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AGORA EU ERA O REI,

ERA O BEDEL E ERA TAMBÉM JUIZ ...


OU, O QUE A EDUCAÇÃO TEM A VER COM ISSO?
Samuel Lourenço Filho1
Universidade Federal do Rio de Janeiro
samuel.onesimo@globomail.com
Socorro Calháu2
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
socalhau@gmail.com

Resumo: Este artigo vai tratar da questão das crianças e dos adolescentes infratores, seus descaminhos e o descaso do mundo da
educação com essa realidade. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica na produção científica da área, associada à militância em
Direitos Humanos dos autores, que irá dialogar com a realidade desses jovens, que invisíveis, muitas vezes foram postos pra fora
da Escola ou não lograram a honra de passar por ela e, em grande parte das vezes, não tiveram o direito de completar dezoito anos.
Uma discussão em torno do papel da Educação nessa problemática tão desesperadamente triste, onde o extermínio toma o lugar da
exclusão; fator que ao invés de suscitar a compaixão da sociedade, acaba por despertar estranhos sentimentos de vingança, que
acabam resultando no desejo de redução da maioridade penal, através da admissibilidade, pela CCJ, da PEC 171/93. Trata-se de
oferecer uma contribuição teórica ao debate sobre exclusão, pobreza, violência e ausência do Estado e, principalmente, na
formulação de argumentos contra redução da maioridade penal; invocando nesse debate o papel de uma educação humanizada e
amorosa, que seja capaz e enxergar esse enorme contingente de jovens que teimam em nascer e morrer sem que a Escola se dê ao
trabalho de se ocupar deles. O trabalho contará com a interlocução teórica de autores que discutem Direitos Humanos, Direito à
Educação, História da Educação, Educação Inclusiva e Humanística, Sabrina Dias, Erving Goffman, Howard Becker, Manuel
Sarmento e Rita Marchi, Humberto Maturana, Azoilda Trindade, Dermeval Saviani, Luiz Antônio Senna, dentre outros.

Palavras-chave: Exclusão, Educação, Juventude, Idade Penal.

No Brasil há 571 mil crianças de sete a 14 anos fora da Escola, segundo o


Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Não obstante, o Brasil é o 2º país em número absoluto de homicídios
de adolescentes, atrás apenas da Nigéria. Mais de 33 mil jovens, de 12 a 18 anos, foram assassinados entre 2006 e 2012
no país, segundo a UNICEF. Souza (1991) já havia sentenciado: “quando uma sociedade deixa matar suas crianças é
porque começou seu suicídio enquanto sociedade”. Esse artigo discute, entre
outras questões, a responsabilidade da Escola em face de uma realidade tão assustadora.
1 Graduando
em Gestão Pública em Desenvolvimento Econômico e Social pela UFRJ e também graduando em Pedagogia pela UNESA, membro do
Grupo de Pesquisa “Do Cárcere à Universidade”.
2 Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora Adjunta do DEAE - Departamento de Estudos Aplicados ao Ensino,

da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora do Projeto de Pesquisa e Extensão,“Do Cárcere à
Universidade”.

