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ANTONIO F.

COSTELLA

PARA APRECIAR A ARTE .


ANTONIO F. COSTELLA tem vinte livros

publicados e duas vidas.

ROTEIRO DIDÁTICO Uma das vidas é a de escritor para pú-

blico geral, autor dos livros Patas na Euro-

pa, Patas 2 e Palas 3, que já estiveram entre


Edição revista e ampliad~
os campeões de vendas; autor também dos

textos da coleção "Biografias de Animais

Ilustres" (Vida de cachorro, Cacareco, Dick

e Bu'céfalo) e, mais recentemente, de obras

na área da literatun infantil (Um nariz muito

especial, A gata Mícholas e a praça, entre


outros).

Mas Antonio F. Costella teve também,

durante três décadas, outra vida. Como pro-

fessor universitário na Escola de Comunica-

ção e Artes da USP, na Faculdade de Comu-

nicação Cásper Líbero e em outras

instituições, viu-se e tinlUlado a escrever li-

vros técnicos para públicos específicos: Di-

reito da comunicação, O controle da infor-

mação no Brasil, Comunicação: do grito ao


satélite, Introdução à gravura e história da
EO I TO AA

=
senac xilografia, Xilogravura: manualprácico, etc.
00
SAO PAUlO
Editora Mantiqueira
PARA APRECIARA ARTE
ROTEIRO DIDÁTICO

.::
ANTONIO F. COSTELLA

PARA APRECIAR A ARTE


ROTEIRO DIDÁTICO

Edição revista e ampliada

Dados Inte rnacionai s de Catalogação na Publicação (C IP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Bras il)

Costella, Antônio F. , 1943-


Para apreciar a a rte : roteiro did;iti co / Antonio F. Costella . _
Ed. rev. c ampl. - São Paulo: Editora SENAC São Pa ulo; Cam-
pos do Jordão, SP : Editora Man tiqueira, 1997.

ISBN 85-7359-029-7 (Editora SENAC São Pa ulo)


ISBN 85-85681-12-8 (Ed itora Man tiqueira)

I. Arte 2. Arte - Estudo e e ns ino I. Titul o.

97-50 14 CDD-707 EDITORA


c==
senac
Índices para ca tál ogo sistemáti co:
00
I. Arte: Estudo e ens ino 707
Editora Mantiqueira
Adlllinistraçt70 Regional do SENAC no Estado de Seio Paulo
Presidente do Conselho Regional: Abram Szajman
Diretor do Departallle/llo Regional: Luiz Francisco de Assis Saigado

Realizaçt7o: Centro de Comunicação c Artcs

Editora SENAC St70 Palllo


Gerência: A. P. Quartim dc Moraes
Coordenaçt7o editorial: Marizilda Lourcnço
Revist70 de provas: Izilda dc O. Pereira
Jussara Rodrigucs Gomcs
Reproduçt7o de fotos: Thales Trigo
Foto da capa: d'aprcs Gioconda, Lconardo da Vinci
Projeto gráfico e capa: Marina M. Watanabe
Sidncy lUo
Editoraçt7o eletrônica: Lato Scnso - Editora de Tcxtos
Fotolito: Quadri-Color SUMÁRIO
IlIIpresst70 e acabamento: Pancrom

Introdução ........................................... 9

1. O Conteúdo da Obra de Arte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 15

2. O Ponto de Vista Factual ............................. 19

3. O Ponto de Vista Expressional ......................... 25

4. O Ponto de Vista Técnico ............................. 33


Direitos de publicação
5. O Ponto de Vista Convencional ...........' ............. 37
© 1997 Editora SENAC São Paulo 6. O Ponto de Vista Estilístico ........................... 43
Rua Dr. Vila Nova, 228 - 4" andar
CEP OI 222-903 - São Paulo - SP
7. O Ponto de Vista Atualizado ........................... 53

Caixa Postal 3595 - CEP 01060-970 8. O Ponto de Vista Institucional ......................... 59


Tel. (O I I) 236-2135 Fax (O 11) 256-578 I
9. O Ponto de Vista Comercial ........................... 63

© 1997 Editora Mantiqueira de Ciência e Arte Lida.


10. O Ponto de Vista Neofactual .......................... 69

Av. Eduardo M. da Cruz, 295 - Caixa Poslal 42 11,..e Ponto-de Vista Estético .............................
.~ ' I"
79
CEP 12460-000 - Campos do Jordão - SP
Tel. (OI I) 287-0734 Fax (011) 251 -0234

© Antonio F. Coslella, 1997


I

,I
I

INTRODUÇÃO

Não há nenhuma novidade em afirmar que, no século vinte, os


bens tradicionais da cultura foram incorporados à sociedade de con-
sumo. Nunca se editaram tantas reproduções fielmente coloridas de
obras do campo das artes plásticas, nem jamais, e em tamanhas tira-
gens, tantos discos, fitas e CDs de música. Exposições de pintura ou
escultura de grandes artistas peregrinam pelo mundo e, alardeadas
até com espalhafato pela mídia, tornam-se eventos de visitação
massiva, enquanto cantores líricos, antes engaiolados em teatros, ar-
rastam multidões
, para estádios de futebol. A arte dita superior está
transbordando, enfim, dos seus nichos de origem e ganha as ruas das
cidades, as ondas eletromagnéticas e as infovias eletrônicas, pois as
coleções dos museus invadiram até a Internet.
,,:-;-IJêsdená um bom tempo os artistas, suas vidas e suas criações
vêm sendo vendidos, em forma de fascículos nas bancas de jornais, a
preços acessíveis. Preços baixíssimos, se comparados ao de uma via-
gem cultural e, muitas vezes, gastronômica à Europa. A Gioconda de

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ANTONIO F. COSTELLA

Leonardo da Vinci (Vinci, 1452 - Amboise, 1519) no jornaleiro de


qualquer esquina brasileira está muitos milhares de quilômetros mais
próxima do que sua matriz guardada no Museu do Louvre.
É bem verdade que muitíssimas pessoas compraram coleções
de arte, em discos ou em livros, por sugestão da habilidosa e convin-
cente publicidade e, depois de um rápido manuseio, relegaram-nas ao
inglório e frustrante destino de decorar a sala e de supostamente ates-
tar o "bom gosto" e a "cultura" do enfatuado possuidor. O mesmo
deve estar acontecendo com muitos CD-ROMs e outros tipos de re-
produções comercializados ou "internetados" atualmente. No entan-
to, há um saldo positivo nessa onda de consumismo artístico.
Embora uma viagem seja uma viagem, um livro seja um livro e
uma imagem virtual seja uma imagem virtual; embora a Mona Lisa
do Louvre tenha saído das mãos de Leonardo, enquanto a do jornalei-
ro e a do CD-ROM não passam de cópias daquela, fotográfica, uma,
e eletrônica, a outra; embora a ambiência da primeira esquina não
seja a mesma de uma rua de Paris, não podemos esquecer que até
pouco tempo atrás não havia como ver as grandes obras artísticas
sem peregrinar aos locais de sua produção ou guarda, porque as re-
produções não conseguiam retratá-las, nem de longe, com a fidelida-
de hoje obtida.
O alemãoAlbrecht Dürer (Nuremberg, 1471 - 1528), por exem-
plo, utilizou a gravura para divulgar sua pintura no século dezesseis.
No entanto, seus trabalhos como gravador foram tão diferentes de
sua obra pictórica, mesmo quando pretenderam ser meras cópias, que
acabaram por abrir novo capítulo, e dos mais importantes na história
da gravura. A reprodução era talentosíssima, mas não veraz. Ela não
reproduzia, ao contrário criava algo novo com linguagem nova.
Mais ainda. Boa parte das obras de arte, ao longo dos séculos e
AWR ECHT D ORER
dos milênios, não esteve ao alcance das vistas e dos ouvidos dos ho- Apocalipse
mens comuns. Talvez com a única e parcial exceção dos templos, x ilogravura

la
ANTONIO F. COSTELLA, PARA APRECIAR A ARTE

quase nunca se encontraram, ao longo de séculos e milênios l cole- somos todos recém-chegados ao mundo de uma cultura que, no pas-
ções de livre visitação. Mus~us, entendidos como locais abertos ao. sado, quase sempre esteve limitada a uma elite aristocrática. As artes
público em geral, são um costume que se espalhou muito recente- plásticas, a literatura e a música chamadas eruditas eram cultivadas
mente na história do homem. O tão famoso e acima referido Louvre" usualmente por diminuto grupo de eleitos, ficando quase todo o povo
por exemplo, somente foi inaugurado como reflexo da Revolução l a elas aUleio. A arte, a denominada grande arte, não saía do palácio
Francesa, em 1793, há apenas dois séculos! Antes e até então, ele eral nobre, quer se chamasse Louvre ou tivesse outro nome qualquer, nem
o palácio do rei e, como tal, acessível apenas à nobreza. E os outros; ia além da nave da igreja, e com certeza não entrava em casa plebéia.
grandes museus também começaram a abrir suas portas só no séculol Alguém dirá: "- Hoje, tanto quanto no passado, não se encontrará um
dezoito. Exemplos: Museu Capitolino, Roma, em 1734, e Museu Bri- quadro de grande pintor na casa de um pobre". É verdade. Um origi-
tânico, Londres, em 1759. naI continua, agora, tão ou até mais caro que antes. Mas hoje, sob
Pois bem. Se o genial e sacrossanto Dürer admitiu a réplical forma de reprodução, mesmo comojolhinha, ou seja, brinde de casa
para divulgar-se, por que não admiti-Ia hoje? Se nos últimos tempos; de comércio em forma de calendário, as cópias de quadros famosos
o homem comum pôde colocar seus pés em recintos ricos em arte" podem chegar a qualquer favela. Os bens artísticos massificaram-se.
que lhe foi proibida durante milênios, por que não estender o benefí- Todavia, o grande problema que se coloca em face da massifi-
cio aos bípedes que não têm como chegar fisicamente a esses recin- cação dos bens artísticos é o seguinte: é fácil massificar a informação
tos? Aplaudo, portanto, quem incluiu as reproduções artísticas na linhru a respeito desses bens, mas é difícil massificar o conteúdo que eles
da divulgação em massa. encerram. É fácil informar todo o povo de que a obra de Heitor Villa-
Até bem poucos anos atrás, havia muitas pessoas que torciam O) Lobos (Rio de Janeiro, 1887 - 1959) existe e é quase fácil convencer
nariz para a massificação da informação artística. Embora algumas, as pe soas a comprar uma gravação de suas músicas. O difícil é fazer
ainda insistam em sobreviver, foram fragorosamente derrotadas pelai com que todos os ouvintes dessas obras aproveitem igual e integral-
evolução histórica. Já não se vê demérito em que se fotografem obras, mente Vi lia-Lobos. Quem tem seus ouvidos acostumados somente
de museus para que suas cópias coloridas e fiéis possam circular pelo) com a música popular mais simples não entenderá Villa-Lobos em
mundo, levando a Maomés da arte montanhas de cultura. Quanta coi - toda a sua extensão.
sa um estudante de arte pode aprender hoje, assim, de maneira eco- A tran~missão da mensagem do artista para o espectador exige
nômica e rápida! Além disso, o contato com bens culturais, ainda que competência de ambos: daquele, para criar, e deste, para entender. Os
só por instigação da publicidade, pode redundar em sincero interesse especialistas em comunicação podem dizer a mesma coisa de outra
intelectual, graças à curiosidade despertada pela presença de tais bens .. mane,ira:..o emissor e o receptor da mensagem devem valer-se do
Em outras palavras, mesmo dentre aqueles que compraram coleções; me~~'o código, para que a mensagem seja comunicada.
para enfeitar a sala de visitas, vários se contagiaram com o vírus cul- A mera divulgação dos bens culturais, portanto, nem sempre
tural e começaram seus primeiros passos em novo e insuspeitado ca- enriquece culturalmente as pessoas. Se o simples contato físico com
minho . Afinal, no século vinte, tão ansiosa e pretensa mente igualitário" tais bens garantisse a apreensão plena da cultura, os maiores conhe-

