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WONG KAR WAI Nascido em 1958 em Xangai, China Quando o cinema de Hong Kong comegou ase impor no oci- dente no fim dos anos 1980, ele foi imediatamente percebido —a justo titulo, aliés — como estritamente comercial. Mas Wong Kar Wai mudou as coisas. Com as mesmas ferramen- tas que seus pares utilizavam para realizar blockbusters, Wong fez filmes pessoais e poéticos, transgredindo ao mesmo tem- po os codigos de narragao do cinema chinés tradicional e os costumes da sociedade. Do vertiginoso Amores expressos a0 hipnético Amor a flor da pele, a obra de Wong Kar Wai se mostra extremamente moderna e de uma poténcia rara. O préprio personagem é bastante enigmético, escondendo-se por tras de éculos escuros que ele jamais abandona, ¢ res- pondendo a cada questao por meio de frases tao curtas quan- to possivel, como se tivesse medo de se revelar demais. Ao final, esta conversa é sem diivida a mais breve da série. Mas as respostas de Wong Kar Wai ganham em originalidade 0 que perdem em laconismo. O que me atraiu para o cinema foi acima de tudo um pro- blema de comunicagao, Nasci em Xangai, mas meus pais imigraram para Hong Kong quando eu tinha cinco anos. Em Hong Kong se fala cantonés, que é realmente muito dife- rente do chinés falado em Xangai. Por isso eu nio tinha com quem falar, nao conseguia fazer amigos, eu me entediava in- tensamente. Entao minha mae comegoua me levar ao cinema porque era algo que eu podia entender para além das palavras, apenas olhando as imagens. Logo fiquei viciado. E como to- das as pessoas de minha geragdo, creio poder dizer que foi através do cinema, e depois da televisdo, que conheci a vida e descobri o mundo. Vinte anos antes, talvez tivesse sido a lite- ratura ou a miisica, ¢ talvez eu tivesse escolhido expressar-me por meio das palavras ou dos sons. Mas cresci com imagens na cabega, e, quando sai do colégio, me pareceu natural aven- turar-me em estudos de grafismo. Naquela época nao havia escola de cinema em Hong Kong. Era preciso ir para fora do pais para isso, e eu nao tinha condigdes. De toda maneira, tive asorte de estar 14 no momento em que todos os jovens cineas- tas que tinham ido se formar nos Estados Unidos e na Europa estayam voltando a Hong Kong para revolucionar o sistema. Consegui me envolver nesse movimento e fazer com que me 184 | Grandes diretores de cinema contratassem, primeiro, durante dez anos, como roteirista e depois, enfim, como diretor. Apesar de todo esse caminho percorrido, minha atitude como cineasta permanece funda- mentalmente a de um espectador que passou para tras das c- meras. Quando fago um filme, fago-o pensando no prazer que se pode ter ao vé-lo. O publico é portanto, minha primeira motivagao. Mas nao é a tinica, e creio que nao deve ser. Nao se pode fazer um bom filme se nao se pensa no ptiblico. Mas também nao se pode fazer um bom filme se 86 se pensa no pt- blico. B preciso que haja algo a mais, uma espécie de intencao totalnente pessoal, que deve, idealmente, permanecer secre- ta aos olhos de todos. PARA MIM, O LUGAR VEM ANTES DA HISTORIA. Escrevo meus proprios roteiros. Nao por uma ques- tao de ego ou para ser reconhecido como autor integral. Francamente, eu ficaria radiante em ter a colaboragdo de um roteirista, mas as raras vezes em que tentei sempre resulta- ram em conflitos. E no fim das contas pensei que ja que eu era capaz, de escrever sozinho, nao havia razdo para procu- rar complicagées. No entanto, nao posso dizer que eu tenha prazer em escrever. Na verdade, escrever um roteiro & dos exercicios mais penosos que existem. E longo, dificil, angus- tiante, é tudo, menos uma experiéncia agradavel. Meu maior sonho seria poder acordar uma manhi e encontrar um rotei- ro prontinho sobre minha mesa-de-cabeceira. Mas enquan- to espero esse dia abengoado, creio que eu mesmo vou ter que continuar a escrever. Em defesa dos roteiristas que ten- taram trabalhar comigo, devo confessar que ndo tenho um método de trabalho muito classico. Na verdade, antes de por no papel uma linha, tenho que escolher as locagdes. Quando Wong Kar Wai | 185 escrevo um filme, escrevo mais com imagens do que com palavras, e para que essas imagens nas¢am, preciso ver os locais onde a histéria se desenrola. E preciso vé-los fisica- mente. Somente depois de ter delimitado o espago no qual & essa histéria se desenrola é que sei que tipo de personagens vao evoluir nela, como eles vao falar e se deslocar etc. Na verdade, deixo-me inspirar enormemente pela atmosfera dos lugares. E de modo algum trabalho de modo cartesiano: durante algum tempo, as idéias me vém um pouco de toda parte e de maneira abstrata. Nao sei realmente o que quero, mas consigo decidir o que nao quero, e vou procedendo por climinagao. Nao tento necessariamente responder a todas as quest6es que geralmente se colocam para 0 roteirista de um filme. Na verdade, acho que o proprio filme serve para encontrar essas respostas, e enquanto elas nao tiverem sido encontradas, ainda estamos fazendo o filme. As vezes en- contramos essas respostas nas filmagens, as vezes na mon- tagem, e as vezes... trés meses depois da estréia do filme, ao ouvir a reagao de um jornalista ou de um espectador. Em compensagio, a unica coisa que determino de maneira de- cisiva desde a concepcao do filme é 0 género no qual ele se inscreve. Como espectador, e mais particularmente quando eu era crianga, sempre fui fascinado pelo cinema de género: os westerns, os filmes sobre a Antigitidade, os filmes de guer- ra ou de acdo, os filmes de terror... Ea cada vez que me lango num novo projeto, tento fazer com que ele se encaixe num género bem preciso, com todos os cédigos que isso implica. No caso de Amor a flor da pele, por exemplo, eu sabia que queria tratar de uma ligagao impossivel entre duas pessoas, mas eu nao queria ir na diregdo da historia de amor classica ou do melodrama, pois eu sabia que isso poderia facilmen- te se tornar tedioso. Entdo decidi abordar esse filme como 186 | Grandes diretores de cinema Wong Kar Wai | 187 um thriller, um filme de suspense. Para mim, o filme comeca INVENTAR UMA LINGUAGEM QUE SO PERTENCE A Vocht com duas pessoas que foram vitimas de um crime e que se *Y wv Jangam numa investigacio para compreender como e por Nao sou obcecado pela técnica. Para mim, a camera nao ke." que as coisas aconteceram. O filme é estruturado assim, com cenas muito curtas e uma vontade de manter uma espécie de mistério de tensao. E creio que é isso que o torna tao surpreendente. Uti1izo A MUsICA COMO UMA COR A misica tem uma grande importancia em meus filmes. Raramente mando compor algo, pois acho muito dificil me comunicar com misicos, Minha linguagem € visual, a deles é musical, ¢ néo consigo fazé-los entender 0 que quero. Entao, © que fago ha varios anos é que quando ougo um trecho musi- cal, classico ou contemporaneo, que me inspira algo de visual, gravo eseparo, Crio, assim, para mim um banco de dados mu- sicais que corresponde perfeitamente a meu universo visual e que posso vasculhar quando preciso. Utilizo essa mtisica em todos os estagios de fabricagéo de um filme, Geralmente ela intervém na montagem e me sirvo dela como eu utilizaria um filtro ou uma tintura. Ela serve para dar uma cor diferente a certas cenas. Sob esse ponto de vista, gosto particularmen- te de usar muisicas de uma época que nao corresponde a do filme, porque acho que isso deixa a atmosfera mais ambigua, mais complexa. E claro que a mtisica também pode intervir como fonte de inspiragdo no momento da escrita, e também me acontece utilizé-la nas filmagens, menos por questoes de atmosfera do que de ritmo. Quando tento fazer com que um camera compreenda a velocidade necessdria a um movimen- to de camera, um trecho musical muitas vezes fala mais do que um longo discurso. passa de uma ferramenta, Mas quando chego ao set, ¢ sempre por ela que comego e nao pelos atores. Sempre em relagio a essa questo de espago. Preciso decidir sobre os planos e ver © quadro no qual se desenrola a agao antes de poder dizer aos atores onde se colocar e como interpretar. Escolho os angu- los, depois digo ao operador onde colocar a camera e que tipo de plano quero. Falamos muito pouco, porque trabalhamos tanto juntos que quando digo “um plano proximo”, ele sabe precisamente onde o quadro comega ¢ onde termina. Em ge- ral, no me cubro muito, na verdade, nunca: decido por uma iinica maneira de filmar € limito-me a ela. A tinica excegao é quando se trata de uma cena de “transferéncia”, isto é, de uma cena que comeca do ponto de vista de um dos personagens e que passa pouco a pouco para 0 ponto de vista de outro. Isso muito complicado, pois é impossivel saber qual ¢ 0 bom momento para operar essa transi¢do antes de estar na sala de montagem. Entao, nesse