Duas são as motivações para a produção desse trabalho. A primeira, a febre de


encarceramento que atravessa a sociedade nos dias atuais, que levou à admissibilidade da PEC 171/1993, que trata da
redução da maioridade penal. A segunda, saber de um evento internacional sobre Educação, Cidadania e Exclusão,
pareceu aos autores, um convite à reflexão sobre a responsabilidade da Escola, nessa antiga política de exclusão, que
hoje pode ser caracterizada como de extermínio das crianças e adolescentes, negras e pobres, infratores, ou não, na
sociedade brasileira.
Sabe-se que Educação está diretamente ligada ao futuro ou a um devir desse
futuro. Educa-se para suprir a sociedade, para formar o homem que atuará num determinado modelo de sociedade. E
quando se depara com uma sociedade que permite que suas crianças e adolescentes sejam exterminados, há que se
investigar as causas desse comportamento. O que inquieta os autores, sobremaneira, é o papel exterminador do Estado,
que atua com o aval de uma parcela significativa da sociedade, impunemente.
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica à produção da área, somada aos fatos
contemporâneos e à militância em Direitos Humanos realizada pelos autores, em suas vidas pessoais e profissionais.
Não é segredo nenhum que, atualmente, as crianças e os adolescentes vêm sendo
expostos criminalmente como sendo um grupo ameaçador, essa percepção está implícita, mas bem evidente, no louvor
de muitos cidadãos brasileiros que aprovam a retomada do tema da redução da maioridade penal na Câmara dos
Deputados e no Senado Federal, com o desarquivamento da PEC171/1993. Isso revela uma inversão de compreensão,
pois em 2005 para a UNICEF a infância era “uma geração sob ameaça” (Sarmento e Marchi, 2012: 5). A ameaça que
essas crianças padeciam dizia respeito à violência e a privação de direitos e assistências diversas, distantes da saúde
devida, do ambiente próprio, da estrutura familiar e Escolar, que lhes garantissem um desenvolvimento harmônico,
sendo assim, excluídas da sua condição de pessoas em desenvolvimento, sobrevivendo então, numa sociedade de
classes sociais, segregadora e desigual.
Essa infância é ameaçada por estar excluída dos direitos que lhes são próprios e
da garantia dos indicadores sociais e afetivos que as tornam crianças e adolescentes. Trata se de crianças que tampouco
se desenvolvem como deveriam e, portanto, tornaram-se ameaçadoras; e assim, ignoradas, socialmente, têm sido
observadas apenas por seus atos infracionais, por conflitos com a lei e vistas por aqueles que são desejosos em punir,

apenas, como uma geração de alto potencial de violência em desenvolvimento, que


ameaça, traz medo e pode ser responsabilizada e encarcerada por ser uma suposta representação de perigo.
Esse texto vai apontar a força da tradição em normatizar e identificar infâncias e
seus respectivos sujeitos, que implica e entra em atrito com a formação da infância contemporânea, que comumente se
desenvolve distante de um modelo europeu, específico e moderno. Esse contraste nos moldes de desenvolvimento e
diferenciação no modo de tratamento e expectativa em relação à infância é que fomenta uma insatisfação tamanha em
relação aos denominados “menores” quanto aos seus feitos e ou ações.
Apontando um viés tradicional e que gera sérios danos à infância que emerge de
forma heterogênea, observa-se que os setores conservadores esperam que a criança e o adolescente estejam sob a tutela
dos seus responsáveis, nesse caso, o pai e a mãe, o que já dá início ao atrito em relação à nova composição familiar, pois
em um contexto conservador, tradicional e religioso, pessoas do mesmo sexo assumindo paternidade ou maternidade de
uma criança ainda é caso de justiça e intolerância, podendo ser interpretados como um atentado à família tradicional. Os
setores conservadores não admitem que a força da tradição é que se constitui num atentado à infância contemporânea,
negando à criança o direito de se desenvolver na pluralidade da sociedade emergente.
Para que a infância seja mais legítima desse ponto de vista patriarcal e
descontextualizado da vida real, é necessário, que haja um pai e uma mãe, uma professora, um guia espiritual e outros
agentes educativos. Nessa perspectiva, a gurizada precisa ter uma família - tradicionalmente constituída - uma casa, estar
em uma Escola, frequentar alguma religião, e receber uma educação sexista, que reconheça que meninos e meninas
devem ser educados de forma diferenciada. Esse pensamento ignora que esses meninos e meninas têm crescido nos
contextos familiares mais variados. São criados por avós, em caso de ausência ou morte dos pais, por irmãos mais
velhos, por tios, por um adulto que as exploram. Sem falar dos órfãos do tráfico, que se constituem em um grupo ainda
mais estigmatizado. Também existe um contingente, imenso, dos que crescem nas ruas totalmente sozinhos e se
agregam outros grupos igualmente abandonados à própria sorte.
Assim, ficam a deriva, entre a casa e a rua, como bem nos lembra (DaMatta, 2004).
A infância ameaçadora é a que justamente não se enquadra nessas peculiaridades

