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Memória Ancestral: uma potencia para reconstrução de nossa história

Evelyn Dias Siqueira Malafaia 1

Resumo: Esta pesquisa tem como intuito investigar as consequências da


história hegemônica na identificação do negro. Aqui, tratou-se de forma breve, anunciar
a importância do resgate da memória ancestral como um dispositivo do processo de
identificação, como uma prática educativa e como processo de saúde mental para a
população negra. Todo texto é atravessado pelo conceito de memória – memórias
individuais/corporais, memória coletiva e memória histórica-, uma vez que esse
conceito se relaciona com os processos de identificação.

Visa desse modo, entender como práticas racistas e hegemônicas influenciaram e


ainda influenciam na construção de memórias, história e narrativas do povo negro,
pautada na submissão, no esvaziamento da subjetividade, na dor e na opressão.
Ressalto os perigos da história hegemônica e como nossa memória é permeada por ela,
pode moldar, negativamente, a percepção do sujeito negro sobre si e o lugar que este
ocupa na história e no mundo.

No entanto há possibilidades de recontar essa história através do nosso ponto de


vista, do ponto de vista do negro, exaltando nossos heróis, nossos reinos, nossa força e
nossa coragem. Trazendo novas perspectivas e refazendo memórias e reconstruindo
relações de prazer com o corpo negro. Ressalto como os nossos corpos pretos
memorizam o racismo , e como ressignificar essas memórias a partir de histórias sobre
nossa ancestralidade (história de reis, rainhas e heróis) usando como instrumentos
literaturas infanto-juvenis negra. Por conta do racismo, história que é contada sobre o
negro e para o negro, remete ao negro escravizado, submisso, esvaziado de

1
Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Psicologia na Universidade Federal Fluminense.
Mestre em Relações Étnico-Raciais no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckuow da
Fonseca (CEFET/RJ). Graduada em Psicologia (PUC-Rio). Curso de formação clínica em psicologia
integrativa na Accelereted Experiential dynamics Psychotherapy (AEDP- neuropsicoterapia).
subjetividade, vontade, força e nobreza. Assim acredito na importância desse resgate de
nossa memória ancestral, como possibilidade de acesso a autoestima, orgulho,
segurança e pertencimento. Sendo assim, Recuperar a memória ancestral do negro faz
parte de um processo de cura.

Palavras chave: Memória ancestral; Subjetividade do negro; Racismo.

Introdução
Sankofa: Não é tabu voltar para trás e recuperar o que
você perdeu.

Ao conversar com uma jovem angolana, percebi a importância do resgate de memórias


ancestrais. Memórias que vem antes dos processos colonizadores. A jovem em si,
anteriormente se apresentava insegura, com dificuldades de colocar limites nas relações
e certo grau de inadequação e timidez. Em um dia específico, conversávamos sobre
como ela estava começando a dizer “não” para as pessoas e também não se deixar
submeter às vontades alheias quando não lhe fizessem bem. Ela contou-me que havia
descoberto que sua avó fazia parte da realeza num território específico do reino do
Congo, os Mbuinga. No momento dessa narrativa, enquanto a jovem contava a maneira
que havia descoberto essa informação, sua postura ficava mais ereta, enquanto afirmava
que não se deixaria se levar mais facilmente por quem fosse, pois ela era uma princesa.
Neste momento a sala em que estávamos foi tomada por uma emoção de auto amor e
segurança. Isso não quer dizer que a jovem nunca mais vai experimentar a insegurança,
mas esse fato nos apresenta a possibilidades de novas memórias, novas formas de auto
percepções, novas subjetividades e novas memórias em seu corpo negro.