caso, filmo muitos planos. Nao pos- so realmente explicar a maneira como decido onde colocar a camera para um dado plano. Acho que sao decisdes que é preciso tomar de maneira instintiva mais do que analitica. A forca do cinema repousa em algo de misterioso. E um pou- co como a cozinha: nao se pode explicar racionalmente o que torna um prato melhor do que outro. O gosto ¢ algo de abs- trato emagico. E o cinema deve funcionar da mesma maneira, ou entao... de fato, é melhor escrever um livro, nao é? Mas. nao é por isso que o instinto deve se transformar em uma des- culpa para fazer qualquer coisa. Antes de tomar uma decisao, mesmo instintiva, me fago muitas perguntas. E as respostas devem decorrer de uma certa logica, mesmo que essa l6gica 188 | Grandes diretores de cinema s6 pertenga a mim. E como em poesia. Varios poetas podem utilizar a mesma palavra por uma razao e uma finalidade di- ferentes: por sua tonalidade, pela maneira como soa, pelo que significa, pelo que simboliza etc. Cada um pode criar sua pr6- pria linguagem a partir dos mesmos elementos. Mas no final essa linguagem deve significar alguma coisa. DIRIGIR UM ATOR E DEIXAR QUE ELE NOS SURPREENDA Acscolha de um ator é totalmente arbitraria. B como o desejo: porque nos apaixonamos por tal pessoa e nao por ou- tra? Ei inexplicavel. B algo que faz clic, é s6 isso. Encontra-se um ator ou uma atriz, e de repente o personagem que ele ou ela deve interpretar ndo tem mais importancia. 6 o proprio ator que se torna o centro de interesse, e idealmente, ele traz ao papel uma dimensao que nos surpreende tanto que nos obriga a transformar 0 personagem, € até mesmo a histd- ria. Creio que um filme é algo orginico, que cle nunca para de evoluir e de crescer, e que é preciso accitar deixar-se levar por ele mais do que tentar sempre manter 0 controle sobre ele, Quanto a diregao de ator, para mim, ela se baseia essen- cialmente em duas coisas: primeiramente, num bom conhe- cimento dos personagens descritos no roteiro e, em segundo jugar, num bom conhecimento da natureza humana. O traba- Tho de interpretagdo nada tem a ver com isso. Um bom dire- tor nao pode ter nenhuma nogao técnica do que seja esse tra- balho. A partir do momento em que sabe observar as pessoas, ele podera responder a todas as questdes que um ator lhe faz, e dar a ele sugestes de todo tipo. De toda maneira, nao acre- dito muito nas discusses entre o diretor e 0 ator. Acho até um pouco ridiculo quando vejo um diretor dizer a um ator:. . Wong Kar Wai | 189 B “Ento af vocé vai reagir assim porque no fundo vocé pensa isso...” Se se tem um minimo de experiéncia, sabe-se que toda a complexidade do ser humano vem do fato de que suas ages estdo freqiientemente em contradigao total com seus pen: mentos, e de que dois seres humanos nem sempre reagem da mesma maneira diante de uma situagao dada. Alguns choram quando estao tristes, outros ficam violentos ou, ao contrario, se fecham em si mesmos... E por isso que, mais do que teori- zar durante horas, sempre preferirei mandar ligar a camera e deixar que os atores me surpreendam. A REGRA BASICA: SER HONESTO CONSIGO MESMO Meu primeiro filme foi um sucesso comercial, mas 0 se- gundo foi um fracasso abrasador. E como em Hong Kong nada conta além dos resultados da bilheteria, ninguém mais queria produzir meus filmes seguintes. Fui entdo obrigado a me tornar meu préprio produtor e, paradoxalmente, foi as- sim que aprendi 0 que, em minha opiniao, constitui a ligéo fundamental de todo diretor. Compreendi que um diretor devia ter humildade bastante para aceitar que nem todos os filmes tinham a mesma escala. Em linhas gerais, podemos exi- gir meios enormes se fizermos um filme destinado a um pui- blico de massa. Mas se nao estivermos dispostos a fazer esse tipo de filme, se temos vontade de nos lancar em algo mais pessoal e que talvez sé fale a poucas pessoas, entao creio que é preciso ter a honestidade de saber adaptar suas ambigo a escala que realmente convém a esse filme e aceitar as limi- tages decorrentes, financeiras e técnicas. De todo modo, limitag6es nao sio nada além de desafios a serem aceitos, ¢ é muitas vezes assim que as melhores idéias brotam. Penso que se alguém viesse me ver amanha dizendo “vocé tera todo o 190 | Grandes diretores de cinema dinheiro que quiser para fazer seu proximo filme”, eu ficaria bastante incomodado. Primeiramente porque isso me com- plicaria o trabalho. Quanto mais meios temos, quanto mais possibilidades, quanto mais escolhas, mais hesitamos. Ora, quanto mais hesitamos, mais corremos 0 risco de fazer mas escolhas. Ao passo que a vantagem de nao se ter dinheiro é& que com freqiiéncia s6 ha um jeito de fazer as coisas. Na hora, ficamos frustrados mas acho que, no final, é sem duivida a me- Ihor coisa que pode acontecer a um diretor. FILMOGRAFIA 1988 (As Tears Go By | Wong gok ka moon) 1990 Nossos anos selvagens (A Fei Jing Juen) 1994 Amores expressos (Chong Qing Sen Lin) 1994 Cinzas do passado (Dung Che Sai Duk) 1995 Anjos caidos (Duo Luo Tian Shi) 1997 Felizes juntos (Chen Gwong Tsa Sit) 2000 Amor a flor da pele (Fa Yeung Nin Wa) 2004 Eros (segmento “A mao”) (Eros | The Hand) 2004 2046 — Os segredos do amor (2046) DAVID CRONENBERG Nascido em 1943 em Toronto, Canada Os filmes de David Cronenberg sao, no minimo, perturbado- res. Desde Videodrome — A sindrome do video, onde se podia ver o ator James Woods extrair de seu yentre um videocasse- te, o diretor canadense se dedicou a descrever de maneira bas- tante grafica as piores coisas que podem acontecer ao corpo humano, o que dé a seus filmes um cardter ao mesmo tempo fascinante e repulsivo. Eu esperava, portanto, encontrar um ser torturado e relativamente intimidador, alguém que ritia de minhas perguntas ou responderia de maneira nebulosa. Mas David Cronenberg € 0 oposto do esterestipo do diretor excéntrico ¢ introvertido. Pelo menos na superficie. Calmo, caloroso, elegante culto, é alguém com quem nos sentimos imediatamente A yontade. E se ndo soubéssemos que era um diretor, imaginariamos facilmente que se tratava de um pro- fessor de literatura numa grande universidade americana. Mas um professor dotado de um espirito nitidamente mais provocador que o de todos os seus alunos. Tm diretor por acidente. Fm todo caso, nunca foi realmente uma vocagao. No inicio, eu pensava em me tornar escritor, como meu pai. Eu gostava muito de cinema, como espectador, mas nunca tinha imaginado que se pudesse fazer disso uma carreira. Eu morava no Canada e os filmes vinham de Hollywood, que, de meu ponto de vista, se acha- va nao somente em outro pais, mas completamente em outro mundo. Depois, quando eu tinha cerca de vinte anos, aconte- ceu uma coisa muito estranha. Um dos estudantes de minha universidade filmou um longa-metragem no qual atuavam outros estudantes de quem eu era amigo. E 0 fato de ver numa tela, num verdadeiro filme, pessoas que eu conhecia na vida de todos os dias foi um verdadeiro choque. Isso pode parecer ridi- culo hoje, quando criancas de dez anos comegam a fazer filmes com seu camescope, mas na época vivi isso como uma revel: 40. Pensei: “Vocé também poderia fazer um filme.” Comecei, pois, a escrever um roteiro, mas eu ndo tinha nenhuma nogio de técnica cinematografica. Entao comecei pelo método que me pareciao mais légico: abri uma enciclopédia. E claro que as explicagdes eram muito sumarias, entao comprei revistis de cinema e ai, ao contrario, fiquei completamente perdido em meio aos jargées. Em compensagao, as imagens de mi 194 | Grandes diretores de cinema terial cinematografico que eu via me intrigavam. Sempre fui fascinado pela mecanica, é uma coisa para a qual tenho um verdadeiro feeling. Posso desmontar e remontar tudo, ¢ isso me permite compreender como funciona qualquer coisa. Fui entao bisbilhotar numa empresa de locagao de material de ci- nema, fiquei amigo da proprietaria, e ela me deixou brincar com as cameras, os gravadores, as lampadas... As vezes, os ci- meras passavam para devolver seu equipamento e me davam dicas sobre as objetivas, sobre a luz. etc. Depois, um dia, me aventurei, Aluguei uma das cameras e fiz um pequeno filme. Depois outro e outro. Mas mesmo nessa época eu ainda nio pensava seriamente em me tornar diretor. Para mim, a escrita vinha antes de tudo, ¢ o cinema era s6 um passatempo. Até 0 dia em que escrevi um roteiro que uma produtora canadense queria comprar de qualquer maneira. Ai me dei conta de que cu nao suportava a idéia de que ele fosse filmado por outra pessoa que no eu. Entdo me recusei a vendé-lo se eu nao pu- desse dirigi-lo, Eles tentaram me dissuadir e comecamos uma queda-de-brago que durou trés anos. Mas acabei ganhando. E esse filme decidiu o resto de minha carreira. UM CINEASTA TEM QUE SABER ESCREVER Isso pode parecer chocante, mas de