expostas acima, e nem é socializada por agentes únicos - Família e Escola - como chama a
atenção Dias (2012) que os identifica como: “detentoras do monopólio da socialização” (Dias 2012:72), e em tempo, já
apontava para novas agências de socialização em um mundo heterogêneo. Assim, chega-se ao ponto de interpretar que a
infância ameaçadora, nem socializada é, ou seria.
Antes de tratar dos pormenores quanto às possíveis desassistências, faz-se
necessário identificar na sociedade, eventuais agências que contribuem para legitimar a infância. Logo, reflete-se
também nesse estudo, sobre a agência midiática, que via áudio visual e meios televisivos acabam “determinando” o que
não pode faltar para uma infância saudável e feliz. As novelas, minisséries e outros meios de entretenimento traçam um
perfil comportamental e vinculado ao consumo desse mercado específico, e que através de brinquedos, roupas,
materiais escolares customizados, correspondendo aos modelos transmitidos pela mídia, corroboram com a formulação
de uma determinada ideia, bastante tendenciosa, de infância “feliz”. Há também como determinante de infância legítima
as questões da alimentação, trazendo uma série de guloseimas que “marcam” a infância; produtos que “toda criança tem
que consumir”, produzindo o sentimento de que quem não consumiu tais produtos, nem ao menos criança foi, ou
possuiu infância.
Assim, esse texto se inclina para as crianças que não vivenciaram um lar, uma
família, Escola, religião, roupas de marcas e brinquedos, alimentos e guloseimas diversas. Chico Buarque em “PIVETE”
canta a trajetória desse infante sonhador. Um adolescente que luta por um trocado trabalhando no sinal, e faz uso de um
canivete ou de uma bereta, que é um modelo de arma, que transita pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro. Essa criança
que sobe em morros vai ao ponto de venda de substâncias criminalizadas, que se “maloca”, e já que não possui casa, é
também uma criança que “sonha aquela mina, dorme gente fina e acorda pinel” (Chico Buarque – PIVETE 1978).
O que estaria sob ameaça seria um grupo específico de jovens que sofre inúmeros
tipos de violências, que padecem com o fato de serem vilipendiadas quanto aos seus direitos, e que nesse ponto, são
criminalizadas, pois como observou Sarmento e Marchi (2012) há uma incongruência onde observa-se “ um duplo
constrangimento: a criança ‘de rua’ está excluída dos seus direitos ‘de criança’, mas é juridicamente e simbolicamente
penalizada por isso” (Sarmento e Marchi 2012:7) e só passa a ser penalizada, por ser uma representação de ameaça, pelo
fato de ser uma “não criança” (Sarmento e Marchi 2012).

O rei, o bedel, o juiz e toda personificação de controle que venha para conter
qualquer tentativa de desvio, não foram suficientes para que os moldes ideais para a infância moderna ajustassem as
crianças ao contexto social.
As crianças e os adolescentes de um contexto social empobrecido e, dessa forma,
vulneráveis, foram excluídos dos seus direitos por questões de falta de acesso aos bens culturais que têm direito, e não
conseguiram viver em uma infância como a idealizada pelos princípios da Modernidade, devido as suas limitações, em
especial, as econômicas.
São crianças desprovidas de toda uma assistência fraternal, de questões afetivas e,
consequentemente, excluídas economicamente. Essas crianças vivem numa distorção de vivência familiar, com os
conceitos de família deturpados, sem reconhecimento de seus possíveis responsáveis, pois além das formas já
mencionadas, eventualmente podem ter vivido em abrigos e em casas de outros parentes, mas sem uma pessoa
responsável que os protegesse, ou viveram sob a convivência de “responsáveis” que eventualmente foram vítimas e
autores de violências, que estão sob a vulnerabilidade dos vícios, e do desemprego e que refletem as consequências
nocivas desses problemas sociais sobre essas crianças, que tornam-se estigmatizadas. Na opinião de Goffman (1963) a
pessoa estigmatizada sofre com a sua não aceitação pelos demais, pois “não conseguem lhe dar o respeito e a
consideração que os aspectos não contaminados de sua identidade social haviam levado a prever e que ela havia previsto
receber” (Goffman, 1963: 18).
Em meio a essa perversa realidade familiar, essas crianças e jovens
estigmatizados e “ameaçadores” vivem em casas, que quase nunca são um “lar doce lar”. Antes, são moradias situadas
em “aglomerados de subnormais”, termo que é utilizado pelo IBGE para designar as favelas e moradias insalubres, onde
há certa inconstância em morar permanentemente no mesmo lugar. Sãos esses meninos e meninas que vivem situações
de remoções, são despejados de suas casas por conflitos de facções entre si e entre milicianos, que perdem suas
moradias por causa de fenômenos da natureza e de um Estado que não cumpre o seu papel de proteger, permitindo que
famílias pobres se instalem em locais de risco, que sofrem constantes remanejamentos por causa do preço do aluguel; e
nesse nomandismo continuo em suas vivências é que precisam manter-se firmes para se estabelecerem como crianças
normais e viverem uma infância tranquila.
Estabelecer um ponto firme para quem vive em oscilação, e em estado de
completa anomia, é um desafio imenso, e por conta de toda a complexidade da questão,

