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Fepal - XXVI Congreso Latinoamericano de Psicoanálisis

"El legado de Freud a 150 años de su nacimiento"


Lima, Perú - Octubre 2006

ORFANDADE MENTAL

Mamãe neném
- Já sei namorar.
pra amar
Mamãe eu te quero pra amar

El Joven Mendigo (1650)


Museo del Louvre
INTRODUÇÃO Bartolomé Esteban Murillo [1618-1682]

A orfandade mental (OM) já foi abordada, como a configuração mental resultante da

privação das funções psíquicas parentais. Na OM o self infantil perpetua a fragilidade e

vulnerabilidade que impedem ou dificultam a formação do continente psíquico, o aparelho

mental, a constituição do sujeito diferente do objeto, pelas privações primárias na origem

da vida. Esta vulnerabilidade não é genética nem evolutiva, é estrutural. Há uma ruptura

traumática e precoce.

São conseqüências desse trauma: as falhas na estruturação da identidade primária ⇒

o ser, falha na regulação narcísica ⇒ auto-estima e depressão essencial; sobreadaptação

que resulta da clivagem entre um self ambiental sobreadaptado e um self corporal

subjugado.

A desvitalização das pré-concepções pela falta de realização é responsável pelas

perturbações no processo de simbolização, representação, pensamento e aprendizado.

Nesta oportunidade abordo:

a) O estigma do sinistro UNHEIMLICH na história transgeracional. Privação da

experiência emocional no assoalho ancestral que impede o processo de historicização.

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Herança, transmissão e genealogia se coagulam no conceito do transgeracional (Tisseron et

al., 1995; Faimberg, 1996; Käes, 1979; Freud, 1919, 1920).

O específico na (OM) é a impossibilidade de continuar o vínculo pré-natal. A perda

dessa relação leva à dimensão do inominável, impensável, irrepresentável: o sinistro. O

SER é desqualificado da condição humana, reduzido a uma existência quase

desumana, desanimada (Freud, 1919).

As gerações que precedem o nascimento do infans, às vezes desconhecidas, deixam

suas marcas no registro Icc. Há um vazio na mediação afetiva do processo histórico e nos

modelos ancestrais de identificação com o “outro”, porta-voz da história. A privação da

parentalidade e da instância avoenga dificulta o reconhecimento da diferença de gerações,

de sexos na alteridade. Trauma primário, agonia primitiva, sem estatuto intra-psíquico e

portanto sem representação. Na OM a intolerância ante o mistério do sinistro, o

desconhecido e o irredutível do Icc. pressiona a mente do Outro ser humano - intérprete

privilegiado - para saturar com certezas, ou construir refúgios defensivos, ao invés de

hipóteses imaginativas ante o perturbador vazio de sentido: “É o mau sangue”, ou “É

herança ruim”, “É genético”...

Freud (1933) é categórico ao afirmar que o Supereu da criança não se forma à

imagem dos pais, mas, de fato, à imagem do Supereu deles; ele torna-se o representante da

tradição, de todos os juízos de valor, que subsistem assim através das gerações.

Na OM há uma fratura real entre a filogênese e a ontogênese na vida pós-natal, onde

naufragam os modelos singulares, íntimos, familiares UNHEIMLICH de identificação. O

infans é lançado ao abismo do terror.

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Em certos pacientes o vírus de HIV é o significante metafórico, da herança maldita:

o horror terrorífico. Freud, em 1937, sustenta que não significa qualquer supervalorização

mística da hereditariedade, crê que mesmo antes do Ego existir, já estão traçadas as suas

linhas de desenvolvimento, suas tendências e as reações que o Ego exibirá mais tarde.

O abandono não é o dado anacrônico de uma história passada, ele se perpetua nas

dificuldades para estruturar a subjetividade, num processo de humanização. Sem elaboração

simbólica (Geffray, 1990), as vivências traumáticas são compulsivamente repetidas.

