Você está na página 1de 12

Da indiferença e intolerância...

Da indiferença e intolerância para a


sensibilidade social
From indifference and intolerance to social sensibility
Roque Strieder*

Minha tese é que a insensibilidade ao sofrimento dos mais pobres, laboriosamente


construída ao longo de cinco séculos, é o caldo de cultura para a corrupção. O desdém
pela pobreza nos torna uma sociedade viciada.
Renato Janine Ribeiro

Resumo
A reflexão é uma contribuição para legítimo em suas diferenças. Fazê-lo é
os que se aventuram no complexo tema dizer não à indiferença e admitir que
proposto pelo seminário Educação, To- há gente na miséria e que dela só pode
lerância, Racionalidade e Aceitabili- sair se alguém for procurá-la, trazê-la
dade do Outro. De caráter introdutó- de novo, porque não tem mais energia
rio, levanta algumas questões acerca própria nem consegue caminhar por si
da relevância e intensa freqüentação só. Ajudar alguém é não desejar con-
atual da temática proposta. Conside- dená-lo, não moralizar, ou apresentar
ra que a complexa trama das relações propostas inalcançáveis. A saída, para
humanas persiste convivendo por en- um grande número de pessoas, não
tre consensos e conflitos, de modo que passa pelo legal, mas pelo rompimento
a não-consideração dessa transmi- com a indiferença, pela graça do amor,
gração é iludir-se com o ser humano. pois a pessoa está sentindo desampa-
Consideramos que é na intersecção do ro, medo, não má vontade.
conflitivo e do consensual que reside
a possibilidade da justiça, a possibili- Palavras-chave: educação, aceitação
dade do amor, da convivência e do vol- do outro e sensibilidade humana.
tar-se para o bem comum, aceitando o
outro como legítimo outro. Porém, não *
Doutor em Educação pela Unimep/Piracica-
haverá aceitação do outro sem um so- ba/SP e professor do Programa de Mestrado da
nho coletivo para criá-lo. A educação, Unoesc/SC. Atualmente é também pró-reitor de
como criadora desse sonho, deve cata- Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão na Uno-
lisar imaginários significativos volta- esc – Campus de São Miguel do Oeste. E-mail:
dos ao reconhecimento do outro como strieder@unoescmo.edu.br

121

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 12, n. 2, Passo Fundo, p. 121-132 - jul./dez. - 2005
Considerações iniciais No entanto, talvez muito antes da ci-
ência, muito antes das religiões e/ou
Na justificativa do II Seminário de outras convicções, o que levaria um
Internacional sobre Filosofia e Educa- ser humano a deixar de ser indiferen-
ção, Racionalidade e Tolerância afir- te, intolerante e tolerante para aceitar
ma-se que a vivência solidária, a to- o outro, considerado legítimo em sua
lerância e a aceitação do outro exigem diferença, em seu espaço vivencial?
o “reconhecimento da pluralidade das A inclusão da sensibilidade social
formas de vida”. A efetivação da sen- no itinerário educacional vai redefinir
sibilidade social requer a “superação o futuro da humanidade. No âmbito da
da imposição arrogante e autoritária educação escolar, a sensibilidade social
da cultura e das formas de vida dos precisa tornar-se vivência pedagógica.
mais fortes”. Relações de patriarcalis- Essa prática pode sinalizar para o es-
mo são predominantes na cultura oci- gotamento da competição predatória,
dental e renovam constantes convites do desrespeito à diversidade, biológica
para o autoritarismo, o desrespeito e a ou cultural, e da profunda ignorância
indiferença. Com essas referências, o do significado dos direitos humanos.
auto-respeito e o respeito mútuo trans- Educar é, então, desenvolver condutas e
formam-se em retórica vazia. Indife- capacidades de prestar atenção na alte-
rença, individualismo, (des)compasso ridade construindo desejos de cuidado.
religioso e intolerâncias, onde estão as
raízes desses equívocos? Como trans-
por a prioritária concepção de defesa
Indiferença
dos interesses pessoais?
Um retrato doloroso da crise
É fato notório que a tolerância,
civilizatória é o crescente desenvol-
ou melhor, a aceitação do outro não
vimento da cultura da indiferença.
é, ainda, um desafio fundamental da
Vivemos na desconfiança e dedicamos
humanidade. As tentativas de locali-
enorme esforço para dominar a na-
zar o problema da indiferença e into-
tureza e o comportamento do outro.
lerância nas religiões, ou em qualquer
Nossa tendência para tolerar o outro
outra variável única, é reducionismo.
encontra-se vinculada à expectativa
Inúmeras outras convicções e outras
de que eventualmente esse outro pos-
variáveis estão implicadas nessa com-
sa seguir o nosso caminho – conside-
plexa trama humana. Isso, no entan-
rado certo –, ou, então, de eliminá-lo
to, não exime as religiões nem mesmo
porque está errado. Em nosso modo de
a política ou a ciência de se dedicarem
vida, culturalmente consolidado, dese-
intensamente a desvendar as fontes
jamos, durante o tempo todo, interfe-
primordiais geradoras de indiferença;
rir e decidir pelo que é correto na vida
podem e devem contribuir, pois isso
dos outros, e, ao fazê-lo, confirmamos
reduz suas conseqüências e, antes
nosso propósito de controlar sua vida.
disso, pode evitar a sua consecução.

