Você está na página 1de 8

início revista autores submissões assine arquivo

O Avesso da Pele: o
milagre das artes num país
desigual e genocida
Tiago Lopes Schiffner

A mão que segura o chicote não é invisível.


(…) Na hora que eles falarem: ‘calem a boca
desses meninos’, eles vão calar nossa boca.

Criolo
 

Quanto vale o show? Perguntaria o Racionais numa canção que


remonta aos anos 80, ecoando um bordão de Sílvio Santos. Na
televisão, a frase era repetida após a apresentação de calouros,
que se submetiam a uma avaliação deprimente, em troca de
alguma recompensa pelo seu desempenho. Na música, o tom
crítico amplia o significado da frase feita e a reposiciona em dias de
hoje. Quanto vale o show de horror que vivemos diariamente nas
grandes cidades brasileiras? Quanto se pode lucrar com a desgraça
ou com o pagamento irrisório para trabalhadores e artistas sem
profissão ou condições de sobrevivência digna? Por décadas, o
dono do SBT prometeu prosperidade com os seus títulos de
capitalização, que capitalizavam a sua fortuna.

Quanto vale ou é por quilo? Essa pergunta dá título a um filme


importante que discute a herança da escravidão, a filantropia
interesseira, o descaso com a educação e o nascimento das ONGs,
num país que cada vez mais terceiriza a responsabilidade
constitucional de fornecimento de serviços básicos. No Brasil, a
educação pública resiste a duras penas, e a maioria dos professores
se contrapõe ao projeto político de sucateamento que ameaça seus
salários e as possibilidades de vida de seus alunos. Nesse contexto,
quanto vale a leitura de Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski?
Qual é a importância da criação de um pensamento crítico que
fatalmente nos leva a questionar as incongruências e as
desigualdades? Quanto custa não ser parado pela polícia, colocar
as mãos na cabeça, ter que virar de costas, deixar-se apalpar, ouvir
um grito ao pé do ouvido, tomar um tapa de surpresa ou tiros à
queima-roupa? Qual o preço do respeito entre nós? Quem pode
pagá-lo? Qual grupo paga mais caro por esse outro artigo básico?

Jeferson Tenório nos coloca várias dessas questões a olhos vistos


em O Avesso da Pele. O terceiro romance de Jeferson enfrenta as
contradições basilares da nossa sociedade com uma habilidade
narrativa impressionante. O descaso com a educação, a
intolerância, o racismo e as relações humanas cortadas pela lógica
individualista marcam o enredo trágico, que já anuncia desde o
início que as coisas não terminarão bem. Os vínculos humanos
reificados – em que, por vezes, amor vira propriedade – e a
fragilidade dos elos entre pais e filhos dão a ver os sintomas de uma
realidade que nos adoece com seus desiquilíbrios econômicos de
todos os dias. O romance retrata essas disparidades de maneira
cirúrgica, e a rotina desgastante de Henrique – professor de uma
escola pública de Porto Alegre – dificulta o seu relacionamento
com o filho, Pedro. Falta tempo para os encontros. Sobra trabalho.
Falta disposição de ambos. O assunto é escasso. O dinheiro é
sempre meio curto. O que requer mais esforço. A habilidade de
Tenório está em falar desses descompassos por meio da
construção dos personagens. Eles são profundos, complexos, com
várias camadas, que apresentam as contradições íntimas e as
distorções sociais com as quais precisamos lidar. As pessoas
ficcionais de O Avesso da Pele são feitas de carne e osso e não
escondem as suas incoerências. Estão vivas numa dada realidade,
mas também na imaginação de um rapaz que precisa entender
quem foi seu pai, com quem pouco conversou abertamente na sua
vida de vinte e poucos anos.

Cada personagem é um universo em diálogo com outro universo e,


às vezes, as condições dessas trocas não são as mais favoráveis. Eu
gostaria de falar dos personagens, ressaltar a beleza humana dos
traços que constituem os gestos delineados com segurança por um
autor maduro. O que é uma aula sobre o entendimento do outro,
do diferente, na medida em que esse sujeito diferente é passeado
pelo olhar narrativo. E é no olhar narrativo em que quero me
concentrar.

