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O sentido institucional de acolher: por uma Gestão do

Cuidado com as crianças violentadas


Ana Maria Borges de Sousa 1

Quando a mão, arrogante, insiste em possuir o outro, deixa de ser


seda para tornar-se garra, fracassando o encontro e abrindo-se
passagem à incorporação. A singularidade é devorada. A
possibilidade de diálogo desaparece. A ternura é substituída pela
violência.
(Restrepo, 1998: 52)

Estamos imersos numa temporalidade em que os abandonos parecem se sobrepor às


acolhidas e as crianças participam dessa experiência de modo mais dramático à medida que
não a compreende e que a vive sem o seu consentimento. Há uma pluralidade de práticas
que evidenciam como os adultos desistem das crianças, também hoje, e as abandonam a
um devir que não lhes cabe ou que lhes chega quando a infância já foi suplantada. Mesmo
assim, a elas atribuem a responsabilidade recusada para que respondam, jurídica e
normativamente, por seu estatuto social. Nessas desistências há uma modalidade de
abandono que se materializa através da possessão da criança pelo adulto, a qual devora a
sua singularidade e destrói as possibilidades de diálogo. Para ela resta, conforme a
inspiração da epígrafe acima, a substituição da ternura pelas violências.
Essa é uma reflexão que tem por desejo dialogar com os interessados sobre a gestão
do cuidado nas instituições que recebem as crianças que sofrem violências. Para tanto, quer
problematizar sobre como o abandono, em sua pluralidade, se constitui numa dimensão
que atravessa a vida de milhares de crianças deixando marcas, algumas indeléveis, em sua
corporeidade e como esta prática se faz violência, também nos estilos de atendimentos que
se efetivam nas instituições. Para tanto, convida alguns traços do presente para que
ilustrem algumas dessas práticas, com a intenção de compor os fios da reflexão com
argumentos que não percam de vista certas nuances da história, as quais evidenciam os
lugares sociais onde o cuidado e o abandono estiveram como protagonistas na relação com
as crianças.
Das belas imagens que retratam as crianças brancas acolhidas por suas amas-de-
leite negras, guardamos pelo menos duas impressões. A primeira desvela o trato que a
elite, nada sensível para as questões humanas, destinava à sua prole, enquanto a segunda,
pode nos persuadir a acreditar que as crianças estavam felizes porque, além de bem

1
Drª em Educação pela UFRGS. Professora do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de
Santa Catarina e Coordenadora do Núcleo Vida e Cuidado – Estudos e Pesquisas Sobre as Violências.
2

vestidas, eram estimuladas a sorrir para o fotógrafo 2. Nenhum cuidado era destinado ao
vínculo afetivo que se estabelecia entre a ama-de-leite escrava e o bebê a quem era
obrigada a amamentar, e quando este podia dispensar o aleitamento, era então retirado de
sua ama, de forma abrupta e sem compreender porque desaparecera de seu com-tato aquele
corpo que a nutria de alimento e afago. Há registros históricos que confirmam como essa
ruptura provocava nas crianças, além de choros convulsivos e duradouros, um mergulhar
num estado de apatia, incompreensível aos seus familiares e tratado como patologia que
poderia ser curada com remédios de “pharmácia”.A literatura também não está alheia a
essa questão e traz do século passado o conto de fadas que foi escrito pelos Irmãos Grimm
e que apresenta como narrativa o abandono de João e Maria numa floresta, em razão da
pobreza de seus pais. É antiga a “roda dos expostos” como objeto de desova de crianças
enjeitadas, seja pela falta de condições de algumas famílias para criá-las, seja para
conservar a moral beatífica das jovens ricas que engravidavam antes do casamento.
Ou seja, existe uma rica produção de pesquisas e estudos 3 sobre as histórias dos
abandonos de crianças, o que nos remete a pensar os modos como a sociedade conviveu e
convive ainda hoje com elas. Consideradas para muitos, como empecilhos ao viver dos
adultos, a prática de assepsia para com a infância é quase banalizada. Limpar o social
dessas figuras sem lugares, livrar-se delas foi por muitos anos a palavra de ordem, afinal
elas crescem, se movimentam, falam, reclamam necessidades, querem ser protegidas,
revelam seus desejos e repulsas, encantam e apavoram, e todo o tempo elas carecem de
cuidados. De modo emblemático, as crianças parecem provocar nos adultos um
apagamento de suas memórias de infância. É como se nada restasse dessa experiência, a
qual nenhum de nós pôde escolher não vivê-la. Imersos em distintos interesses e movidos
por dinâmicas culturais adultocêntricas, muitos de nós não conseguiu cultivar a
conservação da infância na vida adulta.

2
Cf. Revista de História da Biblioteca Nacional. “Dossiê Crianças do Brasil”. Ano 1, nº 4, out./2005 (19-
40).
3
Ver, por exemplo: BAZÍLIO, Luiz Cavalieri. “Infância ‘rude’ no Brasil: alguns elementos da história e da
política”. In: GONDRA, Jose Gonçalves (Org.). História, infância e escolarização. Rio de Janeiro: 7Letras,
2003. [Pgs. 45 a 59]; HEYWOOD, Colin. Uma história da infância. Porto Alegre: Artmed, 2004;
GONDRA, José Gonçalves. “Filhos da sombra: os ‘engeitados’ como problema da ‘Hygiene’ no Brasil”. In:
FARIA FILHO, Luciano Mendes (Org.). A infância e sua educação – materiais, práticas e representações
(Portugal Brasil). Belo Horizonte: Autêntica, 2004. [Pgs. 125 a 142]. e “Higienização da infância no
Brasil”. In: GONDRA, José Gonçalves (Org.). História, infância e escolarização. Rio de Janeiro: 7Letras,
2003. [Pgs. 107 a 130]; MARCÍLIO, M. Luiza. “A roda dos expostos e a criança abandonada na História do
Brasil. 1726-1950”. In: FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). História social da infância no Brasil. 2. ed.,
São Paulo: Cortez, 1997. [Pgs. 51 a 76].
3

