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Deixe o quarto como está, ou Estudos para a composição do cansaço, de Amilcar

Bettega.

Tiago Lopes Schiffner


1 Contexto histórico e leitura crítica:

Deixe o quarto como está, ou Estudos para a composição do cansaço: a desilusão de


um país em decadência econômica, humana e social.

Só então os meninos. E isso já é do lado de fora.


São dois e estão na calçada, rentes ao muro, no
trecho frontal deste mas próximos à esquina.
Estão separados por alguns metros, e um deles
parece estar de cócoras. Idade? Talvez dez anos,
ou menos. Mulatinhos e esmirrados, uns
pivetinhos. É isso. (Amilcar Bettega).

Os contos de Deixe o quarto como está, ou Estudos para a composição do


cansaço, de Amilcar Bettega, se enquadram historicamente no final do ciclo de dois
governos do presidente Fernando Henrique Cardoso. O tom melancólico, as incertezas e
a desesperança das narrativas de Bettega refletem, de alguma forma, a queda da euforia
que o Plano Real e as promessas de consumo num país mais equilibrado estimularam. O
individualismo impera e a desregulamentação da vida suscita um sentimento de
insegurança generalizada, pautada por um medo compartilhado. Crescem a necessidade
de proteção pessoal num momento de egoísmo institucionalizado, o aumento da
desigualdade e o incentivo à competição predatória. Os aspectos sociais que possam
ameaçar a crença na estabilidade econômica, a vida privada e a iniciativa
empreendedora são vistos como os inimigos a serem combatidos. Os pobres e os
adversários políticos se tornam entraves ao modelo de desenvolvimento neoliberal.
O Estado brasileiro se associa ao mercado estrangeiro, e, nessa época, cerca de
20% a 30% do PIB nacional é de propriedade de empresários e conglomerados
econômicos externos. A privatização desenfreada de empresas estatais e o estímulo à
captação de capital especulativo de fora acarretam uma crise econômica bastante
expressiva, principalmente nos anos finais do segundo mandato de FHC. A ideia dos
investidores internacionais é lucrar com a diferença das atividades de compra e venda
de moeda, de ativos financeiros ou de matéria prima estocável. Em suma, o ideal do
Estado e de seus parceiros não é o fortalecimento da defesa das riquezas e do mercado
interno, muito pelo contrário.
As fortunas atraídas pelo Governo Federal são frágeis e incertas, e a mera
sombra de crise político-econômica faz com que os especuladores abandonem o Brasil,
atrás de um país mais rentável. Nesses momentos de descapitalização, recorre-se ao
Fundo Monetário Internacional (FMI) e a nossa dívida externa só aumenta. Por isso, o
clima é de desilusão e medo, uma vez que um Estado que direciona um montante de
30% da sua produção de riqueza para o pagamento da dívida pública não tem muitas
condições de investir maciçamente em áreas cruciais para o acolhimento e o amparo
social, tais como saúde, educação, segurança e infraestrutura. Além de baixa, a
aplicação de verbas nas demandas sociais é controlada pelo FMI, que empresta com a
condição de predefinir o percentual a ser colocado em cada uma das atividades
essenciais.
Entre 2000 e 2001, o Brasil passa por uma grave crise energética, o que acarreta
um “apagão”. A ausência de investimento em geração e em transmissão de energia se
combina uma forte seca, o que afeta a maior fonte de produção de eletricidade: as
hidroelétricas. O blecaute iminente faz com que o governo tome medidas de
racionamento baseadas no encarecimento da conta de luz. A realidade de regiões
remotas, em que a luminosidade é feita de lampião, ameaça se tornar a tônica no país.
O modelo ultramoderno e globalizado de avanço tecnológico e financeiro nos
coloca numa penumbra, e as perspectivas de uma modernização anti-estatal dão num
fiasco à luz de velas. A falta de energia é uma espécie de resumo da imobilidade e do
descaso com a sociedade, trocada por uma ganância despreocupada com as
consequências do seu desejo de ganho. Não é difícil atentar para essa estagnação
simbolizada nos relatos curtos de Amilcar Bettega. Em Exílio, a derrocada dos
comércios de uma cidade pacata e interiorana resulta na tentativa de um negociante
abandonar o marasmo de uma conjuntura de inércia econômica. A eletricidade é cara.
Os clientes não aparecem. O cotidiano é de uma incontornável espera por dias melhores.
No fim, não há para onde fugir, e o vendedor retorna à loja que está na iminência de
falir, como os outros negócios da região. O efeito cíclico da narrativa que não apresenta
uma saída possível para o conflito de interesses (permanecer e ir embora) é uma bela
alegoria da estagnação de um projeto social desumanizado, urbano e desequilibrado,
que renega algumas populações ao esquecimento.
Os governantes rentistas dão de ombros à existência grupos populacionais
marginalizados em regiões distantes ou em guetos da urbanização. Os menores de rua
de Autorretrato simbolizam uma geração de jovens que sobrevive no improviso, sendo
agredidos por um homem insensível à penúria e acariciados por uma mulher imensa que
lhes concede algum trocado. A violência contra os garotos preserva a falsa
tranquilidade, afastando a ameaça que o muro não conseguiu conter. Mas a
pauperização, a raiva e a ausência de modificação do quadro replicam cenas. O início é
igual ao final para o alívio do narrador em terceira pessoa que fica angustiado com a
possibilidade de os meninos conseguirem invadir o domicílio do casal que
aparentemente assiste a tudo de maneira aparentemente passiva. Em Deixe o quarto
como está, o retorno aos acontecimentos e aos problemas iniciais da maioria das
histórias dá uma resposta artística ao apagão de um ideal de mudança nos rumos
nacionais.
O desemprego é outra marca negativa de término do segundo mandato de FHC.
Quando o presidente psdbista passa a faixa a Lula, o Brasil é o segundo país com maior
índice de mão de obra sem trabalho. Não é difícil identificar personagens
desempregados ou com baixos salários no livro de Bettega. Aprendizado e Para salvar
Beth trazem, respectivamente, a trajetória de um personagem em vias da demissão e a
de um outro homem na busca de alguma renda. A atmosfera de Aprendizado lembra a
crueza e a brutalidade das narrativas de Rubem Fonseca, em Feliz Ano Novo. O ataque
gratuito do protagonista a um morador em situação de rua ecoa a selvajaria e a
arbitrariedade de várias passagens dos textos de Fonseca.
Porém, nos contos de Amilcar, a distância social entre o algoz e a vítima é
menor, e o mendigo é atacado por um homem que não está muito distante das
circunstâncias vividas por ele. O agressor não consegue o dinheiro para os remédios da
mãe e pensa em improvisar com um medicamento veterinário. Ela morre em casa, e o
rapaz imagina solucionar as dificuldades e as dívidas com um seguro-desemprego ao
qual não sabe se tem direito. A narrativa começa com ele pensando em não ir ao
trabalho e termina com mais uma falta injustificável. A baixa rentabilidade torna a
atividade profissional um encargo irrelevante, e a saída para os empecilhos diários são o