12 13
1" )

~ ,
r ~ II d ~I~ •I I
'1 .', I'j

ANTONIO F. COSTELLA

cedores de literatura seriam sempre recrutados dentre os balconistas


das livrarias.
A integração de alguém ao universo de uma dada cultura exige-
lhe vontade de participar dela. Para apreender bem a mensagem con-
tida em uma obra de arte, o espectador deve esforçar-se por aprimorar
sua capacidade de percepção. Esse aprimoramento, quando feito de
modo empírico, consome um longo tempo, pois a multiplicação de
tentativas, característica do empirismo, toma moroso o processo. É
possível, porém, acelerar esse processo e abreviar o tempo necessá-
rio, desde que se obedeça a um roteiro adequado.
É esse roteiro que este livro pretende oferecer ao leitor. Não é o
único viável. Outras abordagens da arte são possíveis. No entanto,
nosso roteiro nos parece fecundo tanto para quem já aprecia, quanto
1. O CONTEÚDO DA OBRA DE ARTE
para quem gostaria de apreciar as artes. Ele é, despretensiosamente,
uma maneira prática para organizar e melhorar a percepção artística.
Há alguns pretensos intelectuais que se fecham em uma torre Há uma velha fábula que pode ajudar-nos a abordar o tema do
de marfim, querendo guardar para si o privilégio do "conhecimento" conteúdo da obra de arte.
da arte. Este livro condena essa atitude e, ao elitismo, procura contra- Certa vez, três cegos de nascença resolveram caçar um gato
por a clareza . Aqueles que avaliam os livros por sua complexidade ou que varava as noites miando estridulamente junto à janela. Queriam
esperam grandes vôos filosóficos se decepcionarão . O autor deste li- lhe dar uma sova, para afastá-lo da vizinhança, mas também preten-
vro não pretende impressionar ninguém com sua improvável erudi- diam apalpá-lo, para descobrir que forma tinha o corpo do insistente
ção, mas deseja , do fundo da alma, que suas mensagens sejam cantor que os impedia de dormir. Usando de astúcia, montaram uma
claramente entendidas por todos. engenhosa armadilha e conseguiram aprisionar o felino. Não conta-
Por isso, este livro se propõe explicar aquilo que, talvez por ser vam, porém, com a agilidade da presa e, quando abriram a porta da
muito simples, os livros de estética e história da arte geralmente es- armadilha, ~ gato escapuliu, só dando tempo a cada cego para tocá-lo
quecem de dizer. de leve. O cego cuja mão percorrera o dorso do gato em fuga di sse:
"- Ele é felpudo e plano, deve parecer um tapete". O outro, que agar-
rara~l""apen'"as um instante o rabo do gato, corrigiu: "- Não, ele é
longo e roliço; sem dúvida, é uma cobra peluda". Gemendo de dor
por causa das unhadas e arranhões, o terceiro cego, em cujo braço o
fugitivo cravara as garras ao dar o salto últimõ da escapada, protes-

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ANTONIO F. COSTELLA PARA APRECIAR A ARTE

tou: "- Felpudo coisa nenhuma! É áspero e cortante como um espi- É lógico que a intensidade de interesse sobre cada aspecto do
nheiro". conteúdo poderá variar de acordo com a personalidade do observa-
o conteúdo da obra de arte é como o gato da fábula: um ente dor. Por exemplo: um pintor, ao apreciar um quadro, mesmo sem ne-
composto de diversos elementos. Se observarmos apenas um ou al- gligenciar os outros aspectos, será tentado a analisá-lo mais
guns deles, não perceberemos o conjunto ou, ao menos, não o perce- detidamente sob o ponto de vista técnico, pois sua profissão o capaci-
beremos de modo integral. ta a distinguir pormenores desse tipo, que escapariam a um observa-
A obra de arte, como entidade física, é inteira e única. No en- dor leigo; já um comerciante de arte talvez se detivesse mais no ponto
tanto, na mente do espectador podem ser selecionados diferentes ân- de vista comercial, pensando nas possibilidades de revenda do obje-
gulos de observação. Essa diversidade de angulação mental, quando to; e assim por diante.
inteiramente realizada, permitirá ao observador ver a obra de arte em É compreensível essa diversidade de comportamentos. No en-
toda a sua riqueza, absorvendo de modo completo O respectivo con- tanto, se imaginarmos a obra como uma sala dotada de dez lustres,
teúdo. A cada ângulo ele apreenderá uma fatia do conteúdo, a cada parece-me óbvio que a cena estará mais iluminada quando as dez
ponto de vista observará uma parte do conteúdo total. fontes luminosas estiverem acesas.
Pois bem, a completa observação da obra de arte exige que a Ainda aproveitando o exemplo. Do mesmo modo que não ha-
enfoquemos sob, pelo menos, de? pontos de vista: verá uma fronteira rigorosa entre o halo luminoso de um lustre e o do
outro, assim também os dez enfoques, não obstante individuáveis,
factual devem fundir-se. Na mente do observador traquejado eles estarão sem-
expressional pre íntima e simultaneamente acesos.
técnico
convencional
esti Iístico
atualizado
institucional
comercial
neofactual
estético

Em nenhum momento diremos que a obra de arte só poderá ser


apreciada quando nos tornarmos especialistas nessas dez abordagens.
1'1
No entanto, afirmamos e continuaremos a afirmar que a apreciare-
I mos melhor com o conhecimento dessas abordagens todas.

16 17
2. O PONTO DE VISTA FACTUAL

1
Sob o ponto de vista factual, o conteúdo da obra de arte é aqui-
lo que ela representa, ou seja, aquilo que ela objetivamente exibe. Em
I: um quadro cujo tema for uma paisagem, o conteúdo factual se com-
porá das árvores que ele mostra, das construções rurais, das monta-
\;I
nhas, etc. O conhecidíssimo muralA Última Ceia ou, no título italiano,
I II Cenacolo, de Leonardo da Vinci, tem, como conteúdo factual, treze
homens em diferentes atitudes sentados atrás de uma mesa. (Insisti-
mos em tomar exemplos na obra de Leonardo, pois Gioconda e A
Última Ceia são, sem dúvida, as pinturas mais conhecidas no mundo
ocidental.) Em se tratando de música, o conteúdo factual se compõe
dos sons que ela nos faz ouvir. Num bailado, o conteúdo factua l é
aquilo que se encontra em cena: os corpos dos bailarinos com seus
movlme.ntos.e a música ouvida. E assim por diante.
A apreensão do conteúdo factual se concretiza simples e tão-
somente pela identificação, em nível meramente descritivo, dos ele-
mentos que compõem a obra A operação mental exigida para essa

19
'A NTON IO F. C OST Eu..A

identificação não oferece maiores dificuldades ao observador, especi-


almente quando ele se defronta com obras figu~ativl\s e de seu tempo.
Em contraposição, obras mais antigas podem criar 'certos embaraços
quando retratam objetos contemporâneos à obra, tTllas não mais exis-
tentes na época do observador, ou objetos que tenhaIlh mudado radical-
mente sua aparência com o passar do tempo.
Tomemos um exemplo.
Os jovens que sempre viveram no centro de U1ilna cidade moder-
na dificilmente terão visto um ferro de passar rouPia aquecido a car-
vão. (A última vez em que tive a oportunidade de velr um deles, sendo
efetivamente usado, foi em 1971, na cidade de SãQ) Luís, capital do
Maranhão, quando lá estive para dar um curso.) ESSles jovens, encon-
trando tal objeto retratado em um quadro, talvez nãk> o identifiquem,
não o entendam. Digo talvez, porque, às vezes, a obra, mostrando
uma ação, uma cena - nesta hipótese, Ulna mulherr passando roupa
com o dito ferro - acaba por explicar ao observadolf o significado ou
função do objeto.
Quando nenhuma circunstância de dentro dta obra explica o
objeto, o observador deve recorrer a informações 'externas à obra,
buscando-as em fontes tanto orais, quanto escritas. lNo exemplo figu-
rado acima não será necessário nenhum tratado eSQ;rito por especia-
lista. O mero esclarecimento verbal prestado pelo av ô do observador
ou por qualquer antiquário, homens que conviverann cada qual a seu
modo com ferros a carvão, será suficiente.
No entanto, nem sempre as coisas são tão simp)les. Quanto mais
antiga uma obra ou quanto mais estranho ao nosso for o seu mundo
cultural de origem, tanto maior será o risco de ocomer uma dificulda-
de de apreensão do conteúdo factual. Se o observadol r se põe a exami-
nar um antigo mural egípcio e nesse mural há a repr~sentação de uma
Livro dos Mortos de Anhai (detalhe)
enxada, ele não a identificará, a menos que tenha tido informação c. J J50 a. c., têmpera sobre papiro
anterior pertinente. As enxadas, no Egito antigo, alpresentavam um Museu Britânico, Londres

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ANTONIO F. COSTELLA

formato radicalmente diferente das enxadas nossas contemporâneas.


A leitura de livros de história sobre o Egito antigo ou a preleção de
um especialista no assunto resolverão o impasse e permitirão ao ob-
servador a apreensão dessa parte do conteúdo factual.
Em geral uma falha parcial na apreensão do contelido factual .
não impede o observador de compreender o conjunto dn obra. No
entanto, a apreensão de todo o conteúdo factual favorecel'á uma me-
lhor compreensão da obra.
É óbvio que o estudo de textos e o convívio com obras de arte
promovem a aquisição paulatina de uma bagagem de conhecimentos
que favorece a apreensão do conteúdo factual. Do mesmo modo que
a Arte sempre ensinou História aos homens, de sua parte a História
também nos auxilia a compreender a Arte.
Neste assunto falta ainda um comentário. No campo das artes
plásticas, há obras que não são figurativas . Exemplo: os quadros do
grande pintor Manabu Mabe (Kumamoto, 1924 - São Paulo, 1997)
não representam nem ferros de passar roupa, nem enxadas, nem quais-
quer outros objetos identificáveis. Filiando-se ao abstracionismo, Mabe
afastou-se da pintura figurativa, por ele praticada apenas no início de
sua carreira. Nem por isso deixa de haver conteúdo factlll:al em suas
.I
telas. Posso descrever as cores e as formas que nelas vej o. E esses
elementos - manchas de cores - constituem o conteúdo factual.
Um quadro do holandês Piet Mondrian (Amersfoot, 1872 -
New York, 1944), embora não contendo objetos identifidíveis, tam-
bém pode ser descrito com pormenores até milimétricos, do mesmo
modo que alguém pode descrever a cor e a forma dos novos azule-
jos da cozinha, do tapete da sala ou da cortina do quarto .
A boa e completa apreensão do conteúdo factual é I() primeiro
passo para entender a obra de arte. O importante é abrir os olhos e
PIET MONDRIAN
ver. Ver com atenção. Ou ouvir, quando se tratar de música. Composição, 1921
Museu Nacional de Arte Moderna , Paris

22
I' II
I
Ii I
I

II11 3. O PONTO DE VISTA EXPRESSIONAL

Algumas músicas entristecem a ponto de arrancar lágrimas do


ouvinte. Outras, em contrapartida, infundem ar de festa a qualquer
ambiente. Desde a Antigüidade certos ritmos vêm sendo utilizados
para inflamar e impulsionar tropas militares, tamanho o poder de su-
gestão da música. Também a literatura consegue tocar fundo em nos-
sos sentimentos. Confesso que já ri sozinho ao ler certas passagens
dos romances Incidente em Antares, de Érico Veríssimo (Cruz Alta,
1905 - Porto Alegre, 1975), e Dona Flor e seus dois maridos, de
Jorge Amado (Pirangi, 1912). Em contraposição, não creio que al-
guém consfga manter-se de bom humor logo depois de ter lido A pele,
o terrível romance de guerra do italiano Curzio Malaparte. No cam-
po das artes plásticas o mesmo fenômeno se repete. Muitas vezes, em
museus, observei pessoas dizendo: "- Esse quadro é formidável, mas
eu não gostaria de tê-lo na parede da minha sala. É tão triste!" Em
contrapartida, há obras que transformam locais sisudos em descon-
traídos.