A memória é a possibilidade de acessar, na atualidade, episódios ocorridos em


outros momentos. Ao acioná-la, o sujeito tem a possibilidade de negociar sua auto
representação, seus desejos, seus projetos e valores. Assim, a memória também está
profundamente relacionada ao processo de construção da forma como nos percebemos
como sujeitos, ou seja, de nossa identificação, pois o sujeito recupera suas vivências e
trajetórias que irão guiar a constituição de sua identidade a partir da memória. Neste
texto nos importa refletir sobre como racismo pode engendrar nossas memórias
individuais/corporais, coletivas e históricas. E como a história hegemônica pode moldar
a forma como nos percebemos como negro, muitas vezes em um lugar de subalternidade
e baixa autoestima. É ainda, objetiva ressaltar a possibilidade de resgate de novas
memórias, de memórias ancestrais, e a ressignificação da relação do sujeito com o
corpo negro. Para tal, observaremos como a contação de história, infanto-juvenil negra,
pode apresentar novas narrativas e oportunizar uma sensação de conforto frente à
opressão dos padrões estéticos ideológicos - cor branca, cabelo liso, olhos claros, nariz e
lábios finos – além de apontar possíveis representatividades negras e memorizar
sensações de prazer com a negritude.

A memória pode ser entendida como a possibilidade do sujeito em registrar,


conservar e evocar acontecimentos vividos, assim as nossas lembranças são
armazenadas a partir de elaborações das experiências apreendidas. É interessante pensar
que a memória está diretamente ligada a experiências que já aconteceram, ou seja, está
relacionada com o passado. No entanto, algumas lembranças são acessadas quando
engatilhadas por alguma emoção; são os gatilhos atuais, aquilo que estamos vivendo,
que nos fazem lembrar o que se passou.

Nosso corpo também possui memórias. A memória corporal é uma lembrança


ligada ao corpo que pode ou não ser compreendida de maneira consciente ou
inconsciente. Podendo ser desagradável ou agradável, isto vai depender dos estímulos
experimentados e/ou resinificados durante a vida. Se pensarmos que as experiências de
prazer e desprazer constituem como etapa fundamental de nosso processo de
subjetividade e essas sensações são percebidas no âmbito físico, portanto o corpo, é
possível pensar que o corpo configura a construção de nossa subjetividade.

Sobre o corpo negro, Mbembe (2014), em Crítica da Razão Negra, toma


emprestado o conceito de biopolítica de Foucault questiona a escravização como um
regime disciplinar, de dominação, de controle e de vigilância de corpos negros. Ao
mesmo tempo em que os corpos se mantinham produtivos também se mantinham
disciplinados e sob dominação, vigilância contínua e agressões físicas para que não se
rebelassem e para que mantivessem subjugados pelo sistema. É interessante pensar essa
relação persecutória registrada no corpo negro. Existe uma perseguição do negro com o
seu próprio corpo, na medida em que nada pode estar fora do lugar, cabelos tem que
estar presos sem que haja um frizz. Roupas alinhadas, com calçados que não sejam
chinelos, tudo isso para ir apenas à esquina.

Como pensar uma relação de prazer e de autoestima com o corpo negro, se nossa
memória é construída através de aspectos negativados que atravessaram a colonização,
escravização e pós-abolição?

As experiências negativas em relação ao corpo podem deixa marcas no aparelho


psíquico do sujeito, podendo levá-lo ao auto-ódio uma vez que o efeito do racismo vai
atacar de forma direta na auto percepção e no autoconceito, acarretando em uma
desvalorização da própria imagem, já que o preconceito racial agride o que dá a
consciência da identidade, ou seja, o corpo, ao fenótipo negro. Penso que a
singularidade de cada sujeito é definida por experiências vividas que vão moldando a
relação com seu corpo. O corpo negro não é diferente! Ele vai registrando
acontecimentos raciais vividos durante sua vida que, muitas vezes podem deixar marcas
profundas.

A memória não deve ser pensada apenas como um fenômeno individual, mas
também em sua dimensão social. Nesse sentido, também está intimamente relacionada
ao momento presente, ou seja, é no momento presente que as memórias do passados
são acessadas. Nesse processo, esses mesmos elementos são ressignificados, ou seja,
adquirem um novo sentido, à luz das novas situações, interesses e emoções. A esse
processo, denominamos de memória coletiva. Essa memória diz respeito a
conhecimentos e práticas culturais mantidas, acumuladas e produzidas por um grupo
social específico.