O bebê intruso, não legitimado pelo desejo, não sonhado, nem nomeado, está

gerando na vida intra-uterina um psiquismo primitivo. Nele, há marcas das vivências

uterinas (Wilheim, 1989; 1996; 1997). Os estudos de Bion sobre o psiquismo fetal

expandiram os horizontes do pensamento psicanalítico, para a compreensão dos estados

primitivos da mente.

Na história da psicanálise, Freud tentou se aproximar ainda mais da rocha dura do

psiquismo, apontando para as fantasias filogenéticas, nunca descartando a importância da

pré-história do indivíduo, coagulada no inconsciente estrutural.

A não-existência,seja pela ruptura da vivência de continuidade (Winnicott, 1966

apud Abram, 2000), seja como força emocional da pré-concepção edípica, ou como espaço,

é estranha e terrorífica. Na OM, a fantasia sobre a cena primária, é um paradoxo nodal

(Rousillon, 1995) sobre a origem da vida. Nela, a criança assiste à sua própria concepção,

não como criação sublime reflexo de EROS, mas como obra de THANATOS: vida que não

era para ser. Na OM, ao invés da criança perceber que é sujeitada pela história sinistra (ela

não escolheu a esses pais), numa inversão ativa, ela pode se erguer como agente da

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desgraça. A crença em uma origem do sinistro “lugar nenhum” permeia com culpa os

alicerces demolidos do ancestral. Há um apagamento, uma recusa, um saque aos

antepassados. O infans é vítima e predador dessa história despedaçada, num inferno

furioso. Quem existe para quem, quando a especularidade é esmagada? As fantasias de

auto–engendramento, como a ave Fênix ou de se ter nascido de uma origem arbitrária,

remetem a esse “não lugar” explorado por Freud na novela familiar (1909). O “não lugar”

habita o mundo alucinatório na tentativa de driblar a dor. Este “não lugar” “traduzido em

ato” é repetido.

A tragédia trava o processo de historização. Um abismo desconhecido e

irreconhecível atrai como ímã mentiras e segredos. O futuro é asfixiado sem projetos

identificatórios suficientemente bons (Aulagnier, 1975).

b) As pré-concepções são prejudicadas, desvitalizadas pelo despojo da emoção(Bion,

1962; 1963).

Há na origem da vida uma relação parasitária, com destruição do sentido da

parentalidade e da filiação, num espaço inóspito. OM jaz na origem da vida psíquica intra-

uterina e na comunicação primária. O primeiro objeto do infans é a placenta. Os danos

psíquicos são os elos compartilhados. Sugiro que este modelo parasitário de relação

primária intra-uterina, entre a mãe biológica e o infans, (♀.♂), imprime efeitos nas

disposições psíquicas do bebê (Bion,1994; Korbivcher, 2006). Sustento, a partir da

experiência clínica, que quando os tropismos - assassinato, parasitário e de criação - não

encontram o objeto, o trauma da origem é potencializado e a capacidade de busca é

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atrofiada. Ainda afirmo que na OM o tropismo de criação - objeto a criar e ser criado - na

esteira de Winnicott é o mais desvitalizado, quase dinamitado. Os tropismos de assassinato

parasitário, incendiados por Thanatos, o princípio de nirvana, alimentam o trabalho do

negativo - o desligamento - ante a indiferença, arbitrariedade, impenetrabilidade do “objeto

substituto”. Os tropismos sãoa matriz da vida mental e precisam ser resgatados do vazio

como o revelado, no exemplo clínico. Na inspiração winnicottiana estamos autorizados a

afirmar que para ser criado o objeto, ele precisa antes ser encontrado.

Não existe a experiência emocional fora de uma relação humana. A catástrofe

psíquica é a conseqüência da privação de boas experiências emocionais em vínculos

verdadeiros e criativos. A curiosidade é atingida, impossibilitando a busca e a pesquisa. Os

pensamentos vazios revelam que os primórdios protomentais do pensamento são

aglomerados, prensados, dilacerados, expulsos, evacuados sem alcançar o significado, o

símbolo, o nome. Restam vinculações perversas, estéreis e cruéis.

