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ARTIGO TEMÁTICO

DEJETO OU OBJETO? EIS A


QUESTÃO PARA “A CRIANÇA”*

Conceição Aparecida Costa Azenha1

Resumo: A história da infância denota que a função social da criança mi-


grou daquela que não tinha lugar junto aos adultos (dejeto) ao lugar de
objeto de grande investimento, na modernidade. De um extremo ao outro,
temos visto que há apontamentos sobre a necessidade de se repensar a edu-
cação das crianças. Tal preocupação, no entanto, não tem implicado um
presente mais digno às crianças. O compromisso deste artigo é o de contri-
buir para o debate em torno dos efeitos do tempo para constituir-se como
sujeito para a criança e sua relação com os discursos sobre a infância.

Palavras-chave: discursos sobre a infância, psicanálise, educação, sub-


jetividade.

A infância é um país que não existe,


de onde fomos exilados
e para onde todos queremos voltar.
Carlos Vogt

A  s notícias recorrentes sobre a violência nas cidades e sobre


a crise na segurança pública que o Brasil está enfrentan-

* Recebido 12/07/2014, aceito em 14/11/2014.


1 Psicanalista; Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campi-
nas –UNICAMP; Pesquisadora do OUTRaRTE –IEL / UNICAMP; Professora
na Universidade Metodista de Piracicaba –UNIMEP, na Faculdade Politec -
FAP/UNIESP. E-mail: <cissazenha@terra.com.br>.

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do atualmente provocam especulações sobre as possíveis causas
para tal situação e também convocam propostas para a solução
desses problemas. Mídias, organizações governamentais e socie-
dade polemizam a esse respeito e é comum aparecerem nesse
debate propostas de pena de morte e redução da maioridade pe-
nal no Brasil. Nesse sentido, o próprio chefe da Polícia Civil de
São Paulo, Youssef Abou Chahin, afirma que a sociedade precisa
pressionar o Congresso para que aprove algum tipo de redução
da maioridade penal, pois os menores infratores se tornaram
“007, com licença para matar” (Schwartsman, 2015).
Os comentários inflamados que ouvimos sobre os casos
de violência (principalmente aqueles que dizem respeito a par-
ricídios e infanticídios) tendem a girar em torno das seguintes
questões: como terá sido a infância desses assassinos? Será que
educando as crianças garantimos que cresçam bons adultos? Ou,
ainda, há um tempo para se educar, depois do qual, nada mais há
que se possa fazer?
A criança figura como um enigma que resiste à teorização:
embora o real de sua condição sempre convoque simbolizações
e significações, sua singularidade sempre aparece como aqui-
lo que não se encaixa, como falta ou resto; seu ser, seu brincar,
seu falar sempre cuida de desmontar as teorias, principalmente
aquelas que ousam predizer seu comportamento.
Criança e infância não são termos correlatos. Se para que
haja infância é necessário haver criança, não se segue que ha-
vendo criança, haja infância. Tal conclusão é possível aos leito-
res de Philippe Ariès (1981), autor que estudou profundamente
a História Social da criança e da família. Por incrível que possa
parecer a alguns, a infância, como a conhecemos hoje, nem sem-
pre existiu. O que quer dizer que nem sempre existiram escolas
ou mesmo cômodos da casa destinados às crianças, móveis di-
mensionados para elas, locais e atividades “só para crianças”, em
clubes, colônias de férias, hotéis fazenda, entre outros, nos quais
“adultos não entram”.

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As crianças do Antigo Regime (século XVI ao XVIII)2 na
França (e também as mulheres) eram trocadas ou oferecidas
como animais e mercadorias. Sua educação realizava-se fora da
família original, junto a outras famílias. Naquela época, a noção
de família contemplava além de pai, mãe, irmãos, avós e tios,
também os agregados e serviçais da casa. O parentesco apenas
definia a herança, mas não era tomado como critério de tutela e
educação das crianças. Por isso, junto a outras famílias, apren-
diam a se vestir, como se comportar a mesa, como cumprimentar
as pessoas e outros hábitos e costumes da época. A criança só
passava a fazer parte da vida social depois que os embaraços de
sua primitiva condição física já tivessem passado, ou seja, quan-
do ela já pudesse “se virar” sozinha.
Por volta dos sete anos, ela voltava para a família original
como um mini adulto, participando dos jogos e trabalhos do gru-
po. No final do século XVI, houve um movimento moralizante
por parte dos católicos e protestantes que viam na infância ou-
tra possibilidade: o pequeno educar, para, quando ficar grande, do
caminho não se desviar (ditado popular inspirado no Evangelho);
em outras palavras, tomar a infância como uma instância privi-
legiada para a construção de um homem melhor. O Estado deve-
ria se responsabilizar por isso. Os elementos mais importantes
desse movimento foram a Reforma Luterana, a Contrarreforma
Católica e o Estado Moderno. Antes desse movimento, no entan-
to, a infância não era considerada uma etapa importante da vida,
à qual fossem necessários um lugar e propósitos específicos de
educação.
Com a Modernidade, a criança não mais vai para outras fa-
mílias: é colocada numa espécie de quarentena, antes de ser solta