122
122

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 12, n. 2, Passo Fundo, p. 121-132 - jul./dez. - 2005
Da indiferença e intolerância...

Diante disso, afirmamos que a Nossa cultura é patriarcal. Nosso


maior pobreza e miséria humana não modo de viver diário se enraíza numa
são a física e a material, mas, sim, a rede de conversações que valoriza a luta,
consumação anulativa de nossa capa- a competição, a hierarquia, a apropria-
cidade de desejar afirmar a vida do ou- ção e a justificação racional do direito
tro como legítima e afirmá-la qualita- de controlar e dominar o outro. Vivemos
tivamente. Essa miséria humana nos e tratamos nossos desacordos não como
concebe polarizando as divergências algo ocasional, mas como modo de viver
sociais em fundamentalismos que exi- cotidiano exigindo luta e negação. Ma-
gem a renovação constante de nossos turana e Verden-Zöller afirmam:
campos de enfrentamento, realimen- Em nossa cultura patriarcal falamos de
tados pelo holocausto sanguinário das lutar contra pobreza e o abuso, quando
vítimas em nossas próprias fileiras. queremos corrigir o que chamamos de
É difícil entender o crescimento injustiças sociais; ou de combater a
do sentimento da indiferença. A cultu- contaminação, quando falamos de lim-
par o meio ambiente; ou de enfrentar
ra de que nossos encontros acontecem a agressão da natureza, quando nos
de forma belicosa e de que as únicas encontramos diante de um fenômeno
alianças possíveis são as alianças natural que constitui para nós um de-
ideológicas que dividem e agrupam sastre; enfim, vivemos como se todos
os humanos em tribos, para, então, os nossos atos requeressem o uso da
lançarem-se uns contra os outros, força, e como se cada ocasião para agir
fosse um desafio (2004, p. 37).
carrega o estigma de nossa cegueira
intencional para o reconhecimento. Se Adotando a luta como princípio
as diferenças para com o outro indiví- mobilizador, fica mais fácil admitir a
duo, para com o outro grupo, para com radicalidade na concepção hobbesiana
a outra tribo se tornam divergências de que os humanos se movem exclusi-
culturais, o fosso da incompatibilidade vamente pela ótica do egoísmo, da luta
não permite nem deseja revisão. e da competição. É um modo de vida
O ser humano apresenta uma que, ao tornar-se fonte e forma de re-
complexidade organizacional criativa lacionamento social entre os humanos,
muito grande, fato visível nas diferen- só pode mesmo provocar desavenças,
ças culturais, sejam elas do Oriente ou desentendimentos, e estabelecer rigo-
do Ocidente. Porém, com a globaliza- rosa diferença dentro da própria espé-
ção ocorre uma homogeneização den- cie homo sapiens. São esses pré-supos-
tro do pensamento capitalista, pre- tos que geram intolerâncias e acabam
dominando a desvalorização da vida sustentando a cultura do narcisismo,
do outro, enquanto vida significativa, pois o que caracteriza a subjetividade
para criar um ser humano – matéria- narcisista é a impossibilidade do admi-
prima – (força de trabalho) desencan- rar o outro em sua diferença radical, já
tado para com a vida. que não consegue se descentrar de si
mesmo (BERMANN, 1999).