algum modo creio que continuo a considerar a literatura como uma arte supe- rior ao cinema. B provavelmente por esnobismo, ou porque, como eu dizia antes, sempre pensei que minha carreira “sé- ria” seria escrever romances, e que o cinema seria apenas um hobby, algo que eu faria paralelamente. Ao mesmo tempo, quando encontrei Salman Rushdie, que considero como um dos autores mais ricos e mais intensos de sua geragao, per- guntei-lhe seu ponto de vista. Ele me parecia ainda mais inte- David Cronenberg | 195 ressante pelo fato de ter exescido na india, onde o cinema tem uma importancia cultural colossal. Perguntei-lhe entao se ele considerava a literatura como uma arte superior ao cinema, ¢ ele me olhou como se eu fosse louco. Ele me disse que achava exatamente 0 contrario, e que ele estaria disposto a tudo para fazer wm filme. N6s nos langamos num debate no qual afir~ mei que um filme jamais poderia expressar certas coisas que estavam em alguns de seus romances, ¢ ele me deu exemplos de momentos de filmes que nenhum romance jamais con guiria igualar. No fim das contas, concordamos sobre o fato de que hoje as linguagens do cinema e da literatura se comple- tam, e até mesmo se alimentam uma da outra. E impossivel julgar uma em relagao a outra. Em compensagao, continuo a considerar que ha uma verdadeira diferenga entre o diretor que escreve ¢ aquele que se contenta em filmar. Acredito fir- memente que para ser um cineasta completo deve-se ser paz de escrever o préprio roteiro. Em uma certa época, eu era ainda mais categérico: achava que se tinha obrigatoriamente que ser o autor da idéia original. Depois filmei Na hora da zona morta, que era uma adaptagao de um romance de Stephen King, perdi um pouco dessa arrogancia. A LINGUAGEM DE UM FILME DEPENDE DE SEU PUBLICO O cinema é uma linguagem, e uma linguagem nao pode existir sem uma gramitica. E a propria base de qualquer co municagao; devemos nos pdr de acordo quanto ao fato de que certos signos significam certas coisas. Mas no interior dessa linguagem, existe uma verdadeira flexibilidade. E 0 seu papel, como cineasta, é encontrar, para cada plano, o equilibrio ideal entre 0 que é esperado, 0 que é necessdrio e 0 que € excitany 196 | Grandes diretores de cinema te. Vocé pode utilizar um plano préximo de maneira conven- cional, isto é, para atrair o olhar para alguma coisa, ou vocé pode se servir dele para obter 0 contrario, isto 6, para desviar a atengao. Se vocé se diverte brincando com as regras da lin- guagem cinematografica, o resultado sera evidentemente mais denso, mais complexo, ¢ a experiéncia vivida pelo espectador sera mais enriquecedora. Ao mesmo tempo, isso implica que 0 espectador em questao jé possui um certo conhecimento da linguagem cinematogréfica, caso contrario ele se sentira per- dido e acabara se desligando. Em linhas gerais, para se comu- nicar de maneira mais intensa com cem pessoas, yocé corre 0 risco de perder mil no caminho. Quando Joyce escreveu Ulisses, por exemplo, era um livro bem experimental, mas ptiblico acompanhou. Depois, ele escreveu Finnegan’s Wake, cai perdeu muitos leitores, pois para compreender esse livro, era preciso praticamente aprender uma nova linguagem, ¢ _, Muito pouca gente esta disposta a fazer esse tipo de esforgo. Entao cabe a vocé saber até onde quer experimentar em fun- 40 do piblico com o qual yocé deseja se comunicar. Oliver Stone um dia me perguntou como eu vivia meu status de ci- neasta marginal. Nao era uma critica, mas uma constatagio. Ele sabe que eu poderia fazer filmes hollywoodianos se qui- sesse. Respondi a ele que o tamanho de meu piiblico me bas- tava amplamente. Penso que é algo que um cineasta deve ser capaz de decidir previamente — qual ser4 seu puiblico— pois isso influencia obrigatoriamente a linguagem cinematografi- ca que ele deve utilizar. UM UNIVERSO EM TRES DIMENSOES & Na primeira vez em que me vi numa filmagem, lembro- me de ter ficado aterrorizado com a nogao de espago, pois se David Cronenberg | 197 a escrita é um universo bidimensional, 0 cinema é tridimen- sional. E claro que nao estou falando da imagem, mas do set. E um universo em que é preciso gerir nao apenas 0 espago mas também a relagao das pessoas e dos objetos nesse espaco, € organizar 0 todo para que seja eficaz e para que ele, além disso, tenba um sentido. Isso pode parecer abstrato assim, mas quando somos confrontados com o problema, acredite, ele é muito concreto. Pois a cimera ocupa seu proprio lugar nesse espaco, ela é como um outro ator. E em muitos primei- ros filmes, é 0 mesmo defeito que observo; esta incapacidade de dangar com a camera, de gerir corretamente esta espécie de balé gigantesco formado por todos os elementos de um set. Por outro lado, o que ha de formidavel é que a maioria das de- cisdes a serem tomadas vem de maneira completamente ins- tintiva. Quando fiz meu primeiro filme, eu nao tinha certeza de poder controlar a imagem, porque nunca tinha estudado artes visuais, entao eu simplesmente nao sabia se seria capaz de saber onde colocar a camera. Eu tinha pesadelos nos quais percebia que nao tinha nenhuma opiniao sobre o assunto. Mas de fato, logo descobri que é algo completamente visce- ral. Acontecia-me até mesmo olhar no visor da camera depois que 0 operador havia preparado um plano e me sentir quase doente e dizer: “Nao, nao, isso nao da, esta horrivel!”, sem po- der explicar a raza, Apenas meu instinto me dizia que era ruim., Ainda hoje, funciono inteiramente na base do instinto. O perigo, é claro, é que, com a experiéncia, isso pode se trans- formar em rotina, Sabemos © que funciona, o que ¢ eficaz, 0 que é confortavel, ligamos 0 piloto automatico ¢ esquecemos de inovar. De todo modo, nao faco parte dos diretores para os quais a camera é a prioridade absoluta, Prefiro primeiro tra- balhar a cena com os atores, como uma pega de teatro, ¢ de- pois escolho a maneira como vou filmar o que foi preparado. 198 | Grandes diretores de cinema £ um pouco como se eu filmasse um documentario da cena que acabo de coreografar. Bi claro que certas cenas so pura- mente visttais ¢, nesse caso, coloco primeiro a camera. Mas na maior parte do tempo, minha prioridade continua sendo a esséncia dramética da cena, e s6 depois a cimera pode intervir em meu julgamento. UM FILME, UMA OBJETIVA Quanto mais fago filmes, mais sinto uma vontade de ri- gor e de purismo, ¢ até de minimalismo. E por isso que um filme como ExistenZ é quase inteiramente filmado com uma tinica objetiva, no caso a 27mm. Tenho vontade de ser sim- ples e direto, 2 maneira de um Bresson e, em contrapartida, na direcdo oposta de um Brian de Palma, que busca constan- temente uma maior manipulagdéo da imagem e uma maior complexidade visual. Nao critico o que ele faz, compreendo-o mauito bem intelectualmente, mas é uma outra abordagem. Assim, jamais utilizo 0 zoom porque para mim, é apenas um brinquedinho 6ptico. Ao passo que quando se move a camera, a mudanga de perspectiva nos projeta fisicamente no espaco do filme. O zoom também tem algo de bidimensional que nao corresponde a minha nogio de cinema. Os ATORES TEM SUA PROPRIA REALIDADE A maioria dos diretores que fazem seu primeiro filme hoje tém um background puramente visual, ¢ seu maior medo é se ver diante de um ator. Restam ainda alguns diretores que vém do teatro, para os quais é 0 encontro coma camera que sera aterrorizante. Quanto aos que vém da escrita, eles tem medo de tudo, pois estao habituados a trabalhar sozinhos David Cronenberg | 199 num cémodo e agora se véem tendo que gerir tudo isso! No que diz respeito ao trabalho com os atores, acho que © mais importante 6 compreender que a realidade de um ator nao éa mesma que ade um diretor. No inicio, eu considerava que os atores eram meus inimigos, que eram perigosos porque nao compreendiam a pressao que cu softia. Bu ficava preocupado em fazer o filme rapidamente, eficazmente, e dentro do or- camento, enquanto eles pareciam s6 se preocupar com seus figurinos, com sua maquiagem, com seu penteado. Isso me parecia totalmente irrisério, mas com o tempo, compreendi que era exatamente o contrario. Esses aspectos ndo tém nada de frivolo, séo as ferramentas deles, da mesma maneira que eu me sitvo da camera e da iluminag&o. Para um diretor, a prio-< ridade é o filme. Mas para 0 ator, é 0 personagem. Portanto, os dois nao esto na mesma esfera, no evoluem inteiramente no mesmo mundo, mas se se ouvirem, poderao ir no mesmo. sentido. No inicio, um diretor certamente tendera a querer resolver esse problema mentindo para o ator. Por exemplo, se o ator propée interpretar uma cena diante de uma janela e 0 cineasta se dé conta de que isso implicaré mudar toda a ilu- minacao e, portanto, perder duas horas, ele vai inventar uma razo para dissuadir o ator e fazé-lo interpretar ali