco das questões técnicas
envolvidas na produção de uma obra, certamente possuirá uma gama maior de elementos que
permitirão compreendê-la. Por exemplo, quando um fotógrafo escolhe certo ângulo de composição,
na verdade, ele está direcionando o olhar do espectador para algo que lhe chamou a atenção,
valendo-se da luz, do motivo e dos recursos técnicos que seu equipamento lhe permite.

15
Unidade: Estética e simbologia na obra de arte

Ponto de vista convencional: como vimos, compreender certos aspectos de determinadas


obras, muitas vezes, exige recorrermos a conhecimentos externos a ela. Se tomarmos a suástica,
que se consolidou como símbolo das atrocidades cometidas pelo nazismo na Alemanha,
certamente nos assustaremos ao encontrá-la estampada no peito de uma estátua de Buda no
Tibet. No entanto, é justamente daí que ela vem. É um símbolo religioso do budismo tibetano
que significa “boa sorte”, dentre outros significados. O que aprendemos com isso? É necessário
que dominemos essa convenção de significado, presente nessa linhagem de budismo, para que
possamos interpretar mais precisamente esse tipo de estatuária. “O conteúdo factual da obra de
arte diz respeito aos objetos pelo que eles são, enquanto o conteúdo convencional interessa-se
por eles como símbolos” (Ibid., p. 38).
Ponto de vista estilístico: o estilo de uma obra estará ligado ao tempo, ao local e às ideologias
vigentes durante a produção de determinada obra, ou seja, o estilo é um atributo que se expressa
culturalmente. Porém, não apenas isso, o artista pode estar inserido em uma corrente artística,
como o expressionismo, por exemplo, mas a sua expressão individual também lhe concede um
estilo próprio. Uma obra do pintor brasileiro Romero Brito ou do espanhol Juan Miró sempre serão
reconhecidas pelo seu estilo.
Ponto de vista atualizado: não podemos limitar a obra de arte apenas a aquilo que ela
explicitamente mostra ou simboliza. Há no observador uma parcela grande de responsabilidade
pelas significações que uma obra receberá em seu tempo e na posteridade. Muitas vezes, a
obra, deslocada no tempo e no espaço, terá uma recepção diferente daquela que as pessoas
que a observaram em seu tempo e local de origem lhe concederam. Por exemplo, a forma como
observamos a arte assíria ou asteca concede outros valores em relação aos que viveram no
tempo de sua criação. Do mesmo modo, um pintor que em seu tempo foi rejeitado pode, por
critérios atualizados, ser considerado um gênio.
Ponto de vista institucional: também é uma forma de atualização, mas institucionaliza
e reconhece algo como dotado de valor artístico. Atualmente, há uma massificação do que
é oferecido como arte. Essa institucionalização também ajuda na maneira que podemos nos
relacionar com a arte, no sentido de compreendê-la.
Ponto de vista comercial: “como qualquer objeto material, a obra de arte tem um preço.
O valor comercial de uma obra resulta da soma de vários fatores, tais como a matéria-prima
empregada, a mão-de-obra necessária, as características finais do produto, a raridade da peça,
eventualmente a notoriedade do artista, etc.” (p. 61). Encarar a obra como produto também é
uma maneira de analisá-la. Todavia, não é o preço nem a vendagem das obras de um artista
que determinam sua qualidade. Esta é apenas uma maneira de auxiliar-nos a interpretar a arte.
Ponto de vista neofactual: tudo se desgasta com o tempo. As obras de arte também estão
sujeitas a essa deterioração que se dá concretamente. Esse processo faz com que a nitidez e
muitas vezes a concepção da obra original se perca. As inúmeras restaurações que uma obra
sofre certamente afetam a sua fruição. Soma-se a isso, por exemplo, os adventos da modernidade
que também afetam essa interpretação. Ver um espetáculo de balé em um teatro agrega mais
elementos ao espectador do que vê-lo em casa em uma televisão de baixa definição. Assim,
aquilo que se apresenta explicitamente na obra, mas que não necessariamente foi concebido
pelo artista, deve ser considerado em sua interpretação.

16
Ponto de vista estético: o prazer que é causado pela arte, que para muitos é considerado inútil,
na verdade “é alargamento da mente e conforto para o espírito” (Ibid., p. 75). Como vimos, a arte
é necessária e ressignifica nossa existência sobre a Terra. A arte é um conhecimento que perpassa
muitos caminhos: os místico-religiosos, os utilitários ou decorativos, e os da arte pela arte, além de
muitos outros. Desse modo, “a apreensão do conteúdo estético é uma forma de conhecimento que
se faz através dos sentidos, mas opera antes de atingir o nível da razão” (Ibid., p. 76).

