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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE

JANEIRO
Aluna: Elen Procópio de Souza Batista
Matrícula: 202010180511
Professor: Claudia Barcellos Rezende
Avaliação II de Antropologia Biológica II

A vivência da juventude da década de 80 interpretada a partir de


“Califórnia” (2015) de Marina Person e os textos “Problemas de gênero:
Feminismo e subversão da identidade” de Judith Butler e “O império dos
sentidos: sensibilidade, sensualidade e sexualidade na cultura ocidental
moderna” de Luiz Fernando Dias Duarte.

Este texto tem como objetivo, acima de tudo, buscar o entendimento


aprofundado de um dos pilares importantes para a formação da
personalidade da juventude dos anos 1980. É utilizado como referência
principal o filme “Califórnia” que, apesar de lançado no ano de 2015, tem
como ponto principal retratar a juventude que a diretora do filme viveu.
Marina Person, nascida em 1969 e filha do prestigiado diretor Luiz
Sergio Person, responsável por clássicos como “São Paulo, Sociedade
Anônima” (1965) e “O Caso dos Irmãos Naves”(1967), posteriormente se
tornaria uma das grandes vozes que se comunicariam diretamente com o
jovem brasileiro da década de 90, especialmente em sua carreira na MTV,
aonde a mesma comandou diversos programas, estrelando especialmente o
“Cine MTV”, que, entre 1992 e 1999, buscava apresentar as maiores
novidades do ramo cinematográfico para a parcela mais jovem da
população.
Seu filme, Califórnia, não busca apresentar o público que a diretora mais
teve influência, mas a juventude anterior, a que a mesma fez parte, marcada
pela AIDS, pelo movimento Diretas Já, pelas músicas de protesto. Neste
longa metragem, a diretora nos apresenta Estela, ou Teca, uma tradicional
adolescente de classe média alta paulistana, que se vê confusa por diversas
vezes, não só com tudo que acontecia de novo no mundo, mas também com
sua família, amigos e corpo.
Os textos “Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade” de
Judith Butler e “O império dos sentidos: sensibilidade, sensualidade e
sexualidade na cultura ocidental moderna” de Luiz Fernando Dias Duarte
se mostram excelentes para exercitar a discussão sobre tal produção, pois
mesmo não sendo contemporâneos nem do filme, nem da época em que o
mesmo busca representar, exibem, em partes, muito dos pensamentos
levantados na época e em evidência na produção, principalmente os
relacionados a AIDS e a performatividade da identidade.
Durante o filme percebemos que a personagem passa por dois grandes
arcos: o adoecimento de seu tio Carlos, um homem gay que vive na
Califórnia, e o descobrimento de seu corpo, abordado principalmente por
meio das experiencias clássicas da menarca e do sexo.
Seguiremos, de início, a analise de Califórnia segundo pontos do texto de
Duarte. Logo no início da publicação o autor escreve “Como não lembrar,
em primeiro lugar, do problema da Aids, da relação entre esta e o
comportamento sexual e, particularmente, os traços desse comportamento
envolvidos na complexa questão da prevenção da contaminação? Veja-se o
problema do uso dos preservativos – tão resistente a disseminação. Veja-se
a questão da “promiscuidade” – tão delicada de se definir e de se
compreender. Veja-se ainda a pluralidade das formas de contato sexual e a
delicada opacidade dos regimes de prazeres.” Neste momento podemos
referenciar dois personagens primordiais para o andamento do filme: Carlos,
o tio de Estela e JM, o segundo interesse amoroso da jovem durante a trama.
Carlos é um homem assumidamente gay que, durante a duração da trama, se
muda dos Estados Unidos para o Brasil, em busca de tratamento para uma
doença, que durante o filme descobrimos que é a AIDS. JM, um jovem
assim como Estela, é assumidamente bissexual, o que causa discordância da
“norma” em que Estela vivia, principalmente entre seus amigos e colegas,
causando problemas.
Duarte faz o uso de tópicos para ressaltar as figuras contemporâneas que
influenciaram a interpretação da sexualidade: a perfectibilidade, a
experiência e o fiscalismo. A perfectibilidade está explicita para o autor em