25
ANTONIO F. COSTELLA

Uma das parcelas do conteúdo da obra de arte mexe, pois, com


o sentimento do observador. A essa parcela damos o nome de conteú-
do expressional.
O conteúdo expressional é atributo da obra, e não do observa-
dor.
Embora jamais tivesse dúvidas a esse respeito, testei várias ve-
zes, observando alunos, as reações provocadas por certas obras sobre
as pessoas. Essas reações revelaram-se nitidamente concordantes, com
forte tendência, às vezes, à unanimidade.
I' A pintura do francês Paul Gauguin (Paris, 1848 - Ilhas Mar-
I I quesas, 1903) costuma infundir sensação de paz e tranqüilidade. To-
mei repetidamente como amostragem, nesse sentido, o Ta Matete,

I 11
quadro pintado por ele no Taiti. O tema exótico, a composição sem
sobressaltos, os gestos das figuras retratadas e, principalmente, as cores
quentes transmitem ao ob ervador uma suave alegria de viver.
Em contraste, sempre que mostrei aos mesmos alunos, logo em
seguida ao Ta Matete, uma reprodução de algum trabalho da magis-
tral série Retirantes, do nosso Cândido Portinari (Brodósqui, 1903 _
Rio de Janeiro, 1962), a reação imediata foi de lamento, queixume,
tristeza, quase horror. Mesmo aqueles que não se mostravam propen-
sos a considerar a pintura de Gauguin alegre, passaram a admitir que
o fosse, tamanho o contraste com o quadro de Portinari, pungente
retrato expressionista das misérias sofridas pelos flagelados da seca
nordestina. O tema, a composição, o traço anguloso, as cores frias,
tudo ali inocula tristeza.
Ressaltei que o conteúdo expressional é atributo da obra, e não
do observador, porque as reações deste último não são fruto do acaso.
É o artista, com sua competência, que consegue induzir no observa-
PAUL GAUGUIN
dor um sentimento escolhido e habilmente desencadeado. Por exem-
Ta Marere (O Mercado), 1892
plo: Os Fuzilamentos do 3 de Maio, de Francisco Goya y Lucientes
óleo sobre t e l ~
(Saragoza, 1746 - Bordeaux, 1828). Museu de Arte ela Basiléia, Basiléia

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CÂND IDO P ORTINAR I
F RANCISCO G OYA
Retirantes, 1944
Os Fu zilamentos do 3 de Majo, 18 14
óleo sobre tela
óleo sobre leIa
Museu de Arte de São Paul o, São p\ ul o
Museu do Prado, Madri
ANTONIO F. COSTELLA PARA APRECIAR A ARTE

Nesse quadro de Goya a angústia de um fuzilamento sobressai outras quase o abominam, preferindo valorizar a razão (classicismo,
por vários motivos, além do tema, já trágic<? em si mesmo. Vejamos. neoclassicismo, etc.). Em qualquer das correntes, entretanto, ainda
São eles: a composição, na qual se antagonizam dois principais volu- que com graus diferentes, há alguma forma de ligação entre a obra e
mes, de um lado os condenados e de outro os atiradores, o que já o sentimento do espectador. A obra funciona como um gatilho que
sugere um conflito; o uso conveniente de linhas e formas, repetitivas dispara uma reação em nível psíquico. Quando o disparo acerta o
e retas no grupo dos atiradores, dando-lhes aparência de segurança, alvo do sentimento, podemos ter certeza de que o conteúdo expres-
mas divergentes e oblíquas, quase convulsas, no lado dos condena- sional da obra foi absorvido pelo espectador.
dos, retratando seu desespero, pois é sabido que linhas verticais e
horizontais traduzem firmeza e paz, enquanto oblíquas lembram mo-
vimento e ação; o desenho dos rostos, bem vincados nos condenados,
em contraposição à anonímia compacta dos soldados, cujas feições
estão ocu ltas; etc. Além de todos esses recursos, a competência de
Goya concebeu mais um oportuno artifício: a cena é iluminada por
um lampião colocado no solo. A presença desse lampião, assim situa-
do, permitiu a Goya fazer dela uma cena noturna e, daí, lúgubre. Mais
que tudo, porém, permitiu ao artista justificar a iluminação das figu-
ras de baixo para cima. Ora, é sabido que tal direção de luz favorece
a criação de uma ambiência tenebrosa. Como confirmação, basta fo-
lhear qualquer revista em quadrinhos dedicada hoje em dia a temas
de terror.
Tantos hábeis estratagemas fizeram de Os Fuzilamentos do 3
de Maio, de Goya, um dos mais expressivos retratos da opressão e da
angústia. E, como acabamos de ver, nada ali ocorreu por acaso.
Não se pense, porém, que o artista, para merecer aplauso, este-
ja sempre obrigado a exacerbar o sentimento dos observadores. Tudo
tem sua hora e seu lugar. Ninguém, por exemplo, pensará em mandar
uma banda tocar A Morte do Cisne, quando o que se pretende é fazer
marchar uma tropa de soldados.
Ademais, na história dos estilos, há posturas divergentes a pro-
pósito desse assunto. Certas correntes artísticas se comprazem em
apelar para o sentimento (romantismo, expressionismo, etc.), enquanto

30 31
4. O PONTO DE VISTA TÉCNICO

o conteúdo da obra de arte não diz respeito apenas ao fato e ao


sentimento. Mais do que isso, e para expressar um e outro, a obra é
resultado de um labor técnico.
Observada do ponto de vista técnico, a obra é fruto dos elemen-
tos materiais e imateriais utilizados pelo artista para realizá-Ia. É a
tela e a competência necessária para pintar, é a madeira e a habilidade
do escultor, é o piano e o engenho musical, é a palavra e o estro poé-
tico ... É, enfim, o material utilizado - seja tela, madeira, piano ou
palavra - e o conhecimento da teoria, isto é, das regras e até segredos
,
que permitem o bom uso dos materiais escolhidos.
Geralmente as pessoas tendem a dar importância apenas ao co-
nhecimento teórico, relegando a contribuição dos materiais a segun-
do piano. " -=-0 que importa é a competência do artista! Se ele for
bom, fará arte com qualquer material", dizem. Não é bem assim. O
artista olha com muito amor e carinho os seus materiais, pois eles lhe
condicionam o trabalho. Michelangelo Buonãrroti (Caprese, 1475 -

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ANTONIO F. COSTELLA PARA APRECIAR A ARTE

Roma, 1564) deslocava-se até Carrara, na Toscana, e pessoalmente Os artistas em geral podem ser incluídos entre os observadores
escalava as pedreiras, lá permanecendo 10!1gos períodos na escol ha privilegiados, pois, defrontando-se em seu trabalho com dificuldades
dos mármores com os quais conseguiu criar sua maravilhosa obra equivalentes, sabem avaliar melhor a capacidade do colega. Mas não
escultórica. É bem verdade que, ao escolhê- los, lançava mão de seus é preciso ser artista para fruir o conteúdo técnico de uma obra. Se
vastos conhecimentos teóricos sedimentados em longa experiência, assim fosse, as apresentações de peças de teatro somente seriam as-
mas nada teria ele realizado sem a colaboração daquelas dóceis pe- sistidas por atores e as exibições musicais teriam apenas músicos na
dras toscanas. Sob o ponto de vista técnico, portanto, a apreciação da platéia. Muito pelo contrário, a arte é produzida pelos artistas para o
obra de arte diz respeito, simultaneamente, à competência do artista e público em geral e, até mesmo, para artistas.
às qualidades do material. De mais a mais, entre 8 e 80 há muitos números. No fundo,
Enquanto os enfoques factual e expressional, sa lvo exceções, ninguém é 8 e ninguém é 80; ninguém é totalmente incompetente e
não exigem conhecimentos especiais do observador, o conteúdo téc- ninguém possui a competência total em matéria de arte. Todos nós
nico impõe-lhe uma bagagem especiali zada de informações. A apre- estamos sempre tentando ir além do 8, para nos aproximarmos do 80.
ensão do conteúdo técnico será bem menor sem tal bagagem . Há uma É lógico que a obtenção, sempre que possível, de novos conhe-
disparidade considerável entre o que vê na obra o espectador despre- cimentos sobre as técnicas artísticas permitirá ao observador melhor
venido e aqu ilo que descobre nela o especia lista. desfrute no ato de apreciação. Além das leituras específicas, a convi-
Diante de um quadro, o primeiro dirá: "- É uma pintura a óleo vência assídua com obras de arte, seja em museus, em teatros, cinemas
sobre tela" . E ainda se dará por satisfeito por ter percebido ser óleo e ou em qualquer outro lugar, irá contribuindo para o enriquecimento do
não aquarela a técnica empregada, e ser tela e não papel, o suporte. saber técnico do observador, principalmente se ele ficar sempre com
Analisando o mesmo quadro, o especia lista tentará saber se a tela é seus olhos bem abertos e ouvidos igualmente atentos.
de linho ou de algodão, pois isso condiciona a conservação da obra,
já que a dilatação do linho é muito mais compatível com a dilatação
da tinta a óleo; eventua lmente procurará saber se a tela foi bem pre-
parada para evitar ataques à celulose; tentará detectar a maneira de
trabalhar do artista, se com espátula ou com pincel, se com veladuras,
etc. Notará, ainda, a composição e, nela , a distribuição dos volumes;
a segurança do desenho e a perspectiva linear, se for o caso; a obediên-
cia a alguma das leis de proporção, etc. Cogitará da harmonização
das cores, da distribuição dos va lores, do uso das complementares,
etc. etc. etc.
O especialista, enfim , vê muito mais que o observador comum,
isto é, absorve mais conteúdo técnico.