2 Apenas para relembrar: Idade Antiga (ou Antiguidade) => antes do Século
V D.C.; Idade Média => Século V ao XV D.C; Idade Moderna (Modernidade)
=> Século XVI ao XVIII até a Revolução Francesa (na França é o período
correspondente ao Antigo Regime); Idade Contemporânea => a partir da Re-
volução Francesa e Industrial, até nossos dias.

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ao mundo. A escola tem seu início nessa concepção de aprendi-
zagem, ou seja, na ideia de que as crianças deviam ter um lugar
para aprender e que não mais aprendessem diretamente com a
vida. Nessa época, em função do ideário iluminista, enclausura-
vam-se as crianças, os loucos, pobres e prostituídos, por serem
considerados não aptos ao convívio social. De fato, é o ambien-
te escolar o responsável pela origem do sentimento de infância.
Interessante notar que esse sentimento de infância não veio da
família, mas de fora dela: dos eclesiásticos ou homens da lei, e
isso não ocorre por acaso. Vejamos: a Igreja e o Estado são as
instâncias de poder da época. Para Ariès (idem), o fator que ali-
mentou o sentimento de infância foi a obra dos moralistas e re-
formadores religiosos (Montaigne, Lutero e os jesuítas, princi-
palmente) que influenciaram a atitude dos pais. A família deixa,
então, de ser apenas uma instituição que transmite bens e nome
a seus herdeiros, passando a assumir a função de formação moral
e espiritual de seus membros.
Nesse sentido, a visibilidade da criança ampliou-se e fez
dela um alvo de investimento afetivo até então inexistente. A sa-
ída do lugar de um quase animal – que podia ser objeto de troca,
na era medieval – para um lugar de destaque no projeto civiliza-
tório da humanidade, na era moderna, converteu a criança na
esperança do amanhã. Segundo Ariès (op. cit.), desde o século
XV, com um remanejamento generalizado entre o público e o
privado, é que, entre outras coisas, adveio o sistema escolar e
a consequente obrigatoriedade, a partir da Revolução Francesa,
de se frequentar a escola – uma exigência da sociedade burgue-
sa que nascia naquela época e que impunha novas demandas:
essa sociedade não se sustenta mais com a atividade artesanal e
precisa de pessoas com outras qualificações que só um ambiente
especializado, como a escola, poderia oferecer.
O vislumbre da criança como celeiro de esperança da hu-
manidade, não por acaso só acontece após o surgimento de prá-
ticas higienistas, uma vez que era preciso encontrar a gênese dos

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distúrbios e problemas dos adultos localizando suas sementes
na infância. Aliás, um ditado popular guarda essa memória: é de
pequenino que se torce o pepino. Com esse espírito preventivo, e
dentro de um contexto iluminado pela Razão, foi sendo atribuída
à Escola e à Medicina essa função de prevenção dos males que
a infância poderia conter, para garantir a potência adulta nela
embutida.
A criança torna-se, assim, objeto de vários discursos que
propõem um saber especializado sobre ela. Nesse sentido, é bas-
tante recente, em termos históricos, a produção discursiva volta-
da para criança, sobre ela e para ela, como os livros infantis e as
propagandas televisivas. É recente, em termos históricos, a (pré)
ocupação com as crianças.
Como uma construção cultural, a infância teve um nasci-
mento, como demonstrou Ariès e, nesse sentido, pode também
estar com seus dias contados: não faltam crianças hoje em dia
que se comportam, vestem-se, maquiam-se e tem atividades
como os adultos. O efeito paradoxal parece ter sido engendrado
pelo próprio nascimento do sentimento de infância que, abar-
cado pelo discurso capitalista, enleva seu valor ao máximo, de
forma a criar um efeito perverso: sabe-se que oitenta por cento
das compras totais de uma casa são influenciadas pelos peque-
nos consumidores3. A perversão deixa suas marcas na infância:
as propagandas televisivas miram a infância, a despeito de sua
condição financeira heterônoma e a indústria farmacêutica lucra
com o comércio de medicamentos que prometem a modulação
de uma criança ideal, ao custo de patologizar as vicissitudes do
ser infantil, criando verdadeiros impasses para sua estruturação
subjetiva.
Desde 1959, ano da Declaração dos direitos da criança pela
ONU, a criança é concebida não só em função de sua idade bio-