acabam “fracassando” na missão de viverem um tipo de infância que é instituída como a


ideal, ainda que descontextualizada da sua realidade social e da complexidade contemporânea. E aqui vale trazer Becker
(2008) que vai nos lembrar que se existe algum comportamento desviante, que foge a alguma regra aceita, não se pode
esquecer de que “esse desvio é criado pela própria sociedade” (Becker, 2008:21).
Olhar para as crianças pobres e negras, e excluídas por isso, é buscar lembranças
de uma infância, sem muitas invenções, são imagens que fogem à imaginação, mas não a uma realidade de fato. Para
isso, vale a consideração de Manoel de Barros (2010), que poeticamente nos diz
Mas eu estava a pensar em achadouros de infância. Se a gente cavar um buraco
ao pé da goiabeira do quintal, lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se
a gente cavar um buraco ao pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar
no rabo de uma lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros de infância. Vou
meio dementado e enxada às costas a cavar no meu quintal vestígios dos
meninos que fomos (Barros,2010: 67).
Uma criança ou adolescente de um contexto excluído e marginalizado que se
disponha a se apropriar de uma enxada - não para o trabalho infantil - mas para cavar em “seu quintal”, achará vestígio
da criança que foi, ou que ainda é. Uma infância marcada pelas dores do relento nas ruas, das constantes brigas em casa,
da disputa na Escola, ou nos sinais, para prover sua sobrevivência, identificada pela indiferença que gera viver em meio
a tanta violência. Além disso, assistindo e, em muitos casos, protagonizando, como vítima, diversas histórias de
agressões e mortes violentas. Dos sustos noturnos que interrompiam seu sono, por conta dos tiros dos confrontos, ou dos
chutes dos policiais, que em meio à madrugada, espancam e torturam os moradores de rua, que em grande parte das
vezes são pais ou acompanhantes dessas crianças. Das dores provocadas pela fome, das frustrações escolares, da tristeza
de não poder ganhar presentes no aniversário ou em festas natalinas, uma vez que essa necessidade é construída, ainda
que sem fundamentos, por uma ideia de consumismo produzida pela mídia, necessidade essa, que habita o imaginário
das pessoas que estão expostas a esse modelo de sociedade.
E no cavar desse quintal de lembranças, essas crianças se lembrarão também das
traquinagens realizadas em companhia de outros meninos e meninas. E, se sobrevivem, é porque há boas memórias
também, brincadeiras e risadas, que muitas vezes espantaram a dor e o medo, mas os registros que ficam e que movem
muitas vezes suas ações, são os que produziram os traumas, as dores do abandono, da miséria e da exclusão.
Em face dessa dura realidade das crianças e adolescentes brasileiros que se
encontram à margem de uma sociedade excludente, heteronormativa, machista e racista, cabe tentar compreender o que
a Escola tem a ver com tudo isso. Vale uma parada, para a reflexão a respeito do papel da Escola e investigar sua
responsabilidade na realidade dos adolescentes infratores, ou não, que hoje estão na mira da PEC 171/93, candidatos que
são a irem para o cárcere comum, sob o olhar de aprovação de grande parcela da sociedade.
Segundo dados oficiais a cada 100 presos, 80 são adultos e 20 adolescentes. Hoje
no Brasil existem 20 mil adolescentes presos. Somente em São Paulo, são 10 mil cumprindo medidas de internação. Se
somados aos atos infracionais que são comparados a crimes hediondos não chega a 3% da população de jovens
encarcerados em São Paulo e 1% no Brasil. Em 2014, de 387 latrocínios cometidos, apenas 48 foram cometidos por
adolescentes. Hoje o adolescente é mais punido que o adulto. Existem crimes cometidos por adultos que são equiparados
a atos infracionais cometidos pelos adolescentes. O adulto com as diminuições de penas que a lei prevê, será solto muito
antes do que o adolescente,
que precisa cumprir a medida de internação que hoje é de três anos (Pereira & Deziatto, 2015). Além disso, o desserviço
que o cárcere presta a quem quer que seja, adultos ou crianças, que esteja sob seus porões, não justifica nenhum