Rousseau, quando o mesmo enfatiza a ideia de que a espécie humana, que
teria acabado de sair de um manto protetor da totalidade religiosa, estava em
fase de progresso, de desenvolvimento. É possível realizar um paralelo entre
este momento citado por Rousseau e o pano de fundo do filme, a reabertura
democrática brasileira. O movimento Diretas Já, demonstrado por alguns
momentos durante o filme, teve grande influência sobre os jovens e seus
ideais, sendo possível principalmente analisar tal característica pelas eternas
músicas de protesto, um tipo de manifestação que se tornou a grande
característica musical dos anos 80. O Rock anos 80 foi marcado por bandas
como o Titãs, que participa do filme de forma intensa, tanto na parte da
atuação, com um dos seus antigos participantes, Paulo Miklos, interpretando
o pai de Estela e também na soundtrack, com hits como “Não vou me
adaptar” e “Sonífera Ilha”.
No tópico da experiencia podemos levantar um dos pontos principais do
filme: o crescimento. O modo como Estela enfrenta novas experiências é a
referência exata ao trecho em que o autor escreve “A razão humana só
viceja através do contato dos sujeitos com o mundo propiciado pelos
“sentidos”; ela depende da maneira pela qual eles percebem o mundo que os
cerca, e é através desses sentidos que vão poder construir as suas novas
formas de relação com o mundo e se tornar eventualmente cada vez mais
aperfeiçoados, mais capazes, mais senhores de seu futuro”. Tanto a
menarca, sua experiencia viajando “sozinha” pela primeira vez ou sua
primeira transa são perfeitamente refletidas por este trecho, mas que
também pode ser interpretado como o momento de “evolução” da
juventude, principalmente a partir do já citado contraste entre juventude
anos 70 e juventude anos 80.
O terceiro tema é o do fiscalismo, que completa o quadro de análise de
tal interpretação da sexualidade. O tópico, a partir da abordagem de que a
sexualidade não seria nada além de natural, fisiológica, parte integrante do
universo que é regido pela experiencia, pelo crescimento, pelo rasgar-se e
remendar-se. A partir do fiscalismo e da experiência seria possível
finalmente atingir a perfectibilidade, podendo ser entendido no contexto do
filme como a vida adulta, a vida já munida de experiencias e lições.
Quanto ao texto de Butler, fazemos relação principalmente ao
personagem JM, o interesse amoroso da jovem. A publicação leva como
tema principal a discussão da performatividade, dos atos corporais
subversivos, o que podemos enxergar no modo em que o personagem se
apresenta no mundo aparentemente “padronizado” de Estela. É interessante
pensar como JM hoje se representaria como um adolescente relativamente
padrão para uma metrópole como São Paulo, ainda mais conforme sua
classe social, sendo aparentemente integrante da classe média, mas
apresenta um grande desvio da normatividade do adolescente anos 80,
principalmente se posto em contraste com o primeiro interesse amoroso de
Teca, Xande. O dualismo de JM não parte apenas da sua bissexualidade,
mas ainda de coisas mais simples para nós, como o uso de brincos, o que
apresenta em um determinado momento do filme confusão em outra
personagem, também adolescente, que questiona: “Você transaria com ele?
[...] Eu acho impossível alguém sentir atração física por ele, esse garoto é
muito estranho. E gay! Você transaria com um gay, Teca?”. Butler
questiona, em determinada parte de seu texto, se o corpo seria modelado for
forças políticas com interesses estratégicos em mantê-lo limitado e
constituído pelos marcadores sexuais, o que provem um bom passo para
entender e interpretar como rupturas “comuns” como a do personagem
causam tanto choque em pessoas que, por sua idade, não esperamos como
“conservadoras” neste quesito.
Dando outra interpretação para o texto, fugindo do principal tópico sobre
gênero, ainda é possível executar mais uma análise sobre a caracterização do
personagem de JM, ainda mais quando o colocamos contra Estela, a
personagem principal, que aparenta em diversos momentos ter interesses
muito parecidos com o do jovem. Os dois, apesar de compartilharem gostos
que são “conhecidos” por moldarem estética, como o gosto pelo rock, se