“bico” e a troca de favor com conhecidos.
A informalidade é o cerne do dilema de Para salvar Beth. Gilberto aceita cuidar
de uma cadelinha de raça, chamada Beth. O animal de estimação é de uma família de
classe média alta e está fazendo um tratamento para uma doença aparentemente
terminal. A cachorrinha de donos ricos recebe a assistência que a mãe do personagem
de Aprendizado não tem. O contraste entre os fármacos e o atendimento para bicho
reduz a humanidade da mulher que morre em casa, sem o mínimo, enquanto a possível
morte de Beth acontece num lugar apropriado, com um registro e uma identificação. Há,
ao mesmo tempo, uma desumanização dos que enfrentam diversas restrições diárias e
uma empatia pelo sofrimento do outro de outra espécie. Tal como o narrador de
Aprendizado, Gil se vê novamente sem a renda propiciada pelo leva e traz da
convalescente de Pet-shop. Está desempregado, mas pode contar com a esposa que
mantém os débitos em dia. O que não está previsto para o despejado de O crocodilo I.
Em O crocodilo I, a loucura e a pobreza são alegorizadas pelo peso da
ferocidade pacífica que se leva nas costas todos os dias, seja ela mais destrutiva,
representada por um crocodilo, seja ela mais amena figurada por um cachorro ou um
macaco. O percurso é de mudança, mas em sentido adverso, e o sujeito que tinha um
endereço acaba sem eira nem beira. A perda da casa e a insanidade também são os
temas de O rosto. Essa narrativa apresenta outra tendência de Deixe o quarto como está,
que é o temor por figuras imateriais, fantasmagóricas. No fundo, estamos tratando do
mesmo sentimento de receio ou pavor que os meninos infratores desencadeavam em
Autorretrato. Mas agora a representação faz do invasor um rosto que vaga por uma
residência – da qual se teme ser expulso. A ironia é que o rosto que perambula e
assombra foge e, pelo buraco no vidro por onde escapa, fica preso o pescoço do
morador – o qual não pode se mover muito, sob pena de ser o próximo decapitado.
Novamente, estamos diante da estrutura cíclica que não apresenta superação dos
problemas centrais. A literatura de Bettega está diante de uma “sinuca de bico”, que o
momento histórico confuso lhe concedeu como matéria artística. E O rosto sinaliza a
dimensão do duplo, em que o mesmo é o outro, num individualismo autodestrutivo e
numa atmosfera repetitiva e claustrofóbica.
O individualismo autodestrutivo também é abordado em Correria. O desgaste
físico é levado ao extremo, e atingir a linha de chegada vira o sentido da vida do
personagem. A competição pode lhe matar, mas o objetivo é inegociável, sendo apoiado
por amigos reais ou imaginários. Eles querem a vitória do companheiro, mesmo que
isso custe caro. A sanidade é supérflua diante do sucesso do competidor, que deve
continuar a corrida. A disputa é retratada também em Insistência. Ali o indivíduo é
consumido por duas coletividades masculinas que, literalmente, lutam pelos privilégios
de habitar e desfrutar dos benefícios de uma espécie de depósito. Permanecer nesse
lugar é um desafio que se transforma numa razão existencial. A parede que separa os
dois grupos é a fronteira entre duas situações diferentes de vida, de uma mesma forma
de ser. A subjetividade é rifada pelo ilusório bem-estar, e, por ele, é necessário brigar e
se arriscar diariamente. A parede ou o muro são elementos de diferenciação,
desencontro e exclusão. Em O encontro, um casal vai até uma comunidade retirada atrás
de uma experiência reveladora, religiosa e transcendental, mas se perde nos meandros
labirínticos de fortificação aprisionadora. É como se fosse uma resistência da
comunidade aos forasteiros, ao mesmo tempo em que pode ser lido como uma metáfora
da perda subjetiva de nós mesmos.
A cura tematiza a falta de assistência à saúde de um vilarejo acometido por uma
doença contagiosa e viral para a qual não há tratamento. Lembrando de maneira
impressionante o problema grave que vivemos hoje, essa ficção lança luz sob a
irrelevância dos habitantes escondidos nos rincões distantes do Brasil – em que só se
chega de barco, tal o isolamento a que estão submetidos. A enfermidade grave e mortal
gera um cansaço profundo nos homens e mulheres, que acabam morrendo de inanição.
Num contexto de concorrência e egoísmo latente, A cura ilumina a realidade de quem
está fora do jogo de prosperidade global e apresenta o outro lado da moeda: as
circunstâncias em que os desafortunados sobrevivem, consumidos por uma peste que
lhes retiram as forças para afrontar o atraso. Os heróis são os médicos que desafiam os
obstáculos para irem até os pacientes e enfrentarem a doença, a qual estudam
diariamente. Escondidos na sombra do progresso, os doentes comemoram a vinda dos
doutores de laboratório, não os de gabinete.
Em Privatização do público, destituição da fala e anulação da política, o
sociólogo Francisco de Oliveira evidencia o viés autoritário da execução do programa
neoliberal brasileiro, em que a nossa forma de aplicá-lo e de mantê-lo em ação adquire
uma feição totalitária. O efeito é o condicionamento de todas as áreas do governo à
semelhança de empresas. O Estado é encarado com um espaço de interesse privado, e as
relações humanas se dão na mesma chave privatista. Em prol dos setores dominantes, as
medidas adotadas visam: à retirada de direitos dos trabalhadores, pressionando-os à
informalidade; o aprofundamento da dependência externa; o sufocamento da opinião
divergente dos setores subjugados; entre outras maneiras de concentração de renda e
poder. Vivemos em uma espécie de “monarquia” das vontades e regalias. Não é difícil
perceber um silenciamento semelhante ao descrito por Francisco de Oliveira nos
empregados da cozinha de A visita.
Essa narrativa tem uma atmosfera imperialista, em que o visitante é aguardado
por uma Duquesa, que lhe apresenta um quase palácio com inúmeros ambientes. Num
deles, nos deparamos com cozinheiras em circunstâncias insalubres, desenvolvendo
atividades braçais, numa mudez sepulcral. A função dos guardas é primordial para a
sustentação da autoridade da realeza, e a diversão dos nobres é chicotear um homem
indefeso. O instrumento de açoite tem uma longa história nos quinhentos e vinte anos
do país, e a representação indireta de Amilcar repõe o estado das coisas e as nossas
heranças de longa data. Os empregados estão mudos e sofrem diariamente, sem direitos,
num mundo fortemente hierarquizado. Embora o conto se passe num tempo não
identificado e num lugar também indefinido, a fabulação onírica de Bettega nos remete
à brutalidade de como são tratados os homens e as mulheres subalternizados nos nossos
lares, até hoje. Eles são permanentemente explorados, para alimentarem o prazer
sórdido e alheio da propriedade, e não são escutados nas suas reivindicações e queixas.
A perspectiva econômica com reflexo na organização social gera um clima de
instabilidade e de desconfiança generalizada. Segundo a abordagem de Francisco de
Oliveira em Brasil: uma biografia não autorizada, os nossos anos 90 e o começo dos
2000 são marcados por uma dupla contradição.