O Avesso da Pele é escrito através de uma segunda pessoa que nos


convida a participar da história, e somos inseridos numa conversa
imaginativa entre Henrique e Pedro, pai e filho. Mas essa segunda
pessoa monológica esconde em si a voz angustiada do narrador,
que perde a referência paterna e precisa entender a sua condição
de homem negro, ao mesmo tempo em que repensa, relembra e
retoma o passado. O gesto discursivo de Pedro mimetiza a
trajetória dos negros no Brasil, cuja tônica sempre foi o necessário
resgaste das suas raízes ancestrais em meio aos vazios forjados
pelos narradores privilegiados da história do país. Todos os dias é
preciso fugir do Alzheimer nacional, para usar os termos de
Bernardo Kucinski. Para completar as nossas lacunas íntimas e
sociais, nada mais adequado do que a escrita e a criação artística.
Essa é a principal lição do romance de Jeferson Tenório.

Numa turma ‘difícil’, Henrique promete a visita de um criminoso e


vai buscá-lo em outro tempo, em outro país, dentro da literatura.
Não sem surpresa a presença de Raskólnikov se mostra decisiva
para a compreensão crítica dos alunos, os quais passam a refletir
sobre as próprias trajetórias e problemáticas pessoais. A decisão
didática de Henrique é acertada. E ele paga o preço da certeza de
que não era um criminoso ao acreditar nos meandros da educação
e da arte. O assassinato do professor negro é a morte de quem
resiste ao obscurantismo, de quem se opõe ao esquecimento e ao
projeto de humilhação diária, que corta seu cotidiano dentro, mas,
principalmente, fora dos muros da escola.

Um detalhe nada fortuito do livro é que o algoz de Henrique


também possui um retrato de sua individualidade doente, não dada
pela voz do jovem Pedro, mas sim por uma enunciação objetiva. A
terceira pessoa e o discurso indireto livre apresentam as paranoias
do homem da lei. Em meio a delírios noturnos, o soldado protege a
sua família da invasão sorrateira de assaltantes negros. Não
consegue dormir um sono contínuo. Está sempre alerta e
apresenta uma psique dominada pelo exercício da violência, a qual
lhe foi outorgada a permissão, junto com o porte de arma. A insônia
do policial dá a dimensão da dificuldade, da surdez, da psicopatia,
da violência racista que habitam socialmente a objetividade do
cotidiano brasileiro. A solução estética não recorre a um
maniqueísmo fácil e mecânico. Jeferson nos dá a ver novamente –
seguindo a influência de Dostoiévsky – a consciência confusa de
quem carrega um conflito interno e que, também nesse caso,
reflete aspectos mais amplos de um status quo geral e externo. O
racismo é o elemento decisivo para a apresentação da insanidade
que distingue o nosso contexto nacional, o qual é forjado em
distorções, recalques e aberrações próprios a imagens de um
passado remoto e que aparecem traduzidos nos sonhos do homem
de farda.

É como se o narrador Pedro dissesse ‘eu não posso ou não me sinto à


vontade para conversar com essa pessoa, mas apresento a mente do
algoz com a objetividade vil do meu dia a dia’. Aqui não se trata de um
ínfimo troféu de vingança, mas sim de uma investigação profunda
do problema. Há uma redução da totalidade intolerante e insegura,
a qual faz casa no cérebro do atirador que puxa o gatilho e mata
seu pai. A atitude de Pedro é uma aula a que precisamos dar mais
atenção. Pois a compreensão da patologia criada pelo passado de
escravidão e pela desigualdade é essencial para decodificarmos o
DNA do Brasil e encararmos as neuroses que nos cercam. A fúria
repugnante que mata Henrique é a mesma que matou Marielle
Franco. É a mesma que mata tantos outros negros e negras, jovens
de periferia e pessoas pobres de maneira geral. É uma mente
egoísta e coletiva que segmenta o quadro social, dividindo há
séculos a nossa sociedade em setores fortemente guardados pela
polícia. Precisamos lidar objetivamente com esses antagonismos,
como O Avesso da Pele faz. O entendimento dos componentes da
banalidade do mal é decisivo, embora seja bastante difícil e requeira
um olhar, por vezes, distante e intocável. Hannah Arendt é
professora nessa e em outras lições. Por tudo isso, o valor do livro
do Jeferson é incomensurável, uma aula de habilidade, escolha e
desenvoltura narrativa, mas também uma aula sobre o Brasil. É
desse tipo de ‘show’ que precisamos.

· · ·
 

Tiago Lopes Schiffner é doutor em Estudos Literários, com ênfase


em Literatura Brasileira. É integrante do grupo de pesquisa
“Literatura Brasileira em dinâmica desigual e combinada”, junto ao
Instituto de Letras da UFRGS.

 POST ANTERIOR POST SEGUINTE 

Instituições 1984, um Clássico?


internacionais e os
desafios na promoção da
interface entre
conhecimento e política
na saúde global: lições da
pandemia

 

Você também pode gostar