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ENSAIO SOBRE UMA SERPENTE NA GARGANTA

ou
Como cuidar do monstro dentro de si em vez de tentar matá-lo

Rafaela Germano Martins


Mestranda do Programa de Comunicação
da Universidade Federal de Pernambuco
E-mail: rafaela.rgm1@gmail.com

“É assim que Deus disse: Não comereis de toda a


árvore do jardim? E disse a mulher à serpente: Do fruto das
árvores do jardim comeremos. Mas, do fruto da árvore que
está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem
nele tocareis, para que não morrais. Então a serpente disse à
mulher: Certamente não morrereis. Porque Deus sabe
que, no dia em que dele comerdes, se abrirão os vossos
olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal.”
(Gn. 3.1-5)

Com o que sonham os monstros?

Certa noite eu sonhei que tinha uma serpente na minha garganta. Ela atravessava meu
esôfago inteiro e sua cabeça se projetava para fora da minha garganta, repousando sobre a
minha língua. Ao abrir a minha boca, qualquer um conseguiria ver os olhinhos da cobra
brilhando atentos enquanto sua cabeça estava sendo comprimida pela minha faringe. Eu
tentei colocá-la para fora de mim de todas as maneiras possíveis, tentava puxar sua cabeça
com a minha mão, tentava vomitá-la, cuspi-la. Sem sucesso. Todos ao meu redor pareciam
calmos e habituados com a situação, como se já conhecessem este animal que sempre esteve
dentro de mim e apenas eu que só havia percebido a presença dele naquele instante. A minha
angústia maior era a de não conseguir me comunicar. Tolice a minha. Mal sabia eu, que a
imagem da serpente em minha garganta comunicava mais do são capazes as palavras. Passei
o dia inteiro seguinte ao sonho, abrindo a boca em frente ao espelho para verificar se havia
dentro de mim alguma serpente.

Os sonhos são, assim como o cinema, um portal de acesso à uma realidade outra: livres
das amarras da lógica e da racionalidade, estes tornam-se então espaço de experimentação, de
potência criativa. Nos sonhos, nossa percepção de tempo se dilata e acessamos uma nova
experiência sensível a partir do momento em que vivemos o tempo de uma nova maneira.
Estima-se que os sonhos duram em uma noite normalmente entre 10 - 40 minutos, apesar de
conseguirmos viver uma vida inteira nessa fração de tempo. Dentro do cinema, sente-se o
fenômeno de dilatação de tempo de forma semelhante: em minutos, ou horas, atravessamos
séculos, enxergamos a vida através dos olhos de outra pessoa, amamos, sofremos, rimos e
choramos - vivemos uma vida que não é nossa, mas que de certa forma passa a ser.

Como explicita o sociólogo Edgar Morin em seu livro “Conhecimento, ignorância,


mistério”:

“Nossa realidade humana é tecida com o imaginário: nossos sonhos acordados,


fantasias, imaginações, devaneios, desejos, nossos romances, nossos filmes, nossas séries de
televisão, nossos divertimentos são coconstrutivos da nossa realidade humana. Durante o
sono, conferimos realidade aos nossos sonhos e só de manhã a retiramos deles. No cinema,
conferimos uma fortíssima realidade aos personagens e suas aventuras, e apenas uma
pequenina chama no nosso espírito não esquece, durante a projeção, que somos espectadores
em uma cadeira.” (MORIN, 2020, p. 23 - 24)

Em um momento no qual máquinas reproduzem e criam cognição, seria essa


capacidade de nos colocarmos no lugar dos outros, e viver uma vida que não é nossa, o que
nos tornaria essencialmente humanos? O fazer cinematográfico, apesar de ter surgido apenas
no século XIX, sempre esteve presente no fundo da psique humana, através dos sonhos que
agem como uma espécie de projeção dentro de nossas mentes. O cinema ficcional surge para
suprir a necessidade de representar, dentre outras coisas, nosso imaginário, nossas fantasias,
nossos sonhos e o que sentimos a partir disso. O cinema de Horror, no entanto, surge para
lidar com nossos piores pesadelos, e de alguma forma o horror que sentimos ao vivê-los.