Ao que parece, os abandonos não constituíam uma oposição aos padrões de


agregação familiar da época, não eram orientados por uma ética do cuidado que tivesse
como princípio reconhecer, de modo sensível, as necessidades das crianças, enquanto
legítimos ser-no-mundo (Mafessoli, 1996). A lógica que justificava abandoná-las, em
qualquer que fossem as circunstâncias, era aquela do dever-ser (Mafessoli, 1996), a mesma
que orienta a maioria das práticas contemporâneas, sem brechas para integrar às decisões
as singularidades reclamadas. Livrar-se das crianças se constituía num episódio cultural
significativo para os adultos, senhores das deliberações prescritas que traziam consigo,
cuja riqueza está nas matrizes de referências sobre a relação adulto-criança. Com
indiferença ou tragados pelas culpas, de maneiras sutis ou naturalizadamente explícitas, os
adultos não podem eximir-se da história de abandonos que construíram para milhares de
crianças em todos os recônditos do planeta. Ambiguamente, as marcas deixadas por suas
decisões forjaram, de um lado, padrões de condutas adultocêntricas, de outro, resistências e
lutas para que essas crianças pudessem participar, dos modos possíveis para cada uma
delas, da construção de outros enredos para suas vidas.

Uma herança retornada

É interessante observar como retornamos, no presente e com distintas variações


cotidianas, a um passado que imprimiu no modo de viver ocidental moderno as condutas
características da cultura patriarcal, entre as quais, abandonar o outro quando este é o
diferente e não existe no espaço convencional das relações de convivialidade. Maturana
(2004: 37) ressalta que guardamos como legado dessa disposição histórico-social aspectos
requintados da cultura patriarcal em nossa maneira de viver, os quais valorizam práticas
como a guerra, primam por conservar as relações verticais e hierárquicas, justificam a
sanidade dos artifícios competitivos, reduzem a convivência a um anfiteatro de lutas
diárias, almejam, desesperadamente, o controle e o progresso a qualquer custo, e assim
aprendem a buscar a dominação do outro, o seu dessemelhante, especialmente quando se
apropriam de uma suposta verdade, aquela que é a sua, dos adultos e que a cultivam como
legítima.
Imersos nessa cultura patriarcal, homens e mulheres incorporaram ao seu modo de
viver desiguais formas de desistência das crianças. Podemos tomar como ilustração a
4

campanha nacional pela redução da idade pena 4l, cuja ambigüidade expõe um número
considerável de adultos a clamarem pela punição de meninos e meninas, por eles
nomeados de marginais, enquanto assumem um lugar de vítimas que se julgam ameaçadas
por estas crianças. Encharcados desses artefatos culturais, os adultos reafirmam a
necessidade de lutar contra esses sujeitos, ainda que alguns ponderem que esta luta precisa
estar direcionada para combater as injustiças sociais ou para enfrentar a marginalização
dessas crianças. Vivemos como se todos os nossos atos requeressem o uso da força, à
medida que não fomos educados para compreender e vivenciar a indispensabilidade do
diálogo, a sabedoria da escuta, e ainda, para distinguir a graça do cuidado em nossas
relações.
Constituídos pelas desconfianças com relação ao outro e cimentados pelas certezas
aprendidas, não cuidamos de criar espaços para a inclusão das crianças em nosso viver
como adultos, e por isso, normatizamos algumas práticas que definimos como adequadas
para elas, tais como a obediência incondicional aos nossos mandatos. Certos de nossas
escolhas, como adultos decidimos sempre o que é um bem para elas, mas quase sempre
orientados por nossos interesses individuais, políticos e econômicos. As práticas de
abandono, como sabemos, remontam especialmente aos séculos dezoito e dezenove e se
nutrem dessa cultura, quando milhares de crianças podiam ser deixadas na solidão de seus
destinos ou enviadas, como cartas anônimas, às Santas Casas da Misericórdia do Brasil e
de outros países. Paradoxalmente, as pesquisas mostram uma diferença significativa na
constância das crianças abandonadas: as regiões mais ricas do nosso país apresentavam um
número maior de meninos e meninas abandonados.
Fomos educados com e nesta cultura, não para convivermos com as diferenças, mas
quando muito, para tolerá-las. A tolerância, como enfatiza o autor anteriormente citado, se
configura tão somente como a postergação da negação do outro. Assim, a primeira reação
dissonante de uma criança às instâncias típicas de um adulto é vista como desobediência,
como atrevimento que deve ser punido com rigor, mesmo que os afazeres infantis estejam
a expressar, muitas vezes, a imitação daquilo que aprendeu como conduta peculiar de seus
educadores. A cultura patriarcal não abriga em suas prerrogativas qualquer manifestação
de desacordos, por isso exclui tudo e todos que não caibam nesse mundo, possuído por ela
na varredura das singularidades.

4
Campanha veiculada pela mídia através de várias reportagens; tema de debates televisivos; tema de
seminários nacionais organizados pelas entidades de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, entre
outros espaços de discussão com defensores e contrários à redução da menoridade penal.
5

As crianças abandonadas do presente estão imersas em contextos desiguais,


mesclados por práticas similares e as explicações para esses procedimentos estão
vinculadas a redutos adequados aos padrões culturais:
- No mundo do discurso economicista estão os argumentos para o abandono
daquelas que são oriundas das famílias pobres.
- Nos redutos das segregações raciais, as justificativas para a inferiorização
histórico-social das crianças negras jogadas à deriva ou dominadas a cotidianos escravistas.
- Nos redutos das classes abastadas, as retóricas convencionais para reduzir a
visibilidade dos abandonos afetivos de seus filhos e filhas, muitos deles alimentados pelo
consumismo compensatório, mas apartados do colo de seus genitores.
- Naqueles que não podem suportar a convivência com crianças deficientes,
encontram-se arcabouços eivados de assuntos voltados às adaptações e aos ajustamentos
sexuais, sócio-políticos,
- Nos redutos adultocêntricos, onde vicejam as práticas adultocráticas, há os
abandonos das crianças não legitimadas nas suas infâncias, os quais são modulados por
condutas autoritárias, arrogantes e centradas na tortura psicológica.
- Nos aparatos jurídico-normativos estão os abandonos produzidos pelas
concepções de menoridade da infância, para quem se prescreve os atendimentos em
conformidade com o mundo adultocêntrico, expert na definição do que é prioridade.
- Nos redutos clínicos convencionais, as explicações eruditas para convencer essa
mesma sociedade de que, a pobreza que ela produz, pode ser justificada por discursos
médico-patológicos, os quais legitimam o abandono de milhares de crianças aos lixões
sociais.
- Nos redutos escolares, os tantos abandonos gestados em torno de estereótipos para
classificar as crianças que são designadas ao fracasso em suas aprendizagens, consideradas
pelos discursos pedagógicos como incapazes de se enquadrarem nas grades curriculares
que aprisionam suas infâncias.
- Nos redutos morais, onde a igreja, a família e a propriedade normatizam as
convenções características dos mundos adultos, passamos a conviver com inúmeras formas
de abandonos das crianças, a partir de diferentes informações de realidade, e que,
tardiamente, alguns poucos intelectuais passaram a questionar.
- No universo das indiferenças dissimuladas estão os argumentos da indignação
inútil, aqueles que nutrem as retóricas de muitos intelectuais, parlamentares e outros
extratos desta sociedade. São discursos que apenas lamentam as diversas formas de
6