Considerações finais
O que pretendemos nesta conversa foi sensibilizá-lo(a) para perceber que o universo simbólico
da arte é demasiado grandioso para se fechar em fórmulas e conceitos pré-concebidos. Encare
as conceituações e os autores, a que recorremos aqui, como ferramentas na construção da sua
forma de interpretar essas simbologias.
O trabalho filosófico em relação à arte se aprofunda na medida em que acrescentamos novas
vozes ao coro de referências que nos acompanham durante a vida. Os filósofos e críticos de arte
que discutimos aqui nos ajudaram, em determinado momento de nossas vidas, a construir a
nossa visão da arte, levando-nos a compreender outras discussões e outros autores que tratam
do mesmo tema. Busque novas vozes e trilhe também o seu caminho.

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Unidade: Estética e simbologia na obra de arte

Material Complementar

Textos
·· CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. São Paulo: Martins Fontes, 2001
(2 volumes).
·· CHEVALIER, J. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
·· JUNG, C. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

Filmes
··Sede de Viver. Direção de George Cukor e Vincente Minnelli. Estados Unidos, 1956
(Duração 122 min.).
·· Sonhos. Direção de Akira Kurosawa. Japão/Estados Unidos, 1990 (Duração 119 min.).

18
Referências

ARNHEIM, R. Intuição e intelecto na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

BROUGÈRE, G. O jogo e a educação. São Paulo: Artmed, 1997.

CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

COSTELLA, A. F. Para apreciar a arte: roteiro didático. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2001.

GARDNER, H. Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas. São Paulo: Artmed, 1994.

KOHL, M. Vigotsky: aprendizado e desenvolvimento. São Paulo: Scipione, 1993.

PANOFSKY, E. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1986.

SOUSA, E. História e mito. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981.

SUBTIL, M. J. D. O consumo musical midiático e a construção de sentidos por crianças de 9 a 12


anos. In: Comunicação, mídia e consumo, vol. 7, n. 20, nov. 2010. Disponível em: <http://
revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/view/284/259>. Acesso em: 14 dez. 2014.

VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

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Unidade: Estética e simbologia na obra de arte

Anotações

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Estética
Material Teórico
Concepções estéticas: A complexidade do pensamento artístico

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Esp. André Luis Pereira dos Santos

Revisão Textual:
Profa. Esp. Kelciane da Rocha Campos
Concepções estéticas: A complexidade
do pensamento artístico

·· Introdução
·· Arte e modernidade em Baudelaire
·· Arte e indústria cultural

Discutir o conceito de complexidade e suas implicações para o estudo da Arte.


Apresentar algumas ideias da crítica de arte em Baudelaire.
Estabelecer alguns parâmetros e relações entre a estética de Adorno e de
Benjamin.

Para que você possa usufruir das ideias debatidas nesta unidade, é necessário que você se
aprofunde em alguns aspectos inerentes a ela. É quase impossível compreender plenamente
o conceito de “indústria cultural” se não se conhecer um pouco sobre marxismo, ideologia e
a crise do capitalismo. Você vai perceber com o tempo que a complexidade do pensamento
filosófico se dá também no fato de que é muito difícil fazermos uma análise profunda, seja
do que for, de maneira isolada e isenta. Falar de arte, como diz Baudelaire, também é tomar
uma posição. Reflita sobre isso enquanto realizar seu estudos.

5
Unidade: Concepções estéticas: A complexidade do pensamento artístico

Contextualização

Nesta unidade, não trataremos estritamente da cultura popular. Mas pensar a complexidade da
arte a partir dela pode ser uma tarefa deveras interessante. No entanto, muitos ainda confundem
a cultura popular com a “cultura de massa”. Este último termo é como a Indústria cultural define
as manifestações artísticas produzidas como mercadorias.
A cultura popular obedece a padrões e regras próprias tecidas nas tradições ancestrais que
brotam em meio ao povo. Dessa maneira, assista ao vídeo produzido pelo Instituto Brincante e
perceba como aquilo que por muitos é considerado simplório pode ser de uma complexidade
de tirar o fôlego.