3 Pesquisa realizada pelo IBGE em parceria com o Instituto InterScience, em


2003, disponível em <http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/04/publi-
cidade-infantil-proibir-e-o-caminho>.

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lógica, mas fundamentalmente em sua condição de imaturidade
física e mental. A ideia de inacabamento das crianças indica que
há necessidade de um tempo para que se processem mudanças
físicas e mentais para que os pequenos possam se relacionar de
maneira equânime com os adultos. Algumas das características
mais definidoras do tempo de infância nas sociedades ocidentais
são aquelas que marcariam uma diferença entre adultos e crian-
ças; diferenças essas que podemos resumir em dois interditos:
um em relação ao trabalho – as crianças não podem trabalhar – e
outro em relação ao amor – as crianças não podem ter relacio-
namento sexual.
Na modernidade, a criança ocupa uma função social bas-
tante determinada: a ela é outorgado o fardo de construir um
futuro melhor e garantir que os ideais da geração atual sejam re-
alizados. Modalizado pela ilusão dos adultos de verem suas vidas
continuadas em seus rebentos, o individualismo moderno tinge
de cores narcísicas o tom do amor dos adultos às crianças e en-
contra na medicina e na pedagogia os campos de saber que pre-
tendem oferecer garantias prévias de que esse empreendimento
não fracasse. Por um lado, os adultos parecem desejar que, no
presente, a criança não venha lhe lembrar daquilo que eles que-
rem esquecer – que também foram crianças e também sofreram
os efeitos de uma educação – e, por outro, parecem esperar que,
no futuro, nada falte à criança, como lhe faltou. A educação para
o futuro parece, deste modo, ser sustentada como um corretivo
aos pais: educo meus filhos como gostaria que meus pais tives-
sem me educado, mas não o fizeram; educo meus filhos, por-
tanto, como se eu fosse meus avós ideais. A ideia é a seguinte:
se meus pais tivessem tido pais melhores, eles seriam pessoas me-
lhores para me criar e eu não teria as faltas que tenho. Sabemos,
desde Freud, que esse é um sintoma neurótico, por excelência.
A educação feita nesses moldes recusa uma dívida simbólica –
aquela que nunca se pode pagar – e impede que a mesma seja
equacionada:

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Reconhecer uma dívida simbólica pode parecer à primeira
vista um ato menor [...] Mas, cabe afirmar que não se trata de
nada simples de driblar, pois reconhecer o estofo simbólico
da dívida em questão é aceitar inconscientemente a castra-
ção. (LAJONQUIÈRE,1999 p. 174).

Reconhecer a castração é admitir que os pais falham não


por uma impotência imaginária, mas pela impossibilidade de en-
carnar um ideal.
Das mais extremadas posições sobre a imagem da criança,
são formulações exemplares as obras de três educadores clássi-
cos: Dr. Schreber, Dr. Itard e Dr. Frankenstein às quais recorre-
mos para delas extrair a posição que a criança ocupa para o adul-
to que a escreve.

DR. SCHEREBER. A CRIANÇA É MÁ DE NASCENÇA

Dr.Daniel Gottlieb Moritz Schreber tornou-se célebre, como


se sabe, por suas obras de anatomia, fisiologia, higiene, cultu-
ra física e pedagogia. A sua autoridade foi enorme enquanto
viveu (e por largo tempo depois de sua morte). Era escutado
por educadores, médicos e pais. Deve-se-lhe a elaboração de
regras de vida fundadas numa disciplina impecável. (MAN-
NONI, 1988, p.24).