Neste trabalho, ao invés de centrar o foco sobre as qualidades do objeto externo

real, destaco as funções desse vínculo primordial que transcende o biológico na catástrofe

primitiva e conduz à morte psíquica.

O mito privado da constelação edípica na OM permite uma aproximação ao horror

nos vínculos, desde a origem da vida. Ao invés de uma aproximação estética ante a beleza

do seio e da cena primária como metáforas do mistério e da criação sublime, há um despojo

do sentido. Não se trata só da dimensão irredutível do mistério. É a presença destrutiva do

diabólico. Ao invés de integração e relação (♀.♂), há aglomeração, identificação adesiva,

indiferenciação entre o Sujeito e o Objeto. O Édipo é uma pré-concepção que busca uma

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realização. É a realização no encontro com os pais que permite alcançar o sentido da

concepção. Na OM há pré-concepção não realizada, despoja de sentido à própria existência

(Bion, 1961).

Ante o vazio vivido como absoluto, surge o apelo defensivo para preencher

fanaticamente esse vazio com coisas em si mesmas ao invés das experiências emocionais

que nutrem a mente e abrem o portal do conhecimento. Amar e odiar alguém antecedem o

conhecimento (Martinez e Sor, 2004)1.

A OM no seu paradoxo cria um estado de tensão e desamparo, constituindo a

origem e o molde primário do espaço que caracteriza o psíquico (Delouya, 2001). Nas

brechas do paradoxo, o analista - Outro privilegiado - é conclamado a criar a subjetividade.

c) A dependência infantil revertida pela privação primária.

A Hilflosigkeit, desamparo do infans é postulada fundamental da teoria freudiana. A

dependência do outro, enaltecido como líder, idolatrado como Deus, é a conseqüência para

lidar com a impotência, a fragilidade e vulnerabilidade ontológica. Na OM, o trauma

prematuro potencializa a catástrofe primitiva.

“O desamparo inicial do ser humano é a fonte primordial de todos os valores

morais.” (Freud, 1895). O trauma do nascimento é uma vivência arquetípica, que gera

respostas atávicas, fonte primordial de angústia (Freud, 1926). Na OM, há traumas

cumulativos (Kahn, 1963) e primitivos.

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A presença do objeto externo identificado com o infans, dosando e apaziguando o

que lhe é tolerável, permitirá que se inscreva no psiquismo o sentimento de que o

sofrimento não é infinito.

O terror é vivido, mas como não tem registro, não pode ser recordado. Com

dimensões teóricas diferentes, Freud, Bion, Winnicott e Meltzer postulam que quem

deveria registrar o terror é a função materna.

Os abortos psíquicos padecidos cavam o vazio e o terror mental. As rupturas

simbióticas acentuam a depressão essencial e a angústia de aniquilação.

Bion (1976, 1977, 1978), por sua vez, enfatiza não só a onipotência para a suposta

libertação da dependência absoluta, mas abre a dimensão mística na psicanálise.

A dependência pode se disfarçar com máscaras de independência, rebeldia e

arrogância. Na reversão da dependência, a vulnerabilidade e fragilidade são recusadas. A

onipotência e auto-suficiência tentam preencher o buraco negro. Nos estados autísticos, a

indiferenciação entre o sujeito e o objeto - trave da alteridade - gesta objetos e formas

sensoriais auto engendradas, previsíveis, que permitem o controle onipotente. Quando o

outro falta, o ser é inundado de terror e angústia de aniquilação (Bion, 1962).

A dependência ontológica do ser humano exige a participação inadiável do Objeto

externo, sujeito da cultura e da história com papel decisivo nos destinos do infans. O outro

cria uma ilusão e um projeto identificatório, que podem possibilitar o aparecimento de

funções que se supõe que o infans possua no inconsciente, como potencialidades a serem

desenvolvidas. Quando a dependência do self infantil não é reconhecida, a esperança de ser

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C.f. REZENDE, A. M. (2006) – “Novas perspectivas para a psicanálise atual a expansão do universo mental

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amado murcha, assim como a incipiente experiência emocional. Ante o terror surgem as

manobras defensivas.

