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Gosto, preconceito e racismo

Uma situação particular desencadeou esta reflexão. Uma jovem feminista, em pleno vigor do
debate, ao sentir-se insultada por um macho alfa qualquer, desferiu o golpe: “sou gordofóbica
e odeio o cheiro de gordura, pronto, falei”. Que ela fosse muito magra e estivesse utilizando
de um sentimento real, com sei lá que implicações psicológicas, para atingir o adversário no
seu possível ponto mais fraco, foi algo aventado, mas igualmente repudiado pelo grupo
militante das injustiças sociais. O problema foi ela ter se utilizado de outra qualidade – ser
gordo – para afrontar o ser homem. Essa situação levou-me, primeiramente, não a dizer que a
saída de Temer era a luta prioritária a ser travada por aquele coletivo de diferentes, mas a
pensar sobre a prioridade das disputas e a questão das lutas anti-autoritárias, como abordada
por Foucault. Pensei que os Estados Unidos, e mesmo o Brasil, nunca tiveram um gordo na
presidência, ou em situação sequer de disputa. Será que ser gordo desperta mais rejeição do
que ser mulher? Ou ser pobre? Ou ser negro, judeu, feio, “burro”, estrangeiro, estranho,
maluco?

Não vou tratar aqui das diferenças entre gosto e pré-conceito. Nem de como o preconceito
vira racismo estruturado e renitente afetando grupos populacionais inteiros. Existe farta
literatura sobre isso. Vou falar do que é comum, no real ou no imaginário, e também no
simbólico. Inicio com a concepção antiga de fraqueza. O que é ser fraco? Mulheres são
fisicamente mais fracas que os homens graças à sua menor capacidade de desenvolver
musculatura, qualidade genética e hormonal. Qualquer menina que já enfrentou um garoto
sentiu claramente o que sentem as crianças diante dos adultos: impotência. Embora Freud
quisesse derivar do pênis o pretendo sentimento de inveja feminino, fica óbvio quando
examinamos mais friamente essa questão, que o pênis não é nem nunca poderia ter sido, no
real, a origem da força masculina e da sua dominação. Pelo contrário, o pênis é o que existe de
mais vulnerável no homem. Um chute no saco dói muito mais do que um chute na vulva. Nem
se sustenta o argumento de que as meninas não podem fazer xixi em pé. Claro que podem. A
diferença é muscular e tem a ver também com a condição da gravidez que nos coloca,
temporariamente, fora de combate. O pênis está colocado como a diferença visível entre o
fraco e o forte e não na origem da sua força-fraqueza. É um símbolo, ou significante. É a lança
que transpassa à distância.

Os gordos compartilham com as mulheres, portanto, a condição da fraqueza que é e sempre


será relativa. Quem é mais forte, uma mulher ou um gordo? Uma mulher gorda ou um homem
magro? Parece que falo de coisas bestas. E Aristóteles fez este ensaio exaustivo para tratar da
ética chagando a conclusão que a virtude está no meio. Não discordo, nem concordo
totalmente.

Desse modo, a discussão pode ficar mais interessante se eu tornar a invocar Foucault e as
mudanças operadas pelo sujeito para obter um maior conhecimento de si e posterior controle
de si, e dos outros. Mulheres e gordos possuem menor controle de si? Se não for verdade para
todos é suposto para a maioria (gordos não resistem à comida e mulheres são mais
emocionais, menos racionais – esse é o mito. Ninguém pensa que as mulheres são mais
cautelosas ou corajosas – cautelosas para não entrarem numa briga que vão perder ou
corajosas para mostrarem o que sentem sem se importar de serem chamadas de mulherzinha,
porque são, e daí?).
O controle não será o que tem estado na base das conquistas e desgraças humanas? São
muitas perguntas, por isso vou responder: sim. O controle, esse impulso que se inicia no corpo
infantil para o alcance dos objetos e termina nos chefes das nações, querendo controlar outras
nações, nos grandes empresários (observe que não digo chefas nem empresárias) lutando para
monopolizar o mercado, nas donas de casa (eis o feminino) – eu que sou dona de casa prefiro
não falar dessa parte - e nas suas práticas cotidianas de submissão dos outros: civis, crianças,
operários, pacientes.

Como resistir a um impulso tão natural? Como resistir ao impulso de não ser agressivo quando
se pode? A não controlar o que se teme? Podemos aprender a controlar o impulso para o
controle.