Explore
Para assistir ao vídeo, acesse:
http://youtu.be/EX8aUTyw2gA

6
Introdução

Poesia só pode ser criticada por poesia. Um juízo artístico que não é, ele
próprio, uma obra de arte, seja em seu tema, enquanto exposição da impressão
necessária em seu devir, seja por meio de uma bela forma e um tom liberal no
espírito das velhas sátiras romanas, não tem, em absoluto, direito de cidadania
no reino da arte.

Friedrich Schlegel

Não sei se podemos compreender a afirmação de Schlegel como uma regra. Mas há algo de
provocador em começarmos a pensar a complexidade da estética a partir dela. Pensá-la é, de
certo modo, refletir sobre o alcance dos processos e manifestações artísticas.
Começamos este curso partindo da premissa de que o trabalho da estética filosófica é algo
ligado à compreensão da arte, que é algo, por si só, extremamente difícil de definir. Algumas
perguntas podem estar envolvidas nesse processo: as fronteiras da arte são móveis? Há dissensões
no interior das corrente artísticas? Como compreender esteticamente essas divergências? Porém,
antes de continuarmos, gostaríamos de partir de algumas definições. Sendo assim, no que
consiste o “complexo”?

Figura 1. O complexo é aquilo que é tecido junto.

Complexo significa literalmente “aquilo


que é tecido junto”. Tudo o que é tecido, é
produzido por meio de uma trama e de uma
urdidura. Pensemos, por exemplo, na cestaria
indígena. Há uma estrutura mais resistente
e vertical em que as tramas se entrelaçam
horizontalmente, formando o cesto? Essa
urdidura (estrutura) é o que dá a sustentação
que mantém o formato do cesto. Entretanto, o
que dá a sua beleza é o entrelaçar constante,
quase sem fim, quase sem começo, dado pela
Fonte: publicdomainpictures.net
sutil delicadeza da trama.

Essa imagem é bastante frutífera, visto que esse entrelaçar do complexo também atravessa o
universo das manifestações artísticas. Há alguns cânones, padrões e tendências que estruturam
a arte. No entanto, o processo artístico é a trama que perpassa esse mesmo universo. Da mesma
maneira que as manifestações se multiplicam exponencialmente, existem inúmeras concepções
estéticas. De certa forma, toda reflexão filosófica que trata da arte pode ser considerada uma
reflexão estética. Assim, as obras de Sartre sobre literatura, os escritos de Benjamim sobre a
própria arte são tão necessárias à estética quanto às obras de Kant e de Hegel.

7
Unidade: Concepções estéticas: A complexidade do pensamento artístico

Arte e modernidade em Baudelaire

Para ilustrar esse pensamento, gostaríamos de recorrer a um trabalho de Charles Baudelaire


intitulado “O pintor da vida moderna”. Nessa obra ele profere considerações sobre um quase
desconhecido pintor francês chamado Constantin Guys.
Figura 2. Charles Baudelaire (1821-1867)
Baudelaire foi um poeta boêmio que viveu em Paris durante
o século XIX. Sua poesia ajudou a delinear o movimento
poético conhecido como Simbolismo. Sua obra mais conhecida
é o livro As flores do mal. No entanto, sua crítica de arte era
extremamente respeitada em seu tempo e influenciou muitos
intelectuais com suas ideias sobre a modernidade.
O autor parte da ideia de que uma crítica da arte não pode
ser isenta, fria e imparcial. Ao contrário, deve ser apaixonada,
política e subjetiva.

Fonte: Wikimedia Commons

Diálogo com o Autor

Na verdade, esta é uma bela ocasião para estabelecer uma teoria racional e histórica do belo, em
oposição à teoria do belo único e absoluto; para mostrar que o belo inevitavelmente sempre tem
uma dupla dimensão, embora a impressão que produza seja uma, pois a dificuldade em discernir
os elementos variáveis do belo na unidade da impressão não diminui em nada a necessidade
da variedade em sua composição. O belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja
quantidade é excessivamente difícil de determinar, e por um elemento relativo, circunstancial, que
será, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão. Sem esse
segundo elemento, que é como o invólucro aprazível, palpitante, aperitivo do divino manjar, o primeiro
elemento seria indigerível, inapreciável, não adaptado e não apropriado à natureza humana. Desafio
qualquer pessoa a descobrir qualquer exemplo de beleza que não contenha esses dois elementos
(BAUDELAIRE, 1996, pp. 10 e 11.)