A desqualificação primária da dependência se caracteriza pelo olhar crítico, a

intolerância e a impenetrabilidade do objeto que abandona e/ou rejeita. Há um despojo do

sentido da vida. Os estados mentais primitivos da mente são negligenciados, descuidados,

recusados, abortados. Há um déficit primário que murcha funções mentais incipientes.

Na OM não há como definir os limites do self e do objeto. Um depende do

Outro. Quando o sujeito é o objeto, a própria alteridade é anulada.

A CLÍNICA:

Apresento uma síntese das entrevistas com as cuidadoras e a primeira Hora de

Avaliação Psicanalítica realizada por E.2 e por mim supervisionada.

T.3- Data de nascimento: 30/09/1998

Idade: 5 anos e 11 meses

T. chegou ao abrigo com um ano de idade. Foi enviado por ordem judicial após um

período de hospitalização com diagnóstico de pneumonia. A mãe é portadora de HIV que

contaminou T. As informações sobre os cuidados com ele, durante o primeiro ano de vida

são confusas, caóticas e nos remetem ao sinistro. T. é o único filho do relacionamento da

mãe com um companheiro com o qual viveu durante cinco anos. Esse relacionamento foi

segundo Bion”. In Reunião Científica da SBPSP, 4ª aula, pp. 98-115.


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Utilizaremos apenas E.
3
Utilizaremos apenas T.

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rompido após o pai de T. ter descoberto, a partir de inúmeras internações deste filho, que a

mulher era portadora de HIV. Sua mãe teve um casamento anterior do qual nasceram cinco

filhos, sendo que três deles, de 16, 13 e 11 anos moravam com esta segunda família

formada. O pai de T. também teve um casamento anterior, com três filhos.

Ao chegar no orfanato, T. mostrava-se muito debilitado, parecia uma criança de

nove meses. Até hoje é muito raro T. mencionar as palavras pai e mãe e poucas vezes ele o

fez. Aos dois anos de T., os pais foram presos por uso e tráfico de entorpecentes e no ano

de 2000 foram destituídos do pátrio familiar.

O desenvolvimento de T. foi lento, segundo a cuidadora e as informações são

restritas. Com quatro anos e meio estabeleceu-se o controle esfincteriano noturno, mas, até

hoje, ele é acordado de duas a três vezes por noite para ir ao banheiro. O controle diurno

deu-se em torno dos quatro anos. A chupeta e mamadeira noturnas foram tiradas aos três

anos. Aos quatro anos teve catapora que motivou uma internação de 10 dias. Tem os

tímpanos perfurados por reincidências de otite, cerca de uma vez por mês, com indicação

de cirurgia. Freqüentemente mostra-se interessado em mulher chamando de gostosa ou

tentando tirar a calcinha de alguma menina. Estas atitudes incomodam e preocupam as

cuidadoras. Ele cursa o pré-primário.

Gosta muito de tomar banho, passar perfume e creme e de estar arrumado. Procura a

gerente do orfanato perguntando se está bonito. As cuidadoras acham que T. não se liga a

ninguém e não quer ser amado, nunca se referindo à sua família de origem. Durante uma

das situações de adoção de outra criança, T. perguntou quando chegaria uma família para

ele.

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T. – 8 anos

1ª Hora de Observação

T. chega ao consultório vinte minutos antes do horário, acompanhado de uma

cuidadora.

Apresento-me a ele e à cuidadora na sala de espera. Ela diz que está à disposição, se

eu precisar de alguma coisa, ou quiser falar com ela. Eu lhe agradeço e peço-lhe que

aguarde na sala de espera.

- É que no começo ele fica tímido, diz a cuidadora.

T. acompanha-me lentamente, parando e olhando em volta, mostrando-se curioso e

assustado.

- T., eu marquei esse encontro com você aqui para te conhecer. Você pode usar

esses brinquedos, se quiser, para me contar o que te acontece.