123

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 12, n. 2, Passo Fundo, p. 121-132 - jul./dez. - 2005
Não são de estranhar as inúmeras – uma espécie de Torre de Babel –,
dificuldades de se criar imaginários numa diversidade de usos e costumes,
que incluam o outro. O desejo de in- numa diversidade de culturas e tradi-
cluir o outro em nosso imaginário e de ções, de ritos alimentares e, mesmo, de
vê-lo como um legítimo outro encontra- vestuário. Todas essas fortalezas que
se encoberto por convenções culturais nos distinguem nos fazem defender
de muita profundidade e, por que não conservadora e, por vezes, radicalmen-
dizer, constrangedoras. Há questões te esses particulares das identidades
de teor étnico, teor político, questões subjetivas, mas não necessariamente
culturais, questões de gênero, questões voltadas para a espécie humana.
religiosas que são de difícil des-locação.
São questões discriminatórias e de pro-
funda indiferença, por isso, de exclu- A força do individualismo
são, não de inclusão. A precoce impreg-
nação de formas autoritárias e de ne- Baudrillard (1996) considera que
gação sobre o imaginário das crianças, a liquidação do outro é duplicada por
por parte de convenções familiares, uma síntese artificial da alteridade,
valores culturais e mesmo convenções cirurgia estética radical, na qual a do
da comunidade na qual vive, cria for- rosto e do corpo não é senão o sinto-
temente e de forma conservadora esse ma, já que o crime somente é perfeito
sentimento de viver na desconfiança e quando as próprias marcas da destrui-
em permanente luta com o outro. ção do outro desapareceram. O autor
Esse cenário de luta é produzido reforça a existência da indiferença e
e, ao mesmo tempo, produtor, segundo da crise de valores no cenário relacio-
Morin (2005, p. 27-28), de “aumento nal para com o outro: entramos na era
da deterioração do tecido social em da produção do outro. Não se trata de
inúmeros campos; enfraquecimento, o matar, de o devorar, de o seduzir, de
no espírito de cada um, do imperativo rivalizar com ele, de o amar ou odiar;
comunitário e da lei coletiva [...] hi- trata-se, em primeiro lugar, de o pro-
perdesenvolvimento do princípio ego- duzir. Já não é um objeto de paixão, é
cêntrico em detrimento do princípio um objeto de produção. Acaso o outro,
altruísta; desarticulação do vínculo na sua singularidade irredutível, tor-
entre indivíduo, espécie e sociedade”. nou-se perigoso e insuportável, sendo,
Os valores e as opções tornadas por isso, melhor eliminá-lo?
possíveis com esse modo de viver na Diante do avanço dos conheci-
desconfiança, negação e apropriação, mentos – genoma, clonagem, reprodu-
bem como as emoções que a ele se co- ção independente, manipulação gené-
nectam, tornam-se muito fortes e, por tica – mudanças profundas e radicais
isso, passíveis de reações de grande passam a ser concebidas e valoradas.
violência. A humanidade encontra-se O conhecimento revela um ser humano
dispersa numa diversidade de línguas sem limites, individualista, imediatis-

124
124

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 12, n. 2, Passo Fundo, p. 121-132 - jul./dez. - 2005
Da indiferença e intolerância...

ta, materialista e consumista invetera- e fortalecer a cultura do “eu”, não do


do. Os resultados são desastrosos por- “nós”. As crianças crescem como in-
que exigem o rompimento com Deus divíduos individualistas; aprendem
– o humano se autoproclama absoluto. a negar o outro e a transformá-lo em
Dissocia-se da natureza ficando inca- objeto a ser consumido. Nesse univer-
paz e mesmo não desejando medir as so as relações interpessoais deixam de
conseqüências destrutivas de sua ação ser relações entre pessoas e passam a
interventiva; torna-se desastroso nas ser relações na ótica do mercado. O ou-
relações para com o outro, rompen­do tro transformado em mercadoria tem
com a alteridade, já que o outro é vis­to sua validade enquanto aproveitável
como um concorrente, estorvo pa­ra os – utilitarismo – para, uma vez perdida
interesses individualistas (ASSMANN; essa utilidade, ser descartado. É como
MO SUNG, 2000); leva ao extremo se, potencialmente, cada ser humano
a crise existencial e acaba rompendo tivesse uma espécie de prazo de vali-
consigo mesmo, porque nega um tempo dade, uma data de vencimento.
para si mesmo para repensar o próprio Deixemos, sem adentrar mais
projeto de vida, os valores e os concei- profundamente nas implicações filosó-
tos de vida e de ser gente. ficas, antropológicas e teológicas, que
Tendo-se tornado um consumidor Morin nos ajude:
inveterado, deseja comprar, possuir e O “Eu” é o ato de ocupação de um espa-
consumir cada vez mais em nome do ço que se torna centro do mundo [...] há
prazer. Prazer em consumir e consumir um princípio de identidade, que pode
como prazer requerem um projeto de ser resumido na fórmula: “eu” sou eu.
vida no qual o bem-estar se encontra “Eu” é o ato de ocupação do espaço ego-
cêntrico; “eu” é o princípio que permite
vinculado ao consumo de prazer. Essa estabelecer, a um só tempo, a diferença
condição somente é possível rompendo entre o “Eu” (subjetivo) e o “eu” (sub-
com tradicionais valores religiosos e jetivo objetivado), e sua indissolúvel
morais, tais como respeito, fidelidade e identidade (2000, p. 120).
honestidade. Nesse cenário, autonomia Segundo Neumann (2004),
equivale a individualismo; afirma-se a
o que vimos na crise de valores huma-
cultura da indiferença e cresce a ne- nos da pós-modernidade é a negação da
cessidade de transformar pessoas, re- alteridade, para justificar a afirmação
ligião e valores em mercadorias – tudo do indivíduo e do mercado descartável
se compra, se troca e se usa. Quando [...]. Negar a alteridade significa, na ver-
perde a utilidade ou quando não con- dade, negar o outro em mim. Significa
templa mais como objeto de prazer, é arrancar o outro dentro de mim. A partir
desse momento o outro deixa de ser su-
descartado e jogado fora. jeito para mim e passa a ser objeto.
Esse processo cultural, iniciado
na tenra infância e no seio familiar, O ser humano individualizado
reforçado na escola e pela mídia, con- encontra-se cada vez mais despedido
vida as crianças para negar o outro de referências exteriores; sem referên-