Uma desesperada fuga para a vida privada, cuja mais forte consequência é o
medo do outro e uma ânsia de segurança cujo resultado é a formação do
"consenso dos inocentes", do silêncio dos inocentes. Grades, muros
eletrificados, guaritas em ligação direta com a polícia, pitbulls e rottweilers,
controles eletrônicos sofisticados, "sorria, você está sendo filmado", câmeras
indiscretas no interior dos elevadores, sinistras polícias privadas de
segurança, photocharts nas portarias, até a arcaica forma dos muros
ameaçadoramente eriçados de cacos de garrafa, de alto a baixo da escala
social, dos guetos dos ricos, passando pelos condomínios da classe média, até
as moradias pobres, o Outro é a ameaça. Os programas políticos, da esquerda
à direita, prometem segurança como o item mais importante da cesta de
consumo dos lambs. É isso que responde pela possibilidade da ofensiva
neoliberal que apela à privatização da vida - e torna os valores do mercado
seu sinônimo -, pelo amplo consenso em torno da estabilidade monetária no
Brasil como signo da segurança, e pelos "bodes expiatórios" que conspirando
contra a estabilidade e o refluxo à vida privada, produzem instabilidade e
violência. A privatização da vida é a eliminação da política no sentido da
pólis grega. (OLIVEIRA, 2018, p. 97).

Deixe o quarto como está, ou Estudos para a composição do cansaço responde


artisticamente às incoerências desencadeadas pela larga escala de privatização do
universo público. Constrói catorze ficções aparentemente desconexas com o real, mas
que, fora a exterioridade das fantasias inquietantes, exibem as aberrações de um mundo
pretensamente racional.
Alguns elementos de suas narrativas informam as disparidades da sociedade em
que são escritos: os eternos retornos ao problema inicial de cada conto; as imagens
ligadas à violência, ao tormento subjetivo e de assombrações; os sinais de autoritarismo
e da divisão entre pessoas de diferentes origens; as incongruências opressivas de um
pesadelo vivido de olhos abertos; o pavor excessivo das perdas; o anonimato de quase
todos os personagens, para os quais a identificação é renegada; a entrega da existência
por um objetivo incontornável. Todos esses componentes temáticos e estilísticos dão
uma forma e denunciam as atrocidades e a desesperança de um país em vias da falência
devido ao desdém de setores entreguistas. A ampliação do abismo entre a elite e os mais
pobres e o isolamento da indignação dos extorquidos são imobilizantes e forçam a
aceitação irremediável da desventura cotidiana, da qual não conseguimos fugir, embora
seja insuportável e cansativa.
Por esses motivos, o livro de Amilcar Bettega está imerso no contexto histórico,
do qual dá uma leitura artística muito propícia e que descortina os impasses daquela
atualidade. O título de Deixe o quarto como está é extraído de Três rosas amarelas do
estadunidense Raymond Carver, e a imagem é de um conjunto de narrativas curtas
fantásticas e surrealistas – o que não deixa de ter a sua verdade. Mas, se olharmos com
mais atenção e recuperarmos a raiz histórica das suas irrealidades, veremos muito do
Brasil em Deixe o quarto como está.

2 Resumos:

Deixe o quarto como está, ou Estudos para a composição do cansaço e seus enredos.

Sentia-se meio oco, cansado, como no fim de um


dia modorrento, desses em que a modorra
lentamente prepara uma grossa chuvarada.
(Amilcar Bettega)

Deixe o quarto como está, ou Estudos para a composição do cansaço traz


catorze contos com uma linguagem acessível, clara e com alguma poeticidade. Os textos
têm um estilo narrativo com uma expressão fantástica, que trata da realidade de maneira
alegórica, indireta. As narrativas apresentam na sua maioria uma estrutura cíclica,
começando e terminando de uma mesma forma. Os fatos iniciais de cada história não
são superados, e os personagens ficam enredados neles. São onze contos escritos em
primeira pessoa, e apenas três, em terceira, sendo eles: Autorretrato, O encontro, Para
salvar Beth.
A imparcialidade narrativa de Autorretrato se distingue por um afastamento, em
que o observador dos acontecimentos está longe e assistindo aos eventos por cima. No
entanto, ele não é indiferente e espera ansiosamente por uma reação repressiva contra os
meninos negros. Está distante, mas internaliza a condição de vítima do possível roubo
dos garotos, que tentam pular a janela. Em O encontro, a ambientação impessoal da
cidade, em que os homens e mulheres respondem por características superficiais, parece
contaminar o ponto de vista, o qual assume e reforça o ar misterioso e o anonimato
disseminado na aldeia. O narrador parece mais um cidadão da comunidade isolada e não
afeita a visitantes. No caso de Para salvar Beth, Gilberto é o único protagonista que não
é narrador, mas possui um nome, uma identidade – o que cria uma interessante
contradição interna ao livro. Ele tem direito a uma identificação, mas não, a voz. Esses
três contos são emblemáticos das escolhas estilísticas de Amilcar Bettega e evidenciam
que elas estão em consonância com os enredos de cada relato.