T. vai até a pia, olha cada um dos brinquedos; pega em cada um, deixando-os em

seguida. Retorna à mesa onde estava disposto o material gráfico. Estou sentada numa

poltrona próxima a essa mesa.

T. examina a caixa de lápis, olha para mim, examina os pincéis, a cola, olha para

mim, examina a tinta guache e pergunta:

- É, é cola colorida?

- Não, T., é tinta guache.

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Pega uma folha de sulfite e arruma sobre a mesa. Traz um banco bem próximo de

mim, onde se senta.

Aponta o lápis grafite sem tirar os olhos de mim. Depois de um tempo dá um grande

sorriso. Eu também sorrio para ele.

Permanece longo tempo com um ar sonhador, de vez em quando dá um grande

sorriso aberto.

- Eu tô pensando...

- Em que é que você está pensando?

Continua a sorrir.

- Nem sei em que estou pensando... Eu tô pensando.

- Eu me interesso pelo que você tá pensando, quando você quiser me contar.

Sorri e pega o giz de cera, examinando cada cor.

- Está com poeira. Referindo-se a um esbranquiçado que recobre o giz de cera.

- Você vai trazer mais brinquedos?

- Que brinquedo você gostaria?

- Eu gosto daqueles hominhos pequenos.

Olha para o chão e percebe alguns cisquinhos do lápis apontado.

- Não tem problema cair um pouco no chão?

- Não tem não.

Fala meio cantado:

- Me diz o que é que eu faço.

Respondo também cantado:

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- Você pode escolher o que quiser.

Ele ri.

Vai olhando o giz de cera e desenhando, faz lentamente a cabeça de um urso e deixa

sobre as caixas de lápis, sem terminar.

- Você quer me contar algo do seu desenho?

- Não, está feio. Eu não sei desenhar.

Pega a bolinha e diz: - Está jogando dentro do cestinho de lixo.

Pega a vaca e coloca dentro da bacia.

- Ela vai nadar.

- Pode pegar água?

Ele vai em direção à pia e enche a bacia com água, joga o jacaré e a vaca. Fica

encantado e me mostra o movimento em círculo da água. De repente, descobre a tampinha

da pia e fica fascinado com isso. Enche a pia e faz um cumprimento para ele mesmo no

espelho. Coloca todos os bichos dentro da água e diz que é uma cachoeira e todos vão

nadar. Comenta que seria bom se tivesse um buraco na parte superior da pia, para a água

escoar.

Vai até a mesa pega o bebê e chega bem perto de mim. Põe o bebê no rosto e diz: -

Bonitinho, não?.

Põe o bebê na mesa novamente volta para a pia e diz: - Tá faltando um leão aqui.

Quero jogar um jogo com você.

- Então vamos ver como é esse jogo.

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- É assim: você joga essa bolinha na bacia, se fizer cesta você tem que vir e fechar

o olho para escolher uma cor. Se pegar um desse grupo ganha um ponto e se pegar do

outro grupo perde pontos. Ele separou alguns dos gizes de cera em dois grupos,

aparentemente de forma aleatória. O grupo de cores que ganha pontos é formado

primordialmente pelas cores primárias, enquanto o que perde pontos é constituído por cores

escuras secundárias. Algumas cores foram excluídas, entre elas o azul e o rosa.

Eu jogo, depois ele joga e vibra muito, quando fecha o olho para pegar a cor.

Encerro a sessão e T. fica surpreso: - Já acabou, e quando eu volto? É só você aqui?

Não tem mais ninguém?

- Sou só eu.

Combino o retorno dele na próxima semana e nos despedimos.

T. cativa a analista.

Discussão:

A história mostra a reversão da dependência. A busca desesperada do bom objeto

de T. é ora recusada “não se apega a ninguém”; ora mal interpretada. T. é inicialmente

apresentado, pela cuidadora, pelo negativo. A suposta timidez seria a justificativa para que

ela se autorize a entrar também na sessão. Sua intervenção é reveladora das manobras para

Super proteger T. Ele entra ora assustado, ora ressabiado, e muito curioso. T. é

surpreendido ante a oportunidade de uma relação verdadeira, singular e íntima.