Halbwachs (2006) diferencia os tipos de memória, porém eu acredito que


memória coletiva e individual/corporal estão inseridas na memória histórica. Não
consigo pensar em um grupo que não esteja situado em um contexto histórico, por
exemplo, não tem como pensar a memória coletiva do povo negro, que também é
situada em contextos históricos raciais. O sujeito negro passou por diversas
humilhações durante sua trajetória no período escravista e do pós-abolição e ainda teve
como “obrigatoriedade” a assimilação 2 ao branco para poder sobreviver e ascender.
Muitas vezes essa postura o tenha levado a odiar e a desprezar sua constituição e tudo o
que estava relacionado ao negro.

O autor Wilson (1993) ressalta que a história do negro, não foi contada pelo
negro, e quando alguém ‘aceita’ que outra pessoa lhe diga e defina sua essência e
trajetória, permite ao outro o domínio e controle si. A auto narrativa orienta a forma que
cada ser humano se coloca no mundo. Há, então, uma relação íntima entre a história e a
personalidade. Não conhecer a própria história, ou conhecer uma versão distorcida dela,
é ter roubado de si um pilar da própria identificação. E se a única história conhecida é
narrada por um outro - outro este que tem seu discurso legitimado na sociedade, e
portanto parte da cultura - a personalidade passa a ser influenciada por essa narrativa.

Uma breve conceituação sobre memória

A memória é uma estatura que atravessa toda teoria psicanalítica principalmente


quando falamos de consciente e inconsciente. Para dialogar sobre as perspectivas de
memórias individuais o autor utilizado será Pollak, para nos ajudar a pensar sobre
memória corporal os autores serão Frantz Fanon, Neuza Santos, Jurandir Costa e
Mbembe. Para nos gerar reflexão a cerca da ideologia discursiva de raça e racismo,
usaremos os teóricos Clovis Moura e Mbembe. Sobre o conceito de memória coletiva e
memória histórica o autor proposto é Halbwachs. Os teóricos Amos Wilson e Wade W.
Nobles no ajudará a refletir sobre o perigo da história única e a importância de
rememorar nossa memória ancestral.

Entende-se por memória individual as lembranças armazenadas pelo sujeito a


partir de elaborações de acontecimentos vividos (Pollak, 1989). A memória individual,

2
Sobre esse conceito, ver HALL, Stuart. A identidade cultura na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro:
DP&A, 2005.
(aqui eu englobo também a memória corporal, pois advém de experiências que
atravessam nosso corpo, como, por exemplo, o eixo deste trabalho, as experiências
raciais que são atribuídas ao o corpo negro) está relacionada com atividade do sistema
nervoso que permite ao sujeito registrar, conservar e evocar os dados aprendidos da
experiência.
O corpo e a mente interagem entre si; nossa mente integra diferentes
informações intelectuais e “mesmo em suas manifestações mais abstratas, não é
separada do corpo, mas sim nascida dele e moldada por ele” (CAPRA, 2002, p. 79).
Não obstante, o corpo é o lugar em que recolhe as histórias vividas, sendo elas
experiências emocionais e experiências físicas. “O corpo sente, aprende, se disciplina,
se condiciona e toda vez que isso acontece, as células do cérebro sofrem uma alteração e
essa alteração irá refletir em nosso comportamento” (VOLPI, 2004, p. 2).

Segundo os conceitos psicanalíticos, as experiências corporais também são


fundamentais para o processo de subjetivação. Costa (1983) destaca que existe um traço
de violência racista e este seria a relação persecutória criada entre o sujeito negro e o
seu próprio corpo. A construção da identificação dos sujeitos está intimamente ligada à
relação que este cria com seu próprio corpo. Para que o sujeito consiga criar uma
relação harmoniosa com sua estrutura psíquica é fundamental que o corpo seja pensado
e vivido como um lugar de fonte de vida e de prazer.

