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1 Na obra citada, Freud define supereu e ideal do eu como sinônimos. Laplanche e Pontalis afirmam que essa
diferenciação é melhor trabalhada em outros textos, sendo que o ideal do eu se tornou, para Freud, uma espécie
de “subestrutura especial no seio do supereu”. Neste texto, optei por diferenciar os termos, entendendo o ideal
do eu como um objeto com o qual o supereu severamente insiste em comparar ao eu.
por um lado, o sujeito admira e ama este objeto da identificação; por outro, teme e rivaliza
com ele2.
Há algo que soa estranho quanto à forma de exposição do que Freud considera como
sendo a “herança arcaica” e que mantém laços com o supereu no sujeito moderno. Segundo o
autor, “ O que fez parte do que é mais profundo na vida psíquica de cada um se torna [...] no
que é mais elevado na alma humana conforme nossa escala de valores”. Nestes termos,
parece que o supereu internaliza valores morais supostamente externos e que, no percurso
histórico, estes valores são transmitidos culturalmente.
Tal definição ganha nomeação ao longo de toda a obra de Freud como “imperativo
categórico”, conceito kantiano próprio também da modernidade. Parece haver um problema
central nesta formulação: o que Freud nomeia como herança, poderia também ser chamado de
imposição. A ideia de que o supereu retoma “o que é mais elevado na alma humana” admite
uma postura de respeito entre as múltiplas culturas, algo que historicamente não se
comprovou. O que enxergamos no percurso antigo, medieval e moderno é a construção de
culturas ditas civilizadas e a violenta opressão para ampliação dessa suposta civilização. E
dessa forma, o supereu se torna o regulador moral a partir dos moldes da ideologia - ocidental
- e a ele é atribuída uma força reguladora universal.
Nesta linha, Neuza Santos Souza defendeu que existe uma “internalização
compulsória e brutal de um ideal do eu branco”. Em Fanon encontramos algo próximo,
quando este afirma que nos processos de identificação, é o europeu (colono) privilegiado em
detrimento de seu igual (colonizado). Tais identificações não são voluntárias, mas são
induzidas por fenômenos da ideologia, que foram impostos através de tecnologias de poder
institucionais. Arrisco dizer que não somente o sujeito negro tende a internalizar - ou
devorar! - o ideal do eu ocidental, mas também aquele que em améfrica é lido como branco.
Se o supereu é fruto do complexo de Édipo, e que depois se confunde com os
substitutos do pai que denominamos instituições, nos cabe pensar quais foram as instituições
erigidas no território amefricano. Assim sendo, no curso da modernidade, o supereu está
atrelado às instituições europeias. Daí surgiu o chiste, que posteriormente pareceu ter relação
com este texto: o supereu, na verdade, é tomado de caráter europeu. Supereuropeu.
Se, como nos disse Freud, “a tensão entre as expectativas da consciência e as
realizações do eu é percebida como sentimento de culpa”, e daí surgem a estrutura clínica
nomeada de neurose, podemos reafirmar essa tensão como própria daquilo que Lélia
2 Sobretudo porque o supereu impõe ao Eu a necessidade de gozar a todo o tempo, como uma boca que come
tudo, como o santorixá Exu.
Gonzalez denominou como neurose cultural brasileira, tendo no racismo o sintoma principal.
O eu amefricano, inscrito no jogo racial como inferior, busca atingir as expectativas do
supereuropeu, mas seu corpo não pode corresponder às exigências da ideologia.
É por esse motivo que Neuza Santos Souza atribui ao racismo brasileiro o “mito
negro”, em que a hipersexualização, a violência, a infantibilidade e outros significantes estão
atrelados à nega atividade. Isso ocorre porque as pulsões reprimidas pela institucionalidade
judaico-cristã (sexualidade e violência), foram depositadas naquele cuja noção de cultura
inexiste para o supereuropeu - o negro, ou seja, o não-ocidental.
Deste movimento, por exemplo, a ilusão da cultura como supressão da agressividade
atinge o corpo amefricano, que desloca o desejo de morte para si, o que quer dizer, para seu
semelhante. Tal desejo, inibido em sua meta, é em grande parte sublimado. O que resta do
que não pode ser sublimado, é direcionado para aquilo que o Eu amefricano entende como
sendo o Outro não-civilizado, e que, na realidade, é ele mesmo. Ou seja, a sublimação e o
retorno ao próprio Eu são as vicissitudes da pulsão mais que acompanham o movimento de
ser/estar do amefricano.