125

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 12, n. 2, Passo Fundo, p. 121-132 - jul./dez. - 2005
cias, fica fragilizado e torna-se vítima Santa, entre outras. Se Roma e o Va-
de um rol de ansiedades, de depres- ticano fazem inúmeras declarações de
sões e medos – medo da guerra, medo arrependimento, essas servem para
dos desastres ecológicos, medo da aids, confirmar a cumplicidade na execução
medo da tecnologia, medo do desem- de crimes cometidos contra a humani-
prego, enfim, medo do futuro. A vida dade e considerados imprescritíveis.
de cada um tende a ser uma vida sem As religiões, talvez com raríssi-
rumo, sem projetos e sem propósitos. mas exceções, nunca instigaram o uni-
No cenário globalizado é falsa a versalismo quanto ao reconhecimento
premissa liberal de que toda pessoa e à legitimidade das diferenças. No
tem liberdade de escolha para sentir-se “amar ao próximo como a si mesmo”
bem ou mal. Tem gente que está na mi- está incluso que o próximo é a pessoa
séria e que só pode sair dela se alguém do grupo. Foi essa ótica que serviu aos
for procurá-la, trazê-la de novo, porque israelitas, mas eles não a estenderam
não tem mais energia própria nem aos pagãos. A história religiosa do
consegue caminhar por si só. Para aju- mundo cristão está repleta de fatos
dar alguém é preciso não desejar con- que comprovam a sua tribalização
dená-lo, não moralizar, ou apresentar grupal com valores cultuados em ex-
propostas in-alcansáveis. A saída para tensão limitada.
esse grande número de pessoas não Após a Guerra Fria – conflito en-
passa pelo legal, mas pelo rompimento tre capitalismo e socialismo –, a maior
com a indiferença, pela graça do amor, parte dos conflitos ocorridos e que
pois a pessoa está sentindo desamparo, ocorrem no mundo tem origem religio-
medo, não má vontade. sa. Nesses conflitos, a religião passa a
ser invocada como elemento essencial
de identidade cultural. Basta pensar
(Des)compasso religioso os massacres que ocorrem na África,
que ocorreram e ocorrem na Irlanda,
A intolerância e a tolerância ou a no Timor Leste, no Afeganistão, no
aceitação do outro como legítimo ou- Iraque, entre árabes e judeus. O tri-
tro precisam ser olhadas na ótica das balismo continua presente de forma
religiões. No mundo predominam con- sanguinária nas guerras religiosas
flitos de origens culturais, religiosos e na Irlanda e nos conflitos contra os
étnicos; são conflitos solidamente legi- muçulmanos e outros grupos de mi-
timados como conflitos políticos, mas norias étnicas. Está presente no cris-
enraizados em diferenças religiosas tianismo, no judaísmo, no budismo, no
e diferenças culturais. É notável que islamismo, no taoísmo, entre outras.
em grande parte da conhecida histó- Infelizmente, no decorrer da evolução,
ria humana os grandes conflitos têm os cenários religiosos prioritariamente
origem religiosa, como o comprovam voltados para o comunitário passaram
as Cruzadas, a Inquisição, a Guerra a pagar um alto preço. Atualmente,

126
126

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 12, n. 2, Passo Fundo, p. 121-132 - jul./dez. - 2005
Da indiferença e intolerância...