A experiência corporal do negro é vivida sobre desconforto, opressão e


vigilância reinando no corpo “uma atmosfera densa de incertezas” (FANON, 2008.
p.104). O corpo negro é atacado de varias maneiras isso interfere na sensação de prazer
com ralação ao próprio corpo. O esquema corporal relacionado ao gozo cede lugar ao
“esquema epidérmico racial” (FANON, 2008, p.105). O ataque ao corpo negro é
composto por situações que provocam uma baixa autoestima e o leva à produção de
uma auto imagem corporal negativa e irreal.

As narrativas sobre o quanto corpo negro é sentido e memorizado como algo que
está o tempo todo sendo perseguido, sendo olhado e, por isso, necessariamente vigilante
e tenso, apareceram em diversos momentos. Este aspecto me chamou atenção e me
levou a pensar o conceito Foucaultiano de panopticon, algo que permite
a vigilância e controle social de alguns corpos de forma mais eficientes. Parece que
internalizamos o medo de ser constantemente vigiados pelo colonizador. Os corpos
negros sentem que estão o tempo todo sendo vigiados, como se ainda de alguma forma
restassem resquícios do olhar e perseguição da colonização. Isso retrata o quanto o
racismo pode aprisionar o sujeito ainda que não tenha grilhões. O racismo é algo tão
estruturante e estrutural que condiciona o sujeito negro a uma realidade de não
liberdade. De não cidadania.

O racismo, antes de tudo, consiste em esconder a humanidade do rosto do negro


com um véu de fantasias sobre suas histórias, inferindo-lhes signos rígidos e
depreciativos sobre seus corpos. A história do sujeito negro é então percebida como
algo que sequer existe, assim como o próprio sujeito negro. Quando “para o racista, vê
um negro é não ver que ele não está lá; que ele não existe; que ele mais não é que o
ponto de fixação patológico de uma ausência de relação” (MBEMBE, 2014, p.66). Raça
é, então, uma ideologia discursiva que nomeia o Outro, que propicia a dominação e a
manutenção dos privilégios e do poder de um grupo em detrimento de outro.

Em resumo, a memória não é apenas coletiva, nem unicamente individual, elas


se estruturam e se entrelaçam no processo de constituição das recordações. Vale
ressaltar que essas memórias se relacionam e, muitas vezes, não se separam. Por
exemplo, muitas experiências racistas que o negro passa individualmente, também
podem ser vivenciadas por outros sujeitos negros. Por exemplo, em um dia no
consultório, uma jovem mulher negra, chorava e falava o quanto doía nela ver varias
pessoas negras habitando os mesmos espaços periféricos.

Para Maurice Halbwachs (2006) traz também o conceito de memória histórica.


Esta compreende que viemos ao mundo em um contexto em movimento que episódios
históricos importantes já aconteceram antes de nosso nascimento. Nós não podemos nos
recordar deles, pois não os vivenciamos. No entanto, tomamos conhecimento através de
conversa com os mais velhos, através de ensinamentos na escola e através dos livros.
Esses fatos, eventos históricos seriam parte do que Halbwachs denominou de “memória
da nação”. Quando evocadas essas memórias, torna-se necessário dirigir-se à memória
de outro, fonte exclusiva para poder acessá-las. Sendo assim, resgatar a memória da
nossa história, de nossa ancestralidade é importante para ressignificar nosso processo de
identificação a partir da elaboração de uma memória coletiva para a individual.