34 35
5. O PONTO DE VISTA CONVENCIONAL

Se mostro uma estampa na qual se vê um homem coroado de


espinhos, arrastando ao ombro pesada cruz de madeira, o leitor, mais
que depressa, identificará Jesus Cristo rumo ao Calvário. Bem dife-
rente será a reação de um indígena da Amazônia que apenas acaba de
ser contatado pelo branco, ao se lhe mostrar a mesma imagem. É
óbvio que ele não dirá tratar-se de uma cena da Paixão de Cristo e
nem entenderá aquele estranho tronco de madejra enganchado no
ombro do homem retratado. A cruz, símbolo da fé religiosa dos cris-
tãos, é algo totalmente alheio ao mundo original do indígena. Por
isso, a cruynão será vista com seu conteúdo simbólico, mas sim como
tronco ou algo parecido, tomando-se impossível ao índio interpretar
adequadamente a figura de Jesus Cristo.
O que transforma dois pedaços de madeira em símbolo do Cris-
tiamsmo e um homem com cruz ao ombro em Jesus Cristo são conven-
ções. Convenções baseadas em crenças religiosas e apoiadas, nesse caso,
em determínados fatos históricos partilhados por certos grupos sociais.

37
ANTONIO F. COSTELLA
PARA APRECIAR A ARTE

Ora, a vida social em todos os tempos e em todos os lugares A fama das vitórias que tiveram;
sempre foi fértil na criação de convenções .. Não é de estranhar, por- Que eu canto o peito ilustre lusitano,
A qucm Netuno e Marte obedeceram.
tanto, que_essas convenções, cristalizadas em símbolos usualmente
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
importantes para a sociedade, se mostrem retratadas pela arte e intro-
Que outro valor mais alto se alevanta.
duzam nela um conteúdo convencional.
Quando nos defrontamos com obra contemporânea e de autor a !<linguém fica sabendo, a menos que um livro ou pessoa lhe
quem estamos ligados pelos mesmos costumes, não é difícil apreen- explique, que o "sábio grego" é Ulisses, rei de ítaca, um dos invaso-
der-lhe o conteúdo convencional. No entanto, ao tomarmos contato resde Tróia, e que o mencionado "troiano" é Enéias, filho deAnquises,
com obra de outra época ou de outra latitude, podemos nos sentir tão o qual, fugindo de sua terra natal, viria a ser responsável, segundo
alheios ao seu conteúdo convencional quanto o índio, tomando a cruz lenda difundida por Virgílio, pela fundação de Roma. É possível, de
por tronco. Um turista ocidental, vinculado a raízes culturais euro- igual modo, um adolescente desconhecer que Netuno fosse conside-
péias, nem adivinha quantos significados deixa de entender, quando rado, na Roma antiga, o deus do mar e Marte, o da guerra. E com
defrontado com um templo hindu, por exemplo. relação a essa "Musa antiga", até os comentadores de Camões titu-
Mas nem é preciso ir tão longe. beiam: o Poeta pode ter se referido a Calíope, inspiradora da epopéia
A "Índia" pode ser aqui mesmo. e da eloqüência; ou pode ter querido lembrar, de modo genérico, o
Muitas gerações de estudantes, a minJla inclusive, aprenderam conjunto das nove musas, além de Calíope, também Clio, da história;
o idioma português fazendo análise de Os Lusíadas, de Luís de Melpómene, da tragédia; Tália, da comédia; Erato, da poesia amoro-
Camões (Coimbra, 1524 - Lisboa, 1580). Lembro-me que vários co- sa e da mímica; Euterpe, da música; Terpsícore, da dança e do canto;
legas de ginásio acabaram por detestar Camões. Detestaram-no só PoIimnia, da ode; e Urânia, da astronomia.
porque sua obra oferecesse dificuldades em matéria de análise lógi- Durante a apreciação da obra de arte, a absorção de seu conteú-
ca? Em parte, sim. Detestaram-na, talvez bem mais, creio eu, por do convencional pode, ]portanto, exigir o concurso de variadas fontes
verem-se estranhos a ela. Era freqüente Camões fazer com que nós, para a compreensão de símbolos pelos quais se identificam divinda-
adolescentes, nos sentíssemos indígenas aparvalhados diante de suas des mitológicas, santos católicos ou muitas outras entidades e repre-
invocações à mitologia greco-romana. sentações de convenções socialmente adotadas. A descrição dessas
A terceira estrofe do primeiro canto, logo no início do poema, e figuras é ta(efa da Iconografia, preciosa auxiliar da História da Arte.
possivelmente a mais famosa de Os Lusíadas, ilustrará nossa afirma- Sem as informações iconográficas também é possível fruir a
ção:
obra. Com elas, porém, a fruição aumenta de intensidade.
PiI'rd evitar confusões, tentemos deixar tão clara, quanto possí-
Cessem do sábio grego e do troiano
ve~ a fronteira entre o conteúdo factual e o conteúdo convencional da
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano obra de arte. Em ambos há, em essêncià, um ato de identificação de

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ANTONIO F. COSTELLA PARA APR ECIAR A ARTE

objetos. No entanto, essa identificação se faz em níveis diferentes. Resumindo. Se, por um pa se de mágica, pudéssemos reunir
Tomemo novamente a cruz. O índio a vê como estranho tronco de em uma sa la o indígena, o cidadão romano de 21 d.e. e o Papa, e a
madeira e eu, como cruz e símbolo cristão. O índio não lhe alcança eles apresentássemos uma crucifixão de Cristo pintada por qualquer
nem o aspecto factual, nem o convencional, enquanto eu apreendo artista, teríamos os seguintes resultados:
ambos. Podemos, agora, imaginar alguém em situação intermediária
1. o índio não apreenderia, com relação à cruz, nem o conteúdo factual,
a esses extremos: um habitante de Roma no ano 21 de nossa era. Esse
nem o convencional;
romano, ao ver a cruz sendo levada ao ombro por um homem, não a
2. o cidadão romano apreenderia o conteúdo factual, mas não o con-
consideraria apenas um estranho tronco de madeira, como o faria o
vencionai; e
indígena. Esse súdito do Império Romano identificaria os paus cru-
3. o Papa apreenderia ambos os conteúdos, o factual e o convencio-
zados como um instrumento judiciário de execução de criminosos.
naI.
Não foram os cristãos que inventaram a cruz. Os romanos usavam-
na, como também utilizaram paus em forma de forquilha, aos quais Que devemos fazer para melhor desfrutar a arte no seu aspecto
suspendiam com cordas o condenado à morte, e igualmente se servi- convencional?
ram de simples troncos, nos quais o infeliz executado era dependura- Precisamos procurar obter, sempre, mais e mais informações a
do de cabeça para baixo. O pau que sustinha o culpado, infelix arbor respeito do mundo cultural no qual ela foi gerada.
(árvore estéril), era consagrado aos deuses do inferno. Pois bem. O
romano do ano 21, embora identificando o conteúdo factual da ima-
gem, isto é, vendo nele uma cruz como objeto de seu mundo judiciá-
rio penal, não poderia imaginar o conteúdo convencional hoje
identificado por um cristão. Faltavam ainda alguns anos para que ocor-
resse a crucificação de Cristo e, só depois dessa execução, a cruz
viria a ser adotada, como seu símbolo, pelos cristãos.
Os objetos, portanto, podem exteriorizar objetivamente aquilo
que são e para que servem, de tal modo que cu possa fazer deles uma
identificação direta, mas também podem representar algo além, assu-
mindo o caráter evocativo de alguma coisa neles identificada de ma-
neira indireta. Quando os objetos deixam de ser apenas aquilo que
são e passam a sugerir também alguma outra coisa, eles se tornam , ... ,
símbolos. O conteúdo factual da obra de arte diz respeito aos objetos
pelo que eles são, enquanto o conteúdo convencional interessa-se por
e les como símbolos.

40 41
6. O PONTO DE VISTA ESTILÍSTICO

Voltemos, neste capítulo, a tomar como exemplo, já que é tão


difundida, a figura de Cristo. Vamos fazer uma comparação entre o
Cristo em mosaico da cúpula da Igreja de Dafne, do século onze; o
Cristo da Transfiguração de Rafael Sanzio (Urbino, 1483 - Roma,
1520), do século dezesseis; e o Cristo e sua Cruz, do mexicano José
Orozco (Zapotlán, 1883 - Cidade do México, 1949), do nosso sécu-
lo. Embora os três representem a mesma figura, identificável por qual-
quer pessoa minimamente informada sobre o Cristianismo, salta aos
olhos a diferença entre eles.
O Cristo de Dafne é uma amostra da pintura bizantina. Com
capital em Bizâncio, depois chamada Constantinopla e hoje Istam-
bul, o Império Romano do Oriente, ou Império Bizantino, tomou-se
-"''''
um regime teocrático depois de cristianizado. Fundiram-se na pessoa
do Imperador, a um só tempo, o chefe político e o representante de
Deus. Não é de estranhar que, em tal ambiência.a pintura incumbida
de retratar figuras sacras fosse obrigada a obedecer normas rigorosas

43
PARA APRECIAR A ARTE

determinadas pelo próprio poder público. Moldou-se, por força de


tais cânones impostos, um estilo peculiar de longa tradição conserva-
dora, no qual não se buscava o traço individual ou realista, mas sim a
idealização, pouco importando a veracidade anatômica. O Cristo de
Dafne, mero símbolo material para evocar um valor espiritual, foi
desenhâdo do modo oficial e com a mesma regra utilizada para se
desenharem milhares de outros Cristos. Refiro-me à regra dos três
círculos concêntricos. O primeiro círculo, cujo raio mede o equiva-
lente ao comprimento do nariz, circunscreve, além deste, também a
testa e os olhos. O segundo círculo, tendo por raio cerca de dois nari-
zes, limita a linha do cabelo e marca o local correspondente ao quei-
xo. O terceiro, com medida de três narizes, forma a auréola ao redor
da cabeça. Todos os Cristos bizantinos; ao longo dos séculos, pare-
cem-se uns com os outros porque obedeceram a esta fórmula que
conduz a figura a uma resolução estereotipada, muito distante de qual-
quer exatidão objetiva, com a qual, aliás, ninguém estava preocupado
no mundo bizantino.
Bem diferente se mostra o Cristo da Transfiguração, de Rafael.
Derradeira obra de um artista situado na fase do apogeu da pintura
renascentista italiana, este Cristo exibe as características do ideal clás-
sico de glorificação do homem.
Ao Cristo de Rafael não incumbe apenas evoéar o mundo espi-
ritual , mas também enlevar-nos, seja pela beleza da figura humana,
seja pela harmonia
, com que ela se insere na composição geral da
obra. Diferentemente dos anônimos criadores bizantinos, Rafael va-
lorizou a correção anatômica, na medida em que ela lhe serviu ao
propósito de compor imagens plenas de vida e de movimento.
1'"o(seu túmo, o Cristo expressionista de Orozco, ainda que car-
Cristo Pantocrator regando o mesmo conteúdo convencional dos outros dois, é uma ex-
mosaico bizantino, fins do século XI plosão de revolta. Curiosamente, a estrutura de seu rosto lembra os
Igreja do Mostei ro de Dafne trabalhos bizantinos. Mas a postura, não. Armado de machado, em