Autorretrato

Narrado em terceira pessoa. O conto inicia com uma visão panorâmica de uma
casa grande, que não se pode distinguir se rica ou pobre. “Uma casa grande apenas”. Na
sequência, aparece uma mulher gorda, que, segundo o narrador, é uma extensão da
própria residência. A descrição privilegia o tamanho do corpo dela, ressaltando a
imensidão de seus braços e coxas. Ela está com um vestido que desce até os pés. O tom
do narrador é de repulsa pela personagem, uma repugnância que está ligada à
desproporção e à quebra de padrão da descomunal obesa.
Sob uma árvore é difícil de perceber um homem. Ele se confunde com a
vegetação. Calça botas e está cegamente a serviço da gorda. Ela está deitada na grama
do jardim, enquanto o homem espera com servilismo, ali ao lado, alguma ordem dela.
Como o ponto de vista é do alto, o narrador não consegue dimensionar o tamanho do
muro que protege a propriedade do casal. Ao lado da divisória, surgem dois meninos,
“mulatinhos e esmirrados”, que escalam a parede e, com auxílio de um galho, descem
no pátio da casa grande. Eles tentam entrar por uma janela, para desespero do narrador,
que torce para que o casal tome alguma atitude contra a invasão.
Com um olhar apenas, a gorda autoriza o homem a capturar os meninos, que
ainda não tinham entrado pela janela. Ele prende os dois, choca a cabeça de um contra a
do outro e os solta. Eles dão alguns passos cambaleantes e desmaiam. Quando
recuperam a consciência, o homem os leva até a mulher, que emocionada faz um afago
nos garotos. Numa disposição serviçal, as crianças são levadas até o portão pelo
agressor, que parece lhes oferecer algum dinheiro e doces. Elas vão embora, enquanto o
sujeito vai até o fundo do pátio e volta com um saco de areia. Deposita-o sob a árvore e,
num rompante de fúria, começa a socá-lo. A mulher se mantém inerte, como uma
estátua, e é indiferente à raiva do companheiro. Aos poucos a tranquilidade começa a
voltar ao cenário, o conto termina com a mesma visão aérea do início da narrativa, e a
paz só é quebrada pelos movimentos dos braços do “homem-cão”, que continua
batendo.

Exílio

Narrado em primeira pessoa. A história é sobre a frustração de um comerciante


com a falta de prosperidade de seus negócios. A narrativa se passa numa cidade
interiorana, e o dono da loja faz algumas modificações no interior do estabelecimento,
para atrair clientes. Instala um ventilador de teto para deixar o ambiente mais fresco. No
entanto, o aparelho não funciona corretamente, pois o pé direito do prédio é muito alto.
Sem a solução para o calor, restou o aumento da conta de luz e mais um item sem uso.
Sem renda e com os prejuízos aumentando, a iluminação passa a ser a do sol, que
influencia no horário do fechamento. Com o pôr-do-sol às 18h, o expediente termina
“após o dia de trabalho”. A cidade passa por modificações, e alguns hábitos do
comerciante são alterados. Com o fim das atividades de um hotel em que almoçava
diariamente, ele passa a fazer sua refeição atrás do balcão.
A tranquilidade só é interrompida pelo alvoroço de um grupo de crianças que
invade o lugar, brincando de pega-pega. Elas são enxotadas pelo dono, que, embora
admire a energia viva delas, não as quer ali dentro. No passar dos anos, as pessoas e os
locais vão se modificando. O desaparecimento dos habitantes e dos negócios deixa na
localidade “uma aparência de cidade-fantasma”. A apatia se caracteriza pelo baixo
movimento e por uma aura pesada de fim dos tempos, marcado por um silêncio só
quebrado pelas crianças e pelos cachorros, os quais também, às vezes, irrompem bazar
adentro, num enrosco que é difícil saber tratar-se de algazarra ou briga.
Após um boato do fechamento do estabelecimento, aparecem algumas pessoas,
que vão até lá para admirar o interior e a passividade do homem atrás do mostruário,
mas que nada adquirem. São pessoas com crachás e não parecem ser dali. Em certo dia,
um casal vai visitar a loja e começa a discutir sobre um produto. A mulher diz que não
havia nada similar àquela mercadoria na cidade, mas, ao invés de comprar, ela rouba,
colocando o item dentro da bolsa. O dono percebe, mas não persegue a dupla, pois “se
fizesse isso ela me devolveria o produto e eu teria de trazê-lo para dentro da loja”.
Cansado da monotonia sem lucros, o proprietário decide deixar a cidade. À noite, ele
embarca num trem com o sentimento de esperança e alegria por imaginar uma nova vida
numa nova localidade. O caminho do veículo, que corta a cidade abandonada, e as
lembranças tomam os olhos e a mente do personagem-narrador. Porém, ele desiste do
projeto de se mudar e desce na estação seguinte. Toma um trem no sentido contrário,
em direção a sua velha cidade, com o pensamento de chegar a tempo de abrir o seu
negócio pontualmente.