movimento nesse sentido. E o que mais causa espanto é a passividade da Escola, que se faz de surda e muda em face de
tanta injustiça e tanta violência contra as crianças e os adolescentes negros e pobres brasileiros; omissão essa, que
também acomete o Estado.
Nessa discussão, vale resgatar a origem da Escola e tentar compreender onde se
encontra o elo perdido dessa perversa realidade. No Brasil a origem da instituição escolar remonta de 1549, com a
chegada dos jesuítas que criaram a primeira Escola brasileira. Na concepção de Saviane (2008), a história da Escola
brasileira pode ser compreendida em três períodos, divididos assim:
o primeiro período (1549-1759) é dominado pelos colégios jesuítas; o segundo
(1759- 1827) pelas “Aulas Régias” inspirada nas ideias iluministas; o terceiro
período (1827-1890) consiste nas primeiras tentativas, de se organizar a
educação como responsabilidade do poder público; o quarto período (1890-1931)
é marcado pela criação de grupos Escolares, impulsionada pelo ideário do
iluminismo republicano; o quinto período (1931-1961) pela regulamentação,
incorporando crescentemente o ideário pedagógico renovador; finalmente, no
sexto período, que se estende de 1961 aos dias atuais, dá-se a unificação da
regulamentação da educação nacional abrangendo a rede pública (municipal,
estadual e federal) e a rede privada as quais, direta ou indiretamente, foram
sendo moldadas segundo uma concepção produtivista de Escola (SAVIANI,
2005, p. 12).
O que se pode inferir é que a Escola, nesses quatro séculos de história existiu
apenas para pequenos grupos. Foi somente a partir da década de 1930 que houve crescimento acelerado; e nos dois
últimos períodos, a Escola de massa. Vale ressaltar, como nos alerta Saviani (2008), que as instituições jesuítas não
atingiam 0,1% da população brasileira, pois delas estavam excluídas as mulheres (50% da população), os escravos
(40%), os negros livres, os pardos, filhos ilegítimos e crianças abandonadas (MARCÍLIO, 2005, apud Saviani p. 3).
Além de não escolarizá-los e proibir-lhes a presença física em ambientes que pudessem permitir a escolarização, os
jesuítas implantaram Escolas que visavam docilizar a população nativa (gentio) e os filhos dos colonos através da
domesticação, da repressão cultural e religiosa (Calháu, 2008). Segundo Freire (1989), essa educação cumpriu sua tarefa
civilizatória, uma vez que,
enclausurando os alunos em preceitos e preconceitos católicos, inibiu-os de uma
leitura do mundo real, tornando-os cidadãos discriminatórios, elites capazes de
reproduzir ’cristãmente’, a sociedade perversa dos contrastes e discrepâncias, dos
que tudo sabem e podem e dos que a tudo se submetem (Freire, 1989:21).
E apesar do entusiasmo que marcou o início do período republicano com a criação
dos grupos escolares, até o final da Primeira República o ensino escolar permaneceu praticamente estagnado (Saviani,
2008). De lá para cá, pouca coisa mudou, investiu-se muito no acesso e quase nada na permanência e no sucesso desses
jovens, especificamente; assim, a evasão torna-se o grande vilão de toda essa história. E a Escola se constitui, ao longo
dessa história, como uma máquina de cuspir jovens e adolescentes negros e pobres.
Essa evasão não é pouca nem nova. Para ser ter uma ideia da questão do fracasso escolar no Brasil, nas décadas de 1960
e 1970, têm-se esses dados trazidos por FREITAG (1980): “dos 1.000 alunos iniciais de 1960, somente 56 conseguiram
alcançar a faculdade, em 1973. Isso significa taxas de evasão de 44% no primeiro ano, 22% nos segundo, 17% no
terceiro. As taxas de reprovação entre 1967 e 1971 eram de 63,5%” (FREITAG, 1980:61).
Pesquisas realizadas sobre o tema da evasão, ao longo dos tempos até hoje,
apontam a violência urbana como um dos principais motivos de afastamento dos meninos e das meninas pobres de suas
Escolas. Relatos de alunos colhidos em resultados de pesquisa revelam também que a repetência, os tiroteios cada vez
mais comuns nos bairros populares e nas favelas, a presença de traficantes nesses bairros e comunidades, têm
prejudicado o rendimento escolar dos jovens, levando-os muitas vezes ao afastamento ou mesmo ao abandono dos
bancos escolares (Brandão, 1986; Freitag, 1980; Rodrigues, 1984; Zaluar,