O Dr. Schreber empenhou-se em colocar em prática os seus


princípios educativos também em sua vida doméstica, com seus
filhos. Mesmo com tanto esmero educativo, um de seus filhos se
suicidou aos trinta e oito anos. O outro – Daniel Paul Schreber –
chegou a ser presidente do Supremo Tribunal de Saxe, mas sua
brilhante carreira foi interrompida por um surto psicótico: co-
meça a pensar que é uma mulher que carrega algo em seu ventre.
Em seu delírio, torna-se objeto do amor de Deus, abandonando
todas suas marcas de virilidade.

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Para o pai de Daniel Paul a criança era um ser que não
oferecia resistência à compreensão dos adultos. O Dr. Schreber
acreditava saber qual era o problema das crianças e a solução
para a boa educação seria alcançada por três princípios: 1) A
criança é má de nascença. É necessário submetê-la ao adestra-
mento moral e físico, alternando terror e sedução; a criança deve
adquirir precocemente a arte da renúncia. Para isso, espera-se
que a criança deseje algo para em seguida lhe recusar. 2) Chorar
sem razão exprime capricho e esse comportamento deve ser tra-
tado por um desvio rápido de atenção, palavras severas e golpes
aplicados na cama. Tais gestos surpreendem as crianças e param
o pranto. No máximo duas vezes. Daí em diante, tem-se o domí-
nio da criança para sempre. Isso deve ser feito no primeiro ano
de vida. Por último, 3) o controle que o adulto adquire sobre as
tendências da criança deve poder adquirir igualmente sobre o
corpo dela (daí todo o desenvolvimento da ideologia corretiva
do corpo que encontra a sua expressão na ginástica médica e di-
versas ortopedias).
As Memórias de Daniel Paul Schreber, filho desse célebre
educador, permite entrever que os filhos do Dr. Schreber, coloca-
dos na posição de objetos de convalidação de suas teorias, fica-
ram com a difícil tarefa de sair desse lugar. Parasitados em seu
próprio desejo, restou-lhes a condição de objeto metonímico das
teorias do pai.

DR. ITARD. A CRIANÇA NÃO FOI ABANDONADA


PORQUE É MÁ; É MÁ PORQUE FOI ABANDONADA

Em seus relatórios originais (Banks-Leite & Galvão, 2000)


lê-se que o médico Jean Itard foi aluno do Dr. Philippe Pinel4.
Imediatamente após tomar conhecimento do aparecimento de

4 Representante da psiquiatria esclarecida, que havia, em 1793, libertando das


correntes os internos em Bicêtre, França; uma figura de destaque na história
da Psiquiatria.

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um garoto selvagem encontrado nas florestas do sul da França
com, aparentemente, doze a quinze anos de idade, Itard inte-
ressa-se pelo caso. Pinel entendia que o Selvagem do Aveyron
era um débil mental e, por isso, não podia ser educado. Itard, ao
contrário, acreditava que poderia educar o garoto, mas para isso
seria imprescindível sua guarda total, a qual foi outorgada a ele
pelo Ministro do Interior da França, naquela época.
Itard sonhava em poder mostrar as belezas de Paris para o
Selvagem se extasiar. Assumir um caso como esse configuraria
um status profissional inimaginável para um médico em início
de carreira, como ele. Seu prestígio viria de fato a seguir, com sua
dedicação ao trabalho como médico de surdos-mudos, tornan-
do-se um precursor da Fonoaudiologia.
Itard, com ajuda de sua governanta, lança-se na empresa de
educar a quem chamou de Vítor. Ensina ao garoto as diversas sen-
sações possíveis, trabalhando com todos seus órgãos dos senti-
dos. A princípio, pensava que o selvagem era surdo, impondo-lhe
vários testes auditivos; porém o próprio Itard não dava ouvido a
um dos homens que encontrou o garoto na floresta, dizendo-lhe
que não acreditava que Vítor pudesse ser surdo, pois observara
que o menino virava-se ao perceber nozes caindo no chão ou
quando sua casca quebrava. Itard permanecia cético a esse res-
peito, pois Vítor não se saía bem nos testes propostos por ele.
Em nove meses, Itard, conseguiu ensinar todas as letras do
alfabeto e uma única palavra a Vitor: LAIT5 . Mas aquilo que o
médico mais desejava – que Vítor falasse – ele não conseguiu.
Embora o selvagem balbuciasse a palavra LAIT depois de tomá-
-lo, Itard não considerava isso linguagem porque, segundo o
metódico doutor, a palavra deve anteceder o ato. Por acreditar
terem fracassado – ele e o selvagem – Vítor é encaminhado
para uma instituição de surdos-mudos algum tempo depois e
lá fica por dez anos. Dado seu estágio estacionário, é entregue