as religiões são ainda fontes de frag- Intolerância


mentação, de discórdia e servem mui-
tas vezes de combustível para acirrar A intolerância é um problema
conflitos. Seus resultados, diante de profundo e complexo. É bem provável
discursos do tipo “é preciso reunir”, que tenha raízes biológicas (LORENZ,
alcançam resultados efêmeros. 2001), já que se manifesta também
Há um ilusório sentido religioso entre os animais, nos aspectos da ter-
que se constitui numa realidade dra- ritorialidade. A intolerância baseia-se
mática efetivamente preparada para em relações emotivas superficiais e
esmagar pessoas e sociedades. Então, está presente em situações por vezes
nesse conturbado contexto mundial de simples, impedindo suportar os dife-
embates sanguinolentos, com base em rentes porque têm pele de cor diferen-
conflitos culturais e, particularmente, te, falam uma língua diferente, porque
em conflitos religiosos, será possível comem rãs, porcos, alho, ou porque fa-
ou tem ainda algum sentido sonhar zem tatuagem.
uma cultura de não-indiferença e de A intolerância apóia-se em pulsões
não-intolerância? Talvez a pergunta selvagens e, diante dela, toda e qualquer
pudesse ser ainda mais perturbadora: teoria torna-se inútil. Uma afirmação de
será ainda possível perceber nas reli- Umberto Eco (1998, p. 117) evidencia a
giões compromissos para com a cria- força e a dificuldade de se lidar com
ção da paz, da bondade e da aceitação a intolerância: “Os intelectuais não
de outros como legítimos outros? podem lutar contra a intolerância sel-
A esperança, quem sabe, esteja na vagem, porque diante da animalidade
própria religião. Uma religião voltada pura, sem pensamento, o pensamento
para sua função essencial: almejar a fica desarmado. E é sempre tarde de-
sociabilidade entre a humanidade, mais quando decidem bater-se contra
conjugando o reunir, o juntar, o criar a intolerância doutrinária, pois quan-
confiança; apaziguar as manifestações do a intolerância faz-se doutrina é
hostis; reencaminhar aqueles que se muito tarde para vencê-la, e aqueles
regozijam diante da morte. A religião que deveriam fazê-lo tornam-se suas
precisa reencontrar-se com os funda- primeiras vítimas.”
mentos que lhe foram caros quando A intolerância é sempre em rela-
instituídas; a religião inspira-se em ção aos valores. Mas, se grupos huma-
comunhão, portanto, em ações que es- nos têm valores diversos, não temos
timulam a bondade, o bem-comum e de respeitá-los? Quais valores preva-
a aceitabilidade do outro. Religião é, lecem? Os dos vencedores? O que nos
acima de tudo, confiança na palavra permite intervir na vida de alguém?
de um outro. Trabalhar em favor da Devemos intervir quando o que acon-
paz, em favor do reconhecimento do tece vai contra os nossos princípios
outro, encontra assento em indistin- éticos? Será que temos o direito de in-
tas formas religiosas. tervir num país onde se pratica o cani-