Memória e Ancestralidade

O psicólogo Amos Wilson (1993) elabora sobre a importância de conhecermos a


nossa história ancestral, a história do negro, contada por nós mesmo. Pois quando o
passado é esquecido há consequências para o entendimento do presente e uma
consequente dificuldade de projeções para o futuro. Para Wilson (1993) e para Mbembe
(2014), a forma como o negro é visto, é em efabulações e mitos do discurso europeu. A
mitologia europeia (alucinação europeia) só pode ser usada contra essas pessoas, os
negros, em um cenário onde não haja conhecimento ou contato com a história e a
realidade africana. Assim, o discurso do grupo dominante é naturalmente validado,
tornando-se verdade naquela sociedade - e ao dominado é negado o direito de falar por
si. As histórias representacionais negativas do negro construídas no processo histórico,
ou seja, a memória coletiva, está enraizada no imaginário social, tanto do branco como
do negro. Tal estratégia pode levar o negro a esquecer suas histórias de lutas e
emancipações.

A estratégia de esquecimento da história do negro não é recente. É interessante


pensar que desde o primeiro momento, o processo de escravização se incumbe de
apagar a memória da vida e cultura do escravizado. Durante o comércio de escravizados
havia um tipo de ritual no litoral de Benin (lugar conhecido como Costa dos Escravos)
que se chamava “Árvore do esquecimento”. A prática costumeira consistia em fazer
com que os escravizados dessem voltas em torno da árvore para que morresse cada
memória desde sua infância. Aos homens cabia dar nove voltas e as mulheres sete. O
objetivo era que durante o trajeto para a América os escravizados esquecessem de coisas
que faziam parte de sua constituição e história tais como suas famílias, suas origens,
suas terras, seus nomes, suas crenças e sua identidade. Esses sujeitos eram despidos de
seus trajes, eram postos nus ou com farrapos em navios negreiros sem qualquer
dignidade. Não havia nada nos navios, nenhum objeto ou com algum item que os
fizessem recordar de suas famílias, status tribais, religião, língua ou qualquer tipo de
relação com seu passado tão próximo.

O intuito da escravização era destituir o negro de qualquer traço de


humanização, pois, dessa forma, o branco, colonizador, poderia lidar melhor com a
culpa das atrocidades cometidas. Mbembe (2018), exemplifica a forma que o negro era
visto:

O escravo negro [...] é o símbolo de uma humanidade castrada e


atrofiada [...] Se deparar com o escravo é experimentar um vazio tão
especular quanto trágico. O que o caracteriza é a impossibilidade de
encontrar um caminho que não o leve constantemente de volta ao
ponto de partida que é a escravidão. É o gosto do escravo pela
submissão (Mbembe, 2018, p. 150).

Não bastava arrancar o negro de suas terras, também queriam tira-lhes sua
subjetividade. Matar os guerreiros, reis, mulheres, homens e crianças que existiam
dentro de cada negro, tentaram minar qualquer impossibilidade de autoconfiança, de
existência, autenticidade e de luta. No entanto, apesar dos esforços, estamos resistimos.
Não conseguiram nos extinguir. Aqui estamos, seguimos reinventando, ainda possuímos
elementos que usamos para construção da memória e também para a construção de
nossa identificação, como as tranças, a capoeira, os tecidos, as religiões de matrizes
africanas e alguns objetos.

A sobrevivência dessas memórias, não hegemônicas, é o que Michael Pollak


(1989), vai nomear de memória subterrânea. Esta é a possibilidade da sobrevivência
das memórias históricas de grupos excluídos e marginais, no caso dessa pesquisa, o
grupo é o povo negro. Ainda que esses grupos sofram com a violência e a tentativa de
silenciamento, eles não deixam de produzir suas memórias. Ao privilegiar a análise das
falas, das experiências e memórias dos sujeitos negros, percebe-se a importância de
memórias subterrâneas se opõem à "memória oficial", como por exemplo, a ideia de que
o Brasil é um paraíso cujo todas as raças conviveram e convivem em harmonia. Quando
as memórias subterrâneas conseguem adentrar nos espaços públicos, diversas
reivindicações se acoplam na disputa da memória, neste exemplo, as reivindicações das
diferentes experiências e acontecimentos relacionado a escravização. Muitas vezes essas
memórias não oficiais resistem e sobrevivem a partir de meios informais, como as
narrativas orais passadas de família em família ou de pequenos grupos para pequenos
grupos. Apesar de todo esse contexto de luta, o negro vai se reinventando, fortalecendo
suas memórias e criando outras assim que é tirado de sua terra. Acredito que nossa
memória pode ser reconstruída e positivada a partir de resgates das nossas
ancestralidade e de novas experiências ressiginicadas e de prazer com o corpo negros.