5 Leite, em francês

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definitivamente à Md. Guérin, governanta de Itard. Vítor falece
em 1828, com quarenta anos de idade, amedrontado e semissel-
vagem.
Vemos pelos próprios relatórios de Itard e também pelo
belíssimo e fidedigno filme de Truffaut6 que Vitor dá muitas
mostras de interação e entendimento em relação ao doutor-
-professor e principalmente à Md. Guérin. No entanto, Itard não
reconhece em Vitor um sujeito desejante e sempre espera que
seus comportamentos apareçam na hora certa, aquela definida
pelo próprio doutor. Itard traça um plano de trabalho com Vitor
e, para continuar fiel a seus princípios educativos, não se deixar
afetar pelo garoto, não aprende nada com ele e, por isso, perma-
nece impermeável aos efeitos do próprio empreendimento que
estabelece com o menino. Itard se endereça a Vitor sempre como
a um animal selvagem. Negando a Vitor qualquer possibilidade
de reconhecimento como um sujeito como ele – Itard – o destino
funesto de Vitor, de morte subjetiva, torna-se inarredável.

DR. FRANKENSTEIN. O ADULTO É QUE FABRICA


A CRIANÇA

Clássico do cinema, o Dr. Frankenstein encarna, nessa fic-


ção o médico que consegue deliberar sobre a vida e a morte. Jun-
tando pedaços de corpos, ele fabrica um monstro (que não pode-
ria ser outra coisa). Interessante notar que, exatamente por ser
fabricado, esse monstro não é um SER, mas um monstro. Nesse
sentido, não é à toa que não recebe nome, pois só os seres têm
um nome próprio. Um sujeito não é um apêndice metonímico
de seus pais, como Frankenstein (ou um psicótico), nem corpos
estranhos aos pais, como prefiguram os autistas. Os seres huma-
nos ditos “normais” (ou, como nomeia a psicanálise, os sujeitos

6 Garoto Selvagem, de François Truffaut (França, 1969, título original L’enfant


sauvage).

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neuróticos) são todos aqueles que representam uma familiarida-
de simultaneamente a uma estranheza, ou diferença, em relação
aos pais que, numa antecipação de futuro os batizam com um
nome. Interessante paradoxo, o nome próprio do sujeito, aquele
que o designa, foi escolhido (desejado) por outro e, pelo imagi-
nário parental, simbolicamente, funde-se ao real de seu corpo.
Primeiro ato educativo, ao dar um nome à criança, o adulto des-
taca o pequeno ser de todo o resto e ensi(g)na: esse é você.

A VERDADE - FICÇÃO. GEPETO E PINÓQUIO

A despeito da boa intenção dos preceptores-doutores


Schreber, Itard e Frankenstein, o tornarem-se “alguém” não
aconteceu para seus pupilos. Ou seja, a educação não aconteceu,
uma vez que não houve a transmissão de marcas simbólicas que
permitisse a eles se situarem na história, numa cadeia desidera-
tiva; para suas crianças não foi possível encontrar um lugar para
sua produção desejante, sustentar um lugar de enunciação e, a
partir daí, estabelecer laços sociais, amar e trabalhar, usufruindo
de saúde mental, como nos ensinou Freud.
A clássica história contada por Collodi (1992) apresenta
Gepeto como um marceneiro que recebe um pedaço de pau fa-
lante e com ele faz um boneco. Gepeto sonha com o dia em que
Pinóquio possa se tornar um menino de verdade. Enquanto isso
não acontece, Gepeto não se posiciona subjetivamente como
criador ou dono de Pinóquio, mas exerce funções que, como en-
sinou Freud, conjugam a dialética edipiana (Lajonquière, 2000,
p. 115): por um lado a “ideia diretora de pai” que preside o mun-
do da linguagem e, no lado oposto, o desejo, primordialmente
materno.
Diferente de Itard, enquanto Pinóquio não se torna um
menino de verdade, Gepeto aposta em uma educação, ao invés
de predizer e calcular os estímulos que precisa colocar para Pi-
nóquio: leva-o para a cidade e para a escola, para aprender e

