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ou
Como cuidar do monstro dentro de si em vez de tentar matá-lo
Certa noite eu sonhei que tinha uma serpente na minha garganta. Ela atravessava meu
esôfago inteiro e sua cabeça se projetava para fora da minha garganta, repousando sobre a
minha língua. Ao abrir a minha boca, qualquer um conseguiria ver os olhinhos da cobra
brilhando atentos enquanto sua cabeça estava sendo comprimida pela minha faringe. Eu
tentei colocá-la para fora de mim de todas as maneiras possíveis, tentava puxar sua cabeça
com a minha mão, tentava vomitá-la, cuspi-la. Sem sucesso. Todos ao meu redor pareciam
calmos e habituados com a situação, como se já conhecessem este animal que sempre esteve
dentro de mim e apenas eu que só havia percebido a presença dele naquele instante. A minha
angústia maior era a de não conseguir me comunicar. Tolice a minha. Mal sabia eu, que a
imagem da serpente em minha garganta comunicava mais do são capazes as palavras. Passei
o dia inteiro seguinte ao sonho, abrindo a boca em frente ao espelho para verificar se havia
dentro de mim alguma serpente.
Os sonhos são, assim como o cinema, um portal de acesso à uma realidade outra: livres
das amarras da lógica e da racionalidade, estes tornam-se então espaço de experimentação, de
potência criativa. Nos sonhos, nossa percepção de tempo se dilata e acessamos uma nova
experiência sensível a partir do momento em que vivemos o tempo de uma nova maneira.
Estima-se que os sonhos duram em uma noite normalmente entre 10 - 40 minutos, apesar de
conseguirmos viver uma vida inteira nessa fração de tempo. Dentro do cinema, sente-se o
fenômeno de dilatação de tempo de forma semelhante: em minutos, ou horas, atravessamos
séculos, enxergamos a vida através dos olhos de outra pessoa, amamos, sofremos, rimos e
choramos - vivemos uma vida que não é nossa, mas que de certa forma passa a ser.
O horror, por si só, é um sentimento difícil de definir. Sentir horror pode significar
sentir-se ameaçado, sentir repulsa, nojo, aversão, pavor, ódio, e por fim, medo de algo ou
alguém, como consta no dicionário. O horror - e o medo - são sentimentos intrínsecos ao ser
humano, e necessários para desenvolver o senso de perigo, e portanto nos manter afastados
do que nos pode ser um risco. O sentimento de horror foi o que deu origem ao gênero de
Horror, que primeiro se tornou concreto por meio da tradição oral, em seguida migrou para a
literatura e posteriormente se consolidou no gênero cinematográfico.
Entendendo o Outro como tudo aquilo que transgride as normas e foge dos padrões,
podemos considerar que, historicamente, politicamente e socialmente, a mulher sempre foi o
Outro, tanto na realidade quanto na ficção. Ao mesmo tempo em que o Horror se consolidou
como gênero, a representação feminina dentro deste foi se construindo em cima de
estereótipos e definindo claramente o lugar da mulher ora como objeto de prazer visual
masculino, ora como ser monstruoso quando apresentando condutas não normativas, sendo
sexualmente ativa ou quaisquer características que fujam do conceito de “exemplar” em um
contexto abertamente reacionário, e ora as duas coisas ao mesmo tempo. As
mulheres-monstro, dentro da ficção hegemônica, além de serem representadas como tal por
suas atribuições físicas teratológicas ou comportamentos assustadores, são seres exibidos
com a intenção de definir lugares e estabelecer papéis por sua diferença sexual: são, antes de
tudo, mulheres (MARTINS, 2004).
Partindo das figuras monstruosas, tomemos como exemplo a serpente, que motivou este
ensaio. A serpente está historicamente ligada à figura feminina. Medusa teve seus cabelos
transformados em cobras depois de ser assediada por Poseidon e isolada do resto do mundo
todo. Eva teve o fruto do conhecimento oferecido à ela por uma serpente, causando sua
expulsão do paraíso e fazendo com que todos humanos que se originassem a partir dela
possuam em si a marca do pecado original. Na época da Inquisição, as serpentes foram
diretamente associadas às mulheres acusadas de bruxaria, insinuando que estas eram
traiçoeiras e malévolas.
A serpente em si mesma faz-se feminina e enrosca-se, beija, abraça, sufoca, engole,
digere e dorme. Esta serpente fêmea é a invisível serpente-princípio que mora nas profundas
camadas da consciência e nas profundas camadas da terra. Ela é enigmática, secreta; é
impossível prever-lhe as decisões, que são súbitas quanto às suas metamorfoses. Ela brinca
com os sexos como com os opostos; é fêmea e macho. A serpente apresenta um complexo de
arquétipos ligado à noite fria, pegajosa e subterrânea das origens. A serpente é, no plano
humano, o símbolo duplo da alma e da libido; é um dos mais importantes arquétipos da alma
humana (NEUMANN, 1996).
Para Gilbert Durand, a serpente possui uma forte simbologia ligada à vida e a morte,
associações com o poder, e com o hermafroditismo e a dualidade:
A historiadora Silvia Federici nos chama a atenção para como a caça às bruxas
modificou nossa relação com os animais, em seu livro “Mulheres e Caça às Bruxas”:
Cuidar dos monstros que habitam dentro de nós, e enxergar a monstruosidade fora do
binarismo do bem e do mal, torna-se cada vez mais necessário. Novas representações de
mulheres-monstros, monstros queer, autorrepresentações monstruosas, monstros complexos e
ambíguos, precisam ocupar mais e mais espaço dentro do cinema de Horror. Absorver e
abraçar a monstruosidade, tomá-la para si e ressignificá-la, transformando-a em objeto de
múltiplas potências.
Eu me dei conta por fim, de que a serpente na minha garganta, a mesma que inquietou o
meu sono noturno, não precisava ser arrancada de dentro de mim, mas precisava ser
alimentada, escutada, cuidada.
Referências Bibliográficas
MARTINS, Ana Paula Vosne. Visões do feminino: A medicina da mulher nos séculos XIX e
XX. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004.
MEDEIROS, Daniel Lucas De. O Início do Horror: O início do gênero de terror no cinema
e sua relação com a guerra. Palhoça, 2016.
MORIN, Edgar. Conhecimento, ignorância, mistério. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.