onde a luz jd est4 preparada. Sei que isso pode acontecer, jé agi assim. Mas com o tempo, percebi que se formos honestos, a maioria dos atores nao apenas aceita nos facilitar a vida, como chega a fazer disso um ponto de honra. A nao ser quando nos vemos diante de atores loucos ou incontrolaveis — e, acredite em mim, isso acontece. Nesse caso... reze. NAo QUERO SABER POR QUE FILMO, Ha um momento em FxistenZ em que Jennifer Jason Leigh diz: “E. preciso jogar o jogo para entender 0 que ¢ © 200 | Grandes diretores de cinema jogo.” E claramente de minha abordagem do cinema que es- tou falando por meio dessa frase. Eu jamais seria capaz. de ex- plicar por que sou atraido por um assunto preciso, e apenas fazendo um filme descubro por que o faco, e por que o filmo dessa maneira. A maioria de meus filmes é, portanto, uma verdadeira surpresa quando os descubro terminados, ¢ isso nao € algo que me incomoda, ao contrario, é 0 que procuro. Alguns diretores dizem que tém na cabega uma visio muito concreta do filme antes de fazé-lo, e que, depois de o terem filmado, poderiam projetar o filme virtual eo filme real e ob- ter uma semelhanga de 80% a 90%, Isso me parece impossi- vel, pois ha mudangas demais, dia apos dia, no set. Pequenas mudangas que se acumulam e que fazem com que no fim nada mais possa se assemelhar ao que estava previsto no inicio. Sei que Hitchcock afirmava ser capaz de pré-visualizar seus fil- mes plano por plano, mas creio que ele estava mentindo, que era justamente seu ego superdimensionado que 0 fazia dizer tais coisas. Como ele poderia pensar que Psicose (Psycho) te- ria sido o mesmo filme se Anthony Perkins nao tivesse feito aquele papel, por exemplo? Penso que o mais importante é saber, instintivamente, que o que fazemos é bom, que as deci- sGes que tomamos vao no sentido do filme, sem ficar tentando explicar racionalmente na hora. Teremos todo 0 tempo para dissertar quando o filme estiver terminado. Vou ainda mais longe: se Hitchcock tiver dito a verdade, lamento por ele. Pois passar um ano de sua vida pondo em imagens um filme que ja se viu na cabeca... que tédio! FILMOGRAPFIA 1969 Stereo 1970 Crimes of the Future David Cronenberg | 201 1976 Calafrios (Shivers — They Came from Within) 1977 Rabid (Rabid) 1979 Filhos do medo (The Brood) 1979 Fast Company 1981 Scanners — Sua mente pode destruir (Scanners) 1983 Videodrome — A sindrome do video (Videodrome) 1983 Na hora da zona morta (The Dead Zone) 1986 A mosca (The Fly) 1988 Gémeos — Mérbida semelhanga (Dead Ringers) 1991 Mistérios ¢ paixdes (Naked Lunch) 1993 Madame Butterfly (M. Butterfly) 1996 Crash — Estranhos prazeres (Crash) 1999 BxistenZ (cXistenZ) 2002 Spider — Desafie sua mente (Spider) 2005 Marcas da violéncia (A History of Violence) TAKESHI KITANO Nascido em 1948 em Téquio, Japao Fazer uma entrevista com a ajuda de um tradutor munca € fa- cil, mas no caso de Kitano a coisa é simplesmente da ordem do surrealismo. O cineasta, que freqiientemente interpre- ta os papéis de matador em seus préprios filmes, responde a todas as perguntas com um rosto duro e fechado... que € logo contradito pelo humor delirante das frases traduzidas. Rapidamente parece evidente que ou sua tradutora ¢ incom- petente ou louca ou Kitano 6 0 homem mais sarcastico que vocé jé encontrou. No final, éa segunda solucao que se mos- tra exata. Kitano comegou, alias, como comediante na televi- so japonesa antes de aventurar-se em filmes cuja violéncia, escuridio ¢ lirismo Ihe valeram tornar-se um cineasta cult ¢ marginal até 1998, quando 0 prémio no Festival de Veneza pelo sublime Hana-Bi, fogos de artificio o fez entrar no time dos grandes. E mesmo que 0 acaso tenha querido que fos- se na ocasiao de seu filme menos estimulante — Verdo feliz — que eu o entrevistasse, dois anos mais tarde, no Festival de Cannes, 0 personagem é tao surpreendente que esse encon- tro permanece como um dos mais marcantes para mim. Fe pouco tempo que a idéia me tenta, nao a de dar um curso, mas a de escrever um livro em que eu aproveitaria minha experiéncia de diretor para compartilhar certas idéias, emitir certas teorias e dar certos conselhos, tanto no plano vi- sual quanto no da diregao de atores, para aqueles que nunca fizeram um filme. A tmica razao pela qual ainda nao fiz. isso o medo do ridiculo. Que um grande senhor como Kurosawa se permita dar ligoes depois de sua imensa carreira ¢ normal, Mas eu, que s6 tenho 11 filmes em meu ativo, se me comprou- ver a posar de professor, sei que todo mundo vai dizer: “Ei, espere ai, quem vocé acha que €?” Entao, estou aguardando um pouco. Mas um dia vou fazer isso. UMA SUCESSAO DE IMAGENS PERFEITAS Nao foi por acaso que citei Kurosawa. Ele é incontestavel mente meu mestre em materia de cinema, e se alguém me per’ guntasse “o que é um filme?” eu o mandaria ver Kagemusha,« sombra do samurai (Kagemusha), Os sete samurais (Shichinin No Samurai) ou Rashomon (Rashomon). O que € formidavel, em Kurosawa, a precisao da imagem. ‘Tanto no nivel do enquadr mento quanto no da colocagio dos personagens, a composigvo é sempre tio perfeita, mesmo quando a camera se move, que 206 | Grandes diretores de cinema poderiamos pegar cada uma das 24 imagens de cada segundo e fazer um quadro. Ora, para mim, é 0 cinema ideal: uma sucesso de imagens perfeitas, E Kurosawa foi o tinico que atingiu esse estagio. Quanto a mim, nesse nivel, contento-me em encontrar apenas trés ou quatro imagens, talvez, nao ainda perfeitas, mas pelo menos muito fortes, que se tornama propria base do filme. Por exemplo, para Verdo feliz, eu sabia, mesmo antes de escre- ver 0 roteiro, que queria aquele momento em que Kikujiro sai andando sozinho na praia ¢ © menino corre atrés dele ¢ 0 pega pela mao. Essa imagem, assim como algumas outras, foi minha razao de fazer esse filme. A partir dai, inventei uma intriga ¢ es- crevi cenas para criar um elo entre essas imagens. Mas no fim das contas, a historia é quase um pretexto. Meu cinema é muito mais um cinema de imagens que um cinema de idéias. APRENDIZAGEM, BOAS E MAS SURPRESAS Para encerrar o assunto Kurosawa, eu diria que, para apren- der o trabalho de diregio, meu sonho teria sido poder tomar emprestado os rushes de seus filmes para yer a maneira como, de tomada em tomada, ele havia corrigido as coisas para obter um resultado final tao perfeito. Infelizmente, nao foi o caso, Na verdade, minha educagao de diretor foi feita de maneira um pou- co estranha e acidental. Eu trabalhava muito na televisio como animador, eu ficava diante da camera — ou mais exatamente das cameras, pois geralmente havia seis delas no set — e comecei a compreender a relacao da camera com 0 espago ¢ com os atores ea formar minhas préprias idéias do que deveria ser a directo. A tal ponto que, depois de um tempo, j4 nao estava mais de acordo coms escolhas que eram feitas pelos diretores que me dirigiam. Bu dizia: “Nao, é aquela camera ali que deveria filmar, e daquele outro angulo!” Depois, comecei a fazer eu mesmo meus pro- gramas, ao mesmo tempo cm que continuava diante da camera. Takeshi Kitano | 207 Nem por isso meus trabalhos de TV eram maravilhosos —lon- ge disso —e cu logo tive vontade de passar para o cinema. Mas entdo me deparei com um problema enorme, que era, contra qualquer expectativa minha, o da credibilidade, Em meu primei- ro filme, minha equipe técnica simplesmente nao confiava em mim, Eles deviam pensar que eu cra uma estrela da TV que es- tava realizando um capricho ao fazer cinema, nao sei... De qual- quer maneira, lembro-me de que no primeiro dia cheguei ao set e pedi ao camera que fosse para o seu lugar para filmar o primeiro plano; ele me olhou, desconfiado, e me disse: “Por que voce quer filmé-lo assim?” Respondi que nao tinha que me explicar, que eu sentia assim, que era intuitivo... Mas isso nao bastou para ele. Insistiu para que cu me justificasse — ¢ eu sentia que a equipe inteira estava tao desconfiada quanto ele. Ele tinha em mente outra idéia e tive que brigar com ele durante uma hora antes de ter ganho de causa. Nao era um plano muito importante —alids, cle nem mesmo ficou na montagem final —_mas era uma ques- tao de prinefpio. Bu precisava impor minha credibilidade como cineasta. E foi assim durante toda a filmagem. Um outro aspecto que me surpreendeu muito em meu primeiro filme foi o ntime- ro incrivel de limitagses — orgamentarias, de horario, humanas, artisticas — que podiam vir se interpor entre a visdo do diretor ¢ o resultado final. Eu achava que o trabalho de um diretor era so- bretudo o de ter boas idéias. Percebi, na verdade, que esse traba- Iho consistia principalmente em gerir uma porgao de coisas pa- ralelas para criar 0 ambiente propicio a realizagao dessas ideias. UM FILME £ UMA CAIXA DE BRINQUEDOS Ocinema éalgo totalmente pessoal. Quando fago