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RAFAEL SANZIO

Transfiguraçiio, c. 1520
óleo sobre madeira
Pinacoteca do Vaticano
Transfiguração (deta lhe)
PARA APR ECIAR A ARTE

um ambiente de destruição da qual nem a cruz escapa, esse Cristo


angustiado, revolucionário, duro, pretende condenar a violência, a
guerra e a era da máquina. O Cristo do mexicano Orozco é um grito.
Um grito pungente.
Embora nas três obras de arte o tema seja o mesmo - a figura de
Cristo ., elas diferem muitíssimo entre si, pelo fato de refletirem
momentos históricos diferentes. O Cristianismo, originalmente pre-
gado na Galiléia, difundiu-se pelo mundo e introduziu-se no âmago
de variadas culturas, nelas influindo, mas também delas recebendo
influências. Interpretado por artistas de universos culturais diferen-
tes, o mesmo tema recebeu resoluções plásticas diversas, como no
exemplo ora visto: cada artista adaptou a figura do Cristo ao seu tem-
po e ao seu lugar, isto é, ao estilo de seu momento cultural.
A pluralidade de culturas explica a pluralidade de estilos artísti-
cos, já que cada obra de arte é sempre parte integrante do mundo cultu-
ral de um povo. A obra não é peça isolada. É fração de uma cadeia de
fatos à qual se integra. Ao observarmos a obra sob o ponto de vista
estilístico, colocamos mentalmente em relevo a ligação que existe en-
tre a obra e a corrente cu ltural dentro da qual foi engendrada.
No entanto, a noção de conteúdo estilístico não se esgota na
identificação da corrente artística à qual a obra pertence. Além desse
conteúdo estilístico coletivo, fruto da ambiência social, há que se con-
siderar o conteúdo estilístico individual, resultante da personalidade
do artista criador. A obra sempre é relacionada a uma cultura, mas
seu autor é um indivíduo. Se é bem verdade que os valores e padrões
do mundo cultura l do artista criador, armazenados em sua mente, in-
fluenciam a criação da obra, é inconteste que dessa mesma mente
promana.a marca de uma personalidade, a qual também se transmite
JOSÉ OROZCO
Migração Moderna do Espírito, 1932- 1934 à obra. Esse cunho pessoal é o estilo individual do artista e também
mural integra aqui lo que denominamos conteúdo estilístico.
Dartmouth ColIege, Hanover, New Hampshire

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ANTONIO F. COSTELLA

Imaginemos alguém que tenha visto várias vezes gravuras de


Marcelo Grassmann (São Simão, 1925). Imaginemos que essa pes-
soa entre na sala de visitas de uma casa onde jamais esteve. Se na
parede estiver dependurada uma gravura de Grassmann, nossa hipo-
tética pessoa, mesmo sem ser um especialista em arte brasileira, pro-
vavelmente identificará num simples relance a au(oria da obra, tão
inconfundível é a marca da personalidade daquele artista. Sua obra
reflete elementos da cultura, na qual se formou como artista, mas,
além de ser um gravador de nosso tempo, Marcelo Grassmann é Mar-
celo Grassmann.
O exemplo que figuramos foi tirado das artes plásticas, por ser
mais fácil de ser ilustrado em um livro. No entanto, o raciocínio aci-
ma desenvolvido é igualmente aplicável a qualquer outro tipo de
manifestação artística: música, teatro, literatura, dança, culinária, etc.
A presença do componente individual no conteúdo das obras
de arte, isto é, o estilo do artista, marcante em nosso tempo, não se fez
notar de modo intenso em outras épocas. No Egito antigo e em todas
as civilizações teocráticas, como o já mencionado Império Bizantino,
a marca da personalidade do artista não só foi indesejada, como até
mesmo proibida. Por isso, aliás, raramente chegaram até nós os no-
mes dos artistas dessas civilizações, confundidos que foram com meros
artesãos repetidores do cânone imposto. O Renascimento europeu,
retomando o individualismo da Grécia antiga, que valorizava o artis-
ta, começou a elevá-lo como individualidade merecedora de especial
respeito, tanto que seu status social melhorou muito. Essa tendência
persiste no mundo de hoje na maioria das regiões do globo terrestre,
embora tenha às vezes sofrido a neutralização imposta por Estados
ditatoriais. Exemplo recente, nesse sentido, pudemos ver na União
Soviética durante a vigência obrigatória do chamado realismo socia-
... ,..... .',
lista, estilo duramente realista imposto pelo Estado, para propagandear MARCELO GRASSMANN

Gravura da série íncubos e SLÍcu.bos

50
ANTONIO F. COSTELLA

as vitórias do proletariado, ainda que em detrimento da personalida-


de do artista.
Pois bem. É a personalidade do artista a grande mola propulso-
ra da história da arte. É a contribuição individual do artista, muitas
vezes antecipada ao gosto comum, que fornece novos veios para a
arte, arrancando-a dos riscos do imobilismo e enriquecendo-a com
imaginosos avanços. Em conseqüência, a liberdade de criação do ar-
tista revela-se direito fundamental do ser humano e deve ser preser-
vada a todo custo.
Resumindo o que analisamos neste capítulo, lembramos que,
para desfrutar da integralidade do conteúdo das obras artísticas, de-
vemos observar-lhes o conteúdo estilístico, tanto o coletivo, quanto o
individual.
7. O PONTO DE VISTA ATUALIZADO
Mas quem nos guiará nessa observação estilística?
A História da Arte. Ela nos fornecerá elementos para inserir a
obra dentro da corrente artística à qual pertença e nos propiciará in- A obra de arte não se limita apenas àquilo que ela mostra ou
formações biográficas para avaliar a contribuição devida à personali- simboliza, nem tampouco ao seu enquadramento estilístico. Muitas
dade de cada artista. vezes, a obra de arte se "completa" com aquilo que nela vemos.
A fruição artística pressupõe sempre, além da obra em si, a exis-
tência de um observador. O aparato mental desse observador deve ser
levado em conta.
Envelhecida pelos séculos ou levada de um lugar para outro, a
obra de arte deslocada no tempo e no espaço pode acabar sendo vista
de maneira diversa daquela como a viam os homens de seu tempo ou
lugar. Seus ~ontemporâneos ou seus conterrâneos a viam sob a mes-
ma óptica do seu criador. Passado o tempo ou mudado o lugar, um
novo espectador, pertencente a outro universo cultural, pode fazer
ajqj1Nrn~nto diferente da obra e, até mesmo, tirar dela um desfrute
antes insuspeitado.
Exemplos sempre ajudam a esclarecer. Vejamos.

52 53
ANTONIO F. COSTELLA

As pinturas executadas nas paredes das mastabas e de outros


tipos de túmulos do Egito antigo, assim como os demais objetos ne-
les encontrados, tinham originalmente função utilitária, serviriam ao
morto em sua vida futura. No entanto, hoje, essas criações são aprecia-
das em museus não mais como utensílios sacros ou apenas de interes-
se histórico, mas também por seu aspecto artístico. Os artistas do Egito
helenizado que costumavam pintar numa tábua o retrato do morto,
para aplicá-Ia sobre a cabeça da respectiva múmia, e deixaram para .
os milênios posteriores exemplares da hoje raríssima pintura à
encáustica, técnica de pintar com cera derretida, não pretendiam que
...
tais obras viessem a ser objeto de degustação estética por parte de
turistas do mundo inteiro. Esses retratos fúnebres foram concebidos
para permanecer na escuridão dos túmulos, bem longe de olhares pro-
fanos. Quando observamos tais produções egípcias, nós, homens de
hoje, as vemos com seu conteúdo mentalmente alterado ou, se prefe-
rirem, mentalmente atualizado, isto é, adaptado aos valores atuais.
Cada geração, cada ambiente, cada momento cultural, enfim,
acrescenta mentalmente à obra algo que não está na obra, mas sim
na cabeça dos observadores. Quando analisamos uma criação artísti-
ca sob o ponto de vista atualizado, trazemo-Ia à força, portanto, para
nossa óptica cultural.
Essa noção da ex istência de um conteúdo atualizado nos aux i-
lia a compreender o porquê de o valor atribuído a uma obra de arte
variar no tempo e no espaço. Para os beduínos do deserto, a grande
Esfinge de Gizé não valia nada, tanto que a usaram como alvo, para o
exercício de pontaria de seus artilheiros, e é por isso que hoje vemos
o milenar monumento com o nariz destruído. Mas as flutuações de
gosto não são privativas de nômades e primitivos. Na Europa a pintu-
ra de Guido Reni (Bolonha, 1575-1642), por exemplo, era tão esti- A Esfinge, terceiro milênio a.C.
mada por seus contemporâneos quanto a de Rafael e de Michelangelo. monumento em pedra
Gizé, Egito
Passadas algumas gerações, os trabalhos de Reni caíram em descré-

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ANTONIO F. COSTELLA

dito e muitos museus chegaram a esconder suas telas. Tal exagero


veio a ser reparado com a reabilitação do pintor. Pois bem. Sua pintu-
ra foi sempre a mesma. O que mudou ao longo dos séculos foi a
maneira como as pessoas a viam. A maneira de ver atual (atual em
cada momento) fez com que a cotação do artista flutuasse do céu ao
inferno e vice-versa.
Nos últimos duzentos anos e graças à liberdade de expressão
vigente, tem sido freqüente o artista antecipar-se ao gosto de seu tem-
po. O Impressionismo, quando surgiu, foi recebido com desagrado
pela maioria das pessoas do meio artístico parisiense e viu-se
vigorosamente rejeitado por críticos proeminentes de então. O pró-
prio nome Impressionismo, depois assumido pelos artistas do grupo,
surgiu de uma chacota feita por um crítico contra o quadro de Claude
Monet (Paris, 1840 - Giverny, 1926) intitulado Impressão: Nascer
do Sol. Hoje, no entanto, ninguém se interessa em saber quem foi
esse crítico e, contrariando sua impressão, os trabalhos deixados pe-
los impressionistas são fervorosamente apreciados. Em contraparti-
da, nomes de pintores tidos como exponenciais naquela época caíram
em total esquecimento, enquanto as obras de Monet e de outros
impressionistas são largamente reproduzidas em milhões de cópias.
Já vi até uma dançarina de cancã, de Toulouse Lautrec (Albi, 1864 -
Malromé, 1901), ilustrando um pano de cozinha!
Que significa isso? Significa que, estando tais obras mais aferidas
ao gosto estético de seus pósteros do que ao de seus contemporâneos,
passaram a valorizar-se com a atualização de seu conteúdo realizada
mentalmente por gerações posteriores.
Assim como o artista é fruto de seu ambiente cultural, assim
também o observador reflete, ao atualizar mentalmente a obra, os .... r"' .... '.
LEONARDO DA VINCI
padrões usuais de seu lugar e de seu tempo . Em conseqüência, a atua-
Gioconda, 1503- 1505
lização é generalizada e coerente, homogênea enfim, para a maioria pintura em madeira
das pessoas de um determinado lugar e de um determinado tempo. Museu do Louvre, Paris

56
ANTONIO F. COSTELA

Em outras palavras: em se tratando de observadores originados de


um mesmo ambiente cultural, a atualização tende a ser feita de modo
igual por todos.
Às vezes essa atualização chega a tamanha uniformidade e ge-
neralização que, levada ao paroxismo, mitifica certas obras. A
Gioconda, também chamada Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, não
parece ser melhor do que várias outras pinturas existentes no Museu
do Louvre. No entanto, sua fama é tamanha que, hoje, ela é cor-
riqueiramente aceita como a representação da genialidade em ma-
téria de pintura. (Justamente por revelar-se um mito universal, aliás,
acabou sendo usada na capa deste livro.) Mesmo nos dias de menor
visitação, quando podemos encontrar muitas salas do Louvre vazias,
há sempre uma multidão de turistas voejando defronte da Mona Lisa, 8. O PONTO DE VISTA INSTITUCIONAL
e todos se mostram dispostos a encantar-se com seu decantado sorri-
so indefinido. Embora Leonardo tenha sido mesmo um gênio, e o foi
bem mais em outros setores além da pintura, a devoção pública à Durante longo período de sua vida, Monteiro Lobato reuniu-
Gioconda é um exagero. Mas exageros desse tipo, embora tendo es- se, para bater papo nos finais de tarde, com um grupo de boêmios e
casso valor para quem estuda com equilíbrio a história da arte, reve- malandros em um bar do centro de São Paulo, mas, a fim de que não
lam a que ponto de generalização e uniformidade pode, às vezes, perdessem a naturalidade, justamente aquela naturalidade que o en-
chegar a atualização do conteúdo de uma obra. cantava como observador do comportamento humano, Lobato jamais
lhes contou que era escritor. Ele bem sabia o que estava fazendo. A
arte, muitas vezes, assusta e a presença do artistá, com freqüência,
intimida.
Há pessoas
, que entram em um museu com o mesmo ar de reve-
rência e contrição com o qual se ajoelham na igreja. Em qualquer
vernissage sempre existe alguém que, de tão intimidado, parece estar
pisando em ovos. Mesmo nos ambientes musicais, que já conquista-
(áJp'"'geríérosas doses de descontração, vêem-se, ao menos em teatros
mais solenes, algumas figuras acanhadas a ponto de pedir desculpas
quando esbarram em uma coluna. O cinema, 0_ rádio, a televisão e os
megaeventos trouxeram os atores ao convívio das multidões. Os fãs