abandonos das crianças, mas que são incapazes de levantar o papelão para olhar o rosto
daqueles e daquelas que dormem entorpecidos pela fome ou pelo medo, sob as marquises
urbanas.
- No âmbito da estupidez humana estão os abandonos das crianças mutiladas pelas
minas terrestres, confinada por seus destinos históricos às zonas de guerra nos territórios
africanos, pátria-mãe de todos nós, rejeitada pelos racismos nossos e abandonada junto
com seus filhos à mediocridade dos ditames capitalistas chamados de potências civilizadas,
apesar de suas contínuas resistências.
- Nos subsolos desta sociedade, onde se escondem as violências contra as crianças,
os abandonos de suas dores são sucumbidos às justificativas eloqüentes, na maioria das
vezes dissimuladas, que tentam arquitetar as contrafaces que abrandem as evidências da
incapacidade institucional de proteger e cuidar das crianças.
Ou seja, como adultos criamos para as crianças mundos ampliados de violências,
cuja materialização ganha maior visibilidade nos tempos atuais. Milhares delas estão fora
das escolas, outras submetidas ao trabalho infantil escravizador, enquanto outras são
condenadas às inúmeras práticas de prostituição, exploradas por adultos cujas encarnações
violentam sua sexualidade e as deixam desprotegidas na temporalidade de suas infâncias.

Por que violentamos as crianças?

Todos os dias, enquanto alguns adultos propagam notícias sobre práticas de


violências contra crianças, uns escutam e até se comovem, outros nem mesmo escutam, e
outros ainda acreditam que “sempre foi assim”, por quê se espantar? Entorpecidos pela
mecanização das relações, apressados e confusos na luta pela sobrevivência e encurralados
pelas premissas individualistas que tomam conta de nosso viver, todos os dias, através de
diferentes mecanismos, com maior ou menor intensidade cada um de nós produz a
banalização da vida. Aos poucos, nos acostumamos com os diversos processos de morte
que co-criamos através da dor e do sofrimento alheio, talvez para não nos defrontarmos
com o vazio de sentidos que atravessa a existência cotidiana, ainda que trajada de tempos
melhores. Talvez porque sejamos hoje as crianças abandonadas de outrora. Sem
referências altruístas de cuidado para com a vida, muitos são os crescidos que não se
importam com o que fazem com as suas crianças, ou ainda, com o que os outros fazem
7

com as outras crianças. Em certas castas vicejam os discursos de desprezo, travestidos de


atitudes que parecem se compadecer através de um breve sussurro que exclama: que
horror! Por que “eles” – os outros – violentam as crianças? Que mundo cruel! O
acontecimento ao qual imputo completa exterioridade, não mobiliza a responsabilidade de
todos os adultos para com todas as crianças, não resgata a dimensão do cuidado que fundou
as relações matrísticas e despertou em nossa corporeidade situada a sensorialidade para
proteger.
No dia 17 de novembro de 2004, na cidade do Rio de Janeiro, uma quarta-feira de
verão, enquanto tantas pessoas se movimentavam por entre as ruas, centradas em seus
afazeres, os noticiários televisivos anunciavam que ali, naquela mesma metrópole de tantas
riquezas, cerca de cinco mil menores estavam envolvidos com o crime. Faziam referências
à rede de Organizações não Governamentais, brasileiras e estrangeiras que recém havia
divulgado um relatório com essa estimativa, salientando que todos eles eram “menores” e
estavam a serviço do crime organizado. A rede, denominada de “Coalizão para Acabar
com o Uso de Crianças como
Soldados 5”, anunciava que o seu principal objetivo era impedir que as crianças
continuassem a ser recrutadas por interesses adultos para participarem do combate em
zonas de conflito.
Teicher 6 (2004) ressalta que mais de três milhões de denúncias maus tratos e
abandonos infantis são recebidas a cada ano nos EUA. No seu artigo relata que, em 1994,
a polícia de Boston ficou chocada quando encontrou um menino de quatro anos de idade,
em estado de desnutrição e clausura, trancafiado num apartamento imundo de Roxbury,
onde vivia em condições pavorosas. Num quadro que denotava a intensidade das
perversões praticadas, o menino estava com as mãozinhas queimadas porque tivesse mexeu
com uma coisa considerada pelos adultos “responsáveis” por ele como proibida. Os
argumentos para justificar a crueldade alegavam que a mãe da criança era usuária de
drogas e que, fora de controle pôs as mãos de seu filho sob a torneira de água fervendo
para puni-lo por ter consumido o alimento que guardara para seu namorado. Sem qualquer
socorro médico, o menino ferido só recebeu os cuidados devidos que a tragédia