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conviver com outras crianças. O marceneiro sábio acredita que
na porta da escola não vai haver uma placa dizendo que lá não
entram ‘cabeças de pau’ e permite que Pinóquio atravesse cami-
nhos e descaminhos e que faça suas escolhas, sem se envolver
em demasia na vida do filho. Gepeto não é um pai que fica o
tempo todo controlando ou organizando a vida de Pinóquio. No
entanto, permanece implicado em sua educação.
Gepeto realiza o que a pesquisa recente de dois sociólogos7
indica sobre o efeito do envolvimento dos pais nos estudos dos
filhos: os autores concluem que, ao contrário do que costumamos
pensar desde a década de 1970, o que afeta (positiva ou negativa-
mente) o desempenho das crianças na escola é o valor que os pais
atribuem à educação, sua capacidade de conversar com os filhos
sobre o futuro deles e ler em voz alta com os pequenos. Interessa
notar que a conclusão dos pesquisadores aponta para uma neces-
sária volta à distinção entre espaços público (escola) e privado
(família) e entre privacidades do adulto e da criança para que, a
médio e longo prazo, haja um melhor desempenho dos sujeitos.
Pinóquio pode se tornar alguém na vida graças ao milagre
da adoção: aos olhos de seu pai, ele aparece como alguém cujo
desejo não é anônimo e cujos “cuidados trazem a marca de um
interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas
próprias faltas” (Lacan, 1969/2003).

A CRIANÇA / UMA CRIANÇA

Sabemos que “a criança” não existe concretamente, pois


faz parte de um campo conceitual que o discurso localiza em

7 “The Broken Compass: Parental Involvement with Children Education” -


Harvard University Press), de K. Robinson e A. L. Harris, pesquisa longitu-
dinal que elegeu sessenta e três critérios para medir o envolvimento dos
pais na vida escolar dos filhos. Os pesquisadores procuraram os efeitos desse
envolvimento ao longo de três décadas e concluíram que quase todo envol-
vimento dos pais na vida escolar dos filhos é sem efeito, quando não tem
efeito negativo (cf. Calligaris, 2014).

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vários significantes, de acordo com sua abordagem: a criança, o
menor, o recém-nascido, o incapaz, o pequeno sujeito, entre ou-
tros. Por outro lado, concretamente, existem sujeitos e suas sin-
gularidades. No entanto, as formas de governar esses pequenos
impõem uma generalização que garanta planejar políticas públi-
cas que determinem seus direitos através de dispositivos de po-
der. São esses dispositivos de poder, aprendemos com Foucault,
que definem o direito de fazer viver ou deixar morrer alguém.
Da mesma forma, as diferentes concepções sobre a criança e a
infância, afetam o jeito de viver desses pequenos: se no passa-
do era comum às crianças apresentarem marcas de arranhões no
corpo em função das brincadeiras feitas em árvores ou cicatrizes
nos pés por correrem descalças, hoje temos visto crianças sem
essas marcas, mas com L.E.R. (lesão por esforço repetitivo), fruto
de horas contínuas de digitação em computadores ou eletrônicos
similares, e assim por diante. Aqui, por parte das crianças, ne-
nhuma saudade de uma época passada. A nostalgia, quando há, é
sempre referida ao adulto.
Como vimos, criança e infância são conceitos históricos,
tributários do individualismo moderno. Sujeito e infantil, por
outro lado, constituem ferramentas teóricas da psicanálise. A
descoberta freudiana permitiu conceber o infantil como impere-
cível, ou seja, que não sofre efeitos da diacronia. Já o sujeito do
desejo, para a psicanálise, é efeito da captura que o simbólico (a
linguagem) opera sobre o real de um organismo, a partir do ima-
ginário materno, balizado por seu desejo (Azenha, 2004). Nesse
sentido, a criança é um tema crucial para a psicanálise.
Se, como demonstrou Ariès, no passado à criança era re-
servado o lugar de dejeto no século XVII, a partir do século XX,
uma transformação sem precedentes ocorre: seu lugar é de obje-
to privilegiado. No entanto, o que permanece constante, parece
ser, que nas diferentes épocas, a criança provoca angústia nos
adultos ao colocar em ato, para o adulto, um paradoxo: a renova-
ção da vida e também a sua finitude.