58 59
, ,.' ~II'W"

ANTONIO F. COSTELLA PARA APRECIAR A ARTE

se sentem tão próximos de seus ídolos, que não hesitam <:m lhes en- No entanto, entre e e público crescente e o sítio de nascimento
viar cartas amigáveis. No entanto, mesmo com toda essa "intimida- das obras coloca-se quase sempre uma instituição, que pode ser o
de", os astros e as estrelas são sempre imaginados pelo público como museu, a universidade, o veículo de comunicação, etc. Essa institui-
criaturas situadas acima do nível dos mortais comuns. Em suma: o ção intennediadora, que amplia de modo benéfico e às vezes incrível
museu, a galeria, o texto escrito, todas as artes e os artistas infundem o elenco'de infonnações disponíveis, pode selecionar, escolher, rejei-
respeito. tar, louvar, criticar e até, por vezes, sonegar a obras de arte a serem
Esse respeito, um timor reverens, isto é, um temor reverencial, levadas ao público. Ela exerce uma forma de poder.
é fenômeno tipicamente cultural e, a esse título, peculiar a cada civi- Se um importante museu expõe a obra do artista X e não a do
lização. Se eu for aprisionado em meio à selva por uma tribo de an- artista Y, posso ser levado a crer que o artista X é mais importante do
tropófagos, não melhorarei meu destino culinário invocando minha que o artista Y. Se a mais categorizada editora do país edita o romance
condição de escritor. Entre antropófagos iletrados o escritor, prova- de determinado escritor, fico propenso a imaginar que ele não deve
velmente, não merecerá um lugar acima dos mortais comuns. ser tão medíocre como diziam. Se a programação do Teatro Munici-
Nem sempre os artistas tiveram status invejável. Na maioria pal inclui determinadas músicas, julgarei razoável supor que elas se-
das civilizações do passado (não em todas) foram igualados a qual- jam valiosas. Se o crítico de cinema do jornal condena certo filme,
quer outro trabalhador braçal. Já mencionamos que, por exceção, desde talvez nem me arrisque a assisti-lo. Essas instituições todas e outras
o Renascimento europeu para cá o artista começou a ganhar progres- equivalentes hierarquizam as obras de arte e lhes atribuem um valor
iva importância, na mesma proporção em que sua obra também pas- que denominaremos institucional.
sou a ser vista como um tipo especial de manufatura, desejável por A análise da obra de arte sob o ponto de vista institucional pode
suas virtudes estéticas, independentemente de qualquer destinação ser uma fonna de atualização da obra. Nesse sentido, trata-se da
utilitária. mesma postura vista no capítulo anterior.
O interesse por obras antigas, artísticas ou não, inclusive de No entanto, há nuanças a considerar e elas talvez justifiquem
caráter arqueológico, ganhou agigantado impulso nos últimos duzen- termos tratado deste assunto em capítulo independente.
tos anos. Enriqueceram-se assim os museus, principalmente da Euro- A visão in~titucional da obra é gerada de maneira formal, en-
pa. Paralelamente, a democratização dos costumes franqueou a maioria quanto a simples atualização se de envolve por estímulos sociais es-
dos acervos ao grande público, como já ressaltamos em capítulo an- pontâneos, nem sempre controláveis, geralmente livres e, com
terior. O passo seguinte foi a massificação desses elementos por meio freqüência, até contraditório. Entre uma e outra vai a mesma diferença
de novos veículos de comunicação. Desse modo, em grande número que scpã:l1t"o aprendizado infonnal do aprendizado escolar. Todas as
de países, contingentes crescentes de pessoas passaram a ter acesso a pes oas aprendem a falar graças ao convívio social. É somente depois,
bens culturais anteriom1ente privativos de uma elite. Tornando-se mais na escola, que vão descobrir oficialmente as regras da gramática.
acessível, a arte tende a ser menos "assustadora". Além disso, a visão institucional pode incidir sobre obra con-
temporãnea e conterrânea nossa, que, portanto, não demanda atuali-

60 61
ANTONIO F. COSTELLA

zação quanto a tempo ou lugar. Exemplo: um crítico de arte do jornal,


eventualmente, estará se referindo amanhã a uma sinfonia-terminada
nesta semana pelo compositor que é meu vizinho.
Nuanças à parte, muito freqüentemente a atualização e a
institucionalização da obra se aproximam, se interpenetram e, às ve-
zes, se fundem. É forçoso reconhecer que boa parte da atualização
mental de uma obra, a sociedade a realiza, inclusive, a partir de ele-
mentos institucionais.

9. O PONTO DE VISTA COMERCIAL

Como qualquer objeto material, a obra de arte tem um preço.


O valor comercial de uma obra resulta da soma de vários fato-
res, tais como a matéria-prima empregada, a mão-de-obra necessária,
as características finais do produto, a raridade da peça, eventualmen-
te a notoriedade do artista, etc.
Também no mundo da arte vigora a lei da oferta e da procura. E
sempre vigorou. Dois mil anos antes de Cristo, os ceramistas das ilhas
gregas produziam vasos criativamente decorados, dos quais encon-
tram-se vestígios em escavações arqueológicas muito distantes entre
si à volta de t~do o Mar Mediterrâneo. A presença de tais obras mos-
tra-se tão freqüente, que é lícito supor fossem muito procuradas e
disputadas pelos compradores, alcançando por conseqüência bons
pr~~ Qoanto o pintor grego ganhava, proporcionalmente ao preço
de venda dos vasos, não o sabemos, mesmo porque a forma de pagar
o trabalho dos artistas variou ao longo dos séculos, desde a escravi-
dão pura e simples até as cotações mirabolantes ãlcançadas por Pablo

62
63
PARA APRECIAR A ARTE

Picasso (Málaga, 1881 - Mougins, 1973) e, postumamente, por Van


Gogh (Oroot Zundert, 1853 - Auvers-sur-Oise, 1890). O certo, en-
tretanto, é que, desde a mais remota antigüidade até os dia de hoje,
sempre foi atribuído um valor comercial à obra de arte.
Como resultado da tendência instaurada durante o Renascimen-
to, intensificada ao tempo da Revolução Industrial e alargada pelo
avanço· das comunicações, nunca se valorizou tanto como agora a
obra de arte. Seu sentido comercial é crescente. E cresce em igual
escala a complexidade de sua distribuição ao mercado consumidor,
exigindo o concurso de competentes especialistas. A figura tradicio-
nal do marchand em sua galeria, antigamente símbolo típico do co-
mércio de arte, coexiste agora com outros personagens, criados pela
presença da gigantesca indústria cultural do nosso tempo.
O processo teve início no século quinze, com o surgimento da
tipografia. A invenção de Gutenberg (Mainz, 1398?- 1468) não só
permitiu a produção de livros por meios mecânicos, como também
revelou-se a primeira máquina de produção em série posta a funcio-
nar pelo ser humano. As tiragens cada vez maiores, barateando o li-
vro, levaram-no às mãos de pessoas que, antes, nem poderiam sonhar
em possuir um, tão alto costumara ser o preço dos livros manuscritos.
Inovações técnicas posteriores e condições favoráveis de mercado
acabaram por culminar na massificação da literatura. Por outro lado,
de um século para cá a reprodução fonográfica introduziu a música
no fabuloso comércio de massa, primeiro com discos, depois com
fitas, agora som CDs e no futuro ... sabe-se lá com o quê? De sua
parte, o cinema já nasceu com estrutura industrial , tanto que, no ini-
cio, muitos críticos relutaram em aceitá-lo como atividade artística.
Depois, a música e o filme amplificaram o próprio alcance por serem
rept;0 uzraos pelas ondas do rádio e da televisão. Mais recentemente,
Cerâmica da ilha de Thcra, c. 1500 a.C. do universo incrível dos meios eletrônicos de comunicação, incluído
Museu Nac ional de Atenas aí o computador com sua revo lução informática.) passaram a emergir

65
II
ANTONIO F. CO ST ELLA PARA APRECIAR A ARTE

novas formas de arte que, inclusive, se globalizam agora pela Internet. que aqui, mas sim por receberem verbas governamentais mais gordas
Pois bem. Por detrás de todo esse cenário fascinante, que não se can- ou injeções de dólares das empresas privadas.
sa de nos surpreender, circula, como a seiva que percorre silenciosa- A prudência aconselha encerrar este capítulo por aqui, uma
mente o caule da planta, um velho conhecido do homem: o dinheiro. vez que o assunto, se aprofundado, gerará sozinho vários livros
Conseqüência óbvia: todas essas novidades artísticas já surgem com bem maiores do que este, mesmo porque o tema alimenta a foguei-
preço. ra de uma polêmica entre os que condenam e os que apóiam a
Esse preço geralmente tem muito a ver com o enfoque institu- massificação cultural; entre os que exorcizam e os que aplaudem o
cional da arte. dinheiro no mundo da arte; etc.
Às vezes, o valor comercial da obra artística decorre, em parte, O problema com relação a tais polêmicas é que os contendores
do apreço institucional por ela recebido. É por isso que editoras de assumem postura maniqueísta, sempre radical, quando, bem pelo con-
livros, gravadoras musicais, distribuidoras de filmes , donos de galeri- trário, deveriam abster-se de tais extremismos. Se é verdade que a
as de arte, todos, cada qual a seu modo, anseiam por obter para seus arte não deve ser considerada apenas do ponto de vista comercial, é
produtos elogios dos críticos de jornais e revistas ou gestos benevo- igualmente verdadeiro que tal valor não pode ser desprezado como se
lentes por parte de outros formadores de opinião. Nestes casos, aplau- não tivesse nenhuma importância.
sos elevam o preço da obra. Há pessoas que só consideram boas as obras de arte de grande
Em contrapartida, há manifestações artísticas de forte presença valor comercial e tomam as cotações de leilões e galerias como pala-
institucional, mas com valor comercial modesto ou até mesmo inex- vra de fé. Lembro-me, bem a propósito do tema, de uma cena a que
pressivo. Por exemplo: o teatro, embora reconhecido institucional- assisti na casa de um colecionador amigo meu. Recebeu ele o telefo-
mente como uma das manifestações mais fecundas do gênio humano, nema de um seu colega de outra cidade e, segundo percebi, tratava-se
: necessita com freqüência de subsídios governamentais ou particula- de continuação de uma conversa anterior, na qual estavam combinan-
i res para poder sobreviver. Ninguém nega seu status cultural, seu va- do a permuta de algumas obras. Ao final da ligação interurbana, o
,
lor institucional. No plano comercial, no entanto, sua modéstia é tanta negócio ficou acertado: meu amigo daria dois quadros de autor bem
I1 que os atores, quando querem ganhar melhor, têm de aceitar contra- valorizado e receberia em troca cinco quadros de pintores menos con-
J
tos para trabalhar no cinema ou na televisão. Outro exemplo: um bom siderados. O curioso da história é que nenhum dos dois colecionado-
violoncelista, que por sua fonnação metódica e paciente está apto a res vira as o6ras que haveria de receber. Estavam, portanto, negociando