apresentam de forma extremamente diferente perante a sociedade. JM,
mesmo morando em São Paulo, usa sobretudo e se veste inteiramente de
preto, imitando a moda londrina da época, enquanto Estela busca a
normalidade, se permitindo ousar no máximo em utilizar camisetas do
cantor David Bowie, o que ainda seria “aceito” na norma padrão, que
garotas como suas amigas, Alessandra e Joana, representam.
Quando voltamos ao debate foco da publicação nos encontramos com
comentários sobre a construção da imagem da pessoa com AIDS, que é o
caso de Carlos. Carlos é representado durante a maior parte do filme como
um homem doce e divertido, aparentando muitas vezes ser a pessoa mais
preocupada com a sobrinha no que tange as novas experiencias que a mesma
está passando na vida. Através de conversas sobre garotos, viagens e shows
somos apresentados a uma pessoa em que Teca poderia confiar, até o
momento que encaramos a morte do personagem, que em nenhum momento
aparenta ter explicado para a sobrinha qual era a sua real condição, apesar
de ter aparentado tentar “tomar coragem” para a explicar em uma cena.
A construção da pessoa portadora de AIDS é apresentada conforme o
senso comum da época, como a “doença gay”, o que gera inclusive um
diálogo entre Teca e JM sobre como o garoto é gay (se referindo a sua
bissexualidade) e como ele pode morrer de AIDS. A reação histérica e
homofóbica não é reflexo da personalidade da garota, mas sim da reação
midiática em torno do status de “sujo” do homossexual, que violaria as
fronteiras corporais da ordem social.
É visto, em outras cenas do filme, personagens secundários (como Xande
e demais alunos do colégio aonde Teca estuda) a “julgando” por estar na
situação de ter um membro da família com AIDS, como se tal fato fosse
uma vergonha, uma transgressão, uma coisa a se notar, diferente da
interpretação que possivelmente tomariam de outras doenças. A construção
dessa má fama de Teca só aumenta, após ela ser publicamente associada ao
“gay da escola”, o que dá a entender para nós que tem efeito em sua
amizade com as garotas que, de certa forma, seguem o padrão, que
anteriormente se apresentavam como suas amigas, chegando até mesmo a
mostrar simpatia com o seu tio Carlos, antes da descoberta de sua doença.
Se faz assim possível concluir que Califórnia, mesmo se apresentando
como um simples filme adolescente de orçamento relativamente baixo, faz
um bom retrato da juventude anos 80 e seus medos e valores, feita
principalmente a partir do contraste entre os personagens mais jovens e mais
velhos e entre os que teriam mais contato com a “contracultura” e o que
seguiriam mais o padrão vigente. Apesar de os textos e o filme não serem de
forma alguma contemporâneos, a associação aparenta-se adequada, trazendo
bons paralelos e uma discussão interessante sobre a performatividade de um
jovem que atualmente, em 2022, seria considerado dentro dos padrões
esperados e uma doença, que mesmo ainda sendo grande alvo de
preconceito, seria de alguma forma mais aceita ou menos polêmica. A
realidade dos personagens é fabricada a partir de casos verossímeis, que
poderiam perfeitamente ter acontecido na vida de uma adolescente comum
de classe media alta em São Paulo, não causando estranheza ao espectador,
ainda mais quando acompanhada do texto de Butler e Duarte.

REFERÊNCIAS UTILIZADAS:
BUTLER, Judith. Inscrições corporais, subversões performativas. In:
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

DUARTE, Luiz Fernando Dias. O império dos sentidos: sensibilidade,


sensualidade e sexualidade na cultura ocidental moderna. In: HEILBORN,
Maria Luiza (org.). Sexualidade: o olhar das ciências sociais. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 21-30.

CINEVITOR - Programa 133: CALIFÓRNIA | PARTE 1 | ENTREVISTA


MARINA PERSON. [S. l.: s. n.], 2015. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?
v=P9Fr8eHJi_E&t=228s&ab_channel=VitorB%C3%BArigo. Acesso em:
16 set. 2022.

CALIFÓRNIA. Direção: Marina Person. Produção: Vitrine Filmes. [S. l.: s.


n.], 2015. Disponível em: https://www.netflix.com/browse?jbv=81180835.
Acesso em: 15 set. 2022.

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