127

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 12, n. 2, Passo Fundo, p. 121-132 - jul./dez. - 2005
balismo como ritual e prática religiosa toleramos as guerras, a violência con-
há milhares de anos, porque para nós tra a mulher; toleramos a corrupção
é inaceitável? Que fundamento sus- política, entre tantos outros. O atual
tentaria a nossa intervenção? Talvez, contexto mundial distancia a epifa-
por mais que se tenha de respeitar as nia do intolerável. É doloroso ter de
opiniões, os usos e costumes, as práti- admitir que, diariamente, talentos e
cas e as crenças alheias, algo nos pa- energia continuam sendo canalizados
rece intolerável. para modos e meios deliberados, para
No entanto, o que é que efetiva- aumentar ainda mais o sofrimento de
mente concebemos como intolerável? contingentes humanos. Todavia, ain-
Não consideramos ser intolerável, por da que espante, tudo isso é feito em
exemplo, a fome, mas, mesmo assim, nome da eficiência e da competência
permitimos os seus absurdos, como competitiva e produtiva, privilegiando
anunciou a manchete de primeira pá- em absoluto a economia de mercado.
gina do jornal mexicano La Jornada, Com o argumento de que livre a ini-
em 8 de dezembro de 2004: “1 bilhão ciativa é um direito, geramos miséria
e 400 milhões não ganham nem dois ao nosso redor, movidos pelo desejo de
dólares diários”. O jornal a Folha de enriquecimento ilimitado pela apro-
São Paulo, em manchete do dia 9 de priação a qualquer custo. De outro
dezembro de 2004, anunciava: “Fome lado, é estarrecedora a predisposição
mata 01 criança a cada 05 segundos”.1 para tolerar a continuidade dos dispo-
Hartwig de Haen, diretor-geral-adjun- sitivos e instrumentalizações, eviden-
to da Organização das Nações Unidas temente destruindo as possibilidades
para a Agricultura e Alimentação, no de bem-estar humano.
mesmo relatório, afirmou: Não resta dúvida de que a capaci-
O mundo está se tornando cada vez mais dade solidária de definir o intolerável
rico e produzindo cada vez mais comida. é ainda algo muito distante. Nossas
O problema é o acesso das pessoas a regras condutuais, nossa vivência éti-
trabalho, recursos, terra e dinheiro para ca, nossas dimensões de valores dão
comprar comida. É possível que a comu- a entender que ainda não estamos
nidade internacional não tenha compre-
prontos para assumir de forma solidá-
endido totalmente os benefícios econô-
micos que teriam com investimentos na ria a responsabilidade diante do deci-
redução da fome. Já se sabe o suficiente dido como intolerável. Mais uma vez
sobre como erradicar a fome e agora é Umberto Eco contribui pela ousadia e
hora de aproveitar o momento para esse também pelo desafio que lança à edu-
objetivo. É uma questão de vontade polí- cação diante da tentação das soluções
tica e de prioridade (grifos meus). fáceis e inequívocas:
O relatório, sem dúvida, é uma Educar para a intolerância adultos que
demonstração de que de alguma forma atiram uns contra os outros por moti-
toleramos não somente a fome, mas vos étnicos e religiosos é tempo perdido.
a prostituição infantil, os genocídios; Tarde demais. A intolerância selvagem

128
128

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 12, n. 2, Passo Fundo, p. 121-132 - jul./dez. - 2005
Da indiferença e intolerância...

deve ser, portanto, combatida em suas estar dos outros; ações fundamentadas
raízes, através de uma educação cons- na justiça distribuída de forma igual
tante que tenha início na mais tenra para todos, gerando a cooperação social
infância, antes que possa ser escrita
em um livro, e antes que se torne uma
como prática vivencial aceitável para
casca comportamental espessa e dura as sociedades amplas e complexas. São
demais (1998, p. 117). essas implicações mais uma vez com-
plexas, pois importam a questão da
Continuamos convivendo com
reciprocidade e do respeito em relação
fe­
rozes oposições entre convenções
ao estabelecido, condicionando a que o
sociais, que mudam de cultura em
outro faça a sua parte.
cultura. A educação e a construção
de conhecimentos precisa apoiar-se
nos pré-supostos da investigação para Ensonhando sensibilidade
que possamos, enquanto proposta
de convivência, conhecer, entender e humana
distinguir o que existe de contingen-
te em nossos imaginários, em nossos Educar também significa firmar
mitos e em nossas tradições culturais; vivências para a aceitação do outro
reconhecer aqueles sentimentos e – alteridade – ampliando desejos de
sensibilidades que efetivamente nos bem-viver. No decorrer da consolida-
constituem como espécie humana. ção desse desejo, os sonhos propõem
Em outras palavras, é necessário per- projetos de vida para os quais as ações
guntar e compreender quais e por que devem convergir. Educar é tornar
determinados dispositivos relacionais evidente no imaginário de cada crian-
devem ser mantidos e até universali- ça, de cada jovem, de cada educador
zados. Refletir amplamente sobre essa a perspectiva positiva de afirmar-se
questão pode ser uma fonte-guia para como um novo ser.
os esforços na construção de concep- Educar é recomeçar. Esse re-co-
ções que ultrapassem os imaginários meço, re-conceituado e re-invenção
do individualismo e/ou de comunida- do significado de bem viver, torna-se
des culturais e que abram fronteiras mais relevante se reconhecermos que
para o estabelecimento da sensibilida- nos vastos bolsões da miséria as vidas
de para o outro. humanas, sendo desvividas, intensifi-
Certamente, um desafio enorme cam-se assustadoramente. Milhões de
para a sociedade humana, que requer vidas humanas clamam por ambiên-
ampla comunicação e conhecimento cias de aceitação mais dignas, recipro-
para sensibilizar os pertencentes a cidade afetiva e vivências concretas da
origens culturais distintas, é a possibi- não-diferença e da não-exclusão. De
lidade de estabelecer consensos e, com forma radical, é preciso perceber que
base neles, desenvolver ações consen- nem tudo, na complexa organização da
suais, as quais podem se voltar ao bem- vida humana, se reduz ao confronto e
ao desejo competitivo. A aceitação do