III! executar as peças mais difíceis do repertório da música erudita, tal-


vez não consiga um emprego que lhe garanta salário digno.
apenas com base no nome, isto é, no valor comercial dos pintores em
questão, sem qualquer preocupação com a qualidade estética das pe-
Dir-se-á que esse panorama é só de nosso País. Não é não. Tam- ç~: ..única condição imposta foi a de se encontrarem as telas em
II bém em países ditos "mais civilizados", algumas manifestações artís- bom estado de conservação.
ticas, com grande importância sob o ponto de vista institucional, Por outro lado, há pessoas, e não são poucas, que consideram
resistem à extinção não porque tenham mais aceitação comercial do um "defeito" a boa vendagem do artista, rejeitando a obra que se

66 67

IL
ANTONIO F. COSTELLA

populariza. Logo acodem a dizer que o artista "comercializou-se" e,


com ranço pseudo-aristocrático, torcem o nariz. Até parece que su-
põem ser indispensável, para merecer glória, que o artista nunca con-
siga vender nada, passe fome irremediavelmente e seja totalmente
desconhecido das multidões.
Ambas as posturas são equivocadas. Atribuem valor absoluto a
algo relativo. O enfoque comercial é apenas um dentre os vários
enfoques sob os quais a obra pode ser observada. Um só. Nem mais
importante, nem menos importante que os outros.

10. O PONTO DE VISTA NEOFACTUAL*

Nada é infenso ao passar do tempo. O correr dos anos, dos sé-


culos, dos milênios desgasta, recobre, corrói, sedimenta, transforma
todas as coisas e, dentre elas, também as obras de arte.
Quando alguém observa uma tela antiga em um museu, na ver-
dade está vendo a obra mais o escurecimento provocado pelo verniz
envelhecido. Os vernizes aplicados como proteção têm o inconve-
niente de escurecer com o decorrer de longos períõdos. Muitos qua-
dros que nos mostram hoje cenas mal iluminadas, bruxuleantes,
ostentaram, quando
, novos, cores vivas e luminosas.
Por outro lado, quando se promove a restauração da obra, ten-
tando fazê-Ia voltar a sua feição original, pode ocorrer o problema
inverso. Em décadas remotas, houve restauradores que se notabiliza-
ram-põr ·" Iavar" de modo tão radical os quadros que, junto com os

* Em edição anterior utilizou-se o termo acrescido, on.~ e agora se emprega neo-


facrual.

68 69
ANTONIO F. COSTELLA

vernizes, removeram também as veladuras. Para harmonizar as cores,


muitos artistas lançaram mão do recurso da veladura, isto. é, aplica-
ram na fase final do trabalho uma demão de tinta transparente, mas
colorida, lançando assim uma tênue película uniformemente colorida
por sobre todas as cores utilizadas na obra. Essa cor comum, aplicada
assim em veladura (de "velar", cobrir), tem a função de harmonizar o
conjunto, pois as tintas todas, ao transparecerem, mostram-se igual-
mente tingidas pela cor da veladura. Pois bem, os restauradores men-
cionados, ao removerem os vernizes envelhecidos, arrancavam junto
a veladura, adulterando a obra original e expondo cruamente à vista
cores que o autor antes amenizara. É como se mostrassem o quadro
em uma fase anterior ao seu término pelo artista.
Apesar de os restauradores utilizarem hoje métodos sofistica-
díssimos, seu trabalho sempre implica no risco de alterar, por acrés-
cimo ou por remoção, o original. Mesmo com inconvenientes,
entretanto, as técnicas de restauração são indispensáveis para a per-
petuação das obras. Tome-se, por exemplo, o famosíssimo mural A
ÚLtima Ceia, ou Il CenacoLo , de Leonardo da Vinci, reproduzida de
mil modos e maneiras com uma infinidade de materiais e, assim,
encontrada em milhões de lares. A Última Ceia, como Leonardo a
concebeu e realizou, praticamente não mais existe. Pintada entre
1495 e 1498 na parede do refeitório do convento dominicano de
Santa Maria das Graças, em Milão, deteriorou-se rapidamente. Já
quase apagada em 1540, vinte anos depois só lhe restava o desenho.
Passados mai s cem anos, por abrirem uma porta na parede, foi mu-
tilada a figura de Cristo. No século dezoito a obra mereceu duas
restaurações, aliás sofríveis, as quais não lograram impedir que o
antigo refeitório fosse transformado em estrebaria. Somente no iní-
cio do séc ulo dezenove o recinto teve sua dignidade restaurada e a
LEONARDO DA VIN CI
obra-prima conseguiu melhor tratamento. Fica claro: quando alguém
A Última Ceia, afresco, 1495- 1498
Convento de Santa Maria das Graças, Milão

70
ANTONIO F. COSTELLA

aprecia hoje, in loco, a A Última Ceia, salvo o desenho, nada mais


encontra ali de autoria de Leonardo.
Essa mudança material sofrida pelo objeto artístico denomina-
mos, na edição anterior deste livro, conteúdo acrescido. Preferimos,
aqui e doravante, denominá-lo conteúdo neofactual. Qualquer que seja
o nome usado, o que se quer ressaltar sob este ponto de vista é que a
obra passa a exibir algo originalmente não previsto pelo artista.
O elemento neofactual pode impregnar de tal modo a obra que
o observador relutará, às vezes, em acreditar tenha ela sido no passa-
do diferente do que é agora. Por exemplo. Proponho ao leitor o se-
guinte: "- Imagine um templo grego". Seguramente se formará na
mente de todos os leitores a imagem de uma construção guarnecida
por altas colunas e encimada por um frontão de tímpano triangular.
Esse edifício será imaginado em cor de pedra clara, provavelmente
de mármore branco. Essa é a idéia que fazemos a propósito de tem-
plos gregos, porque os que nos restaram, ainda que em ruínas, são
assim. Por isso, os leitores pensarão de acordo com esse estereótipo,
até mesmo aqueles que sabem que os gregos pintavam suas constru-
ções e pintavam-nas com cores vivas e estridentes: vermelhos, azuis,
dourados ... Fica difícil admitir que o Partenon, no século quarto antes
de Cristo, quase não exibisse a cor de suas pedras, tão coberto de tinta
se encontrava.
Que esse exemplo não nos confunda! Não se trata aqui de atua-
lização de conteúdo.
Embora o estereótipo lembrado esteja na cabeça de todas as
pessoas, ele se formou por força de um fato concreto, objetivo, mate-
rial: os templos gregos que conhecemos mostram-se há séculos sem
pintura. Trata-se, portanto, de caso típico de alteração real da obra.
Há aqui um inequívoco elemento neofactual. Diferentemente, no caso
Partelloll , templ o grego, obra de lctinos e Ca lícrates
do enfoque atualizado, a elaboração é toda mental: a obra, mesmo
sob direção de Fídias, 448-432 a. c.
sem sofrer alterações físicas, é vista de modo diferente pelo observa-
Acrópole de Atenas, Grécia -

72
ANTONIO P. C OSTELL.A PAKA A I' IUlClAK A ARTE

dor. No âmbito da atualização surge um" nova manei ra de ~er a obra, O contcüdo ncofactual nem sempre é um prejuízo. Ele osrcnl a
enq uanto no do conteúdo neo fact ual a própria obra sofre lnms forma - duas faces: é vida c é morte, ao mesmo tempo. Q uando lima obra de
ções físicas. Ins ist indo: no exempl o do templo grego eu o im agino arte s impl esment e se deteriora, há uma perda, há morte. Mas, ,\5 ve-
branco porque é mesmo assim que os templos gregos materialmente zes, um a morte parcial pode ser o preço pago por uma nova form a de
se enconlram. vida. ,?m certos casos, pode mesmo ser um preço baixo se compamdo
Os his toriadores da arte, os estetas, os literalos, os artistas em âs inúm eras vantagens resultantes. Veja -se o exemplo aci ma lembra-
gera l não tem dado suficient e atenção à ex traordinária presença do do: uma imensidão de pessoas paSSéI a ter a possibilidade de assistir,
elemento neofactual. Enquanto isso, novas maneiras de provocar o em casa, a um espetáculo de ba lé, ainda que a tela de vídeo lhes dê
s urgimento de con teúdos neofactu ais vão, sorrateira ou abertamente, uma imagem menos defin ida do que a usufruída pelo público prese n-
se impondo, em parte alicerçadas em recursos técnicos modernos. Já tc ao teatro.
existe uma maneira de tornar co loridos filmes originalmente rodados Esse caráter contraditório - a um só tempo , vida e morte - do
em preto-e-branco. Milhões de cópias impressas reproduzindo qua- conteúdo neofactual manifesta-se de modo patente no tra ba lh o do
dros ou o utras obms de arte sofrem desvio de coloração, seja por tradutor de obras literárias. O tradutor,.1O exercer seu o fício, não raro
falha grosseira de registro, seja por sutis va ri ações químicas dos pig- recria a obra no novo idioma, adaptando-a ao vestuári o v'ocabu lar, à
mentos. A imagem de televisão co mum , isto é, da televis.10 de algu- s intaxe e ao espírit o da líng ua adotiva. O dilema do tradutor é angus-
mas ce nt enas de linhas, está muito longe dc qualquer fidelidade tiante: se mantiver a Iitcra lidade, podeni deformar a id6ia do autor; se
razoável. Embora O setor de gravação musica l tenha evo luído muito, se afastar da tradução litera l, podeni deixar fugir algum ritmo deseja-
s ubsistem ainda anoma lias acústicas nas reproduções. Até mesmo os do pelo aut or. A tradução, a um só tempo, faz nascer e faz morrer
textos escritos não licam a sa lvo. Tanto é verdade esta últ ima alirma- alguma coisn.
I1
ção que, dentre as várias ed ições de urna obra literária, oficiali za-se Caso curiosissimo de elemento neofactual encontra-se no qua-
uma delas como edição-padrão para O futuro. dro Mor,/"ke Terrace, de William Thmer (Londrçs, 1775- 185 1). Ar-
Alguém diní que acaba mos de fazer a condenação dos meios de tista interessado nos cfeitos luminosos, Thrner realizou aqui a proeza
comuni cação modernos, po is todos os exempl os anteriore..'\ colocaram de pintar uma pa isagcm totalm ente a contra luz. O sol, pressentido de
esses engen hos no banco dos TI!US, como responsáveis por reprodução frente, refl6te-se no ri o Tâmisa e "come" o pa ra peito de pedra. Sobre
infiel das obnls. Não é verdadeira, nem justa, a conc lusão. Os meios de esse parapeito, el11 si lhucta, ca minha um cão. Pois bem. Esse cachor-
com uni cação pernlitiram um fluxo de informação volumoso e rápido, ro não existia origi nalmente no quadro. No dia do vemissage, CIl-

com enomlCS benefícios para o ser humano. Prefiro que os Girassóis ~oJ"m er se ause ntara para almoçar, um pintor ri val, talvcz para
de Van Gogh alegrem milhões de residências, ainda que suas reprodu- dê'illinciar a falIa de um ponto foeul ma is forte na obra, recortou um
ções coloridas não sejam cópias rigorosamente perfeitas do original. cão e m papel e co lou-o sob re a te la . Voltando, Turner não se
Aplaudo entus iasticamente o balé, mcsmo que na transmissão por tele- abespinh oll COI11 o acréscimo. Reconheceu que ele era necessário.
visão a qualidade de imagem c S0111 deixe a desejar.