5
Mais informações ver: http://www.adital.com.br/site/noticias ; www.aldeiasinfantis.org.br ;
http://www.coav.org.br/publique ; http://www.fides.org/por/dossier/2005 ;
6
Martin H. Teicher. “Maus tratos na infância podem ter efeitos negativos duradouros no
desenvolvimento e nas funções do cérebro”. Artigo extraído da Revista & nbsp; SCIENTIFIC
AMERICAN, ANO 1 JUNHO/2002 - SITE: www.Sciam.com.br - em novembro de 2004.
8

perturbadora ganhou o espaço dos noticiários. O relato apresentado pelo autor, na verdade,
quer chamar a atenção para as pesquisas recentes que afirmam que, embora as feridas
físicas possam ser tratadas, os ferimentos infligidos a sua mente em desenvolvimento
podem nunca cicatrizar de todo.
As novas investigações que abordam as conseqüências dos maus tratos na infância,
incluindo o trabalho que Teicher (2004) e seus colegas realizaram no McLean Hospital em
Belímont, Massachusetts, e na Harvard Medical School, evidenciam que os maus-tratos
impostos por adultos às crianças imersas em contextos de violências, podem causar
seqüelas neurológicas irreversíveis. Como exemplo, o autor destaca o abuso infantil,
lembrando que, quando esta prática se efetiva no período formativo crítico em que o
cérebro está sendo fisicamente esculpido pela experiência, o impacto do extremo estresse
pode deixar uma marca indelével em sua estrutura e função. Tais abusos, ao que parece,
induzem a uma cascata de efeitos moleculares e neurobiológicos, que alteram de modo
irreversível o desenvolvimento neuronal. As violências podem provocar prejuízos
orgânicos que tenham implicações críticas para o sujeito social, atrofiando sua capacidade
de expressar-se em relação e tecendo dificuldades variadas para ser-estar em convivência.
Estudos 7 têm problematizado as implicações das agressões sexuais para a criança.
Nos seus primeiros anos, por exemplo, a criança não possui ainda as referências para
distinguir se o abuso é uma agressão à sua corporeidade, ou faz parte dos conteúdos
constitutivos da relação com o adulto que lhe abusa. Quando consegue identificar a
agressão, nem sempre a criança consegue compartilhar esta experiência com outro adulto
e silencia a sua dor, muitas vezes sentindo-se culpada, outras vezes amedrontada. A
repetição desta prática de violência é uma aposta na impunidade do adulto agressor, o
qual pode contar com a cumplicidade de outros adultos próximos da criança, como se
constata em dezenas de relatos apresentados por ocasião das denúncias ou das pesquisas.
Heleieth Saffiotti 8 ressalta que é conflituosa a compreensão de que as mães nem sempre

7
Ver: AZEVEDO, Maria Amélia e GUERRA, Viviane Nogueira de. Infância e violência doméstica:
fronteiras do conhecimento. 2. ed., São Paulo: Cortez, 1997; BARBOSA, Hélia. “Abuso e exploração
sexual de crianças: origens, causas, prevenção e atendimento no Brasil”. In: Inocência em perigo: abuso
sexual de crianças, pornografia infantil e pedofilia na Internet. Rio de Janeiro: Garamond, 1999;
DUNAIGRE, Patrice. “O ato pedófilo na história da sexualidade humana”. In: Inocência em
perigo: abuso sexual de crianças, pornografia infantil e pedofilia na Internet. Rio de Janeiro:
Garamond, 1999; BUCK, Susan F. e C. A traição da inocência: o incesto e sua devastação. Rio
de Janeiro: Rocco, 1999.
8
SAFFIOTI, Heleieth I.B. “No fio da navalha: violência contra crianças e adolescentes no Brasil atual”. In:
Quem mandou nascer mulher? Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos/UNICEF, (1996); SAFFIOTI,
Heleieth I.B. (1992) “Abuso sexual incestuoso”. Relatório de Pesquisa apresentado ao CNPq. Investigação
9

são protetivas com seus filhos violentados, informando que, em cerca de dois terços dos
casos, as mães levam a notícia do crime à autoridade policial e se separam do
companheiro. Para ela, o abuso sexual é uma questão cultural de que envolve a
exploração, associada a condutas de dominação, onde aquele que é violentado tem, para
o agressor, um estatuto de propriedade.
Numa pesquisa 9 que o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) tornou
pública e que versava sobre as violências sexuais praticada por adultos contra as crianças
e adolescentes brasileiras, nos anos 90, estão retratadas as faces destas violências. A
faixa etária predominante das crianças exploradas sexualmente era de doze a dezesseis
anos e, em menor proporção, os pesquisadores identificaram outras meninas com idade
entre quatro e sete anos compartilhando das mesmas experiências. Para o Unicef, o que
sustenta a exploração sexual são os lucros que esta modalidade arrecada para a rede
criminosa, a qual conta com a participação de motoristas de caminhões que trafegam
pelas rodovias do país, taxistas, proprietários de bares e boates, um número significativo
de policiais cooptados pelas opulentas propinas, agências de turismo que têm os meios
para divulgar também o turismo sexual, hotéis nas grandes metrópoles e em cidades de
médio e pequeno portes, agências de modelos e shoppings.
Entre as tramas para aliciar as crianças, a rede busca apoio mais efetivo nas
mentirosas agências de emprego. Estas agências anunciam a demanda de vagas para
trabalhos domésticos em casas de famílias, às vezes em lanchonetes e restaurantes,
prometendo aos familiares da criança que esta vai poder freqüentar a escola e ganhar um
salário que pode auxiliar na renda. Considerando que este tipo de aliciamento tem como
público alvo as crianças oriundas das famílias pobres, com pouca ou nenhuma
escolaridade, a promessa se transforma em atrativo e, quando chegam nos lugares
destinados à sua exploração sexual, sofrem inúmeras humilhações e violação de seus
direitos mais elementares, confinadas em regime de cárcere privado e vigiadas para que
tenham a produtividade recomendada por seus senhores, quase sempre, mais de dez
programas por dia. Por vezes são remuneradas com algumas gorjetas, outras vezes,
convivem com a alegação de que têm divida com os cafetões, passam fome, vivem
miseravelmente, adquirem doenças sexualmente transmissíveis e são drogadas com
freqüência para que suportem as violências.

realizada na cidade de São Paulo, com 52 famílias incestuosas, por meio de entrevistas gravadas com as
vítimas, suas mães e agressores, entre 1988 e 1992.
9
Ver mais informações: Unicef, 1998.
10