um filme, faco-o antes de tudo para mim. E como uma maravilhosa caixa de brinquedos com a qual me divirto. Uma caixa de brinquedos que custa caro, evidentemente, ¢ as vezes tenho um pouco de 208 | Grandes diretores de cinema vergonha de me divertir tanto com ela. B claro que chega um momento, quando o filme esta terminado, em que ele nao nos pertence mais. Ele se torna entao 0 brinquedo do ptiblico — e da critica. Mas seria desonesto nao admitir que é antes de tudo Para si mesmo que se faz um filme. Aliés, 6 por isso que nao entendo que um cineasta possa fazer um filme a partir de um Toteito escrito por outra pessoa, pois o cinema é algo pessoal demais para isso. A menos que se tenha uma grande liberda- de de adaptagao desse roteiro, e nesse caso acho muito since- ramente que o diretor deve apropriar-se dele completamente, que o roteiro deve tornar-se praticamente seu. Esse aspecto intimamente pessoal da visao cinematografica 6 0 que faz. 20 mesmo tempo a forga ea fraqueza de um cineasta. J4 ouvi mui- tos diretores dizerem isto, e para mim também é assim: a cada vez que faco um filme novo, tento fazer algo totalmente dife- rente. Mas quando vejo o resultado final, percebo que ainda fiz, exatamente o mesmo filme. Talvez nao exatamente 0 mesmo, mas de todo jeito, acho que se um delegado de policia o visse, diria “nao ha dtvida, Kitano, foi vocé que cometeu esse filme, suas impressOes estao em toda parte!”. TOMAR DECISOES, AINDA QUE ARBITRARIAS Minha principal prioridade em uma dada cena éacomposi- $40 da imagem, Quase mais importante do que a interpretagao dos atores. E por isso que sempre comego colocando a camera, Quando chego de manha ao set, sempre tenho uma idéia precisa do que quero filmar, mas sei que tenho que tomar rapidamente uma decisdo, pois a equipe esté ali, atrés de mim, ¢ todos espe- ram impacientemente que eu Thes diga o que fazer. Se comeco a andar para buscar inspiragao, eles no me largam, ficam me seguindo. Chega-se a tal ponto que, uma vez, num filme que fa- ziamos na montanha, ausentei-me durante alguns minutos por- Takeshi Kitano | 209 que precisava me isolar para refletir e, quando me instalei num canto que parecia tranqitilo, percebi que toda a equipe técnica havia docilmente me seguido. Eles ficaram muito perturbados quando cu Ihes disse que fossem embora e me deixassem s6. Entao, quando chego de manha, se em dez minutos nao tenho uma idéia brilhante, tomo uma decisao arbitraria. Digo: “Vamos nos instalar aqui.” Ent&o a equipe se instala, coloca a camera, trazemos os atores, fazemos tentativas e, naturalmente, de nove vezes em dez, nao funciona. Mas nesse entretempo consegui re- fletir um pouco e posso propor a eles uma configuragao melhor. Pode acontecer que eu mande a equipe se deslocar trés ou quatro vezes assim até encontrar o que meagrada, mas é melhor do que deixa-los na expectativa e na ditvida. Em compensagio, uma vez que encontro o Angulo que me agrada, cubro-me muito pouco, na verdade, nunca. Escolho uma maneira de filmar e atenho-me a ela. Ao risco de me arrepender na montagem, o que as vezes acontece. Enquanto o camera nao comegar a gritar “heresia!”, nao tento nada diferente. De tempos em tempos, isso o deixa um pouco nervoso. Numa certa época, ele me pediu, por segu- ranga, que eu tentasse filmar com duas ou trés cameras. Fiz isso para tranqiiiliza-lo, mas percebi na montagem que eu utilizava quase sistematicamente os planos da camera principal, a que eu havia escolhido. Entao parei de fazé-lo. Em compensacao, acho que é preciso estar muito atento, nao em relagao ao que pedimos a0 camera para filmar — pois, a partir dali, é 0 trabalho dele mas em relagao a todas as coisas um pouco acidentais, espon- taneas e fortuitas que podem ocorrer, e que podemos capturar para inserir no filme. Nas filmagens de Hana-Bi, fogos de artifi- cio, estévamos preparando uma cena na praia e vi peixes gran- des saltando no mar, ao longe. Imediatamente pedi ao cimera que os filmasse. Eu nao podia explicar concretamente por que, mas tive 0 sentimento de que era preciso, de que esse plano se integraria perfeitamente ao filme. E sao sempre surpresas dese tipo que, quando funcionam, dao a maior satisfagao. 210| Grandes diretores de cinema TENTAR TUDO... OU QUASE cinema tem suas regras basicas, que foram estabelecidas ao longo da histéria por um grande mimero de cineastas bri- Ihantes. Mas creio que mais do que respeité-las, cada cineasta deve adaptar essas regras a sua propria maneira de filmar, 0 que geralmente implica deforma-las ou romper com elas. Sei, por exemplo, que nas escolas de cinema, pelo menos no Japao, ensina-se sempre que o que a camera filma deve representar 0 ponto de vista de alguém. Ora, as vezes filmo certos persona- gens em plongée, isto é, vistos de cima, e no entanto nao ha nin- guém em cima. Mas funciona. Nunca me perguntam se éo olhar de Deus ou 0 de um passaro. O puiblico acha isso normal. Uma vez, filmei um plano em contra-plongée (de baixo para cima) apés uma cena de fuzilamento, e 0 camera nao entendia. Ele fi- cava me dizendo: “Isso é impossivel, isso significa que ¢ 0 cadé- ver que esta olhando, e no entanto ele est4 morto...” Isso 0 cho- cava. Mas eu estava sentindo assim ¢ isso nunca surpreendeu ninguém no ptblico. Em compensacao, ha coisas que me recuso absolutamente a fazer. Por exemplo, o que eu detesto no cinema 6 quando a camera comega a girar em torno dos personagens. Se trés personagens estado sentados a mesa discutindo, veremos com freqiéncia a camera comegar a girar em torno deles. Nao sei explicar por qué, mas isso me horripila. Acho completamen- te falso. Muitas vezes sou censurado por nao utilizar suficiente- mente todas as possibilidades da camera, mas me recuso a fazer esse movimento. E no entanto— isso certamente vai fazer vocé sorrir —creio que tentarei pelo menos uma vez.colocar a came- rano centro da mesa fazé-la girar entre os personagens, como se estivesse sobre uma daquelas bandejas giratorias dos restau- rantes chineses. Portanto, estou de acordo quanto a fazer girar a camera diante dos personagens, mas nao por tras. Por qué? Mistério... Mas é assim. De todos os meus filmes, o mais experi- mental foi Adrenalina méxima. Quando o filmei, realmente tive Takeshi Kitano {211 medo que pensassem que eu estava completamente louco, Mas isso estava ligado principalmente ao fundo, Quanto a forma, foi certamente em Verao feliz que experimentei mais coisas. Por exemplo, deleitei-me filmando o olhar da libélula. Depois tem 0 plano, no bar, no qual a cabega da atendente ¢ enquadrada logo acima da espuma da cerveja. Nao € necessariamente um grande éxito, mas eu queria experimentar. Ha também a cena em que os dois anjos partem, na qual cu queria filmar o reflexo do menino na calota da roda que estava indo embora. Tentei e, nos rushes, percebi que produzia o efeito inverso: parecia que era o menino que partia ea calota que ficava. Que pena. ESCOLHER ATORES INAPROPRIADOS Jamais filmo com atores célebres porque acho perigoso demais para o tipo de filmes que fago. Um ator conhecido ge- ralmente veicula uma imagem tao forte que pode desequilibrar © filme e, portanto, prejudicé-lo mais do que ajudé-lo. Depois, quando seleciono meus atores, evito escolher pessoas especia- lizadas demais em um tipo de papel, pois elas podem ter desen- volvido tiques de interpretagao impossiveis de corrigir. Logo, por exemplo, para um papel de gangster, jamais escolho um ator que jé o tenha desempenhado em outros filmes. Ao contra- rio, vou escolher uma pessoa que tenha o habito de interpretar empregados de escrit6rio, ¢ 0 resultado sera mais surpreenden- te, Arazao pela qual atuo também em meus proprios filmes esta no fato de que tenho uma abordagem do tempo muito pessoal, 0 que faz, com que, por exemplo, eu nunca fale no momento em que se espera. Sempre estou um pouco em descompasso. Ora, quanto mais consigo eu mesmo fazer, mais me sinto incayy deexplicaraalguém como conseguir realizaressesmomentos de interpretago interior que sao tao importantes em meus filmes, A diregao de atores é uma coisa ao mesmo tempo simples ¢ 212 | Grandes diretores de cinema complexa. Para mim, o principal segredo da coisa é ndo dar o texto cedo demais para os intérpretes. Na verdade, vale mais a pena que eles nao o tenham nem na véspera. Se nao, vao ensaid- losozinhos, fazer seu proprio filme na cabega, imaginar coisas e, no set, quando eu der a eles minhas instrugdes, ficardo perturba- dos porque nao se parecerd com aquilo que tinham preparado. Ento, na maioria das vezes, dou-lhes 0 texto apenas um pouco antes de filmar, esperando que eles tenham o tempo de memo- rizar. E com freqiiéncia minha melhor instrugdo em termos de atuagio 6a seguinte: “Vocé deve fazer como na vida... anao ser pelo fato de nao estar