O horror, por si só, é um sentimento difícil de definir. Sentir horror pode significar
sentir-se ameaçado, sentir repulsa, nojo, aversão, pavor, ódio, e por fim, medo de algo ou
alguém, como consta no dicionário. O horror - e o medo - são sentimentos intrínsecos ao ser
humano, e necessários para desenvolver o senso de perigo, e portanto nos manter afastados
do que nos pode ser um risco. O sentimento de horror foi o que deu origem ao gênero de
Horror, que primeiro se tornou concreto por meio da tradição oral, em seguida migrou para a
literatura e posteriormente se consolidou no gênero cinematográfico.

A Mansão do Diabo (1896), de George Méliès, é considerada a primeira obra


cinematográfica do gênero de Horror, e traz consigo os monstros: fantasmas e esqueletos
voadores já habitam o imaginário do início do gênero. Porém naquele mesmo ano, meses
antes, quando exibiu-se pela primeira vez A Chegada do Trem à Estação, dos irmãos
Lumière, o medo já se instaurara no público, mesmo que involuntariamente. A história conta
que as pessoas que assistiram ao curta “A Chegada de um Trem à Estação”, em 1896,
deixaram a sala de exibição com medo de serem atropelados pelo trem que se movimentava
na tela. O filme em si não tinha nada de assustador, a não ser pela maneira como as imagens
em movimento se apresentavam de forma quase mágica aos olhos dos espectadores
(MEDEIROS, 2016). Sendo assim, percebe-se que - mesmo que despropositadamente - o
cinema está associado ao horror e ao medo desde o seu surgimento.

Os monstros surgem então como a corporificação desse sentimento de horror. Para


traduzir o horror da realidade, criam-se monstros ficcionais dos mais variados formatos e
tipos. Um monstro é definido por suas atribuições letais e suas características tipológicas,
ambas capazes de provocar angústia, asco e medo tanto nas personagens quanto na audiência
(CARROLL, 1999). Uma das figuras monstruosas que marcam presença no horror desde o
seu início são criaturas que, apesar de sua monstruosidade, podem ser encontradas nos mais
diversos habitats e contextos: as mulheres.

Mulheres e monstros, mulheres-monstros

A mulher monstruosa sempre existiu no imaginário dos diferentes povos e culturas. De


Medusa na mitologia gregas à caça as bruxas na vida real, sempre buscaram-se explicações
para os comportamentos considerados essencialmente femininos: as mulheres sempre foram
emocionais demais, loucas demais, indagadoras demais - o que transformava-as em monstros
aos olhos da sociedade. Um dos primeiros diagnósticos médicos para esta “loucura feminina”
foi desenvolvido por Areteu - médico que exerceu profissão na Grécia durante os séculos I e
II a.C. - e através das sentenças exibidas no primeiro parágrafo deste anteprojeto, fez com que
se estabelecesse na medicina ocidental o conceito de histeria, uma doença atribuída somente à
mulheres.
A concepção de histeria feminina, atrelada à teoria do “útero errante”, na qual
acreditava-se que o útero, ou hystero, seria um organismo análogo a um ‘animal dentro de um
outro animal’ que se movimentava dentro do corpo da mulher e possuía vontade própria,
fortaleceram significativamente a construção deste imaginário monstruoso acerca da figura
feminina, o que contribuiu para que ao longo de séculos mulheres tivessem suas opiniões
invalidadas, recebessem tratamentos médicos violentos e fossem até queimadas em fogueiras.
Os horrores da realidade serviriam então para para povoar a ficção de Horror com criaturas
míticas assustadoras, como evidencia a pesquisadora Karina Wilson: “Desde que existem
estórias, existem estórias sobre o Outro”. Mas quem seria este Outro?

Entendendo o Outro como tudo aquilo que transgride as normas e foge dos padrões,
podemos considerar que, historicamente, politicamente e socialmente, a mulher sempre foi o
Outro, tanto na realidade quanto na ficção. Ao mesmo tempo em que o Horror se consolidou
como gênero, a representação feminina dentro deste foi se construindo em cima de
estereótipos e definindo claramente o lugar da mulher ora como objeto de prazer visual
masculino, ora como ser monstruoso quando apresentando condutas não normativas, sendo
sexualmente ativa ou quaisquer características que fujam do conceito de “exemplar” em um
contexto abertamente reacionário, e ora as duas coisas ao mesmo tempo. As
mulheres-monstro, dentro da ficção hegemônica, além de serem representadas como tal por
suas atribuições físicas teratológicas ou comportamentos assustadores, são seres exibidos
com a intenção de definir lugares e estabelecer papéis por sua diferença sexual: são, antes de
tudo, mulheres (MARTINS, 2004).