Abandonadas por suas famílias que ao menos tem o endereço de onde estão
confinadas, estas crianças têm a infância adulterada e a sua identidade destroçada pelas
violências. Embora possamos reconhecer os esforços das instituições de direitos, as
insuficiências das políticas públicas evidenciam a perda de sentido do ato de acolher
aqueles e aquelas que carecem do cuidado do Estado. Avançamos em muitos aspectos e
em decorrência das demandas dos setores organizados, mas ainda hoje podemos
constatar que as práticas denominadas inclusivas permanecem no limite da acomodação
social para amortizar os conflitos e conservar a ordem econômica e política. Ou seja, elas
ajustam os sujeitos atendendo seus pleitos mais elementares e conservando a apartação
social, cada vez mais alargada. Numa lógica esquartejada de pensar os interesses
coletivos, onde os abandonos se proliferam e causam transtornos estéticos para os
padrões de visibilidade social, as instituições públicas continuam a acolher as pessoas
imbuídas de condutas de favorecimentos. E seus discursos continuam a lamentar a
interminável incapacidade de superar o abandono das crianças, filhas e filhos desta
nação.
Acolher ao outro, às suas necessidades fundamentais, como organismo vivo
indissociável de sua condição de sujeito social tem sentido de cuidado. Não violentamos as
pessoas de quem cuidamos porque cuidar é uma dimensão fundante do amor, enquanto
uma conduta relacional que procria eticamente a vida, a partir de uma estética do estar-
junto no mundo. Nas violências não desconstruímos as formas de dominação e não
instauramos a crítica sobre o que está posto e suposto como modo-de-ser em convivência,
ao contrário, permanecemos acastelados atrás das cortinas das impunidades e das
banalizações da vida. Nas violências preservamos as máscaras variáveis de uma sociedade
que, de modo lamentável, orientou seu ser-estar civilizada através da exacerbação da dor e
do sofrimento. As crianças são os principais sujeitos deste contexto.
Adultos violentam crianças por muitas razões concebidas e entranhadas num estilo
de convivialidade histórico-cultural que atribui menoridade a elas. Entre estas podemos
destacar: a confiança na invisibilidade de seu agir; as crenças estéreis que performatizaram
como lugar social das meninas-mulheres, o dever e o devir de servir aos homens; a
adequação de um ethos da virilidade aos padrões de dominação entre os não-iguais; a
ordenação social adultocêntrica e adultocrática que dá prioridade incondicional às verdades
dos homens e das mulheres, em detrimento dos desejos das crianças; a imperiosa
necessidade instintiva do sexo masculino, apregoada como incontrolável; a rentabilidade
que os corpos pedofilizados asseguram aos cafetões e cafetinas em suas redes de tráfico
11

internacional; a permanência guardada de que a dor é uma referência salutar para ser
produzida como instrumento de educação e de disciplinamento dos corpos; as misérias que
adornam as relações entre humanos e entre estes e a natureza; a necrose que assola o
âmbito da intimidade; a ausência de uma inteligência afetiva que fortaleça os laços entre
adultos e crianças e ponha em evidência a indispensabilidade do vínculo, entre uns e
outros, para construção de relações de mútua confiança.
Essa crença estúpida na dominação, uma aprendizagem que herdamos-conservamos
da cultura patriarcal, mostra como os acontecimentos – as violências – se revelam
diferentes para cada um, conforme o lugar social de onde mira ou o contexto de onde
experimentar se torna possível. É do lugar em que nos colocamos e estamos situados que
exercitamos a capacidade de pensar-dizer o mundo, seja para justificar nossos afazeres,
seja para colocá-los em questionamentos. Nossas condutas não são inatas, elas se
inscrevem num construto educador que forjou em cada um de nós experiências e iniciações
culturais, das quais somos ensinadores e aprendizes. Ou como enfatiza Maffesoli, o
microcosmo humano é assim compreendido como estando aninhado no macrocosmo em
seu todo. São inúmeros artefatos que transfiguram as culturas e essa transfiguração é
consoante com as proxemias que juntam o indivíduo e a coletividade, o estranho e o
doméstico, o conveniente e o promíscuo que enredam nossas vidas e ainda assim
encontram interlocutores distintos.
Ainda que nossas explicações tenham sentido para, de algum modo, desordenar o
ordenado, ou para justificar aquilo que normatizamos, nada pode esconder por inteiro o
quanto adultos violentam crianças. O abismo que separa esses dois mundos em suas
relações implicadas denuncia as marcas das desistências dos “maiores” para com os
“menores” e configura, num estilo emblemático, a diversidade de abandonos infantis que
todos os dias são produzidos e que afetam, por vezes de maneira indelével, a trajetória das
crianças que vão se tornar os outros adultos. Conforme Restrepo, este é um abismo [que]
abriu-se entre as palavras e os gestos e transformou-se em fissuras por onde ressurgem as
violências, à medida que a ternura também foi abandonada, enquanto uma dimensão
assertiva da convivência entre estes adultos e estas crianças.

Por uma Gestão do Cuidado: crianças em contextos de violências


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O aprofundamento de nossos estudos e pesquisas, também o alargamento das


reflexões sistematizadas através de nossos trabalhos no Núcleo Vida e Cuidado 10, cada vez
mais têm nos permitido reconhecer as dificuldades para formular um conceito que
apreenda as diversas nuances implicadas em cada ato de violência. Com Balandier
aprendemos que as violências podem ser concebidas como “figuras de desordens” que
compõem o social e que se legitimam como fenômenos emblemáticos na
contemporaneidade. De algum modo, estas violências enunciam uma performatividade
naquilo que repetem e, por conseguinte, ao utilizar a dominação como elo fundante entre
agressor e agredido, elas normatizam as relações e as amalgamam, urdindo complexamente
o sujeito dominado à condição de objeto. Enquanto de outro modo, as violências são
matizadas por um enredamento difuso, embrenhado pelas subjetividades que não
possibilitam suscitar explicações redondas em torno delas mesmas, mas, como diz o
próprio Balandier, os contextos onde elas ganham efetividade permitem gerar argumentos
que dão conta de uma aproximação explicativa desses episódios, na forma de um contorno
antropológico.
Nesse sentido, as violências que afetam as crianças exigem que a reflexão se desloque
da lógica do dever-ser para uma abrangência daquilo que tem a prerrogativa de poder-ser.
Ao descentrar o lugar institucional da verdade, abre-se a possibilidade de identificar as
saturações argumentativas que orientam a ordenação de políticas públicas de proteção à
infância e adolescência em situações de vulnerabilidade social, por exemplo, ainda
entrincheiradas em discursos jurídico-normativos repetitivos, que insistem em justificar as
insuficiências de sua gestão para assegurar o integral atendimento a essa população. Os
modelos rígidos, em seus cânones intelectuais, já deram provas de que, uma problemática
tão complexa como esta, precisa sair dos sigilos herméticos para alcançar a sociedade, para
refletir com ela as formas possíveis de qualificar a proteção às crianças e de agir no sentido
de efetivar uma gestão do cuidado para com elas.
O crescimento das violências continua a condenar as crianças a experiências não
legítimas ao seu desenvolvimento, adulterando suas infâncias e sujeitando-as às
configurações mais perversas de constrangimento aos propósitos adultocráticos que
estupram a sua corporeidade e ultrajam seu ser-no-mundo. As torturas que sofrem em seus