O sujeito amefricano, investido dos pressupostos desta ficção como fundante da
cultura na Améfrica Ladina, luta para se adequar ao que não é ligado ao negro. A nega ação
interfere na constituição de identidade do amefricano, como num verdadeiro trabalho de luto,
em que a sombra do objeto recai sobre o Eu.
Sabemos, desde o famoso texto de Freud sobre o luto, e mais próximo ao nosso
tempo, com as considerações de Butler, que precisamos fazer luto a todo tempo. Penso que
neste processo, o amefricano, ao não conseguir fazer luto de sua parte ocidental por causa dos
mecanismos tecnológicos e institucionais que o inseriram na sistemática colonizadora, sofre
com uma espécie de “melancolia de raça”, na qual a identificação com o sujeito dito universal
toma conta do corpo amefricano.
Algo assim é abordado na obra Macunaíma de Mário de Andrade - analisada por
Magno e Gonzalez. Macunaíma nasceu “negro, depois ele branqueia”. O que Andrade
apresenta é um mito de formação que pretende imprimir em Macunaíma uma característica
da cultura brasileira - e porque não poderíamos pensar essa característica como algo de toda a
ladinidade? O corpo e seu fenótipo mantém uma relação com o psíquico que diz respeito à
internalização dos “valores brancos ocidentais”. Desta forma, a identificação de que fala
Fanon, se explica na ação do supereuropeu.
Lélia afirma que o Negro pode ser entendido como o significante mestre, central nas
nossas relações e que marca a própria linguagem. Ela chega a afirmar que “o português
instituiu a raça negra como objeto a”. Daí que, por exemplo, temos ditos populares como “a
Coisa (das Ding?) ficou preta”, “negro quando não caga na entrada, caga na saída”, e outras
formulações racistas que atrelam o negro a significantes do Outro relacionados aos desejos e
pulsões sexuais. Do mesmo modo, o supereuropeu atua como um severo repressor desses
significantes, o que na realidade externa representa desde a morte simbólica até o extermínio
do corpo no real.
Volto a dizer que o ocidental não é apenas aquele cujo fenótipo assemelha-se ao
europeu, mas justamente aquele sobre o qual o supereu impõe a brancura de tal forma, que o
Eu fica aprisionado. Essa neurose brasileira trata da luta entre as pulsões circunscritas ao Isso,
frente à severidade de um Supereu com as marcas da institucionalidade ocidental. Disso
resulta um Eu amefricano que luta para construir uma identidade no meio da disputa colonial,
aparentemente deslocada no tempo - visto que a colonialidade não termina com a libertação
política de um Estado.
Com isso, lembro de muitos casos em que, ao nascer, a criança é lida e representada
oficialmente como “branca”. Também recordo da formulação de Achille Mbembe e sua ideia
de que a constituição do negro como algo, está no campo do simbólico, e, portanto, da
linguagem, marcada pela diferença em relação ao universal. Por isso, o amefricano nasce
branco, nasce ocidental, nasce sendo filho de um discurso colonizador. Precisa enlutar esta
brancura imposta pelas instituições, para tornar-se negro. Se o negro, enquanto S¹, é
rechaçado em sua gênese, esse rechaço é oriundo de instituições que buscam dar civilidade à
natureza. A certidão de nascimento caracteriza-se como representação simbólica disto.
Sabemos o quanto há de ficção em nossa realidade. A questão que se apresenta parece
ser da ordem de retomarmos ficções apagadas pela mão colonizadora. Parece-me que o
trabalho de elaboração de ficções de formação amefricanos ganha relevância sem igual.
Retomarmos aquilo que diz a memória iorubá, tupi-guarani, banto, e de diversos outros povos
que também fundaram esta cultura, é algo importante se quisermos repensar a psicanálise a
partir do sofrimento amefricano. São estas ficções que operam na contramão das narrativas
coloniais, e tem a importância de atribuir novos símbolos ao negro, deslocando o significante
e buscando reelaborar valores para a consolidação de um supereu oposto e inimigo da
colonialidade. Esta pode ser uma das tarefas de uma psicanálise amefricana.
Referências:
BUTLER, J. Freud e a melancolia de gênero. In: Problemas de gênero. Feminismo e
Subversão da Identidade.