Ele ausculta na analista o seu direito de ser e existir. O momento primordial é

quando ele pode então se permitir ser diante da resposta sorridente da analista, que o

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interpreta silenciosamente como ser sonhante, e se oferece para o encontro, além do

espelho, a profundidade das almas.

O paciente responde a este momento poético ao confidenciar que ele é capaz de

pensar. Ele, então, revela a capacidade de contato psíquico consigo próprio e sua vitalidade

no encontro com o objeto.

T. se apresenta à procura de um encontro humano significativo: ausculta a analista,

conversa, indaga, sorri, se aproxima para desenhar, pede hominhos, brinca, não quer a

despedida. Interessado pelos brinquedos, olha-os e toca-os. Que mundo é este se

apresentando aí? É a cola colorida disponível? É possível selar contatos com a cor da

emoção? Em nível transferencial podemos expressar sua fantasia de cura desta forma:

“Colado a você posso vivenciar aqui a simbiose amputada; ter a oportunidade de vivenciar

a continuidade na existência, ser olhado e me encontrar nos teus olhos refletido, sorrir e

provocar teu sorriso, te conquistar, sonhar, pensar quando te encontro de várias formas”.

Experiências dialógicas abortadas na sua vida. A analista edita, faz a inscrição primeira,

além de reedição, para dar figurabilidade e inscrever aquilo que no Inconsciente não tem

registro.

A analista, ao nomear a tinta, coloca-o em contato com a realidade, percebe-o como

sendo capaz de usar de um outro objeto substituto para se expressar, diferente do

desejado. A tinta não é a cola. A discriminação, cara função mental é encorajada. Também

o interpreta como sendo capaz de suportar a não existência da cola colorida desejada. Então

pode se autorizar a pegar a folha e nela desenhar.

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Quando a analista revela o seu legítimo interesse pelos pensamentos do paciente, ele

denuncia a poeira-sujeira-branca em cada um dos bastões de giz de cera, a presença de uma

sujeira ancestral. Na realidade, ele transforma em poeira o nome da marca do giz. Que

sujeira ancestral marca o nome paterno que herda na história da história? Que sujeira

está inscrita nestes bastões? São formas proto-nuticias (o seio), proto-masculinas (o giz)? A

poeira pode estar sob seu controle, pode ser limpa. Talvez assim ele se defenda da

impotência da contaminação, sujeira herdada no sangue. Ele parece se sentir culpado e

inferior pelo abandono. Na sujeira as marcas da doença. A mútua contaminação viral é a

metáfora do vínculo parasitário. Um tropismo de mútua destruição, na matriz da vida

mental. As pneumonias recorrentes de T. denunciaram a contaminação materna.

A analista ascende a sua capacidade incipiente de SER e CONHECER, a sua

procura, sua curiosidade, a ousadia de querer ser reconhecido com direito a ser Homem

brincando com “hominhos”, na esteira da personificação (Klein, 1929) na procura de um

modelo oferecido pela analista de identidade masculina. Teme não poder realizar seu

projeto, seu sonho; alguns cisquinhos do lápis apontado aparecem, assim como as sujeiras

no chão. Ele precisa cuidar do objeto, na reversão da dependência. T., ao nascer, foi

abandonado e rejeitado. Como foram registradas estas vivências? Parece que como a

“sujeira” presente no chão de sua existência. Que fazer com estas vivências? Ao responder

cantando, no ritmo da melodia, a analista o autoriza SER e FAZER. Ela legitima seu direito

de escolher e desejar, sendo um modelo inspirador e propiciador. O desidentifica do lugar

sinistro de coitado, doente, incapacitado, marginalizado órfão, aborto vivo. É preciso não

fazer sujeira para garantir a existência. Desenha para ser visto pela analista, no exercício