10
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as violências, vinculado ao Centro de Ciências da Educação da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e ao Instituto de Planejamento, Pesquisa Sociais e Estudos
Avançados (IPPSEA), por seu caráter interinstitucional. Dele participam profissionais de outras
universidades, das redes públicas de ensino de Santa Catarina, de Organizações Não Governamentais, dos
Programas Sentinela, os quais atuam em campos de conhecimentos diferenciados e que encontram na
temática a unidade para conduzir as suas ações.
13

lares, as agressões variadas, os espancamentos com instrumentos de imolação, a


exploração e os abusos sexuais, os abandonos à sua temporalidade, entre outras práticas,
denunciam um estilo peculiar e cada vez mais visível de como se constrói a relação entre o
adulto, responsável por cuidar de sua existência e a criança, histórica promessa de um
futuro que ainda é compreendido como o devir que tece uma nação imaginária.
O sistema judiciário e as demais unidades que compõem a rede pública de proteção,
por outro lado, encarcerados pela anacrônica burocracia estrutural, não demonstram a
competência necessária para implementar o acolhimento das denúncias de modo ágil e
congruente com as circunstâncias narradas pelos denunciantes, às vezes a própria criança
ou adolescente violentados. Quando são eles que pedem ajuda, muitas vezes são abordados
com desdém e com desconfiança quanto aos adereços que revelam em suas narrativas.
Desse modo, a penalização do agressor ou da agressora quase sempre é tardia, o que deixa
essas crianças e esses adolescentes convivendo com a reincidência das práticas de
violências por longos períodos de suas vidas. Também são precárias as alternativas para
promover a reeducação social do agressor e da agressora e, simultaneamente, proporcionar
aos sujeitos implicados nestes contextos de violências, situações de cuidados
imprescindíveis ao seu amparo e à restauração de sua integridade humana.
Podemos afirmar que há copiosas negligências instituídas e que estas fortificam os
espaços da vulnerabilidade infantil, à medida que favorecem as práticas de agressão e
espelham, num ciclo vicioso e recorrente, as probabilidades de uma sociedade violenta.
Experiências cujos cenários permitem as práticas violentas podem cunhar nas crianças
agredidas os contornos daquilo que se configura como a conduta típica do adulto e ensinar
para ela como pode se constituir também num agente agressor. Essas distintas práticas de
violências geram ambientes de convivência promíscua e podem violar princípios éticos
elementares para sua humanização. Elas fazem proliferar as formas destrutivas de
referências que as crianças buscam nos adultos e podem inscrevem em seus corpos
imagens negativas das experiências de contatos e carícias, tão fundamentais para a sua
saúde biológica, quanto para o seu bem-estar ontológico. Não obstante, essas
probabilidades se confrontam com a plasticidade que têm os seres humanos e é ela que não
permite afirmações deterministas. Entre o que ele pode ser e o que será há um percurso
sinuoso a construir sua ontogênese, com brechas para inúmeras resiliências, tanto quanto
para a repetição da experiência sofrida.
As crianças são educadas através dos laços afetivos que são cultivados na relação
com os adultos e aprendem com eles, pela convivência, modos de ser em comunidade. A
14

singularidade de cada processo educativo promove a sua transformação, e na coexistência


com seus educadores poderá conservar ou perder a auto-aceitação e o auto-respeito,
condições sociais imprescindíveis para que saiba e pratique a aceitação do outro,
respeitando-o como seu semelhante, mas diferente.

Cuidar do outro, cuidar da vida

Quero falar do cuidado inspirada em Heidegger 11, para quem o ato de cuidar se
inscreve numa compreensão filosófica e tem significado de cura. O cuidado, para o autor
está entrelaçado ao ser e ao tempo porque o ser humano é o único que pode se inquietar
ante os processos que vão constituir o seu futuro e a as suas possibilidades. Se o humano
toma o cuidado como princípio guia de sua existência, esta será expressão de seu modo de
ser-estar em relação com a vida e com o mundo. Assim, cada ato deste ser humano
cuidadoso é de atenção para consigo, para com o outro, o meio e as subjetividades que vão
mediar este encontro. Nesse sentido, o cuidado requer um ocupar-se previamente da
própria existência em relação, para criar o tempo necessário ao desvelo, enquanto reduz a
atenção dedicada àquilo que aflige o ser.
Essa inspiração me faz intuir que a gestão do cuidado está ancorada num sentido
prático, transubstanciado para o campo das ações, capaz de gestar atitudes que promovem,
no espaço da convivência, um estar-junto solidário (Maffesoli, 1996). É no âmbito desta
solidariedade que o outro jamais me é indiferente e tudo que a ele acontece, converte-se em
extensão ao meu próprio ser. Por isso, a dor de uma criança violentada e que busca o
cuidado nas instituições destinadas a essa responsabilidade social, transforma-se na dor
daqueles e daquelas que são os agentes cuidadores, para impulsionar os procedimentos de
cura desta dor, através de atitudes éticas e sensivelmente estéticas.
Se o cuidado é usualmente associado ao sentido de “cuidado de si”, oportunizando
ao sujeito uma reflexão conseqüente sobre o seu estilo de viver, não significa uma ausência
de cuidado com o outro porque, cada um de nós, só pode se reconhecer como ser humano
na presença de um outro ser humano. É este outro que possibilita o meu auto-
reconhecimento e que pode despertar o sentido de uma convivialidade solidária e situada
no contexto sócio-cultural. É nas instituições que o sentido prático e o significado
educativo do cuidado podem ganhar vitalidade, podem se transformar em relações de novo