Ao discutir a obra de Constantin Guys, Baudelaire também realiza uma crônica de seu tempo.
Para ele o caráter efêmero da modernidade é uma característica presente constantemente no
traço desse pintor. O moderno é o lugar da novidade, da velocidade e do que é transitório.
A vida moderna é assim. A arte como possibilidade de fixação de um instante. Desse modo,
em sua análise, o apego demasiado aos detalhes de um tema é um desperdício de inspiração.

8
Atrapalha a fluidez que marca o momento criador e diminui a grandiosidade da obra produzida.
Guys pinta de memória, seu olhar é abreviador e sintético, “muitos detalhes sem importância
tornam-se usurpadores” (BAUDELAIRE, 1996, p. 32). Esse desejo de não deixar escapar a
poeticidade do momento é que permite a possibilidade de produzir obras significativas por meio
de uma memória que ressuscita as impressões e situações históricas e cotidianas, fazendo saltar
aos olhos o impacto de um Lázaro que se levanta ou de um fogo que se agiganta sobre a tela.
Figura 3. Constantin Guys – No teatro (no foyer do teatro; damas e cavalheiros) – Museu
de Arte Walters.

Fonte: Constantin Guys (1802–1892)/Wikimedia Commons

Diálogo com o Autor

[...] G. tem um mérito profundo que lhe é peculiar; desempenhou voluntariamente uma função
que outros artistas desdenharam e que cabia sobretudo a um homem do mundo preencher. Ele
buscou por toda a parte a beleza passageira e fugaz da vida presente, o caráter daquilo que o leitor
nos permitiu chamar de Modernidade. Frequentemente estranho, violento e excessivo, mas sempre
poético, ele soube concentrar em seus desenhos o sabor amargo ou capitoso do vinho da vida
(BAUDELAIRE, 1996, p 70).

Para Baudelaire, uma das marcas do homem de gênio é a capacidade de olhar para as coisas
com a curiosidade de uma criança, ou ainda com a vontade de redescobrir o mundo que está
presente na alma de um convalescente. São olhares que se atentam aos detalhes, mas não
se deixam escravizar por eles. A maneira alegre com que uma criança absorve a cor é muito
parecida com a maneira que um pintor observa as matizes e diferenças presentes na coloração
dos objetos, recriando e materializando uma nova interpretação sobre eles.

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Unidade: Concepções estéticas: A complexidade do pensamento artístico

Essa visão muito particular presente na estética de Baudelaire contribui muito para pensarmos
o quão complexo é o processo artístico. Nenhuma visão artística, nenhuma concepção estética
é totalmente válida se não a pensarmos entrelaçada a outras. Um entendimento maduro do
processo artístico pressupõe, então, que partilhemos dessas inúmeras concepções e produzamos
uma reflexão autônoma desse universo plural e contrastante que vivenciamos ao nos inserirmos
no mundo das artes.

Arte e indústria cultural

Como vimos, em Baudelaire, o advento da modernidade traz consigo a velocidade e a


mutabilidade das relações e situações presentes. A arte inevitavelmente absorve essas características
e as ressignifica enquanto reflexão sobre os aspectos mais profundos do nosso modo de viver.
No entanto, é necessário que pensemos as implicações políticas, econômicas e tecnológicas
que se aliam, sobretudo, à arte contemporânea a partir da revolução industrial.
Se lembrarmos das aulas de história da época do Ensino médio, certamente já ouvimos que
é a mecanização ocorrida na indústria em meados do século XVIII que permite o surgimento
da produção em larga escala e gera a necessidade de buscar novos mercados consumidores
para esses produtos. A arte, de certa maneira, acompanha esses avanços tecnológicos e sofre os
efeitos desse processo de maneira semelhante.
Algumas formas de arte somente são possíveis com o surgimento de aparatos tecnológicos
que possibilitam sua existência. O cinema é uma forma de arte que não poderia se constituir
se não fosse por meio da tecnologia. Ademais, como vimos, o lugar que o cinema ainda ocupa
nas artes visuais ainda é de certa forma nebuloso. Pois, além de ser uma forma de teatro, é
fotografia em movimento. Muitos o julgam como uma arte completa por juntar a fotografia, a
trilha sonora, a interpretação, a cenografia e os efeitos. Porém, mesmo com tudo isso, ele não
seria possível sem a descoberta da eletricidade como forma de energia.
Da mesma maneira, a música, apesar de ser uma forma milenar de arte, assume outros
caminhos quando se une à tecnologia. Antigamente, ouvir música sem a presença de músicos
e instrumentos musicais era impossível. Toda audição musical se dava simultaneamente à sua
execução. Ou seja, somente era possível escutar música ao vivo. Talvez por isso algumas óperas
sejam tão longas. As pessoas não estavam cercadas por música e não se ouvia música toda
hora. Todavia, com a criação do gravador, qualquer um que possuísse um aparelho reprodutor
de áudio poderia ter uma orquestra ou uma big band à sua disposição. Esse processo também
faz com que seja possível o surgimento da possibilidade de se comprar a execução musical
gravada, isto é, o surgimento da música como mercadoria. Se bem que antigamente já se
vendiam as partituras daquelas músicas que caíam no gosto popular. Porém, convenhamos que
o alcance de uma partitura é bem menor do que o de uma gravação, visto que esta vem pronta,
enquanto aquela ainda necessita de intermediários em sua execução.
Dessa maneira, o termo “indústria cultural” é entendido como o processo partidário da
industrialização que concede a tudo que é produzido culturalmente pela arte adquirir o status
e os fetiches da mercadoria – sob o jugo do capitalismo e de suas relações de produção, com o