vestido do mesmo jeito.” ASIA CONTRA AMERICA Nao sei muito bem onde me situar como cineasta. Quando observo o cinema asiatico em geral, e o cinema japonés em particular, freqiientemente tenho a impressao de ver um cam- ponés que foi para a cidade, que pés suas mais belas roupas, mas que por dentro nao se sente 4 vontade. Entretanto, nem por isso me sinto mais proximo do cinema americano, Ele é codificado demais, dogmatico demais — € preciso um herdi, uma familia, negros, cenas de refeigdes etc. B extremamen- te limitador, Além disso, o que 0 cinema asiatico sabe fazer e que o cinema americano nao consegue controlar é a ut zagao do tempo. Em um filme hollywoodiano, se se fica mais de dez segundos em siléncio, é uma angistia, enquanto na Asia se tem uma relagdo com 0 tempo mais natural e mais sa- dia. Finalmente, hd também uma questo de escala. Para os americanos, divertir-se implica construir imediatamente uma Disneylandia, enquanto tenho a impressao de que nés pode- mos ainda nos divertir com um simples futebol de botao. No final das contas, é 0 dinheiro que condiciona a maneira de fil- mar de cada cultura, ¢ é realmente uma pena. ‘Takeshi Kitano | 213 FILMOGRAFIA 1989 Violent Cop (Sono Otoko, Kyobo Ni'Tsuki) 1990 Boiling Point (San tai Yon x Jugatsu) 1991 O mar mais silencioso daquele verao (Ano Natsu Ichiban Shizukana Umi) 1993 Adrenalina maxima (Sonachine) 1995 Getting Any? (Minna Yatteruka) 1996 De volta as aulas (Kidzu ritan) 1997 Hana-Bi, fogos de artificio (Hana-Bi) 1999 Verdo feliz (Kikujiro no natsu) 2000 Brother — A mafia japonesa Yakuza em Los Angeles (Brother) 2002 Dolls (Dolls) 2003 Zatoichi (Zatdichi) 2005 Takeshis (Takeshis’) TIM BURTON Nascido em 1958 em Burbank, California, Estados Unidos Jé me aconteceu de encontrar criangas grandes, mas nunca uma como Tim Burton. E de algum modo ¢ reconfortante pensar que os esttidios de Hollywood ainda sao capazes de confiar centenas de milhoes de délares de orgamento a um adulto que desenha caveiras nas falanges e ri as gargalhadas como um adolescente. Se eles fazem isso, é porque é cla- ro que ele é um dos diretores mais dotados de sua geracio. Como Steven Spielberg, ele é um pouco o filho natural de ‘Walt Disney, mas um filho escondido, maldito, que teria cres- cido numa caverna ¢ teria desenvolvide um gosto extremo pelos vampiros, pelos zumbis, pelos morcegos e por outras criaturas das sombras. Gracas a sua imaginagao sem limites ¢ seu senso de poesia visual, ‘Tim Burton assina filmes magicos que nos convidam geralmente a descobrir a beleza oculta dos monstros. E mesmo que supostamente nao se possa explicar a magia, Tim Burton fez o possivel para se curvar ao princi- pio desta entrevista, pontuando cada uma de suas respostas com gestos, caretas, onomatopéias e pequenos cacarejos que no posso reproduzir em papel, mas que, espero, serao legi- veis nas entrelinhas... N ao sei se devo levar isso a mal, mas ninguém jamais me propés ensinar direcao. De toda maneira, eu teria declinado a oferta, pois considero que eu mesmo ainda estou em plena aprendizagem e que é cedo demais para poder dar 0 menor conselho concreto a quem quer que seja. A tinica coi- sa que eu poderia dizer é: “Siga seu instinto e tente ter sor- te!” Primeiramente porque é assim que eu trabalho: sou uma pessoa muito intuitiva, minhas decisdes artisticas sao feitas de maneira muito mais emocional do que intelectual. Depois porque a maneira como me tornei diretor esta mais ligada um conjunto de circunstncias do que a realizagao de uma vontade qualquer. No inicio, 0 que me atrafa era o desenho animado, e depois de alguns estagios em diversos esttidios de animagao, me vi como desenhista dos estidios Disney. Mas logo ficou claro que minhas idéias ndo correspondiam de modo algum ao espirito do estidio de Mickey. Eu destoa- va um pouco na paisagem. Em outra época, logo me te: demitido. Mas foi um momento em que 0 esttidio estava em plena crise. Era a época de O cao ea raposa (The Fox and the Hound) e de O caldeirdo magico (The Black Cauldron), 08 pio res desenhos animados que o estiidio produziu, e todo mundo previa que o departamento de animagao ia fechar suas ports, jam. 218 | Grandes diretores de cinema Conseqiientemente, ninguém tomava decisdes importantes, e contentaram-se em me esconder num canto e em me deixar trabalhar em meus préprios projetos. Como eu tinha tempo de sobra, fiz. dois curtas-metragens, Vincent e Frankenweeniec, que fizeram tanto sucesso que imediatamente me propuse- ram realizar o longa-metragem As grandes aventuras de Pee Wee. Ainda hoje nao consigo entender como tive tanta sorte. Creio que eu teria tido mais dificuldade em encontrar traba- lho como servente num restaurante do que como diretor! ‘TODO MUNDO ME DIZ NAO ~» De umacerta maneira, a animagio foi uma boa escola de dirego, pois me obrigava a fazer tudo por mim mesmo —o quadro, a luz, a interpreta¢ao dos atores, os didlogos etc. —e, portanto, a saber dominar todos esses aspectos. Além disso, creio que a passagem pelo desenho animado realmente me permitiu ter um olhar diferente sobre o cinema, trazer aos meus filmes uma certa originalidade no tom e no universo. Entretanto, prefiro o cinema ao desenho animado pelo fato de que a animago é um oficio muito solitario, muito interior. Ora, como sou bastante introvertido por natureza, isso re- forca o lado fechado de minha personalidade, e tenho a im- pressao de que as idéias que me vém a mente s40 muito mais negras, quase mais perversas e, no final das contas, negativas demais. O cinema, em compensagio, é um verdadeiro traba- Iho de equipe. Alias, 0 que mais me surpreendeu, na primeira vez em que fiz. um filme — fora o fato de ter que me levantar quando ainda estava escuro do lado de fora! —, foi o nimero de pessoas implicadas na fabricagéo de um filme, sobretudo quando se filma para um grande estiidio hollywoodiano. Por isso, hd uma verdadeira necessidade de comunicacao, eo papel de diretor muitas vezes se torna mais politico do que artistico. ‘Tim Burton | 219 Pois vocé é constantemente obrigado a convencer um grande numero de pessoas de que sua idéia é valida. E vocé nao tem idéia do ntimero de vezes ao dia em que alguém pode lhe dizer nao. E muito simples, é a palavra mais utilizada no set: “nao, nao se pode fazer isso, nao, é caro demais, nao, é complicado demais ete.” E, portanto, um verdadeiro desafio estratégico e humano, porque ¢ dificil impor seu ponto de vista, contraria- mente a imagem que freqiientemente se tem de um diretor. Se eu quiser obter alguma coisa de um ator, nao posso dizer4~ a ele “faca isso!”. Devo dizer-lhe por qué, devo convencé-lo de que é uma boa idéia. E é a mesma coisa com as pessoas do esttidio. Nao posso me permitir ficar em conflito com elas. E perigoso demais, e desgastante demais. Admiro a integridade de certos diretores que enfrentam os esttidios € se recusam a se deixar impor 0 que quer que seja. Mas creio que, no final, essa atitude é mais destrutiva do que outra coisa: ou os filmes nio sao feitos ou entao sao feitos com dor, e o resultado final obrigatoriamente sofre com isso. Creio que € preciso saber agir mais delicadamente. E preciso saber ficar evasivo mais do que dizer nao, ¢ ¢ preciso saber se mostrar coneiliador em cer- tas reunides, esperando que os produtores nao se lembrem depois do que disseram e que se possa, no final, fazer 0 que se quer. Isso pode parecer covarde, mas creio que é apenas mui- to pragmatico, e que é uma questao de sobrevivéncia. E claro que ha certos momentos em que lutar se torna crucial. Mas © diretor que realmente alcanga seus fins é aquele que sabe determinar que batalhas merecem ser travadas, e quais delas nao passam de questdes de orgulho mal colocado. SE BU ESCREVESSE, NAO SE ENTENDERIA NADA Nunca escrevo os roteiros de meus filmes, mas estou sempre implicado de maneira muito ativa em sua escrita, O 220 | Grandes diretores de cinema diretor precisa se apropriar do filme, é essencial, e isso antes mesmo das filmagens. No caso de Edward Maos de Tesoura, por exemplo, ainda que nao tenha sido eu quem redigiu, pro- priamente falando, o roteiro, é certo que “guiei” a escrita a tal ponto que finalmente se tratava mais de assunto meu que do roteirista. A razo pela qual eu mesmo nao escrevo é que, se fosse 0 caso, creio que cu perderia todo o distanciamento em relagdo ao que faco, e que o resultado seria confuso, abstra- to, endo teria sentido para ninguém mais além de mim. Ora, através de cada filme, tento acima de tudo contar uma hist6- ria, e, para isso, devo manter um pouco de distancia em rela- g40 aquilo de que estou falando. E por isso que quando me dizem que o personagem de Edward Maos de Tesoura sou eu, nao estou totalmente de acordo. Ele se parece imensamente comigo, é claro que temos muitas coisas em