Na corrente dessa reflexão penso em São Paulo e na qualidade de ser metrópole onde os
vastos espaços públicos e a imensa população circulante impõe esse tipo de controle: o de não
controlar. O de permitir a liberdade de o outro existir e se expressar sem grandes amarras.
Ando no metrô paulista e vejo gays coloridos e mulçumanos em vestes negras sentados lado a
lado indiferentes um ao outro. Mais indiferentes do que tolerantes, é certo. Mas essa
indiferença já é uma arma abaixada, um laissez-faire, um deixar ir e vir... O gosto deixa de ser
exercido em um plano público e insere-se no privado. Não que aquelas pessoas não exerçam
seus poderes de encher o saco, policiar, criticar, nos microespaços em que possuem alguma
cota de poder. Não. Elas continuam fazendo o que foram treinadas para fazer. Continuam a
buscar prazer na humilhação do outro para esquecer suas próprias humilhações.

Mas o que é ser humilhado? Outro dia um cara me xingou de “nordestina”. Ora, eu ri. Como
ele pode achar que ser nordestino é ser inferior? Penso que na base desse xingamento existe,
claro, um racismo regional, um racismo de classe e que o racismo se apoia na ideia de que
quem tem mais dinheiro é melhor. Sulistas são melhores do que nordestinos, assim como
americanos são melhores do que brasileiros, assim como os moradores do Leblon são
melhores do que os residentes na baixada, e assim por diante. Essa ideia existe porque as
pessoas acreditam nela. Os moradores da baixada acreditam que o pessoal do Leblon é
“melhor” porque TEM mais e por isso são MAIS, quando na verdade são menos. Menos
pessoas. Retornando então, ao pressuposto de que ser nordestino é ser inferior. Para a
maioria de nós é um soco no vazio. Soco de criança fraca em uma brincadeira com seus irmãos
mais velhos.

E isso é fácil de entender quando olhamos o que temos no lugar das indústrias paulistanas e do
horizonte e águas poluídas. Temos praias de acesso ainda livre, forró autêntico, farinha
decente, pão delícia, música que de tão boa exportamos sem cessar, alegria espontânea e...
muita falta de educação. Em todos os sentidos e para todas as classes. Não temos coisas que
nosso baronato nos impediu de ter. Nesse ponto, das coisas em comum, deixamos de ter, do
norte ao sul, uma educação melhor, embora no Norte e Nordeste isso fique mais visível,
principalmente, quando compartilhamos espaços. Compartilhamos habitus, como cogitaria
Bourdieu, em espaços, social e ideologicamente moldados e divididos. O gosto é totalmente
exterior ao nosso ser. Mas promove o reconhecimento interclasses, intergrupos, não é
ingênuo. As identidades de classe se estabelecem nos campos e provocam tensões, receios,
culpas e hostilidade, ojeriza, ódio. E quem não tem classe fica onde? Flutua.

Temos coisas e não temos coisas, somos coisas e não somos. Somos coisa?

Somos coisas e adjetivos para os outros e para nós porque nos vemos no olhar do outro que
enxerga por meio de lentes sociais muito cerceadoras, infantis, frustrantes. O olho do olho do
olho, o que mostra? Vazio. Falta de foco. Quanto de força precisamos para não nos
submetermos a um olhar que vê gordura e magreza, fraqueza e fortaleza, beleza e feiura, e
não vê o principal, o ser de vontade que sou. Ser único.

Somos únicos e somos corpos unidos em fugazes momentos por uma eternidade. Penso
novamente naquele coletivo congelado em uma foto: nela vemos rastros de luzes formados
por uma correria. Espantados, curiosos e pré-ocupados eles desenham seu caminho para um
futuro incerto: o que aconteceu? O que acontecerá? Num impulso impensável uma mulher
magra sobe no teto de um carro negro em movimento, corcel do apocalipse. Dentro, o
cavaleiro da morte se protege da turba em revolta. Ele, forte-fraco, foge com medo. Ela, fraca-
forte, é arremessada ao chão, ossos no asfalto, sem a proteção da gordura animal, e daí não
passa. Não há passagem além da realidade. Mas a imagem é forte, a impressão é forte, e
desafia os controles estabelecidos, as pré-ocupações, os pré-conceitos. O dominador está
dominado. Ou, melhor dito, não aceitaremos subordinação de qualquer tipo: mulheres e
gordos do sul e nordeste, uni-vos. Essa é a imagem que quero guardar. Ela contempla minha
fraqueza humana e dá um sorriso. Isso é tudo que preciso. Por hoje.

22 de junho de 2016
Thereza Christina Bahia Coelho

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