14
PARA APRECIAR AARTE

Apenas removeu o cão alguns milímetros para o lado, tingiu-o de


preto e lá o deixou definitivamente.
Convenhamos, esse elemento neofactual foi tão inusitado quanto
oportuno.

WILLlAM TURNER

Mortlake Terrace, 1826-1827


óleo sobre tela
Galeria Nacional de Arte, Washington

77
11. O PONTO DE VISTA ESTÉTICO

Assim como o alimento é o objeto próprio para nutrir o ser


humano; a roupa, para protegê-lo do frio; a casa, para defendê-lo das
agressões do clima e dos bandidos; assim também a obra de arte é o
objeto apropriado para transmitir-lhe o prazer estético.
Que vem a ser esse prazer estético?
Mais fácil de sentir do que explicar, o prazer estético é alarga-
mento da mente e conforto para o espírito. O prazer estético é uma
forma de bem-aventurança. Pode parecer estranha essa tentativa de
explicação, mas há lugares, principalmente no Oriente, nos quais a
fruição da' arte é comparada à postura mística de busca do Absoluto e
tem, por meta final, levar quase a um estado de êxtase. Lá ou aqui, a
verdadeira obra de arte faz com que o observador tenha a sensação de
erescer
....
~", ~"
por dentro e de partilhar uma outra dimensão da realidade.
Recordando o passado de suas vidas, os leitores talvez se lem-
brem de situações nas quais sentiram um bem-estar profundo, mar-
cante, intenso, depois de visitar uma exposição de artes plásticas ou

79
ANTONIO F. COSTELLA PARA APRECIAR A ARTE

ler um livro, ou ainda ouvindo uma música ou assistindo a um filme fôlego, todo um punhado de pó de café caído no chão, assim também
ou peça de teatro. Usufruíram , então, o prazer estético, algo. muitas o observador "suga" o conteúdo da obra de arte. Nessa postura inicial
vezes parecido com uma estimulante alegria de viver. não sobressaem isoladamente, ao menos em nível consciente, os ou-
Com esse último comentário, não estou aludindo à capacidade, tros tipos de cnfoques já ana lisados. No entanto, passada a primeira
que tem a obra, de despertar sentimentos. Desse tema nos ocupamos fase de apreensão estética, que pode ser longa, a interveniência dos
no capítulo relativo ao ponto de vista expressional. É mais que isso. A outro~ aspectos enriquece a apreciação e pode desencadear novos
obra de arte toca também em algum ponto de nosso espírito que está momentos de sucção estética, ainda mais ricos. Usualmente, a obra
além e acima dos sentimentos comuns de alegria, tristeza, ódio, amor, de arte de grande valor, a chamada obra-prima, eterniza esse ato de
ira, etc. Tanto isso é verdade, que a mesma pessoa que chora durante apreciação, consegue sustentar longamente o interesse, que vai osci-
a projeção de um filme triste, poderá sair do cinema com a paradoxal lando do nível de sucção estética para o de apreensão e reflexão sobre
sensação de ter sido reconfortada, aliviada, feliz, caso o filme seja de os demais enfoques, alternadamente, num ir e vir constante e intermi-
forte conteúdo artístico. Essa aptidão demonstrada pela obra de arte, nável.
no sentido de enlevar, extasiar, enobrecer o espírito é o fruto de seu Os objetos comuns, isto é, os não-especiaLmente-estéticos, se
valor estético. for lícito denominá-los assim, prendem a atenção do observador só
Como se apreende o conteúdo estético? até o momento em que ele consegue completar a compreensão racio-
A apreensão do conteúdo estético é uma forma de conhecimen- nal do objeto. Depois de identificá-lo, entender como funciona e para
to que se faz através dos sentidos, mas opera antes de atingir o nível que serve, a pessoa não tem mais motivação para observá-lo. Figure-
da razão. No dizer muito apropriado de Harold Osborne, "a experiên- mos, por exemplo, a chegada de uma nova geladeira em nossa casa.
cia estética é um modo de cognição através da apreensão direta ( ... ) é Não nego a existência e a importância do chamado desenho industri-
uma ampliação e uma intensificação da percepção sensorial" (A apre- al, no entanto, parece-me evidente que a geladeira sustentará menos a
ciação da arte, São Paulo, Cultrix, 1978, p. 206). minha atenção do que uma boa música de Milton Nascimento ou uma
É num relance que o observador absorve boa parte do conteúdo peça de Shakespeare. A obra de arte, diferentem«nte dos objetos co-
estético da obra, um relance "gestáltico"*, um relance no qual perce- muns, convida a rever, a ouvir de novo, a observar sem interrupção.
be o conjunto da obra e, simultaneamente, apreende também os por- Quando o observador se vê privado da observação direta da obra,
menores. A apreensão do conteúdo estético opera como se fosse uma espontaneamente recorre à memória e, por meio dela, recria mental-
sucção mental. Assim como o aspirador doméstico aspira, de um só mente a obra e continua a usufruí-Ia. Quantas vezes os personagens
de um romance marcante, os versos de um magnífico poema, as ce-
lJ.assle um filme ou uma melodia nos acompanham pelas ruas e pelos
dia~, num remoer, num reviver sem fim de prazer estético?
* Gestáltica, do alemão Gesta/t , teoria psicológica surgida na Alemanha seg undo a
qual um fen ômeno não pode ser analisado pela di ssecação de seus elementos, Como aguçar a capacidade de apreensão do conteúdo estético?
mas sim por uma visão do conjunto, no qual todos os elementos são solidários. Pela contemplação reiterada, principalmente.

80 81
ANTONIO F. COSTELLA

É O contato freqüente com os objetos de arte que adestra o ob-


servador. Quando ouvimos pela primeira vez uma música, degusta-
mos em parte seu conteúdo estético. Ouvindo-a outras vezes, se ela
for boa, nos familiarizaremos com ela e apreenderemos aspectos que
nos escapavam antes. Alarga-se, assim, nosso aproveitamento do con-
teúdo estético. Mas o aguçamento da capacidade de apreciação pela
observação reiterada não opera apenas com cada obra de per si. A
reiteração com diferentes obras permitirá melhor fruir a todas elas, e
a outras mais. Mudando as palavras: é ouvindo música que afinare-
mos nosso ouvido; é visitando exposições ou manuseando reprodu-
ções de obras de artes plásticas que educaremos nosso olhar, e assim
por diante. A reiteração é válida para qualquer tipo de manifestação
artística. O exercício e o adestramento na apreensão dos outros con-
teúdos, analisados sob os vários pontos de vista deste livro, também
contribuem para a apreensão estética, indiretamente, em miríades de
formas sutis e, diretamente, aumentando o interesse do observador
pela obra.
Chegado a este ponto, talvez o leitor tenha uma pergunta em
mente: o que é afinal esse conteúdo estético?
Já há décadas alguns estetas desistiram de tentar explicar o que
é arte, tão fugidia ela se mostra a uma definição racional.
O italiano Dino Formaggio começa seu livro intitulado Arte
com uma definição no mínimo provocativa: "A arte é tudo aquilo que
os homens denominam arte" (Arte, 2. ed., Milão, Isedi, 1977).
Se a dificuldade chega a tal ponto, não seremos nós, neste pe-
queno livro, que nos proporemos a deslindá-la. No entanto, é direito
do leitor esperar alguma palavra, ainda que vacilante e inconclusiva,
sobre o assunto. '..... , Faca de Gébel el-Arak,
Vamos lá. instrumento de marfim
com cabo decorado, c. 3400 a.C., Egito
Museu do Louvre, Par~s

82
ANTONIO F. COSTELLA

Embora eu acredite que arte e beleza estejam muito longe de


ser a mesma coisa, inclusive porque o conceito de beleza é tão vago e
relativo, quanto o de arte, não posso me recusar à constatação de que,
hoje e sempre, as duas palavras andam e andaram bem próximas uma
da outra.
Nesse sentido, podemos dizer que, desde a pré-história, o ho-
mem sempre gastou tempo para embelezar seus artefatos utilitários.
Ora entalhou figuras no cabo de uma faca, ora pintou peixes ou flores
em vasos de cerâmica, ora inventou cânticos para rituais religiosos.
Esse trabalho "inútil" permitiu a agregação de um conteúdo estético
ao objeto utilitário. O entalhe do cabo não faz a faca cortar, nem me-
lhor, nem pior. Nesse sentido dizemos ser ele "inútil", isto é, não tem
utilidade. Não tem utilidade, mas encanta o ser humano.
Houve momentos históricos nos quais o homem conseguiu
desvincular o trabalho de criação estética do trabalho de criação do
objeto utilitário. Por assim dizer, o homem entalhou um pedaço de
madeira ou de osso, sem fazer dele um cabo ou sem sequer fazer a
faca. Libertou a criação estética da obrigação de servir à criação uti-
litária. A criação estética passou a valer por si mesma . Nesses mo-
mentos emergiu, radiante, em toda a sua pujança e independência, a
obra de arte pura e simples, isto é, o objeto que não tem outra função,
senão a de permitir e suportar a fruição estética.
Vivemos hoje um desses momentos históricos. E ele se mostra
rico e fecundo como jamais houve outro igual.
Aproveitemo-lo!

--

84
Em Para apreciar a arte - Roteiro didá-

tico, porém, consegue reunir as experiências

de suas duas vidas em um mesmo livro.

Soma a precisão do professor universitário

com a graça literária de um escritor envol- A BOA APREENSÃO DE uma obra de arte solici-

vente. Esta obra, ademais, é reflexo de ainda ta que o seu destinatário tenha a vontade de desco-
outra faceta da vida, ou das vidas, de Anto- brir os significados virtuais que caracteri zo in a
nio F. Costella. Ele é também artista plástico comunicação artística. Como então chegar a esses
e dirigiu, durante dez anos, o museu Casa da conteúdo::., sem tcpninologias herrné~icas que mais
Xilogravura, de Campos do Jordão. PCir isso afastam do que aproximam UPll"cept r preocupft-
consegue identificar facilmente as dúvidas
do com a fruição estética da orra de atté?
que as pessoas costumam ter em relação à
Esse é o percurso de Para apreciar a arte -
arte e sabe como ensinar alguém a apreciar
Roteiro didático, de J\r.t'Jnio F. Costella, da Edit0-
as obras, organizando e melhorando sua per-
ra SENAC São Paulo, em co-edição com a Editora
cepção artística.
Mantiqueira, publicação destinada a iniciantes de
Os dados biográficos do autor ajudam a
comunicação e artes, uma das áreas da ação educa-
entender o porquê de este Para apreciar a
cional do SEl\d,C-S P.
arte ser capaz de explicar justamente aqui-

lo que "os li vros de estética e história da

arte geralmente esquecem de dizer".

ISBN 85-7359-029-7

1",

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