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25/05/2023, 13:41 O Novelo – Papo de Cinema

CRÍTICA

O Novelo (2021) pode ser compreendido na perspectiva de um cinema de reconforto.


Trata-se de uma obra movida por sentimentos e virtudes: através da ciranda de cinco
irmãos adultos, reforça-se a importância da união familiar, da superação de desavenças,
do respeito à diferença. A história se desenvolve através de choros e abraços, brigas e
pedidos de desculpa, bolos de chocolate para comemorar a sobriedade do rapaz
alcoólatra e olhares solidários diante da confissão da homossexualidade. O drama
oferece uma equivalência, dentro da produção brasileira, àquilo que os norte-americanos
chamam de cinema indie: projetos simples focados nos personagens e nos diálogos,
onde um grupo de pessoas desajustadas enxerga a humanidade nos demais e descobre
que são mais fortes juntos. Assim, os percalços do caminho se mostram temporários,
passíveis de superação na cena seguinte, e o registro privilegia a moderação: os risos se
convertem em meios sorrisos, já os choros se tornam lágrimas discretas, atenuadas por
alguma piada em seguida. A bebedeira do sujeito em fase de recuperação é esquecida
com rapidez; um caso de traição (o rapaz que dormiu com a esposa do outro) se resolve
com uma proposta cômica; os anos de exclusão pelo intelectual esnobe são ignorados
em nome da promessa de um jantar em família. O indie evita resolver os problemas
magicamente, mas acena à possibilidade de resolução a curto prazo – o otimismo se
encontra na perspectiva de novos rumos.

O preceito se estende à construção estética e narrativa. Partindo do roteiro de Nanna de


Castro, a diretora Cláudia Pinheiro investe nos caminhos mais convencionais do
melodrama familiar: a trajetória alternada entre dilemas contemporâneos e flashbacks da
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infância; a apresentação de cada irmão em cenas distintas, antes de uni-los; o uso de


símbolos evidentes de liberdade e restrição, caso da pipa voando no céu e do pássaro
preso na gaiola. A montagem paralela reforça relações de causa e consequência: como
se maquiavam na infância, revelam-se tolerantes à desconstrução da virilidade no
presente; visto que aprenderam a tricotar quando pequenos, resgatam esta prática
quando precisam se reunir. A cineasta dedica tamanha atenção ao quinteto que se
aproxima de um dispositivo teatral, onde os homens conversam dentro de um hospital
estranhamente vazio, silencioso, com pouquíssimos pacientes e médicos. O corredor
existe apenas para eles, na função de pano de fundo. A gentileza se estende ao
espectador, a quem se mastigam as descrições para que nada passe incompreendido: o
psicanalista gay (Rogério Brito) usa óculos de aro grosso, vive num grande apartamento
claro com decoração em cores pastéis e escuta ópera o tempo inteiro. Já o advogado,
truculento e malandro (Sérgio Menezes) esbanja dinheiro enquanto defende uma cliente
grosseira, chamando outra mulher de “puta” aos gritos. Os universos são claramente
delimitados.

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Um mérito considerável em O Novelo decorre da história liderada por atores negros em


situações dissociadas do racismo, da marginalidade e do preconceito. Os irmãos
desempenham o papel de escritores, atores, empresários. Uma das primeiras cenas
apresenta Mauro (Nando Cunha), patrão negro, sendo assistido pela secretária branca. A
sequência possui implicações ínfimas em termos de conflito, porém carrega inegável
valor simbólico. O discurso se mostra benevolente com as experiências de sexualidade
(“Eu até tentei ser gay”, explica Cacau, interpretado por Sidney Santiago Kuanza),
desconstruindo o ideal do macho predador, o preconceito acerca do negro
ultrassexualizado e da mulher doméstica e passiva. Há espaço para afeto genuíno entre
homens que se abraçam e cuidam uns dos outros. Longe de defender bandeiras
explícitas (os temas são introduzidos em tom menor), o projeto sustenta um olhar
progressista calcado no sentimento. Por isso, evita filiar os protagonistas a campos
político-ideológicos precisos, às crenças religiosas e a quaisquer formas de instituições.
Ao situar a quase integralidade da subtrama atual ao longo de um único dia, a narrativa
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se permite diminuir o peso dos dilemas lá fora: conhecemos em detalhes apenas aquilo
que os personagens decidem revelar por conta própria. Existe um aspecto terapêutico no
dispositivo, acreditando na cura através da fala e do expurgo ocorrido no interior de um
espaço seguro (o hospital-cenário).

Tamanha generosidade não impede alguns tropeços. Primeiro, na coesão entre os heróis:
supondo que nasceram e foram criados juntos, sem terem se mudado para outros
Estados – nenhum aspecto do filme leva a crer nesta hipótese -, como justificar o sotaque
carioca de Rocco Pitanga e Sérgio Menezes face ao palavreado tipicamente paulistano
de Sidney Santiago Kuanza e Rogério Brito? Segundo, a busca por uma construção leve,
próxima do humor, provoca sequências desajustadas, caso do oferecimento da namorada
para fazer sexo com o irmão, e dos diálogos polidos demais entre os namorados: “É
como a esfinge: decifra-me ou devoro-te”, responde o sujeito estrangeiro, reforçando a
interpretação estereotipada da burguesia intelectual. A confissão do escritor psicorrígido
ao pai em coma, num plano aberto, também se mostra excessivamente didática. Esta
abordagem revela profunda empatia e carinho por suas figuras falhas (sendo a
condescendência, ou o paternalismo, outro traço indispensável ao indie), o que não
necessariamente se traduz em sutileza de mise en scène. A direção de fotografia
privilegia os close-ups e os planos de conjunto nas conversas, enquanto os
enquadramentos levemente móveis revelam algumas composições muito belas – vide a
interação de Mauro e Cicinho, focados ao fundo do plano, em contraste com Zeca
desfocado em primeiro plano. De resto, a direção se coloca na posição humilde de
oferecer o palco para os atores brilharem, sem chamar atenção a si própria.

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Em consequência, a obra busca o valor do humanismo, da inclusão social e da


convivência entre diferenças. O símbolo do tricô, que alude ao título e retorna num
instante-chave, representa bem a desconstrução do machismo – embora tivesse sido
importante presenciar alguma peça finalizada pelos irmãos, ou a importância do tricô em
suas vidas ao longo do crescimento. Pinheiro acredita num cinema delicado, calcado no
minimalismo e na modéstia. Seria fácil apontar a ausência de vigor na luz e na arte, além
da falta de contrastes através da montagem, porém estas representam escolhas
deliberadas de um filme que privilegia a fluidez e o bem-estar. A diretora evita provocar os
personagens e os espectadores ao limite da catarse, concluindo a obra em tom solar,
beirando o cômico (a confissão de Cicinho a Mauro). Na verdade, a premissa de afagos e
reencontros concebe desavenças apenas pelo prazer de eliminá-las rumo à conclusão. A
dor no estômago é esquecida, o rancor com o pai é exteriorizado, o dilema com as filhas
pequenas permanece em segundo plano. O Novelo se transforma numa singela terapia
de grupo, embutida numa obra adulta que evita tanto as facilidades das produções
populares quanto o hermetismo das propostas de autor. Neste sentido, ocupa um espaço
precioso na cinematografia brasileira, carente de pontes entre os extremos. Até neste
sentido, o drama constitui uma proposta de conciliação.

Bio Últimos Posts

Bruno Carmelo
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de
Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne
Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde
Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de
cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de
Cinema.

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