11
Especialmente em seu livro Ser e Tempo
15

tipo que não dispensam a ética, articulada ao campo de uma estética sugestiva que permite
aos sujeitos em relação abandonar a esfera tirânica dos decretos para que possam se
inscrever nas tramas de uma educação do gosto e da sensibilidade (Restrepo, 1998, p. 10).
É pelas compreensões acima ensaiadas que situo a gestão do cuidado inserida em
princípios éticos, estéticos e políticos. O princípio ético está vinculado à abertura para
reconhecer o outro como legitimo em sua singularidade, como lembra Maturana (2000). O
princípio estético remete às práticas institucionais de atenção às crianças violentadas e
ganha sua configuração através dos discursos que os cuidadores materializam em suas
ações, favorecendo os processos de subjetivação do grupo em convivência. Por fim, o
princípio político se constitui numa prática articulada com as demandas e com os conflitos
sociais que, cotidianamente, transversalizam as dimensões culturais e históricas da
humanidade. Isso faz com que o cuidado com o outro se encontre numa matriz solidária,
numa atitude prévia, que se antecipa na e pela convivialidade através da alegria do bem-
fazer. É essa experiência que vai promover a cura, a que Heidegger sabiamente nomeou
como o próprio ser do ser-aí, da existência, que congrega a infinitude dinâmica de nossa
plasticidade ontológica enquanto seres imersos no mundo.
Nas violências está a morte do cuidado. Nelas ganham vida as estratégias de
vampirização, onde o agressor suga do outro, o agredido, a liberdade de escolha e de
decisão, destrói a estética do desejo mútuo, onde a vida se realiza embalada pelo convite
para o estar-junto solidário. Entre adultos e crianças mergulhados nesse contexto, o
cotidiano é marcado pelo dominar e submeter-se, promovendo a complacência com
perspicazes rituais de maus-tratos. Na eliminação do outro está o abandono da ternura e a
constituição de um adulto livre e com responsabilidade social, educado para cultivar a
empatia em suas relações pressupõe uma infância permeada pela ternura. E Restrepo
(1998: 79) alerta, a ternura é, ao mesmo tempo que disposição à carícia, rejeição visceral
à violência, para promover uma estética do sentir em comum às manifestações de um
mundo em movimento. Não é possível abraçar uma postura de cuidado, de estímulo ao
desenvolvimento integral do outro, especialmente da criança, se toleramos qualquer
manifestação de violência, principalmente aquelas que ocorrem nos contextos da
intimidade, como nos lares, entre pais, mães, filhos, familiares.
Por isso volto a enfatizar que é nas instituições, por excelência, que a gestão do
cuidado encontra um sentido concreto de ações em rede e um significado amplo de política
pública. A caracterização destas instituições como “lugares do cuidado” está cimentada na
compreensão de que, a elas pertence o compromisso público-jurídico da proteção integral
16

das crianças, como extensão ético-estético-política do processo sócio-cultural. São as


instituições que podem inventar um original estilo de coexistência entre adultos e crianças
para autorizar a construção de paradigmas de referências educativas.
Falamos de crianças e adultos em sua multidimensionalidade, enquanto sujeitos que
carregam consigo dimensões bio-antropo-sócio-cultural, ou seja, seres sobre os quais só
podemos refletir se os considerarmos em sua abrangência relacional, vinculados e
integrados numa unidade viva, cujos laços são indissociáveis. Falamos de seres que são,
também, organismos vivos autopoiéticos, capazes de promover sua auto-eco-organização,
de autocriar-se na relação com o meio, onde sua vida ganha materialidade. Falamos de
pessoas que conhecem e sentem o mundo através de mediações cognitivas, as quais
corroboram para que a humanização e a hominização de cada uma delas se cumpram numa
dialógica de ser-estar e numa organização criadora.
É nesse sentido que a gestão do cuidado não pode prescindir das presenças em
comunhão. A criança violentada evoca ao adulto que é designado para cuidar da sua dor,
atitudes de empatia e procedimentos eficazes para dar início ao processo de cura. Há que
saber se colocar diante da dor do outro porque não é possível a espera para quem foi
violentado. As violências podem se constituir pontos de partida para as políticas de
atendimento nas instituições cuidadoras das crianças, mas elas não deixam ver por inteiro a
inesgotável riqueza de crueldades que as transversalizam, ao contrário, seus artefatos se
movem num labirinto de invisibilidades onde diferentes práticas se encontram. Da coação
à hostilidade, a perversão está camuflada nas táticas de silenciamentos que os agressores
mobilizam nas crianças, torturando-as com amedrontamentos ou confundindo-as num jogo
de cumplicidade bem tramado.
Na multidimensionalidade humana estão, portanto, os infinitos que nos constituem.
Somos seres sapiens e demens e nada é mais humano em nós do que a nossa própria
desumanidade, como ressalta Morin (2002a). A mesma mobilização orgânico-cultural que
nos excita a amar o outro, a reconhecê-lo como expressão estendida de nosso próprio ser
em contextos afetivos, movimenta nossa disposição para as práticas de violências, ou para
arquitetarmos, muitas vezes com sutilezas, o nosso poder de destrutividade do outro,
expressão ambígua da autodestrutividade que nos corrói e que cortina a percepção do
mundo para além de nós mesmos.
Se a história inteira está em cada ser humano, tudo está em nós como potência e os
processos educativos vão culturalmente modulando cada algoritmo de nossa trajetória,
criando espaços distintos que podem fundar os postulados de uma convivialidade ético-
17

estética entre as pessoas e arregimentar nossa dimensão demens para, criativamente,


