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AS RELAÇÕES COM A DIFERENÇA

O que pensar sobre as guerras? A idéia mais difundida é de que guerras são
deploráveis. Porque significa imposição de um sobre o outro, porque é levar às últimas
conseqüências a ambição, porque é um desejo por poder que implica em conquistar e subjugar
outros territórios, outros povos. O que pensamos quando estudamos em História sobre os
massacres que nossos índios sofreram com a chegada dos portugueses? E sobre as
humilhações e massacres que sofreram os judeus nas mãos de Hitler? Ou ainda, sobre as
guerras religiosas mais recentes que assolam o Oriente Médio, caracterizadas por
agressividades de toda sorte entre palestinos e israelenses? Ou mais recente ainda, o que dizer
sobre a guerra que Bush empreendeu contra o Iraque?
São todos exemplos das conseqüências da intolerância religiosa, política, cultural,
religiosa. “Intolerar” seria não “tolerar” o outro, o diferente de mim, e por isso empreender
práticas de extermínio desse outro, seja porque sua raça é outra, julgada inferior, seja porque
sua religião é outra, diferente da minha e por isso julgada inferior, seja porque seu sistema
político é diferente do meu e por isso pior, seja porque sua cultura é diferente, e portanto
considerada atrasada em relação a minha.
Pode-se dizer que a consciência que temos hoje, fruto de um contexto sócio-histórico
atual, nos permite construir um senso-comum baseado em valores de paz, que vem a criticar
ações violentas, e a exaltar os valores da diplomacia, da conversa. Constroem-se valores de
respeito em relação ao outro, àquele diferente de mim, constrói-se um discurso do
“politicamente correto”, que respeita a diversidade sexual, racial, social, etc. E é com base
nesse discurso, no qual estamos imersos hoje, que criticamos toda prática de intolerância,
desde uma discriminação verbal que alguém possa proferir numa esquina contra um negro ou
um homossexual, às práticas como o nazismo, ou o massacre de índios na época da conquista
da América pelos europeus.
Vale ressaltar que estes são todos exemplos, mais explícitos ou mais sutis, do
desrespeito, da intolerância. Esse tipo de relação com o diferente é baseado num mecanismo
que de uma forma ou de outra opera em nossas mentes: consiste em colocar o próprio, a
minha própria cultura, como ponto de referência, como centro, em torno do qual todas as
diferenças, todas as outras culturas, giram como periféricas. Dessa forma, nosso julgamento
sobre qualquer diferença passa necessariamente por essa escala que tem o próprio como
centro, numa relação entre próprio versus outro, na qual o outro sempre sai em desvantagem,
como inferior.

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Ao dizer que este é um mecanismo que opera de uma forma ou de outra em nossas
mentes, pretendemos dizer que nenhum de nós está livre de julgamentos, de julgarmos a partir
dos nossos próprios pressupostos e valores, e de sermos julgados igualmente pelos outros. É
claro que temos consciência dos males das guerras, e da necessidade do respeito às diferenças,
e que não somos espanhóis sedentos por conquistar novas terras e por impor nossa civilização
aos índios; no entanto, não estamos livres deste mecanismo que julga o outro a partir dos
próprios pressupostos, porque simplesmente não estamos livres do confronto com o outro.
Este confronto, no sentido pacífico da palavra (sentido de deparar-se), ocorre constantemente
em nossas vidas: ao ouvirmos falar das práticas maias na escola, já estamos nos confrontando
com o outro e imediatamente o julgando; ao lermos uma notícia no jornal já podemos
conhecer novos costumes e passamos a julgá-los (e esse é o tipo de fonte no qual a
informação vem mais explicitamente carregada do juízo de valor de quem a relata); ao
viajarmos conhecemos novas culturas e passamos a interpretá-las a partir do nosso próprio
universo cultural, etc.
Em outras palavras, por um lado nossa consciência aponta para a necessidade de paz,
de respeito em relação ao outro, e critica a intolerância e suas práticas; mas por outro lado,
qual é nossa reação quando nos deparamos com práticas exóticas, estranhas ao nosso universo
cultural, como a circuncisão feminina; ou a prática que índios maias tinham de manter a
cabeça das crianças apertada com tábuas durante toda a infância, de modo que o crânio
adquirisse uma forma alongada; ou mesmo costumes alimentares, de povos que comem
insetos? A primeira coisa que nos passa pela cabeça é um asco tremendo porque, afinal, “os
insetos são nojentos!”, e também “sentimos” aquela pontada de dor que vem na mesma hora
em que ouvimos falar sobre a circuncisão ou sobre o “achatamento” das cabeças, somada à
indignação de saber que existem culturas que acham normal interferir desse jeito no corpo
humano! Como se não bastassem essas reações indignadas, por vezes sentimos até vontade de
interferir nessas culturas, impedindo que estas realizem práticas tão “desumanas”!
Essa reação diante destes fatos tão estranhos de outras culturas é completamente
natural. Afinal, tudo que vemos ou nos é contado, que passamos a conhecer, e então a ter uma
opinião, a julgar, tudo isso passa inevitavelmente por aquela escala de valores, que é sempre
pautada naquilo que é próprio nosso, seja nossa cultura, nossa criação, nossos valores de todo
tipo. O que parece contraditório é considerarmos errado guerrear, impor uma cultura sobre a
outra, subjugar o outro, e por outro lado nos sentirmos na posição de julgar o outro errado,
desumano, e nos vestirmos por um momento de um espírito cuja missão seja libertar aquelas
mulheres e aquelas crianças de sociedades “tão repressoras”. O que nos leva a pensar: até que