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Será possível que esses dois extremos inerentes à experi-
ência humana (vida e morte), curto-circuito8 recalcado no adulto,
estaria na origem (ou, no mínimo, animando) posições diame-
tralmente opostas sobre a infância e a criança? Como é possível
que alguns entendam que a criança é boa de nascença (é a so-
ciedade que a corrompe) enquanto outros julguem que é de sua
natureza ser má (e a civilização poderia melhorá-la ou não)?
Ser um objeto privilegiado na modernidade não conferiu
a todas as crianças uma vida melhor. Ainda que a Roda dos Ex-
postos não seja mais usada há, como sempre houve, as crianças
abandonadas dentro ou fora de suas casas. E, no limite diame-
tralmente oposto, há adultos que controlam a vida de suas crian-
ças como se fossem donos dela. Em ambos os extremos, desse
mesmo continuum, essas crianças estão em risco de vida (objeti-
va ou subjetivamente).
O brincar reúne em si infância e criança. Atividade infantil
por excelência, o brincar, em seu jogo cênico, assume a lógica da
condição da criança em que a infância instaura um tempo lógico
para a constituição de um sujeito. Tempo necessário para elabo-
rações de um desejo que as domina todo o tempo, como ensinou
Freud: o desejo de tornar-se adulto. Em qualquer brincadeira de
criança, podemos observar a incidência de um tempo lógico e
desse desejo dominante, ao iniciar uma brincadeira: “Agora eu
era a mamãe”; “aqui eu era a professora”.
Para as crianças, existe uma “festa” que acontece na vida dos
adultos e que ela, por falta de meios e recursos, ainda não pode
gozar, como indica nossa experiência na clínica com crianças Para
demonstrar a trivialidade disso que pretendemos sublinhar, traze-
mos um episódio relatado por duas professoras de crianças:

Observamos também que há quase sempre algo por terminar


nas brincadeiras, como por exemplo, quando uma festa vai

8 No sentido de pane, mas também no sentido de um percurso demasiado curto.

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sendo preparada, e nunca acontece. As crianças nunca expe-
rimentam o bolo, que sempre está por acontecer, ou melhor,
assando. (ZANFELICE e KASPER, 2007, p.4, grifos meus).

Nas brincadeiras de crianças e suas cenas, vemos que a


criança cozinha seu tempo (aquele que irá chamar de infância um
dia) em nome de esperar crescer para poder partilhar da “festa”
com os adultos Vemos que a infância é um constructo histórico-
-social, como mencionamos antes, mas é também um tempo sin-
gular a cada sujeito em sua estruturação psíquica, tempo lógico
em que o brincar figura como um trabalho necessário à criança
para impedir que o imaginário e o simbólico fracassem diante do
real que lhe causaria angústia, a criança brinca para reverter em
um jogo ativo uma situação que sofreu passivamente, transfor-
mando, desta forma, uma situação penosa em prazer.
O sentimento de infância produzido historicamente criou
discursos especializados sobre a criança; nesses discursos, a
criança sempre comparece como fonte de idealização e carência
(e, nesse caso, deve ser protegida e levada a ter o que lhe falta)
ou de repulsa às suas incapacidades ou formas de ser (concepção
que abre espaço tanto para que ela seja introduzida no mundo
adulto como a todo tipo de intolerância em relação à criança).
Importa ressaltar que em todas as épocas podemos encon-
trar esforços dos adultos para afastar a criança tanto da morte
como da sexualidade. O real em jogo nessas dualidades impli-
ca um tempo necessário para uma diferença entre o tempo de
criança e o tempo do adulto. A psicanálise distingue o tempo
de latência como fundamental nessa passagem: a latência é o
tempo em que a marca dessa diferença poderá conquistar sua
inscrição na subjetividade da criança
A condição da criança faz dela sempre um tema atual e que
resiste à teorização por colocar em cena questões que remetem
ao que é da ordem estrutural, a despeito das vicissitudes histó-
ricas.

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As crianças não têm licença para matar, certamente. Mas
colocam os adultos numa posição em que é preciso estar dispos-
to a perder a própria cabeça: decifra-me ou te devoro. Secretas?
Não. Enigmáticas.

Abstract: the history of childhood suggests that the social function of


children has migrated from their having no place in the adult world to,
in modernity, being objects of enormous investment. Between one extreme
and the other, the education of children must be rethought, but this
concern has not brought about a more favorable present day for children.
The commitment of this paper is to contribute to the debate on the effects
of the the time for children to become subjects and the relationship of this
question with discourses on childhood.

Keywords: discourses on childhood; psycoanalyses, education, subjectivity.

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