129

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 12, n. 2, Passo Fundo, p. 121-132 - jul./dez. - 2005
outro como legítimo outro, tornando se uma profunda revisão do rol de
possível uma ecologia de convivência, concepções antropológicas e éticas
requer a superação de que que ratificam ser nossa agressividade
cada desacordo é vivido como uma ame- puramente instintiva. Isso implica a
aça, que tem de ser encarada por meio criação de aberturas e de possibilida-
da guerra e da negação dos outros; ou des para a retomada de atividades sig-
na qual cada dificuldade é vivida como nificativas rumo a éticas de qualidade
um problema que tem de ser resolvido de vida e a metas de solidariedade.
pela luta, e na qual cada oportunidade
para uma nova ação aparece como um
Uma das portas para a compreensão,
desafio que tem de ser vivido como um aceitação e reciprocidade entre os hu-
confronto (MATURANA; VERDEN- manos está na sensibilidade. Só no
ZÖLLER, 2004, p. 100). momento em que o “eu” for sensível
Os reflexos do agir pela luta são para com a dor e o sofrimento do pró-
desastrosos para a humanidade. Nas ximo (estendendo-se a todos os seres
escolas a confusão estabelecida é gran- vivos), seremos capazes de não causá-
de porque educadores e alunos se sen- la, mas de combatê-la.
tem perdidos e não sabem o que fazer. Vozes ecoam desejando apostar em
São vítimas do mesmo processo, estão vivências onde os valores e a ética hu-
reféns da cultura do enfrentamento e mana se tornem efetivos. A linda can-
têm de responder favoravelmente ao ção da Marvin Gave “Save the children
que é solicitado. Por isso assistimos – Salvem as crianças” traz um pouco
todos os dias ao pedido de socorro dos dessa denúncia, mas, ao mesmo tem-
alunos para serem salvos deles mes- po, é um manifesto de sensibilidade e
mos, porque já não conseguem dar convite chamativo para multiplicar a
conta do que a vida lhes oferece. solidariedade. Sua pergunta expressa
Podemos criar em nossas vidas uma angústia da alma humana desam-
um mundo de interações que permita parada. Diz Marvin: “I just want to ask
uma disposição estrutural, que aceite a question: – Wo really cares? Eu só
o outro na convivência. Para fazê-lo é quero fazer uma pergunta: – Quem é
necessário inventar procedimentos e que realmente se importa?”
condutas para que a aceitação seja pos- Então, e de forma profunda,
sível. Se, no espaço das relações, não como comprometer os humanos para
existir a interação da aceitação para que recriem seus impulsos de soli-
formar um espaço de convivência, vai dariedade com base na cooperação e
haver predação e o outro será negado. no respeito mútuo para com todos os
A esperança, no contexto dos im- seres humanos? Como conjugar esses
passes, está na não-neutralização da impulsos com perspectivas esperança-
mutilação ideológica e na não-aposta doras acerca da melhoria qualitativa
de que a perspectiva acolhedora e as de vida? Em que mundo desejamos
alianças já estejam extintas. Requer- efetivamente viver para que a convi-
vência para com os outros seja possí-

130
130

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 12, n. 2, Passo Fundo, p. 121-132 - jul./dez. - 2005
Da indiferença e intolerância...