Além da representação feminina pejorativa dentro da ficção especulativa, sobretudo


dentro do Cinema de Horror, a participação de mulheres atuando como roteiristas, diretoras,
dentre outras funções técnicas, é escassa desde seu princípio. Por muito tempo, o posto de
diretora foi praticamente inacessível e, exceto por algumas desbravadoras como Ida Lupino
(na década de 1950) e Stephanie Rothman (a partir da década de 60), só iria efetivamente
mudar de panorama em meados dos anos 1980, com Kathryn Bigelow, Jackie Kong, Katt
Shea, Mary Lambert, Antonia Bird e algumas outras. A nova realidade acompanhou o
fenômeno do público feminino como espectador de filmes de terror; ou seja, as mulheres
passaram a consumir mais obras do gênero ao mesmo tempo que começaram a assumir as
rédeas atrás das câmeras (SALDANHA, 2019).
À medida em que as mulheres modificaram a indústria cinematográfica ao se inserirem
como autoras dentro do Horror, a representação feminina dentro do gênero também se
modificou. Diversas autoras começaram a utilizar-se de figuras monstruosas para traduzir
problemas sociais que mulheres enfrentam cotidianamente: repressão sexual, padrões de
beleza inalcançáveis, ansiedade em relação ao casamento e à maternidade; e ao mostrar
mulheres-monstros combatendo esses problemas, torna-se possível compreender o corpo
feminino monstruoso como um símbolo de poder, e não mais uma aberração. Quando a carne
feminina invariavelmente ultrapassa seus limites, esta pode se tornar um local de
transcendência, até mesmo de resistência. Não é por acaso também que a monstruosidade das
mulheres se manifesta durante os períodos de fluxo hormonal: menstruação, despertar sexual,
gravidez. O corpo monstruoso permite à mulher quebrar o olhar patriarcal, reivindicando o
poder sobre seu próprio corpo. (HARKIN-CROSS, 2017)

A partir dessas novas representações, percebe-se uma transformação na atitude das


mulheres em relação à monstruosidade. Não contentes em serem categorizadas como “o
outro”, mero produto reativo da norma, estas passaram a agir de forma ativa, reconhecendo
essa monstruosidade e passando a ressignificá-la. O monstro então não é mais algo que
precisa ser expurgado, mas sim incorporado. O desfecho do filme Babadook (2014), dirigido
por Jennifer Kent, talvez seja um dos grandes exemplos de como lidar com nossos demônios.
Após tentar se livrar de todas as maneiras possíveis do monstro ao longo da narrativa, no fim
das contas a personagem Amelia (interpretada por Essie Davis) decide conviver com ele,
deixar que este habite o porão de sua casa e faça parte da sua família, o alimentando e
zelando por ele.

Conclusão (Cuidando do monstro dentro de si)

Partindo das figuras monstruosas, tomemos como exemplo a serpente, que motivou este
ensaio. A serpente está historicamente ligada à figura feminina. Medusa teve seus cabelos
transformados em cobras depois de ser assediada por Poseidon e isolada do resto do mundo
todo. Eva teve o fruto do conhecimento oferecido à ela por uma serpente, causando sua
expulsão do paraíso e fazendo com que todos humanos que se originassem a partir dela
possuam em si a marca do pecado original. Na época da Inquisição, as serpentes foram
diretamente associadas às mulheres acusadas de bruxaria, insinuando que estas eram
traiçoeiras e malévolas.
A serpente em si mesma faz-se feminina e enrosca-se, beija, abraça, sufoca, engole,
digere e dorme. Esta serpente fêmea é a invisível serpente-princípio que mora nas profundas
camadas da consciência e nas profundas camadas da terra. Ela é enigmática, secreta; é
impossível prever-lhe as decisões, que são súbitas quanto às suas metamorfoses. Ela brinca
com os sexos como com os opostos; é fêmea e macho. A serpente apresenta um complexo de
arquétipos ligado à noite fria, pegajosa e subterrânea das origens. A serpente é, no plano
humano, o símbolo duplo da alma e da libido; é um dos mais importantes arquétipos da alma
humana (NEUMANN, 1996).