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ponto a “tolerância” é necessária e a intolerância um mal? E quem somos nós para estipular o
limite do “tolerável”, a partir do qual seja legítimo agir no sentido de reprimir o outro?
Vale ressaltar que todos os adjetivos que empregamos na intenção de descrever o outro
já são carregados de pressupostos nossos, e nunca podem ser neutros, porque justamente eles
representam nosso julgamento, assim como o representa também a maneira pela qual
construímos a narrativa sobre o outro. Se utilizamos o adjetivo ‘repressoras’ para descrever
estas outras sociedades, é porque na nossa é impensável interferir dessa forma no corpo
humano, seja porque para nós contraria uma liberdade sexual, seja porque acreditamos que
deformar o crânio desse jeito prejudique a saúde mental.
Ora, e o que dizer dos adjetivos positivos que podem ser empregados na descrição do
outro? Ainda assim aquele mecanismo prevalece: mesmo quando elogiamos outra cultura, o
que fazemos é, na verdade, elogiar a nós mesmo, uma vez que nos colocamos como padrão de
comparação, como medida daquilo que é avançado ou não. Se o outro está abaixo de nós -se
assim o julgamos-, é atrasado; se é como nós ou está até acima de nós -e tendemos a admitir
essa superioridade apenas em alguns pontos, claro!-, então nos surpreendemos com o avanço
de sua civilização! Porque, afinal, como os maias e astecas podem ter sido capazes de
construir aquelas pirâmides e cidades, aquelas tamanhas estruturas, se eles não conheciam as
tecnologias “avançadas”, que nos parecem tão necessárias a tais construções? Isso é no
mínimo surpreendente! Existem até mesmo teorias de que só pode ter sido alienígenas que
construíram coisas tão impressionantes...

Para refletir: existe um “limite do tolerável”?

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Então quando seria legítimo intervir no sentido de reprimir “abusos”, práticas
“desumanas” de outras culturas? Ora, isso não seria impor nossa cultura sobre a outra, nosso
julgamento do que seja certo e errado? Quem estaria na posição de estabelecer este limite? Os
Direitos Humanos, a ONU, os E.U.A, George W. Bush? Não seriam os próprios Direitos
Humanos fruto de valores ocidentais, ainda que tenham a pretensão de serem universais?
Seria a ONU uma organização imparcial, ou na verdade sua configuração seria um reflexo das
configurações de poder que dividem o mundo entre países “dominantes” e “dominados”?

...e quem somos nós nessa história toda?


Na História dos diferentes povos, das mais variadas culturas, que existiram e existem
no decorrer do tempo, no decorrer do espaço, contemporâneas ou conterrâneas, ou de
diferentes tempos e espaços que os nossos...Seríamos mais um, mais uma estrela num céu
infinito de estrelas, de planetas, e galáxias, no qual não há centro certo e pré-determinado, ou
há infinitos centros a partir dos quais se tem infinitas visões sobre os outros.
Se somos mais um, façamos o exercício de olhar o próprio como outro. Ou seja,
tentemos nos despir por um momento de nossos valores culturais, e olhá-los como se fossem
pertencentes a outro universo cultural. Tentemos destacá-los de nós, e encará-los com
estranhamento. Pensemos em práticas que consideramos normais em nossa cultura, como a
depilação, o uso de salto alto, ou de calças baixas e apertadas, ou mesmo tomar banho no
mínimo uma vez por dia. E lembremos dos exemplos exóticos, como a circuncisão e os
crânios alongados.
Já que adoramos nos valer de argumentos “naturais”- da boa saúde, da higiene, do
livre-arbítrio sobre o próprio corpo- para justificar nossos valores, então pensemos que depilar
e usar salto alto também são agressões ao corpo, usar calça baixa o deforma, bem como passar
sabonete fervorosamente no corpo, ao invés de limpá-lo, retira a oleosidade natural necessária
à saúde da pele. O que também não significa dizer que estariam “certos” os europeus que não
depilam e se banham com menos freqüência, ou a moda antiga da calça de cintura alta.
A questão é justamente afastar-se de conceitos
como “o certo” e “o errado”. É procurar “desnaturalizar” o
próprio, deixar de enxergá-lo como natural, e passar a
analisá-lo como mais uma construção social, dentre todas
as outras. É pensar que também estamos submetidos a
regras de nossa cultura, as quais na maioria das vezes

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aceitamos passivamente, praticamos sem questionar, e nesse sentido em que medida somos
livres para decidir o que fazer com nossos corpos? Se para nós a mulher que não depila é vista
com asco, se a mulher que usa calça larga é masculina, se a que usa calcinha grande tem
costumes de velho e não é nada sexy, etc.
E nesse exercício de estranhar o próprio, vale pensar em tudo que fazemos, não
necessariamente naquilo que causa dor ou deformidade. Vale pensar em todos os padrões
sociais próprios da nossa cultura: no que é considerado belo, no comportamento esperado de
mulheres e homens, nas regras de etiqueta, etc. Boa sorte nessa empreitada!

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