10
intuito de inserir-se no mercado e gerar consumo de maneira massiva. Os primeiros a utilizarem
esse termo foram os filósofos Adorno e Horkheimer, em seu livro Dialética do Esclarecimento,
de 1947, quando buscaram analisar como se configuravam as formas de expressão da cultura
e da arte no século XX.
O termo “indústria cultural”, dessa maneira, se contrapõe à ideia de “cultura de massa”. O
que se estabelece com essa denominação é a ideia de que a arte midiática e mercadológica não
é produzida pelas massas, mas para as massas. Desse modo, como veremos, cria-se a ideia de
que a mídia e o mercado fabricam uma ideia de gosto a que todos acabam por absorver, sem
ao menos perceber que suas preferências estão sendo manipuladas.
Figura 4. Max Horkheimer à esquerda e Theodor Adorno à direita, em Heidelberg (1965).

Muitas vezes, pode se pensar que as escolhas


que realizamos artisticamente partem apenas
de preferências pessoais. Entretanto, acreditar
apenas nisso é assumir uma postura ingênua,
pautada prioritariamente pelo senso comum.
A arte que é produzida como mercadoria,
ou seja, para ser consumida, é guiada por
parâmetros mercadológicos e é regida por leis
que visam mais o lucro do que a excelência
artística. O que está em jogo, assim, não é
como as concepções estéticas influenciam
a arte, mas como estas podem auxiliar no
Fonte: Wikimedia Commons processo de acúmulo do capital.
Partindo-se desse princípio, toda preferência artística parte de uma escolha que pode ser
determinada por elementos tanto internos quanto por influências externas, pautadas por fatores
sociais, econômicos, de necessidade de integração dentro de um grupo, entre outros.
Porém, agrega-se a essa discussão um fator primordial: a maneira como a mídia influencia a
produção dos signos que perpassam o imaginário das pessoas.
A sociedade de consumo transforma a obra de arte em mercadoria. O valor mercadológico que
lhe é atribuído, na maioria das vezes, suplanta a sedução e o valor estético que lhe é inerente.
Talvez seja interessante pensarmos essa discussão a partir das especificidades da música, sua
apreciação e seu consumo.
A fruição musical acaba por subordinar-se a regras de mercado e às especificidades da
indústria cultural. Partindo-se dessa perspectiva, é a música popular que se estabelece como
um fenômeno de mercado, pelo seu caráter dinâmico e veloz, no sentido de sua difusão em
todos os setores da sociedade e de sua utilização inserida em qualquer contexto cultural que
se possa pensar.
O filósofo alemão Adorno defende, em seu ensaio O Fetichismo na música e a regressão
da audição, que, com o advento do registro sonoro por meio das gravações, a exposição às
manifestações musicais se torna um fator constante. A música permeia todos os espaços e toma
conta de nosso cotidiano de maneira quase involuntária. O deslocamento até um local onde
se produza música não é mais necessário, o meio que nos envolve proporciona experiências