comum. Mas se fosse de mim que eu falava, eu nao poderia ter tido objetivida- de bastante para falar corretamente. Nao preciso eu mesmo eserever para me sentir autor. Creio que minha marca é cla- ramente visivel em todos os filmes que fago. Ha temas que se repetem de mancira evidente em cada um deles, nao necessa- riamente no primeiro plano, mas no segundo. No cenario, se vocé quiser. E por isso, alias, que gosto do formato do conto popular, porque permite explorar varias idéias diferentes de maneira simbélica, através de uma imagistica que nao é tan- to literal quanto sensorial. Gosto mais de fazer imagens que se pode sentir do que imagens que contam ou explicam. Nao fui formado com nogées muito estritas de estrutura narrativa. Ao contrario, cresci vendo filmes de terror, em que a historia propriamente dita nao tinha nenhuma importancia, mas em que certas imagens eram tao fortes que ficavam para sempre gravadas em sua mente. E de certa maneira, é isso que tentei reproduzir: filmes em que as imagens sao tao fortes — ndo ‘Tim Burton | 221 necessariamente belas, isso nado tem nada a ver, mas tao im- pressionantes € tao ricas — que acabam substituindo a histo- ria, ou, mais exatamente, por se tornar a histéria. NAO SE SABE DE NADA ANTES DE FILMAR Os desafios sao tao enormes, em um filme, ¢ a pressao tao esmagadora, que tendemos a querer preparar © maximo de coi- sas previamente. Mas quanto mais filmo, mais percebo que @ espontaneidade é realmente a melhor maneira de obter coisas boas, ¢ que—e € realmente 0 que a experiéncia me ensinou de mais concreto — nao se sabe de nada enquanto nao se esté no set. Vocé pode fazer um mtimero imenso de ensaios, desenhar todos os storyboards que voc’ quiser, mas quando voce chega a0 set, recomega do zero. Os storyboards sempre serao inferiores ao que serd oferecido pela realidade, porque sto bidimensionais e oset éum universo tridimensional. Da mesma maneira, 0s ato- res jamais atuardo igualmenre no verdadero cendrio e com seus figurinos. Assim, cada vez. mais, tento nao ter nenbuma idéia preconcebida antes de chegar as filmagens para deixar uma grande parte 4 magia do momento. De certo modo, portanto, cada filme é uma experimentago. Os esttidios nao tém vontade de ouvir isso, é claro, eles querem acreditar que vocé sabe exata- mente 0 que esté fazendo. Mas a realidade é que a maior parte das decisées cruciais é tomada na tiltima hora, e com um fator de acaso bastante importante. H a melhor maneira de trabalhar e, creio eu, a tinica para fazer um filme interessante. Mails VALE ECONOMIZAR DO QUE AGONIZAR Hé regras bésicas, ¢ claro, mas elas s6 esto af por segu- ranga. $6 devemos nos refugiar por trés delas quando esta: 222| Grandes diretores de cinema mos realmente perdidos. E sem necessariamente cair no ex- tremo que pode ter sido Os fantasmas se divertem, no qual, por falta de um verdadeiro roteiro, deixei os atores improvisarem a maior parte do texto, é preciso sempre um niimero maximo de coisas novas. Quando filmo uma cena de diélogo, por exemplo, nao decupo de acordo com © modo tradicional, isto é, com um. plano de conjunto, fazendo depois um campo e um contracam- po de cada personagem. Comego buscando o plano mais inte- ressante que a cena me propée, filmo-o, e depois reflito sobre um ou dois planos suplementares que possam ser necessarios e funcionar bem com este. Nao tenho estratégia de longo prazo, _»_ #vango plano por plano. E me cubro bem pouco. Evito filmar planos se eu nao estiver certo de que eles estarao na montagem final. Primeiramente porque é uma perda de tempo e 0 tempo &um ingrediente raro nas filmagens. Depois porque, quer voce queira quer nao, vocé se apega emocionalmente a cada imagem que filma. E quando vocé filmou demais e se vé com uma pri- meira montagem da qual é preciso tirar uma hora, é um verda- deiro dilaceramento. Entao vale mais a pena ser econdmico no set ¢ softer menos na sala de montagem. SO GOSTO DA GRANDE-ANGULAR ~p_ Decidir no tiltimo minuto nao significa que se tenha que fazer qualquer coisa. Ao contrério, até. E preciso ter muito rigor para poder se permitir improvisar certas coisas. Em pri- meiro lugar, € preciso escolher cuidadosamente uma equipe de modo que vocé possa estar certo de que ela tem a mesma visao do projeto que vocé e de que ela entendera o sentido de tudo 0 que vocé experimentar. Depois, é preciso ter uma verdadeira metodologia de trabalho. Eu gosto de comegar colocando os atores no cenério para encontrar a boa relacéo ‘Tim Burton [223 entre os personagens e © espago que os cerca. E assim que encontro o 4mago da cena, que determino de que ponto de vista ela sera filmada, se ¢ através dos olhos dos personagens ‘ou, ao contrario, se é algo de externo e objetivo. Uma vez que encontrei isso, mando os atores se vestit e se maquiar e du- rante esse tempo preparo o quadro e a luz com meu diretor de fotografia. Tenho um fraco pelas lentes bem abertas como a de 21mm (sem diivida heranga do desenho animado e de seus campos bem abertos) ¢ entao comegamos quase siste- maticamente por ela. Depois, se nao funciona, tentamos fo- cais cada vez mais longas até chegarmos a algo que funcione. Raramente, porém, ultrapasso a 50mm. E sé utilizo teleobje- tivas para pontuar muito brevemente certas cenas, da mesma maneira que se colocaria uma virgula no meio de uma frase. ATORES: VER ALEM DA INTERPRETAGAO Dou uma enorme importancia a escolha dos atores, mas nunca os fago passar por um teste, pois a questao nao ¢ essa. Nao tento saber se um ator sabe interpretar, mas se ele corres- ponde ao papel que quero lhe dar. E a resposta nao tem nadaa ver coma interpretagao. Por exemplo, dizem com freqiéncia que trabalho com Johnny Depp porque ele se parece comigo. Mas a verdadeira razao pela qual o escolhi em Edward Mac de Tesoura foi porque, na época, ele era, como Edward, prisio- neiro de uma imagem de que padecia. Ele era a vedete de uma série de TV para adolescentes, ele tinha esse rétulo “menino bonito” que Ihe colava a pele enquanto ele queria outra coisa. Entio ele era perfeito para o papel. Foia mesma coisa quando pensei em Martin Landau para Fd Wood. Pensei: “His alguém que trabalhou com Hitchcock no inicio da carreira, ¢ que sev iu em séries de TV deploraveis vinte anos mais tarde... [le vai en 224 | Grandes diretores de cinema tender o que foia carreira de Bela Lugosi. E vai entender de ma- neirahumana, sem superdramatizar o personagem.” Idem para Michael Keaton ¢ Batman. Michael é um ator que sempre me fascinou pela espécie de dupla personalidade, meio brincalhao, meio psicotico. B para ser Batman, épreciso serum poucoesqui- zofrénico. Além disso, ele nao tema envergadura deum Amold Schwarzenegger, e assim ha uma verdadeira l6gica no fato de ele precisar yestir uma armadura para lutar. Ninguém real- mente entendeu essa escolha no inicio. Mas creio que pareceu evidente quando 0 filme terminou, Pelo menos assim espero... ESCUTAR MAIS DO QUE DIRIGIR —» Se vocé tiver feito uma boa selegao de elenco, jé realizou 90% do trabalho de diregao de atores. Mas os 10% restantes so evidentemente os mais complexos. Pois cada ator é dife- rente, cada um tem sua maneira propria de trabalhar e de se comunicar, e nada pode preparar vocé para isso. Um exemplo que permaneceré para sempre gravado em minha memoria €0 de Jack Palance, e que no entanto nao é 0 que se poderia chamar de um “capricho”. Era o primeiro dia de filmagem de Batman e estavamos nos preparando para filmar um plano em que 0 personagem de gangster interpretado por Jack saia de um banheiro. Ele me pergunta: “Como € que cu saio?” ¢ eu respondo: “Bem, vocé s6 sai. B um plano simples, vocé abre a porta € sai, S6 isso.” Jack Palance se instala entao atras da porta, eu me coloco atrds da camera, comecamos a filmar, eu digo “Agao”, dez segundos se passam... e nada. Entao eu cor- to, chamo Jack da porta e pergunto “Jack? Esta tudo bem?”, ¢ ele responde “sim, esté...”