Aprendizado

Narrado em primeira pessoa. O conto tem um forte teor machista e inicia com o
protagonista em um motel com uma mulher, que é colega de serviço, a qual compara a
uma égua. Enquanto ela se penteia de frente para o espelho e de costa para ele, a cena é
relembrada da seguinte forma: “Fico apreciando a musculatura das suas costas, nem
muita, nem pouca, perfeita, parece uma égua de corrida (falta só o suor brilhando)”. A
jovem é funcionária de uma imobiliária, e o narrador insinua e desconfia que ela e o
chefe tenham um caso. E a maneira como se refere a essa desconfiança é bastante
desprezível: “deve ser a comidinha dele também”. Ele menciona que a sua mãe está
convalescendo de uma doença e que talvez não vá ao trabalho, para levá-la ao hospital.
Os dois deixam o motel juntos e tomam um ônibus. Descem em um “trailer de xis”, e
ela compra dois lanches. Despendem-se, e o protagonista reforça que não sabe se vai à
imobiliária no dia seguinte.
Em meio aos vai-e-vem noturno, o rapaz retorna para casa. Tenta comer algo,
mas a geladeira só tem uma sopa rala, talvez a comida da mãe doente. O pai aparece
abatido e diz que é preciso levá-la a um posto de saúde. A preocupação do velho é
bastante pragmática e questiona o filho sobre quem irá cortar as unhas dele, pai, se a
esposa morrer. Na conversa dos dois homens, o narrador relembra do alcoolismo do
idoso, que largou o vício depois de um “trabalho num terreiro de umbanda”. Durante o
diálogo, surge a questão que atravessa o conto: “você sabe qual é o tempo de trabalho
que a gente precisa ter pra ganhar o seguro-desemprego?”.
Após mais algumas palavras, o jovem levanta da mesa e diz que vai dar uma
volta. Acaba indo ao Bar do Jones, um boteco boêmio, decadente e com mesa de
snooker. Embora não saiba jogar, ele fica no entorno da mesa e pergunta sobre um
conhecido chamado Binho. Nesse momento, Darci se aproxima e pergunta quando o
rapaz lhe pagaria os cinquenta reais que lhe deve. O endividado tenta despistar,
afirmando que Binho lhe emprestaria algum dinheiro e aí ele pagaria a quantia. Darci
não aceita as desculpas e o esmurra no corredor que dá para os banheiros. Um soco
certeiro lhe quebra um dos dentes. Ao voltar ao salão de snooker, Binho, que trabalha
numa farmácia veterinária, havia chegado. O agredido pede cinquenta reais a ele, que
nega com veemência. A pergunta central volta à cena: “Se a gente sai do emprego com
menos de um mês, a gente ganha o seguro-desemprego, Binho?”.
Binho não sabe responder à dúvida. Os dois vão à farmácia veterinária a pé, após
o protagonista dizer que precisa de um remédio para a mãe. Na farmácia, Binho se
sente relaxado para ligar o rádio, acender um cigarro e calçar “as havaianas que costuma
deixar sob o balcão. Mas tudo depois de vestir o avental”. O atendente quer saber o que
a mãe do amigo tem. O outro rapaz não sabe dizer e menciona que ela sente muita dor.
Apanha um analgésico aplicado em cavalos de maneira aleatória, agradece e vai
embora. No trajeto para o apartamento em que mora, se depara com uma fila para
distribuição de fichas para uma consulta hospitalar. Faltam ainda oito horas para o
início da entrega das senhas. O grupo de pessoas aumenta e um homem lhe oferece
trinta reais pelo lugar do rapaz, que pede tempo para pensar. Quando decide vender a
posição na fila, o interessado reduz a proposta para quinze reais, o que é aceito. No
retorno, uma nova visita ao Bar do Jones. O pessoal continua reunido em volta da mesa
de bilhar, e os quinze reais servem para pagar parte da dívida com Darci. A promessa é
que, com o seguro-desemprego, se quitasse o restante do valor. A dúvida sobre o direito
ao seguro persiste, mas não há clima para solucioná-la. Darci cobra aos berros, e o
devedor mantém a dignidade com pose, indo embora de fininho.
Já na rua e em direção à casa dos pais, o barulho de uns sacos de lixo lhe chama
a atenção. O jovem pensa que são gatos ou cachorros revirando o lixo, os quais gostava
de agredir com chutes. Ao contornar a lixeira, ele se depara com um homem que mexe
nos restos de comida. Ao se certificar que está a sós com o mendigo, o até então
agredido se torna agressor e desfere um chute no queixo do catador, sem nenhum
motivo. O retorno para casa só é concluído com o nascer do sol. O apartamento está
lotado de parentes e amigos. E o tio Olavo lhe informa que a mãe havia morrido. Após
decidir que naquele dia não iria trabalhar, o filho em luto vai até a cozinha fazer um café
e fica matutando que deveria lembrar sobre as condições para receber o auxílio-
desemprego, pois já tinha passado por aquelas circunstâncias quando foi demitido de
uma transportadora. Mas como ele mesmo diz: “Tem coisas que a gente não aprende
nunca”.

Insistência

Narrado em primeira pessoa. O enredo trata de uma disputa entre dois grupos
pelo direito de viver em uma espécie de galpão. “Os caras” que estão do lado de fora
ficam a todo momento tentando invadir o espaço e são expulsos com violência pelos
homens que têm a posse do lugar. A incompreensão com o ciclo de tentativas de
investidas e de expulsões violentas é tal, que o narrador chega a perguntar a um dos
colegas sobre qual é a diferença entre estar do lado de dentro ou do lado de fora. O
companheiro enrola e menciona que o ponto é a possibilidade de escolha entre estar em
um dos lados. Em meio à troca de socos e pauladas, o personagem central se orgulha de
(I) saber se esquivar dos golpes, (II) sempre deixar alguém entre ele e o agressor e (III)
fugir sem ser percebido. Em meio a sucessivas derrotas, ele argumenta para o restante
dos homens que seria mais inteligente e menos desafiador se tentassem ficar lá dentro
um de cada vez, ao invés de entrarem todos juntos. Segundo o que conta, entrou sozinho
uma vez, ficou por dias lá dentro e teria saído de maneira pacífica. Um dos lutadores do
grupo diz que não aceita a sua hipótese, pois “a briga ali não era uma coisa individual”.
A coletividade descarta ocupar aos poucos e mantém a sistemática de sempre.
Numa das brigas, um dos homens de dentro cai após um golpe certeiro do
narrador. O que causa inveja nos aliados de fora. Nesse momento, um dos invasores
acerta uma cotovelada no personagem-narrador, que é defendido por um dos indivíduos
que habitavam o galpão. Há uma troca de lado, e o forasteiro é aceito no bando interno.
Ele passa, então, a ajudar nas agressões contra os membros da sua antiga facção –
sempre chamada de “os caras”. Vira a casaca e passa a desfrutar dos benefícios da vida
de festas e confraternizações dos novos parceiros. O que era sempre interrompido por
mais uma nova ameaça de ocupação. O narrador – que sempre contrariou as decisões,
quando estava do lado de fora – passa a criticar as determinações do lado de dentro. E se
nega a ter que abandonar sua bebida e a tranquilidade para reprimir a entrada dos agora
desafetos. Por isso, é expulso e obrigado a deixar a proteção e o divertimento após se
contrapor às regras. Antes de sair, briga com um homem e, mesmo sem entender o
sentido daquela confusão diária, parece voltar ao grupo da origem, “pois já tinha
decidido que não ia ter mais sossego na vida”.

Hereditário

Narrado em primeira pessoa. A morte do pai do protagonista da história marca o


começo da narrativa. A herança do falecido é uma pequena caixa de joias. Dentro dela,
havia uma esfera gelatinosa, que o herdeiro chama de geleia. No primeiro contato, a
gosma oval se derrete entre os dedos e dá uma sensação boa de pegar e tocar. Embora
gostasse do objeto gosmento, o narrador tenta se livrar dela, jogando-a no rio ou
tentando queimá-la. Sem sucesso.
Com vergonha de que as outras pessoas vissem o que ele trazia nas mãos, aluga
um quarto num porão e passa a viver nesse subsolo. No dormitório escondido, ouve
perguntas sobre seu paradeiro e estreita laços com a geleia. Sozinho, ressentido pela
solidão e sem ouvir as vozes do andar superior, decide abandonar o esconderijo e
mostrá-la a outras pessoas, independentemente das consequências. Mas, para a sua
surpresa, ninguém percebe a gosma em sua mão. Só ele a enxerga em si. E a substância
gelatinosa vai tomando o corpo do personagem, até se tornar parte dele. “Ela está em
mim. Simplesmente ela está. Sinto-a quando respiro, ou falo, ou durmo”. E, aos poucos,
há uma aceitação daquela integração estranha e irremediável.