qualificar a sapiência que também nos conforma. Nesse sentido, se as instituições não
adotam a gestão do cuidado para com as crianças que sofrem violências, as quais estão
legalmente sob a sua proteção, se as suas ações educadoras não promovem a atenção
integral para com elas, seu papel ético-estético é atrofiado e as violências alcançam o
status de figuras de desordens, por vezes, irrefreáveis.
As violências, em qualquer de suas manifestações configuram atos políticos
intencionais, à medida que ordenam, de modo conjugado, o domínio e a manipulação do
outro para concretizar seus intuitos. Nesse contexto, são as crianças o objeto de gozo
potencial de adultos agressores. Eis porque Arendt (1994) adverte que as violências
distinguem-se por seu caráter instrumental. Quaisquer que sejam os meios, a sua prática
vai sempre depender da orientação e da justificação pelo fim que almeja. E aquilo que
necessita de justificação por outra coisa não pode ser a essência de nada. Ainda que
muitos insistam em justificar as violências, suas manifestações jamais serão legítimas, não
importa a intenção postulada.
Mesmo que sejam aspectos distintos, poder, manipulação e violência, em geral
surgem juntos. Quando combinados entre si, esses agires impetram uma espantosa
competência destrutiva. Desse modo, na relação entre adultos e crianças, as violências
podem ser configuradas como todo e qualquer processo que produza desorganização
emocional do sujeito, a partir de situações em que este é submetido ao domínio e controle
de um outro, ou seja, as violências se caracterizam por relações de domínio em que
alguém é tratado como objeto 12. Elas sintetizam aquilo que o adulto, no controle da
situação, define como adequado para aquele contexto.
Como já salientei anteriormente, na condição de adultos educadores precisamos
estar atentos, cada vez mais, às informações sistematizadas que têm afirmado que as
crianças imersas em contextos de violências, tais como, espancamento, estupro, abuso
sexual, humilhações públicas e privadas, torturas físicas e psicológicas, cárcere privado,
trabalho escravo, abandonos, medos programados por mecanismos de chantagens, fracasso
escolar, fome, prostituição, consumo e venda de drogas, participam de experiências
dolorosas que marcam a sua ontogênese. Enquanto tirocínios de duração longeva, essas
experiências geram faces complexas que podem ser identificadas nas relações interpessoais

12
Cf. SOUSA, Ana Maria Borges de. Infância e violência: o que a escola tem a ver com isso? Porto Alegre,
RS: UFRGS, 2002. Tese de Doutorado.
18

e tornam urgentes os procedimentos institucionais especializados, para assegurar a essas


crianças a restauração possível de suas infâncias adulteradas. Ainda são insuficientes os
procedimentos pós-denúncia, porque faltam as condições necessárias para assegurara a
todas elas outros cuidados que contemplem: atenção a sua corporeidade, acompanhamento
nutricional, intervenções afetiva, clínica, pedagógica, lúdica, entre outras, para que
atravessem o trauma com menores danos emocionais e redescubram a sua identidade.
Mesmo reconhecendo a relevância do Estatuto da Criança e do Adolescente, a
criação dos Conselhos Tutelares, dos Programas Sentinela e SOS Criança, a instalação das
Casas de Passagem e Custódia, a organização do Plano Nacional de Enfrentamento das
violências contra as crianças, esforços coletivos envidados para sua proteção, sob o nosso
ponto de vista, visto do lugar em que nos colocamos como pesquisadoras, estão distantes
práticas condizentes com uma Gestão do Cuidado, tais como:
- reflexões contínuas e coletivas que problematizem o conteúdo daquilo que nas
instituições se concebe como cuidado;
- reconhecer a legitimidade da criança em seu contexto e dar prioridade à sua
palavra;
- banir dos processos de atendimento os estereótipos consagrados e fomentar
condutas de estranhamentos aos mesmismos já configurados nos procedimentos;
- recriar os sentidos atribuídos às violências contra as crianças, para gestar outras
concepções e práticas.
- assumir as aproximações e as distâncias que se efetivam no cotidiano, entre a
política de atendimento legalmente instituída e a gestão do cuidado com as crianças em
contextos de violências;
- adotar como um dos princípios orientadores da gestão do cuidado nas instituições,
o reconhecimento teórico-prático de que cada criança, em sua singularidade é única e
diferente, portanto, as políticas de atenção não podem estar encarceradas em
procedimentos padrão que não permitam localizar as distinções;

- considerar a relação inseparável entre identidade e diferença para contemplar na


gestão do cuidado os aspectos culturais de gênero, raça, gerações, classe, religião,
abrangências regionais e locais, entre outros. De acordo com os contextos das violências,
esses artefatos se colocam com maior ou menor intensidade, construindo identidade e
diferença simultaneamente;
19

- do mesmo modo, tomar como referência que entre as pessoas que trabalham numa
mesma instituição, há identidade de classe, de gênero, de etnia, por exemplo;
- em cada instituição há grupos e conflitos, reunidos em torno de interesses que são
também dissonantes e que definem as práticas de cuidados com estas crianças;
A Gestão do Cuidado é um convite à ampliação da base jurídico-normativa que
pauta as ações nas unidades de atendimento. É uma chamada à sensibilidade daqueles e
daquelas que acolhem estas crianças, todas com necessidades especiais decorrentes dos
sofrimentos experimentados. Portanto, traduz-se como um modo-de-ser-estar afetivo que
não cabe em lógicas binárias de causa e efeito, enquadradas em prescrições daquilo que
conforma o dever-ser de cada profissional. É uma experiência cotidiana que se faz e se
refaz na convivência, que reconhece em todas as atitudes o cuidado como dimensão
fundante. Adultos profissionais de um lado, crianças e familiares de outro lado, vinculados
pela presença relacional e habitados pelas interações sociais.
A gestão do cuidado veste-se da ética da qualificação afetiva como substrato para
suas ações. Em sua originalidade diária, na misteriosa sinuosidade de cada encontro, há um
cuidado que promove as condições indispensáveis para curar as dores das violências, que
conjuga a identidade de cada criança com a importância daquilo que ela traz como
diferença. É uma gestão que se pensa ao pensar o que faz para o outro, que não aparta a
dimensão emocional da razão que constitui nossa capacidade de reflexão, que não afasta o
sentir do pensar e os vivencia como integração corpórea complexa de nossa humanidade.

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