11
Unidade: Concepções estéticas: A complexidade do pensamento artístico

musicais constantes e em cada espaço; mesmo nos mais recônditos refúgios somos passíveis de
experimentar a exposição a algum tipo de música, seja nos programas de televisão, no rádio
ou nas lojas de departamento. Assim, a experiência de ir a um concerto de música erudita, por
exemplo, tornou-se um hábito quase esquecido, legado a certa parcela da sociedade que cultiva
de maneira quase monástica o hábito de fruir esse tipo de música.
O foco principal dessa discussão é o de que Adorno afirma que, partindo-se desse quadro,
os nossos hábitos de escuta tornam-se desconexos, desatentos e fragmentados. A esse processo
ele chama de “desconcentração”, que seria a consequente impossibilidade de como ouvintes
modernos mantermos a atenção durante o processo de escuta de determinada obra musical
(ADORNO, 1991, p. 182).
O próprio conceito de gosto está ultrapassado. A arte responsável orienta-se por critérios
que se aproximam muito dos do conhecimento: o lógico e o ilógico, o verdadeiro e o falso.
De resto, não há tempo para escolha; nem sequer se coloca mais o problema, e ninguém
exige que os cânones da convenção sejam subjetivamente justificados; a existência do próprio
indivíduo, que poderia fundamentar tal gosto, tornou-se tão problemática quanto, no polo
oposto, o direito à liberdade de uma escolha, que o indivíduo simplesmente não consegue mais
viver empiricamente. Se perguntarmos a alguém se ‘gosta’ de uma música de sucesso lançada
no mercado, não conseguiremos furtar-nos à suspeita de que o gostar e o não gostar já não
correspondem ao estado real, ainda que a pessoa interrogada se exprima em termos de gostar
e não gostar. Ao invés do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção
de sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mesmo
que reconhecê-lo. (pp. 165 e 166.)
Estaríamos, dessa forma, reféns de uma forma de pensamento que nos pasteuriza e nos
inocula. O gosto já não é nosso, assim como a capacidade estética autônoma de escolha também
já não nos pertence. Estamos legados a um bombardeio ideológico efetuado pela mídia e pela
indústria cultural que se caracteriza por converter os bens culturais em mercadoria.
O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias
musicais padronizadas. Tal indivíduo já não consegue subtrair-se ao jugo da opinião pública,
nem tampouco pode decidir com liberdade quanto ao que lhe é apresentado, uma vez que tudo
o que se lhe oferece é tão semelhante ou idêntico que a predileção, na realidade, se prende
apenas ao detalhe biográfico, ou mesmo à situação concreta em que a música é ouvida. (Ibid.)
A indústria cultural fabrica tendências e estilos que devem ser consumidos por determinado
público em determinado período de tempo, como os parâmetros de sucesso que estabelecem
o que deve ser ouvido durante o verão ou o artista que vai alavancar a trilha sonora de uma
nova novela. Tudo isso concorre para que o gosto musical da massa seja formado a partir
de certa perspectiva de consumo. A mercadoria música, desse modo, impõe o desejo de sua
posse tanto a partir do dado concreto da gravação como a partir do consumo da performance
e da apresentação musical. O que é do âmbito da diversão, da catarse, da idealização ou da
duplicação estaria subordinado aos desígnios da mídia.
Nos últimos anos, porém, com o advento da internet e a possibilidade de podermos baixar e
escolher arquivos eletrônicos de música (mp3), independentemente de um álbum organicamente
pensado, nossos hábitos de escuta se alteraram. Houve uma nova fragmentação além daquela
pensada por Adorno em suas reflexões: cada canção ainda assume a influência que o mercado e
a propaganda exercem sobre ela, no entanto temos o surgimento de um espaço livre para buscar

12
alternativas àquilo que nos é imposto, exercitando o direito de escolhermos as manifestações
sonoras que mais nos agradam, independentemente de músicas de “trabalho” impostas por
gravadoras. No entanto, estamos tão saturados e expostos às imposições da mídia e do mercado,
que, ainda assim, acabamos escolhendo ouvir o que nos fazem ouvir, seguindo uma tendência
que também é imposta por uma “ditadura” da maioria.
Adorno afirma sobre a música midiática que ela, ao invés de entreter, parece contribuir “para
o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade
de comunicação” (1991, p. 67). E continua ainda sua reflexão nos seguintes termos:
A música de entretenimento preenche os vazios do silêncio que se instalam entre as pessoas
deformadas pelo medo, pelo cansaço e pela docilidade de escravos sem exigências. Assume ela
em toda parte, e sem que se perceba, o trágico papel que lhe competia ao tempo e na situação
específica do cinema mudo. A música de entretenimento serve ainda - e apenas - como fundo. Se
ninguém mais é capaz de falar realmente, é óbvio também que já ninguém é capaz de ouvir. (Ibid.)
Temos que levar em consideração que Adorno realiza essas reflexões em meados do século
XX, tendo em vista o público europeu, que pelo advento da possiblidade das gravações começa
a abandonar os salões e teatros, renegando a complexidade da música erudita. Para ele, a
popularização da música por meio de sua reprodução como mercadoria leva a uma inevitável
regressão do gosto musical.
A atualidade dessa discussão é irrefutável. Nunca houve em nossa sociedade tantas
manifestações artísticas de gosto duvidoso e tantos artistas fabricados pela mídia com o simples
intuito de produzir lucro. Mas em que isso se relaciona à estética? Podemos dizer que em tudo.
Na contemporaneidade, é quase impossível pensar a arte sem pensar em suas implicações
mercadológicas e políticas.
Uma voz que dissona ao pensar a possibilidade massiva de reprodução da arte é Walter
Benjamim.