O crocodilo I

Narrado em primeira pessoa. Um crocodilo entra no quarto, sobe no colchão e se


aconchega nos pés do narrador. O espanto toma conta da cena, e o homem pensa estar
louco. Estica a perna e toca de leve na barriga rugosa do animal, que sorri como se
tivesse com cócegas. O sorriso é retribuído, e a certeza de se estar enlouquecendo
aumenta. Antes do aparecimento inusitado, uma rotina era mantida diariamente. De
tempos em tempos, ele se levantava e encostava as costas na parede oposta à cama, de
modo a se proteger do calor que consumia o quarto. Com a visita indesejada e
inesperada, não há como se movimentar em direção ao canto fresco.
A raiva pela imobilidade ocasionada pelo bicho aumenta, e ele desfere um chute
no animal, que chora. Após mais um chute, o homem levanta e cola as costas no lugar
mais agradável do cômodo. Num instante de relaxamento e inconsciência, ele desce as
mãos pelo corpo e toca no crocodilo que estava ao seu lado, na mesma posição, em pé e
com o dorso encostado no concreto. O crocodilo “se sustentava pelo rabo. Era o rabo, de
músculos incrivelmente enrijecidos, que lhe servia de base”. O sujeito impressionado
volta a se deitar no colchão e observa a respiração do réptil, que se mantém estático na
vertical. Vira-se para o lado oposto e dorme.
Quando acorda, sente um peso e percebe que o animal estava grudado nas suas
costas. O ronco da respiração do crocodilo é compensado pelo gelado proporcionado
pela pele fria. O desconforto é suportável, e as mãozinhas de unhas pontiagudas lhe
ferem a pele dos ombros. Após adormecer novamente, o interfone toca. O crocodilo
atende e passa para o humano. É o zelador avisando que ele não pagou o aluguel
novamente e que, por isso, precisa deixar o imóvel. O único bem que o homem recolhe
é o colchão, que, com ajuda do zelador, desce até a rua. Abandona o pertence em um
canto. E compra de um camelô dois cintos, que servem para prender com mais força
bicho atrás de si. Num lance de atenção, percebe que os homens e as mulheres que
circulam pela avenida trazem animais às suas costas também. “Muitos deles levavam
(...) um gato, um cachorro, às vezes uma pomba”. O personagem reflete sobre a sua
condição de enlouquecimento, enquanto o amigo silvestre, sorridente e com uma voz
rouca assente com um: “tem razão”.

A cura

Narrado em primeira pessoa do plural. A abertura faz um elogio a um médico,


que, mesmo nas adversidades de uma doença grave e contagiosa, não abandona seus
pacientes e a comunidade. Há uma exaltação da postura destemida do profissional da
saúde que arrisca sua vida “vindo até aqui, vivendo boa parte do seu tempo neste meio
infecto e desafiando o vírus com essa coragem que espanta”. Os doutores colocam a sua
saúde e a dos seus familiares em perigo, pois têm contato com uma enfermidade que
poderiam levar para o seio das suas famílias. Eles vão até a cidade retirada para recolher
amostras para pesquisar sobre o vírus e suas consequências no organismo humano,
mesmo que o tipo viral daquela região possa ser diferente de outras. Não se consegue
precisar se a insalubridade e a falta de recursos do lugar são a causa ou a consequência
da contaminação. O sintoma da infecção é um cansaço corporal, sem nenhum efeito
físico aparente. É tal o esgotamento que as pessoas desabam e permanecem deitadas até
morrer de fome. Sem a cura, os adoentados se acumulam pelas calçadas, alguns
resistindo à morte, mesmo sem se alimentarem por dias. Outra implicação é a perda da
memória. A amnésia infecciosa apaga as palavras e os fatos da mente dos habitantes.
No hospital, os falecimentos se dão aos montes, e não há cuidado com os
cadáveres, que, num primeiro momento, eram incinerados, como forma de dificultar a
propagação do vírus. Mas a mão de obra para a cremação, os custos e o volume de
óbitos acarretam o abandono dessa precaução. Entre a atenção aos mortos e a pesquisa,
os médicos focam suas energias em entender a natureza da moléstia.
A população acompanha ansiosa o progresso dos estudos, torcendo por uma
solução rápida. Os pacientes se amontoam na sala de conferências para escutar a
palestra com gráficos e dados, em que são discutidas a evolução e as características do
mal-estar. Mas a cura está longe, e a ciência tem seus limites. Fora da unidade
hospitalar, as ruas estão tomadas de lixo, e a chuva frequente o leva junto com o barro.
Para isolar a cidade, alguns engenheiros são convocados e se decide abrir um rio
isolando aquela micro-sociedade. As águas poluídas são o caminho que os estudiosos
percorrem para atender os enfermos de cansaço. A esperança é que, um dia, um
profissional desembarque, reúna a todos e anuncie a cura.

O crocodilo II

Narrado em primeira pessoa. Admitido em uma Instituição, o personagem


central carrega nas costas um crocodilo e acredita que tenha conquistado o almejado
emprego, porque seu chefe – chamado de Doutor – também leva um crocodilo agarrado
aos ombros. Todos creem que o contratado será o sucessor no controle da empresa.
Mesmo que não almeje poder e status, o empregado se sente bem com o conforto
inerente à posição que ocupa e pensa na esposa grávida e no seu segundo filho que está
por vir.
Como forma de proteger a mulher de “corpo frágil e delicado”, aceita ir para
“uma praia quase deserta”. Dá longos passeios com o seu primogênito, que se ressente
por também não carregar um crocodilo. No entanto, o menino não percebe que “leva de
arrasto um rabinho jovem e incipiente que se agita com vigor dos músculos novos”.
Enquanto observa o menino brincar no mar, o pai se incomoda com a tosse incessante
do velho réptil que traz consigo.