2001; Carvalho, 2005). Além disso, “a existência de opções de trabalho informal no


mercado ilegal das drogas, assim como outros tipos de crimes contra a pessoa e o patrimônio, também contribuem para
diminuir, aos olhos dos alunos pobres, a importância da escolarização e das oportunidades de profissionalização que
oferece” (Zaluar e Leal, 2001: 56). Associado a toda essa conjuntura todo o despreparo dos professores e demais
agentes escolares para lidar com esses jovens, que como nos diz Senna (2005), não cabem nessa Escola cartesiana, que
não reconhece outra cultura que não a cultura letrada. Não cabem numa Escola que só reconhece uma leitura de mundo, a
que é feita através de um livro
Não se pode ignorar o quanto a Escola está longe de ser um ambiente neutro, de
atuar como uma educadora amorosa e agregadora das diversidades. Pelo contrário, é cada vez mais sabido o quanto a
Escola se empenha em reproduzir as desigualdades, quando se observa que grupos socialmente desfavorecidos, como
crianças e jovens negros e de baixa renda, são sistematicamente excluídos de seu ambiente “educador”. É, também, do
conhecimento de todos, que a Escola sozinha não é capaz de “curar” as desigualdades históricas, que foram produzidas
na sociedade ao longo desses 515 anos de construção dessa entidade conhecida como “povo brasileiro”. Sobre esse
assunto, Cunha (1980) vai nos dizer que essa fé cega na Escola é um mecanismo próprio de dissimular sua função
reprodutora.
Pensando nos desafios que a Escola precisa encarar, aceitar e compreender “o
outro” é o mais complexo e instigante que existe. Esse desafio de aceitar e compreender essas crianças e jovens tão
diferentes daquelas para as quais essa Escola, de modelo francês, foi criada, exige cuidados, uma vez que esse “outro”,
ou seja, esses educandos, dificilmente se parecem com os seus professores e professoras, porque eles são, ao mesmo
tempo, semelhantes na natureza humana que os constitui e diferentes cultural, social e economicamente, com leituras e
interpretações do mundo as mais variadas. O que é mais preocupante em relação a esses estranhamentos é o quanto
confunde-se diferença com desigualdade (Calháu, 2011).
A prática educativa, seja ela qual for, precisa refletir a realidade da vida dos
professores e dos educandos, ao invés de fragmentar-se pela distância do “outro”. A coerência precisa ser o fio condutor
da experiência do aprender. A este respeito vale a pena ouvir Maturana e Varela (2003) quando afirmam que há uma
inseparabilidade entre o que