Walter Benjamin (1892-1940)

Wikimedia Commons

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Unidade: Concepções estéticas: A complexidade do pensamento artístico

Ele foi um filósofo e ensaísta alemão que, tendo por base as reflexões kantianas sobre a arte,
construiu suas teorias a partir da ideia de crítica presente nesse filósofo. Essa forma de reflexão
acabou por partir de concepções tanto estéticas como políticas, incluindo os sistemas culturais e
também suas bases econômicas.
Porém, antes de entendermos em que as ideias de Walter Benjamin se relacionam com o
conceito de “indústria cultural”, é importante que entendamos o que ele entende por “aura”.
Primeiramente, ele define aura como “uma figura singular, composta de elementos espaciais
e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja” (BENJAMIN,
1994, p. 170). Os seus elementos constituintes são a autenticidade e a unicidade.
A autenticidade pode ser concebida como a substância da obra, enquanto algo que se localiza
no tempo e no espaço, relacionando-se à tradição em que está inserida. Dessa maneira, ela é
constituída não somente pelos seus elementos físicos. Além disso, nela deve-se considerar a história
da obra de arte, presente nas diversas transformações físicas sofridas por ela e pelas relações
de propriedade que se estabeleceram durante o tempo. É a autenticidade que nos permitirá
reconhecer o objeto como algo único e idêntico a si mesmo (BENJAMIN, 1994, p. 167).
Daí decorre o segundo elemento que caracteriza a aura: a unicidade. Esta consiste no caráter
único e tradicional da obra de arte. A ideia de unicidade se fundamenta por meio de algo que
perpassa o tempo e relaciona a ideia de valor de culto e à sacralização. Herança que remonta à
utilização da obra de arte como um instrumento a serviço de cultos e rituais.
Segundo Benjamin (p. 171), “o valor único da obra de arte ‘autêntica’ tem sempre um
fundamento teológico, por mais remoto que seja (...)”. Esse modo de ser aurático da obra
de arte nunca se destaca completamente de sua função ritual. Esse uso limitava o alcance de
exposição da obra, levando-a apenas ao conhecimento de um grupo pequeno e seleto.
O caráter transcendental que esses dois elementos concedem à obra de arte retira-a da
realidade histórico-material, inserindo-a em um patamar superior, separado da realidade. Pois,
produzida por uma divindade ou por um “gênio individual”, há uma elevação da obra até o
mundo espiritual, em oposição ao mundo material. Essa idealização da obra de arte, segundo
ele, restringe a atividade cultural, na medida em que a insere em uma esfera superior, absorvida
somente por aqueles que possuem o dom de produzir cultura, excluindo uma série de pessoas
da possibilidade de entendimento e de produção das manifestações artísticas. Com essas
características, a obra de arte aurática rejeita, para Benjamin, qualquer função social, assim
como qualquer possibilidade de determinação objetiva (Ibid.).
Desse modo, Benjamim contesta o caráter negativo da reprodução tecnológica dos objetos
artísticos e diz que a possibilidade de multiplicação torna presente e destitui a arte do seu
caráter sagrado e ritual. Para o autor, “a obra de arte, na era de sua reprodutibilidade técnica
revoluciona o estatuto da cultura, dissolve o conceito burguês de arte, transforma a cultura de
elite em cultura de massa” (1994, p. 217).
A relação que o público tem com a arte sofre uma revolução. Antes da invenção da fotografia,
conhecer os afrescos de Michelangelo na capela Sistina, por exemplo, era um privilégio daqueles
que possuíssem condições financeiras de fazer uma viagem até o Vaticano. Com a reprodução
fotográfica, o acesso aos bens culturais se amplia e se democratiza, o que leva à possibilidade de
que um número infinitamente maior de pessoas tenha contato com a arte de alto nível, gerando
também novas possibilidades de formação cultural. Isto é, a reprodutibilidade técnica permite
a circulação planetária das obras de arte. No entanto, ele nem poderia imaginar o alcance que