O rosto

Narrado em primeira pessoa. Trata-se de um sentimento de obsessão do


habitante de uma casa que se sente perseguido ou torna-se o perseguidor de um rosto,
que se multiplica, se esconde ou o espreita no interior da casa em que mora. Além da
sensação de ter como companhia um rosto misterioso, a moradia também é um ser vivo
que se modifica constantemente. Há a criação de cômodos e de novos espaços e
caminhos. Os movimentos internos do domicílio são antecipados pelo protagonista, que
adquiriu uma forte afinidade com o lugar. Essa compatibilidade lhe dá vantagens na
disputa com o invasor. A casa é um organismo que se transforma constantemente sob a
atenção do morador. Mas os segredos dela não são completamente controláveis e
decifráveis: “a casa jamais se entrega totalmente. Mesmo quando eu estiver livre do
rosto, terei de aceitar os segredos dela como algo necessário à nossa convivência”. A
face levita pelo imóvel sem um corpo: “um ponto negro no ar, seus cabelos voando,
indo de uma parede a outra do corredor à procura de uma porta aberta por onde
escapar”.
Certo dia, o proprietário espera o rosto numa sala pequena. Ele entra aos poucos,
e o homem consegue perceber os contornos da figura pelo reflexo da janela. A cabeça
vai se aproximando aos poucos do sujeito que continua a admirá-la pela imagem
indireta. O olhar compenetrado do homem a espanta, e ela foge sendo seguida de perto.
Depois de se chocar contra as paredes e os móveis, o rosto é visto, sendo o seu
semblante o de “uma criança, a pele lisa e branca” com “uma lágrima cristalina que
escorria do canto do seu olho”. Ele é colocado dentro de uma gaiola. Agora os
ambientes estão livres e é possível desfrutar deles sem sobressaltos.
O prisioneiro sem corpo é alimentado com leite e, num dos dias, pede um pano
para secar o resto do líquido que havia ficado em sua boca. O homem se vira e vai
buscar uma toalha. Nesse instante, o rosto escapa da gaiola e ganha liberdade ao quebrar
o vidro da janela. Na tentativa de encontrá-lo, o morador tenta olhar para o pátio,
colocando a cabeça pelo buraco do vidro, e fica com o pescoço preso. Ao tentar movê-
lo, ele se fere cada vez mais e acaba com o seu próprio rosto difuso e refletido numa
poça de chuva.

A visita

Narrado em primeira pessoa. O narrador é recebido por uma Duquesa,


substituindo o irmão dele que não pode ir ao encontro. É apresentado a um Capitão, à
filha da Duquesa e a um pianista. Todos jantam juntos e, após a refeição, visitam a casa.
Passam por uma sala em que acontecia uma festa e, nela, ficam a filha e o pianista. Os
outros três seguem a perambulação. Noutro espaço – denominado a Sala de Ginástica –
um grupo de homens nus se exercita, e o pelotão é chamado de Os Homens do Capitão,
pois faz parte da Guarda. Ali o preparo físico é feito sem roupa, pois, segundo o
Capitão, assim seus homens “se sentiam profundamente viris”.
Depois desse detalhe risível, vão até a cozinha, onde há mulheres vestidas com
saias longas e uma cobertura na cabeça. O olhar delas é de uma profunda melancolia,
ocasionado pelo esforço braçal e pela insalubridade do recinto, em meio a uma mudez e
um silêncio profundo. A visitação desponta no pátio, que é um descampado, entre um
largo campo e um deserto. O cenário é de secura e falta de vida. O trajeto acaba num
galpão, no qual o Capitão fica encarregado de abrir as portas. No ambiente, já estão o
pianista, a filha da Duquesa e um homem com uma feição de tédio. Eles estão com um
chicote nas mãos e açoitam um homem com uma aparente debilidade mental. Ele tem
uma coleira pescoço e está preso a um tronco. Ao visitante, é indicado um relho e é
sugerido que experimente bater no preso acuado. As primeiras chicotadas são evitadas
pelas esquivas do indefeso. Depois de se habituar ao peso e ao movimento da chibata,
os primeiros golpes acertam a vítima para o regozijo de todos. E é preciso convocar
alguns soldados da Guarda para interromper a violência do visitante.

O encontro

Narrado em terceira pessoa. Um casal vai a uma província cercada por uma
muralha e se hospeda na casa de uma senhora denominada de Senhora Baixinha que
Fala Alto. Os dois saem atrás da Casa em que se daria a cerimônia, a qual gostariam de
conhecer. Encontram uma “casa branca, de janelas e portas azuis”. Como é necessário
esperar até o ritual começar, decidem conhecer a vila. Param num café para se
abrigarem da chuva, que começa a cair. Uma senhora que se diz cantora os indaga de
onde vinham e se tinham vindo para a reunião. A desconhecida afirma que pode ajudá-
los e se compromete a intermediar o encontro ritualístico, conversando com alguns
moradores da cidade. No dia seguinte, o casal vai conhecer as muralhas e, na volta para
a pensão da Senhora Baixinha que Fala Alto, cruzam com um homenzinho que vende
bugigangas. O Homem Sorridente que Vendia Bugigangas na Calçada dá a mulher um
bonequinho e fala que aquele objeto será útil na cerimônia, embora o Homenzinho
também não saiba em que dia ela se dará. Eles não aceitam o brinquedo, mas ele será
oferecido sempre que os dois passarem pelo vendedor.
No terceiro dia, decidem ir até a Casa para terem mais notícias sobre a
celebração. Um Jovem Com Olhar de Espanto os atende e ouve que eles têm um horário
marcado e pressa de ir embora. Infelizmente, não haverá sessão naquela semana, e o
jovem diz que eles precisam retornar na semana seguinte. Com a frustração, decidem
procurar a Mulher Que Se Dizia Cantora para saber se ela não poderia solucionar o
problema e abreviar o tempo da espera. Mas não a encontram nos lugares em que
costuma frequentar e ninguém sabe do paradeiro dela. Na outra semana, retornam à
Casa. São atendidos novamente pelo Jovem Com Olhar de Espanto que os encaminha a
sua superior hierárquica, que é denominada de Mulher de Meia-Idade e Ar Distraído.
Ela os desengana de novo, pois refere que “o encontro não se dará nos próximos dias,
com certeza”. Eles saem desolados, mas decidem permanecer e aguardar. Vivem uma
rotina por dias e, em certo momento, vão à Casa para obterem mais informações. Dessa
vez, não acham ninguém e se deparam com tudo abandonado. Se abraçam e tristes
voltam para a hospedaria. Na outra manhã, o homem sai para buscar pão e irresignado
procura alguém, mas não há ninguém nas ruas. Ele se perde e dá de cara com a muralha,
vira-se de costa e cai sentado, imaginando que a mulher também tenha se perdido e que
possa estar do outro lado daquele muro.