o se faz e a real experiência do mundo com suas regularidades. Estes autores lançam um
desafio aos professores, como tarefa pessoal, de perceber tudo o que implica essa coincidência contínua do ser, do fazer
e do conhecer, e aconselham a
deixarmos de lado a nossa atitude cotidiana de pôr sobre nossa experiência um
selo de inquestionabilidade, como se ela refletisse um mundo absoluto. O central
na convivência humana é o amor, as ações que constituem o outro como um
legítimo outro na realização do ser social que tanto vive na aceitação e no
respeito por si mesmo quanto na aceitação e respeito pelo outro (Maturana e
Varela, 2003: 31).
Corroborando com essa ideia Trindade (2000) complementa as afirmações acima
dizendo que “os educadores(as), professores(as), têm que ter uma confiança inabalável na potência da vida dos seus
alunos, olhá-los e serem capazes de se fascinarem com a vida e as múltiplas possibilidades que ela nos apresenta. O
respeito é a palavra chave, a categoria mais relevante da prática de uma educação para toda a vida.
É ainda Trindade (1999) que aconselha os professores a olharem os alunos como
capazes e maiores, que vai alertá-los dizendo que a sua ação precisa ter o objetivo de superestimá-los, de modo a investi-
los das suas múltiplas possibilidades, e essa atitude pode, junto com os outros fatores, ajudar para que eles se acreditem,
assim, capazes. Ela nos instiga dizendo que “aprendemos este preconceito relativo ao que seja um ser humano ideal e
quando nos deparamos com nossos alunos reais ou abrimos mão dessa idealização ou passamos a exercer o nosso
racismo, machismo; passamos a estigmatizar e individualizar nossa realidade” (Trindade, 2000:11).
Na opinião de Trindade (2000), é necessário que esses jovens tenham em seu
caminho alguém em quem possam confiar, alguém que seja capaz de dizer “vai, vá”; alguém que diga “vem”; ou alguém
que seja capaz de dizer “vamos”.
O que mais impressiona nessa história de exclusão e negação dos direitos dos
jovens de estarem na Escola e não sob a ameaça de serem encarcerados é que o século XX foi incrivelmente produtivo
no que se refere à criação de leis que garantissem os direitos da criança e do adolescente. Criou-se a Declaração
Universal dos Direitos do Homem (1948), a Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), a Convenção sobre os
Direitos da Criança (1989), o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (1996), além dos princípios constitucionais impressos na Carta Magna de 1988. Perversamente oposto a essa
proficuidade a situação do século XXI é diametralmente oposta a todo esse aparato que deveria garantir o acesso, a
permanência e

o sucesso delas na Escola. Guiada pela ideia de controle a Escola busca a dominação, que
nega e exclui o outro. Pensa-se equivocadamente que o conhecimento permite o controle, o que é absolutamente falso. A
educação para a compreensão, para a tolerância, para a amorosidade, está ainda muito ausente das práticas pedagógicas
vigentes.
Assim, enquanto a Escola não for capaz de se (re)fazer, de se (re)ver, os
adolescentes pobres e negros estarão vivendo no fio de uma navalha, como alvo fácil de uma sociedade raivosa, e um
Estado omisso, de uma polícia militarizada, cruel e violenta.
A luta por uma Escola que se importe e esteja disposta a se envolver na questão
desses jovens está aí, e não é simples nem fácil! Mas é possível, muito instigante, necessária e por demais
revolucionária.
E mais uma vez vale ouvir Chico Buarque e Sivuca (1978):
Vem, me dê a mão,
A gente agora já não tinha medo.
No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido.
(João e Maria - Chico Buarque e Sivuca, 1978)
E que a Escola um dia seja capaz de acabar com o medo de todas as crianças,
jovens, adolescentes, professores e professoras, construindo um mundo justo e fraterno, onde cada pessoa, seja “obrigada
a ser feliz”!

Bibliografia e Referências Bibliográficas


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