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da função especular. Na folha ambos se encontram refletidos. Ele copia o desenho do urso

que está no giz, fazendo uma apresentação da desqualificação existencial de si mesmo: feio,

marrom, inacabado e apagado Na sua obra, o esboço da identidade: a força selvagem do

urso inacabado, só cabeça. Ante a falta da relação primordial entre a mãe e o bebê, nos

prelúdios da vida simbólica, ele é o resto sem valor, despojo humano: “Me diz o que é que

eu faço!”, “Eu não sei desenhar”,”Nem sei em que estou pensando” Este menino, vítima

do destino, traz no urso as vivências do contato sinistro primitivo. Mesmo quando ele é

capaz de fazer, desenhar, pensar - só que ele não conhece suas potencialidades porque se

identifica com o negativo.

Ele expressa a pré-concepção de um seio-vaca a ser revitalizado no batismo

analítico. Continua com a fantasia originária do coito parental no encontro do jacaré com a

vaca, que espantosamente tem tampa-mamilo-esfíncter; é um continente. Ele enche a pia de

água, que gira e gira. É o movimento da vida? É na repetição do mesmo que busca a

transformação, o re-nascimento metafórico? Lamenta a falta de um buraco na parte superior

da pia para a água poder escoar e evitar transbordamentos. Parece que ele assinala um

caminho terapêutico: como dosar as aproximações à verdade possível para modular suas

angústias e evitar inundações?

O jacaré e a vaca podem ser interpretados como representantes do masculino e do

feminino. A percepção inconsciente que T. tem de seus pais biológicos caracteriza-se por

uma marcante disparidade, como a revelada entre duas espécies tão diferentes, que impede

a união criativa e a transcendência na filiação simbólica. Mistura a seguir todos os bichos

na pia, acabando com a presença do casal. Na confusão não há ordem simbólica. Ele junta

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todos os bichos, e, magistralmente, ao final da sessão, queixa-se da falta do leão, o guardião

da selva de emoções. Ele reencontra o self infantil no bebê T., que quer ter um espaço

mental único: ser só ele para a analista, numa relação de intimidade.

A água da cachoeira é a força das pulsões que precisa ter por onde escoar, pois ele

teme o descontrole. O bebê dentro dele pode vir a ser bonito se encontrar o outro, o objeto

continente, capaz de reconhecer a sua beleza.

No último movimento da sessão, através do jogo que propõe, T. traz uma reflexão

muito profunda: você pode acertar pela sua competência, mas de nada adianta, porque há

forças superiores arbitrárias que decidem o jogo. Observamos que o grupo de cores

primárias e mais vivas determina o veredicto positivo, enquanto que o grupo de cores

secundárias – onde o preto é sempre presente na mistura – marca na negatividade a fatídica

perda. Ele não tem o controle sobre o destino. Não basta limpar, reparar, atender os ideais.

No jogo da vida está presente o arbitrário e o azar, que o levam ao reconhecimento de sua

impotência, desamparo e OM.

As fantasias de cura aparecem quando, no encontro com a analista, um bebê pode

pedir um intenso e significativo contato. A analista compreende seu desespero e tece o

sonho na esperança, quanto coloca os necessários limites na instauração do setting

analítico, como parte desta continência.

Põe em evidência para a analista que os pensamentos nascem antes do pensador e

que ele se sente capaz de pensar, há espaço mental tridimensional. T. está numa profunda

relação emocional. Tem mente e vitalidade, que o fazem ir à procura do objeto. Nele há

predomínio de Eros.

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Observamos que T., marcado pela OM, não pôde realizar a experiência emocional

do encontro humano “suficientemente bom”, suas potencialidades criativas foram

desvitalizadas pela privação de vínculos privilegiados. Quando a psicanálise lhe oferece um

vinculo inédito, ele revela as funções mentais incipientes e as potencialidades esperançosas

para a construção da subjetividade possível.

O poema cantado em sessão, epígrafe deste trabalho, é conquista da análise.

REFERÊNCIAS:

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