Correria

Narrado em primeira pessoa. Como o próprio título já induz, o conto narra uma
corrida. Nela, um homem está no limite da sua condição física e persiste na disputa, ao
mesmo tempo em que é incentivado por outro corredor, chamado de Zezinho. Outra voz
que o acompanha é a do gordo Soares, que o segue com falas como: “Vamos lá,
campeão!”. Mesmo que não goste dos dois, o personagem central continua e encontra
forças inimagináveis para também se distanciar dos comentários deles. O desgaste é
tamanho, que, em dado momento, começa a babar sangue e escuta de Zezinho um: “Não
dá bola e segue, porra”. O cansaço é tão grande que é como se as vozes e as frases de
apoio saíssem de dentro de sua cabeça, mesmo aparentemente vindo de várias pessoas.
Não há possibilidade de desistência, e o limite é a falência do corpo. “Comecei a
acelerar, queria me arrebentar o quanto antes, cair ali mortinho, com as veias inchadas,
os olhos saltando”.
Todos, em sua volta, o apoiam ainda mais, mesmo com a imagem do sangue que
escorre pelo nariz e pela boca. Os espectadores torcem por ele, ainda que a sua morte
seja a consequência da estafa. Tropeça e quase cai. Mas é amparo. É induzido a
continuar até com “um chute na bunda”. E o encerramento se dá numa discussão com
Zezinho, que diz: “Até o gordo Soares aguenta, seu maricão. (...) Só te chutando a
bunda mesmo”.

Espera

Narrado em primeira pessoa. Uma mulher canta no banheiro, enquanto um


homem imagina seus movimentos e acompanha a canção. Deitado na cama, ele pensa
sobre aquecer o lado dela na cama e sobre o toque da pele da amada no lençol. Ele
consegue ouvi-la entoando uma música alemã, talvez de Brecht, e uma ária, ao mesmo
tempo em que acredita que ela está esperando a banheira encher. Mas, noite após noite,
a voz dela parece cada vez mais longe.
“Há momentos em que é impossível identificar a canção, ou saber se está mesmo
cantando ou apenas cantarolando com sons de garganta”. Nesses instantes, ele precisa
ficar ainda mais atento aos barulhos dos gestos e dos objetos que vêm do outro cômodo.
Acorda e volta a dormir sempre com a expectativa do retorno dela, o que é inútil.
Desconfia que ela possa aparecer durante seu sono e desaparecer antes de seu despertar,
num desencontro constante. Mas, mesmo esgotado pela espera, não desiste de vê-la
retornar. Crê que a música o mantém vivo. Tem visões com a chegada dela e quase
grita: “você não vem?”. No entanto, a resposta sempre é uma nova cantoria.

Para salvar Beth


Narrado em terceira pessoa. Gil está desempregado e – mesmo não gostando
tanto de cachorros – aceita cuidar de uma cadelinha chamada Beth, durante a viagem da
dona, a senhora Afonso. Soninha, a companheira de Gil, comenta da falta de tato dele
para os cães. Mas rapaz alega que é uma necessidade, pois está sem trabalho. Ele está
sem um emprego fixo há mais de um ano e é uma possibilidade de ganhar algum
dinheiro. A falta de renda tinha sido o motivo para se mudarem para um quitinete
apertadíssima. Após uma rápida entrevista com a dona de Beth, fica combinado que ele
buscaria o animal de estimação todos os dias às dez da manhã e a levaria ao Pet-shop. A
cachorrinha faz um tratamento para uma doença crônica, por isso é necessário ir
diariamente à loja. Cremilda, a empregada da família, fica responsável por entregar e
receber Beth das mãos de Gil. No dia seguinte, ele a leva como combinado. O Pet é
dividido entre uma parte direcionada à venda de produtos e outra na qual os animais são
atendidos. Enquanto Beth faz o tratamento, Gil fica repousando num colchonete na
recepção. À noite, ele e Soninha conversam sobre a sua primeira experiência como
cuidador.
Nas sessões posteriores, a rotina quase sempre é a mesma: com o cochilo na sala
de espera e os latidos incessantes. A exceção é o terceiro dia, em que é necessário
aguardar mais tempo. E Gil se atrasa para retornar para casa, quase coincidindo com o
horário de chegada da companheira, que estava confraternizando com os colegas. No
dia seguinte, Soninha não iria trabalhar e combina de acompanhar Gil até o Pet-shop. Lá
eles deixam Beth com a atendente e ficam conversando sobre o dia a dia do cuidador.
Soninha estranha muito aquela rotina, mas ampara a cadelinha com muita festa após o
término da consulta.
Quase uma semana depois, a atendente da Pet informa que Beth não irá retornar
para casa, pois precisará ficar internada, o que pega Gil de surpresa. “Beth vai ficar
aqui. É um momento crítico, um momento muito crítico, e resolvemos que não seria
aconselhável ela voltar para casa. Aqui ela vai ser acompanhada durante as vinte e
quatro horas do dia. Vai ser melhor. Não podemos descuidar agora”. Ele não
compreende o motivo e fala com a senhora Afonso pelo telefone da recepção. Ela está
em viagem e, fungando, afirma que já conversou com a atendente, agradece os trabalhos
do cuidador e também reforça que já conversou com Cremilda sobre a internação de
Beth.
Já em casa, Gil fica apreensivo com o ocorrido e com o atraso da mulher, que, ao
chegar tarde, descontraída, contrasta com o seu sentimento. Enquanto a companheira se
lava e escova os cabelos no banheiro, Gil tenta contar e compreender o que tinha
acontecido na clínica. Ela tenta entender o seu sofrimento e menciona que é normal se
apegar aos bichinhos. Fecha o diálogo com uma constatação: “Você não pode fazer
mais nada, Gil. Tudo o que estava ao seu alcance, você já fez. Tem coisas que fogem da
gente, do nosso controle”. Ele procura dormir, mas não consegue. E decide ir até ao Pet-
Shop para ter notícias da Beth. Sai sozinho e encontra a loja às escuras. Toca a
campainha, mas nada de atenderem. Tudo está em silêncio e apagado. Busca outras
entradas, mas acaba voltando à principal, permanecendo ali, como se necessitasse de
socorro.

Referências

BETTEGA, Amilcar. Deixe o quarto como está, ou Estudos para a composição do


cansaço. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

OLIVEIRA, Francisco de. Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo,
2018.

_________. Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o


totalitarismo neoliberal. In: OLIVEIRA, Francisco e PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Os
sentidos da democracia. Políticas do dissenso e hegemonia global. São Paulo: Vozes/
Nedic/Fapesp, 1999.

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