Para Gilbert Durand, a serpente possui uma forte simbologia ligada à vida e a morte,
associações com o poder, e com o hermafroditismo e a dualidade:

A serpente é um dos símbolos mais importantes da imaginação humana. (…). A


mitologia universal põe em relevo a tenacidade e a polivalência do simbolismo ofídico. (…).
Parece que a serpente (…) é um verdadeiro nó-de-víboras arquetipológico e desliza para
demasiadas significações diferentes, mesmo contraditórias. (…). A serpente é o triplo
símbolo da transformação temporal, da fecundidade e, por fim, da perenidade ancestral. (...)
Vivendo debaixo da terra, a serpente não só recepta o espírito dos mortos, como também
possui o segredo da morte e do tempo: senhora do futuro do mesmo modo que detentora do
passado, é o animal mágico. (DURAND, 2002, p.316 - 320).

A historiadora Silvia Federici nos chama a atenção para como a caça às bruxas
modificou nossa relação com os animais, em seu livro “Mulheres e Caça às Bruxas”:

Com a ascensão do capitalismo, desenvolveu-se um novo éthos social que prezava a


capacidade de disciplinar e direcionar os desejos instintuais do indivíduo para o trabalho. À
medida que o autocontrole se tornou sinônimo de humanidade, houve uma diferenciação
mais profunda entre seres humanos e “bestas”, o que implicou uma revolução cultural (...)
Com a caça às bruxas, especialmente na Inglaterra, os animais foram demonizados devido à
teoria de que o diabo oferecia a seu séquito ajuda diária na forma de animais domésticos, que
serviam para levar a cabo os crimes das bruxas. Esses “familiares” eram uma prova da
natureza irracional da “bruxa” e possivelmente de toda mulher. (FEDERICI, 2019, p. 55 -56)

Na religião católica as cobras foram associadas ao mal, mas no Candomblé, por


exemplo, temos a representação da serpente como um dos orixás protetores. Oxumaré é o
orixá de todos os movimentos, de todos os ciclos. Oxumaré é um deus ambíguo, duplo, que
pertence à água e à terra, que é macho e fêmea. Ele exprime a união de opostos, que se
atraem e proporcionam a manutenção do universo e da vida. Sintetiza a duplicidade de todo o
ser: mortal (no corpo) e imortal (no espírito). Oxumaré mostra a necessidade do movimento
da transformação. Sendo assim, percebemos que a existência de uma aura maléfica acerca das
serpentes foi constituída por uma parte da sociedade e não o seu total, sendo portanto, algo
mutável.

Cuidar dos monstros que habitam dentro de nós, e enxergar a monstruosidade fora do
binarismo do bem e do mal, torna-se cada vez mais necessário. Novas representações de
mulheres-monstros, monstros queer, autorrepresentações monstruosas, monstros complexos e
ambíguos, precisam ocupar mais e mais espaço dentro do cinema de Horror. Absorver e
abraçar a monstruosidade, tomá-la para si e ressignificá-la, transformando-a em objeto de
múltiplas potências.

Eu me dei conta por fim, de que a serpente na minha garganta, a mesma que inquietou o
meu sono noturno, não precisava ser arrancada de dentro de mim, mas precisava ser
alimentada, escutada, cuidada.

A Poesia dos Pontos de Oxumaré


"Eu vejo um arco-íris
Eu vejo um tesouro
É uma cobra
Toda feita de ouro
aroboby aroboby
É cobra
Toda feita de ouro."

Referências Bibliográficas

CARROLL, Noël. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Campinas, SP: Papirus,


1999.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins


Fontes, 2002
FEDERICI, Silvia. Mulheres e Caça às Bruxas. São Paulo: Boitempo, 2019.

HARKIN-CROSS, Rebecca. Embrace Your Monstrous Flesh: On Women’s Bodies in


Horror. {online} Disponível na Internet via
https://lithub.com/embrace-your-monstrous-flesh-on-womens-bodies-in-horror/

MARTINS, Ana Paula Vosne. Visões do feminino: A medicina da mulher nos séculos XIX e
XX. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004.

MEDEIROS, Daniel Lucas De. O Início do Horror: O início do gênero de terror no cinema
e sua relação com a guerra. Palhoça, 2016.

MORIN, Edgar. Conhecimento, ignorância, mistério. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.

NEUMANN, Erich. A Grande Mãe: um estudo fenomenológico da constituição feminina do


inconsciente. São Paulo: Cultrix, 1996.

SALDANHA, Beatriz. Mulheres atrás das câmeras: as cineastas brasileiras de 1930 a


2018. São Paulo: Estação Liberdade, 2019.

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