. Bom. Recomegamos a filmar, eu grito “Agio”, passam-se dez segundos, vinte segundos... nada, Cortamos, chamo Jack, digo-Ihe “E s6 um plano em que vocé Tim Burton | 225 abre a porta ¢ sai, ok?” Ble responde ok, recomegamos a fil- mar, “Agdo”... e nada. Vou entiio vé-lo, pergunto se ha algum problema... E ai... Ele me fuzila com o olhar e, com uma vor realmente irritada, me diz. “Mas sera que vocé vai parar de me estressar deste jeito? Vocé esta me pressionando, nao estou conseguindo me concentrar!” Fiquei sem voz. Para mim, era s6 um plano de alguém que abria uma porta, mas na cabe- ca dele, passava-se algo muito mais complexo. Naquele dia, compreendi que era realmente necessirio escutar muito os atores. Fi claro que é preciso dirigi-los, mas com isso quero dizer que precisamos mostrar a eles 0 objetivo a ser atingido. Depois, cabe a eles escolher a maneira como querem chegar 14. O que gosto em Johnny Depp, por exemplo, é que, de uma tomada a outra, ele sempre vai tentar alguma coisa totalmente diferente no tom, até que encontremos o que mais convém. Faco muito poucos ensaios, porque sempre temo que a meca- nica triunfe sobre a magia. Da mesma maneira, sempre tento ver 0 trabalho dos atores diretamente, e nao no monitor de video, porque sendo se cria uma distancia entre mim e eles que pode ser sentida na tela. O monitor de video é uma ferra- menta de preparacao extraordinaria quando se quer preparar um movimento complicado, por exemplo, mas é preciso por limites. E depois de ter filmado um plano, também evito revé- lo em video no monitor, pois acho que isso quebra o ritmo ¢ perde-se energia. Tanto quanto possivel, é preciso encadear as tomadas umas nas outras, e é unicamente quando termina- mos que podemos nos dar o tempo de rever o que filmamos. ‘TUDO ME SURPREENDE, NADA ME ESPANTA Recuso-me a crer naqueles que afirmam que seus filmes se parecem exatamente com aquilo que eles tinham em men 226 | Grandes diretores de cinema te antes de fazé-lo. Isso € impossivel. Ha variaveis demais, e incontroliveis, em uma filmagem para que seja o caso. Na melhor das hipéteses, vocé pode esperar que o filme esteja mais ou menos na atmosfera do que vocé tinha imaginado, mas sera sempre uma surpresa. Aconteceu-me varias vezes ver dois atores no mesmo set e achar um formidavel e 0 ou- tro discreto demais, e depois da montagem perceber que era exatamente 0 contrario: o que eu tinha achado que estava bem ficava excessivo na tela, enquanto 0 outro era preciso no tom. Mas creio que é esse tipo de coisa que é formidavel. E 0 que faz, toda a magia do cinema. Paradoxalmente, concordo com a idéia de que sempre fazemos um pouco o mesmo filme. Somos © que somos, nossa personalidade é geralmente a conseqiién- cia daquilo que vivemos em nossa infancia, e passamos a vida a remoer indiretamente as mesmas idéias. Isso é ainda mais ver- dadeiro no plano artistico que no humano. Qualquer que seja o tema que se aborde, ele sempre acaba sendo uma maneira des- viada de se langar ao mesmo problema, 4 mesma obsessio. De certo modo € irritante, pois queremos acreditar que evoluimos. Por outro lado é estimulante, pois é um desafio permanente. E como uma maldigao de que queremos nos livrar. FILMOGRAFIA 1985 As grandes aventuras de Pee-Wee (Pee-Wee's Big Adventure) 1988 Os fantasmas se divertem (Beetlejuice) 1989 Batman — O filme (Batman) 1990 Edward Maos de Tesoura (Edward Scissorhands) 1992 Batman — O retorno (Batman Returns) 1994 Ed Wood (Ed Wood) ‘Tim Burton | 227 1996 Marte ataca! (Mars Attacks!) 1999 A lenda do cavaleiro sem cabega (Sleepy Hollow) 2001 Planeta dos macacos (Planet of the Apes) 2003 Peixe Grande e suas historias maravilhosas (Big Fish) 2005 A fantdstica fabrica de chocolate (Charlie and the Chocolate Factory) 2005 A noiva-cadaver (Corpse Bride) JOHN WOO Nascido em 1946 em Guangzhou, China Foino fim dos anos 1980, com The Killer — O matador, que 0 publico internacional descobriu aquele que reinava na bilhe- teria de Hong Kong havia quase uma década. Rapidamente cortejado por Hollywood, ele cruzou o Pacifico e, depois de um comego dificil, soube impor, lé também, toda a extensio de seu inacreditavel talento. Hoje, John Woo é incontesta- velmente o maior diretor de filmes de a¢ao. Mas ele é bem mais do que isso. Pois John Woo é um verdadeiro autor, ¢ seu trabalho reflete valores extremamente pessoais. E se seus filmes alcangam um ptiblico tio amplo, € porque, para além de umestilo visual de tirar o folego e de uma técnica perfeita- mente dominada, eles possuem uma coisa que a maioria dos blockbusters nao tem: uma alma. Nao é, portanto, espantoso, quando se encontra este homem que realizou filmes particu- larmente violentos, ouvi-lo dizer com um sorriso timido que, no fundo... ele sempre sonhou em escrever poesia. D esde o sucesso de The Killer — O matador, pediram- me varias vezes para ensinar direcao. Tive propostas em Hong Kong, é claro, em Taiwan, nos Estados Unidos e¢ também, curiosamente, em Berlim. Mas sempre recusei. Nao porque eu seja contra 0 principio. Ao contratio, acho que ¢ realmente bom para um diretor compartilhar sua experién- cia com iniciantes. Mas é uma questo de temperamento: sou de natureza reservada e a idéia de me ver diante de uma dii- zia de alunos ou, pior ainda, de um auditério com duzentas pessoas,me aterroriza. B dificil ensinar 0 que quer que seja nessas condigdes. Mas quando viajo para fazer a promogio de meus filmes, sempre dou um jeito de encontrar um ou dois estudantes de cinema da cidade ou do pais em que me encon tro para discutir com eles face a face. Se eles ja fizeram filmes, falamos de coisas técnicas. Se nao, o principal conselho que dou a cles € 0 de ir ver o maximo possivel de filmes. Porque foi assim que aprendi cinema. Nao hayia escola de directo em Hong Kong na época em que cresci. B de toda 1 nao teria tido condigdes de me inscrever em uma. | iu er pobre que era obrigado a entrar escondido para ver fil tive que roubar a maioria dos livros de cinema que li depois ava dentro o Eu entrava nas livrarias com um casacao, en! 232 | Grandes diretores de cinema Hitchcock|Truffaut e saia sem que se notasse. E preciso dizer que Hong Kong era o lugar ideal para alguém se tornar cinéfilo naquela época, por razGes puramente geograficas: estavamos a meio caminho entre a Europa e a América, descobria- mos a Nouvelle Vague com 0 mesmo prazer que as s¢ries B hollywoodianas ou o grande cinema clissico japonés e chi- nés, sem ter a impressao de ter que escolher um campo ou outro. Eu realmente nao fazia distingdo entre Jacques Demy e Sam Peckinpah, e talvez sejaisso que hoje torna meus filmes tao ambivalentes. De tanto ver todas essas obras-primas, de- cidi realizar um pequeno filme experimental. Era a histéria de um homem que estava to apaixonado por uma mulher que acabava amarrando-ae trancando-a num cémodo. Entao cla morria, se transformava em borboleta e voava. Isso pre- tendia ser uma reflexao sobre 0 tema “nao se pode aprisionar uma beleza; se vocé ama uma pessoa, é preciso deixa-la li- vre”, e quando repenso, acho meio ridiculo, Mas me permitiu encontrar um trabalho como assistente de direcao. METODOS UM POUCO EXTREMOS Nao conheco nenhuma regra, nenhuma verdadeira “gra- matica” do cinema. Quando preparo uma cena, nao penso “ah, isso tem que ser filmado em detalhe” ou “ah, isso é um plano aberto”. Prefiro filmar varias tomadas de um mes- mo plano e tomar minha decisio final na montagem, pois é © momento em que mais consigo ter espirito de sintese ¢ ao mesmo tempo 0 momento em que o filme comega realmente a ter vida. Entao, nao hesito em filmar cada cena com varias cameras (ja cheguei a 15 cameras para cenas de acao particu- larmente complexas) e até mesmo em fazer com que algumas cameras filmem em velocidades diferentes (minha velocida- John Woo | 238 de preferida é a de 512 imagens por segundo, ou seja, uma redugio de vinte vezes em relagéo a normal). A razao para essas redugGes de velocidade é a seguinte: quando descubro na montagem um momento particularmente forte, do ponto de vista dramatico ou emocional, gosto de fazer com que ele dure o maximo possivel. Filmo, portanto, de varios angulos ao mesmo tempo, mas pode muito bem acontecer, no final, que o desempenho do ator seja tao bom que eu decida utilizar apenas o close para a cena inteira e jogar fora todo o resto. Na maior parte do tempo, uso apenas duas objetivas: a grande- angular e a teleobjetiva. A primeira porque se é para mostrar alguma coisa, é melhor mostré-la da maneira mais global pos- sivel, ¢ com o maximo de detalhes. A segunda porque acho que permite um verdadeiro “encontro” com o tema fotogra fado. Vocé filma o rosto de um ator com uma 180mm, e voce tem realmente a impressao de té-lo diante de vocé. Por outro lado, hd uma presenga que uma objetiva de distancia focal mais curta nao conseguira proporcionar. Em suma, s6 gosto dos extremos. Tudo o que ¢ intermedirio é para mim sindni- mo de compromisso e nao vale nada. Outra especificidade dia diregdo: excluindo as cenas de agao, tenho enorme dificuldade em utilizar os movimentos de camera. E por isso que fico tito orgulhoso de um filme como The Killer — O matador, pois foi a primeira e praticamente a tinica vez em que consegui obter uma unidade do movimento de camera nas cenas dramaticas e nas cenas de agao. Hé nos travellings desse filme algo que me faz pensar na 6pera, com trechos que nunca sao fortes demais oulongos demais e que se completam perfeitamente. GOSTO DE CRIAR NO SET Disseram dos esttidios de Hong Kong que eram muito duros, e é verdade, mas unicamente porque sio obcecados

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