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a ideia de reprodutibilidade iria ter algumas décadas depois com as tecnologias digitais que, de
certa forma, produzem uma desmaterialização da fotografia, por exemplo, permitindo que ela
seja compartilhada exponencialmente, como uma reação em cadeia.
Entretanto, voltando ao pensamento de Adorno, é justamente esse processo de massificação
da arte que é problemático, visto que, ao legar à arte o papel da mercadoria, esta perderia o
seu estatuto de arte. Ele denomina esse efeito de semicultura. Pois, como vimos, a arte que
consumimos é oferecida pela indústria cultural e a absorvemos sem maiores reflexões, como se
fosse uma escolha pessoal. Os maiores exemplos desse processo são a música midiática e o cinema
comercial, reforçados pela influência que os programas de televisão exercem sobre as pessoas.

Considerações finais
Como pudemos perceber, não podemos analisar as obras de arte apenas por um aspecto.
Muitos fatores estão envolvidos na compreensão do universo artístico.
A possibilidade de universalização do juízo estético ainda é uma pergunta atual? Podemos
dizer que sim. O mundo da arte é efêmero e mutante, renovando-se a cada instante, produzindo
cotidianamente novas formas de enxergar o mundo. Uma das funções da arte é dotar a nossa
existência de sentido; para seres corruptíveis em um mundo também finito, gotas de eternidade
se acumulam no processo de criação de cada obra. Estas são sorvidas cada vez que uma pessoa
aprecia um quadro em um museu, toca uma canção em seu violão ou vibra com a bela fotografia
de determinada obra cinematográfica.
A estética, sendo uma das faces da filosofia, ao tratar da arte permite que esses caminhos
sejam percorridos e compreendidos, por meio dos meandros dessa atividade tão essencial para
a existência da humanidade sobre a Terra. Assim, gostaríamos de terminar essa discussão com
uma reflexão do esteta italiano Luigi Pareyson.

Diálogo com o Autor

É certo que, na leitura e na crítica, interpretação e juízo são inseparáveis, e se chega à avaliação
universal da obra através da pessoalidade do gosto; e isto torna difícil a formulação e a comunicação
do juízo. Mas uma universalidade que deve desprender-se das condições históricas e pessoais é árdua
e difícil, não impossível: o juízo é o ponto no qual, através da mutabilidade do gosto histórico, se
realiza e pode realizar-se um acordo entre todos os intérpretes. O desempenho desta tarefa não é fácil,
e está confiado ao tino das gerações, mas é consolador ver sucederem-se, na história, as suas diversas
interpretações e, ao mesmo tempo, realizar-se pouco a pouco o acordo sobre o valor de algumas obras:
é a inexaurível riqueza da experiência estética que se desenvolve, ao mesmo tempo em que se afirma
a universalidade do valor artístico. O sentido da crítica é precisamente este: através da mutabilidade
do gosto e da diversidade das interpretações, e apesar de todas incompreensões e divergências, pouco
a pouco vai-se realizando um acordo cada vez mais unânime acerca do valor de certas obras, isto é,
impõe-se a universalidade, a objetividade, a unicidade do juízo (PAREYSON, 1989, p. 180).

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Unidade: Concepções estéticas: A complexidade do pensamento artístico

Material Complementar

Textos
ADORNO, T. A filosofia da nova música. São Paulo: Perspectiva, 2004.
XAVIER, I. A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

Filmes
Janela da alma. Direção de João Jardim e Walter Carvalho. Brasil/França, 2001
(Duração 73 min.).
Meia-noite em Paris. Direção de Woody Allen. Estados Unidos, 2001 (Duração
94 min.).

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Referências

ADORNO, T. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: Textos Escolhidos.


São Paulo: Nova Cultural, 1991.

BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras


escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BAUDELAIRE, C. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz


e Terra, 1996.

SUBTIL, M. J. D. O consumo musical midiático e a construção de sentidos por crianças


de 9 a 12 anos. In: Comunicação, mídia e consumo, v. 7, n. 20, 2010. Disponível em: <http://
revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/view/284/259>. Acesso em: 15 dez. 2014.

PAREYSON, L. Os problemas da estética. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1989.

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Unidade: Concepções estéticas: A complexidade do pensamento artístico

Anotações

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