Toda negatividade construída em cima de referências do negro pode


perfeitamente passar por um processo de desconstrução e corrigir essa identificação
negativa. Quando reconstruímos a forma de contar a história do povo negro é
estabelecida a finalidade de valorizar o passado do mesmo e, assim, podemos dar
sentido às nossas narrativas no presente, apresentando uma história mais completa,
com glórias e derrotas como a de qualquer outro povo, mas sem a doçura e submissão
tatuada no nosso imaginário, mostrando que se trata (va) de um povo resistente e
guerreiro. Resgatar a memória do negro, antes do processo de escravidão, proporciona a
possibilidade de ralações mais prazerosas com o corpo e a sua história.

Um recurso que costumo usar é o da contação de história infanto- juvenil negra.


Pois elas trazem memórias de nossa história (História do zumbi, dos quilombos e
outros) e também possibilitam que novas experiências sejam aprendidas logo, que novas
memórias criadas. A reconstrução do “ser negro” atravessa a estruturação política e a
sua identidade sociocultural, através de um processo de conscientização e valorização
da negritude. As histórias contadas podem fomentar o conhecimento a respeito de
outros povos e culturas, mas especificamente a cultura africana. É importante ressaltar
que essa prática também garante, ainda que de forma mínima, a aplicação da Lei
10639/03 que estabelece diretrizes e bases para a educação nacional e a relevância do
ensino da cultura negra direcionado às escolas. É a possibilidade de ter como agentes
representativos que auxiliam na construção de identificações a partir de espelhos
coerentes com o corpo negro. A proposta dos encontros é contar histórias que
potencialize a construção ideológica das crianças, a partir da desconstrução dos padrões
hegemônicos, da percepção das tensões sociais e do acolhimento a partir das narrativas,
sobretudo as presentes na literatura infanto-juvenil negra. Esta perspectiva me remete à
ideia que Nobles (2009) denominou como pulsão palmarina. Para o autor esta pulsão
consiste no desejo do sujeito negro poder experienciar a liberdade. E essa liberdade
nada mais é que um retorno à identificação africana ou à conscientização sobre quem
você é no mundo. É um resgate da potencialidade de ser negro anterior ao período
colonial, uma vez que é difícil construir uma identificação positiva do negro com as
referencias que nos foram contadas, são as de negros escravizados.

Considerações Finais

O racismo serviu como instrumento de segregação, opressão e dominação, que


legitimou (e ainda legitima) os privilégios de alguns em detrimento dos direitos de
outros, os privilégios das elites em detrimento dos subalternos. É importante ressaltar
que as práticas racistas servem as relações de poder que são estabelecidas entre grupos,
que limitam as oportunidades de vida para o outro. Esses discursos racistas servem para
legitimar relações de dominação, naturalizando desigualdades de todos os tipos e
legitimando crueldades e genocídios àquele que não é reconhecido como humano, o
negro. O corpo negro vigilante e perseguido não se dá apenas pela via da sensação, mas
trasborda para o real. Muitos jovens negros são assassinados com a desculpa de terem
sido confundidos com bandidos. Com isso, podemos observar que as experiências
raciais podem ser gravadas na memória corporal, coletiva e histórica do sujeito negro e
isso pode moldar sua identificação, para si próprio ou para o outro. O sujeito negro, por
vezes, acaba introjetando esse olhar que o outro lhe confere, um lugar em sua maioria
de inferioridade, vergonha e baixa autoestima.