vel? Maturana (1999, p. 30) responde: Então, a vida e o ser humano pre-
“Vivamos nosso educar de modo que a cisam de aceitação; precisam de res-
criança aprenda a aceitar-se e a res- peito ao diferente, respeito às várias
peitar-se, ao ser aceita e respeitada tonalidades e aos diferentes corações
em seu ser, porque assim aprenderá a (BOFF, 1999; ECCO, 1998; STRIE-
aceitar e a respeitar os outros.” DER e WATTE, 2003; SAVATER, 2005;
O convite é para refletir sobre MORIN, 2005).
como educar nossos filhos e filhas
para que possam superar a alienação,
a obediência deslumbrada, a retórica Abstract
vazia, e manter o auto-respeito, que é o
fundamento do respeito pelos outros e Reflection is a contribution for the
pelo mundo; não a reciprocidade, mas one that takes adventure into the com-
a gratuidade que torna possível o ser plex theme proposed by the seminar of
humano. A gratuidade implica a opção Education, Tolerance, Rationality and
fundamental pelo outro como centro Aceptability of the Other One. From
de tudo, inclusive de sua própria vida. an introductory feature, it raises some
Na gratuidade a alteridade constitui issues about the relevance ad intense
a subjetividade. Significa dizer que é current frequency of the proposed the-
o outro que permite o meu ser; então, me. It considers that the complex plot
o outro existe em mim, como eu existo of human relationships persists living
no outro. Nesse cenário, não apenas between consensuses and conflicts,
a tolerância, mas, acima de tudo, a so that the non-consideration of this
aceitação do outro passa a ser esteio transmigration is to get deluded with
da convivência e torna possível a sen- the human being. We think that it is in
sibilidade social. the intersection of the conflictive and
A opção pelo outro possibilita the consensual that there is the possi-
vida de qualidade para todos. Educar bility of justice, the possibility of love, of
é também repensar o nosso conceito conviviality and of turning to the com-
de vida e de vivências e, em contra- mon well being, by accepting the other
partida, modificar nossa postura como one as a legitimate other one. Howe-
seres humanos. Optar pelo outro é op- ver, there will be no acceptance of the
tar pela vida, porque a vida, de certo other one without a collective dream to
modo, já optou, preferindo-se ao nada. create it. Education, as the creator of
Ao preferir-se ao nada, a vida aprecia- this dream, must catalize meaningful
se, a vida aprova-se; ela projetou um imaginations turned to the recognition
existir incubando vontade de viver. of the other one as legitimate in his/
Existe esforço para viver, existe desejo her differences. Doing it means to say
para viver. Vida é o conjunto de forças no to indifference and to admit that
que resistem à morte. Vida vivida en- there are people in misery and that
quanto se está vivo. they can only get out of there if some-

131

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 12, n. 2, Passo Fundo, p. 121-132 - jul./dez. - 2005
body looks for them, brings them out _______. Método 6: ética. Porto Alegre: Artes
again, because they do not have their Médicas, 2005.
own energy and are not able to walk by NEUMANNN, Laurício. Alteridade. Dispo-
themselves. Helping somebody means nível em: http://www.ihu.unisinos.br. Acesso
not to condemn them, not to moralize em: 19 jul. 2004.
or to present unreachable proposals. MATURANA, Humberto. Emoções e lingua-
The way out, to a lot of people, does not gem na educação e na política. Belo Horizon-
te: UFMG, 1999.
go through legality, but through the
break-away from indifference, through MATURANA, Humberto; VERDEN-ZÖL-
the grace of love because those people LER, Gerda. Amar e brincar: fundamentos
esquecidos do humano. São Paulo: Palas
feel helplessness, fear, and not ill will. Athena, 2004.
RIBEIRO, Renato Janine. As bases sociais
Key-words: education, acceptance of
para a honestidade. Folha de S. Paulo, 2 jul.
the other one, human sociability 2005. Disponível em: http://www1.folha.uol.
com.br/fsp/opiniao/fz0207200509.htm. Aces-
so em: 2 jul. 2005.
Referências SAVATER, Fernado. Os dez mandamentos
para o século XXI. Rio de Janeiro: Ediouro,
ASSMANN, Hugo; MO SUNG, Jung. Com- 2005.
petência e sensibilidade solidária: educar
para a esperança. Petrópolis - RJ: Vozes, STRIEDER, Roque; WATT, Cleidiana. A
2000. simbiogênese como pré-suposto de uma edu-
cação para a humanização. SMOeste/SC:
BAUDRILLARD, Jean A cirurgia da al- Unoesc, 2003. (Relatório de Pesquisa)
teridade: o crime perfeito. Lisboa: Relógio
d’Água, 1996.
BERMANN, Joel. Mal estar na atualidade.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
Notas
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do hu-
1
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/
mano – compaixão pela terra. 3. ed. Petrópo- fsp/mundo/ft0912200410.htm. A reportagem
lis - RJ: Vozes, 1999. ainda destaca que a população com fome hoje
no mundo é de 152 milhões, com base em da-
ECO, Umberto. Cinco escritos morais. 2. ed. dos de 2000-2002, um aumento de 18 milhões
Rio de Janeiro: Record, 1998. em comparação com o período de 1990-1992.
LORENZ, Konrad. A agressão: uma história Segundo o relatório intitulado “Estado da in-
natural do mal. Lisboa: Relógio D’Água, 2001. segurança alimentar no mundo 2004” (SOFI,
na sigla em inglês), estima-se que fome e des-
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repen- nutrição custem de US$ 500 milhões e US$ 1
sar a reforma e reformar o pensamento. Rio trilhão, incluindo nesse cálculo custos como
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. perda de produtividade, renda, investimento
e consumo. Acesso em: 9 dez. 2004.

132
132

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 12, n. 2, Passo Fundo, p. 121-132 - jul./dez. - 2005

Você também pode gostar