Todas essas experiências, que até hoje acontecem, ficam guardadas na memória.
Infelizmente, várias pessoas negras experimentam situações como estas, então, podemos
pensar em uma memória coletiva, uma memória histórica em que as vivências são
partilhadas.

Não há como pensar as memórias sem pensar que elas estão situadas em
contextos históricos. Por exemplo, antes de nascer, o sujeito negro já havia vivenciado
várias humilhações durante sua vida. Nascemos em um contexto em que já existem
verdades sobre nós e que adsorvemos. Muitas dessas memórias históricas podem levar o
negro a depreciar a sua constituição e tudo aquilo que se relaciona com o negro.

Certa vez, ouvi um psicólogo afirmar que não tem como eu atender, na clínica,
um sujeito sem conhecer a sua história, pois não faz sentido um psicóloga atender um
paciente sem entender que de alguma forma o seu contexto histórico engendrou a sua
constituição como indivíduo. No caso do negro, o racismo, comum em nossa sociedade,
molda sua identificação e por isso é necessário entender como lhe foi imputado ao longo
de sua vida. O esclarecimento é de que há um desprezo histórico dos soberbos pelos
subordinados, algo que ainda que silencioso pode deixar marcas psíquicas profundas.

É impossível falar de relações de poder sem mencionar a história hegemônica


contada sobre o negro. Ao longo de minha trajetória estudantil, ouvia sobre como o
negro chegou ao Brasil e não que ele havia sido sequestrado. Ouvi narrativas sobre a
submissão, sobre uma religião animalizada e demoníaca, sobre uma cultura que era
atrasada, sobre uma passividade e fraqueza que provocava em mim o crescimento de um
sentimento de vergonha por ser descendente desse povo. Isso também podemos
observar nas narrativas das crianças, presentes no texto. Viu-se o quanto essa vergonha
relacionada ao próprio corpo estava presente no cotidiano delas. Como sugerida na fala
que mais me chamou atenção em que a adolescente diz odiar seus cabelos e que havia
nascido branca.
Eu ouvia algumas pessoas, amigos, me contando o que eles haviam aprendido
na escola, que a culpa pela escravização era do próprio negro que capturava o outro. Era
desconsertante ouvir isso. Eu ainda não sabia que as lógicas se diferenciavam e que era
comum na África haver guerras entre tribos e quem perdia se tornava escravo do outro,
mas, neste exemplo, a lógica não é do capitalismo, tal como o processo escravocrata que
conhecemos. Está ai o perigo de uma única história, de uma história hegemônica.
Quando a única história conhecida é narrada por Outro, a forma como nos identificamos
e nos reconhecemos passa a ser influenciada por essa narrativa. É esse Outro que detém
o conhecimento, que vai dizer quem o subjugado é e qual o seu lugar na sociedade,
assim, esse sujeito poderá ser dominado mais facilmente.

Assim, percebemos que quem detém o conhecimento, detém o poder e quem


detém o poder domina o outro, seu corpo, sua mente, sua vida e sua morte. O poder é
ideológico, é fruto de um regime de produção de verdade; porém, o poder também é
discurso de verdade de um campo específico, que a legitima e a valida como saber-
poder que precisa ser absorvido. Assim, essa realidade a respeito do negro que se mostra
não é uma verdade, mas uma elaboração de discursos que são legitimados e
legitimadores. É uma autenticação da condição do controle e da dominação econômica,
corporal, religiosa, emocional, e política. Isto demonstra o quanto o corpo por
excelência está em um lugar de incidência da biopolítica. É essa gestão da vida sobre os
corpos e, sobretudo, do corpo negro, que tenta modificá-lo, transformá-lo produzindo
conhecimentos, saber sobre ele para então poder melhor manejá-lo.

Resgatar a memória do negro, antes do processo de escravidão, proporciona a


possibilidade de ralações mais prazerosas com o corpo e a sua história. São esses
resgates de histórias e conhecimento do próprio passado que podem dar sentido às lutas
e (re) existências do momento presente.

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