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1.
Como foi que Mestre Cereja, o marceneiro, achou um toco de pau que chorava e ria como um
menino
– E ra uma vez...
– Um rei!
– Não, errou. Era uma vez um toco de madeira.
Não era uma madeira de luxo, mas um simples toco da pilha de lenha,
daqueles que colocamos nos fogões e nas lareiras para acender o fogo e
aquecer as casas no inverno.
Não sei como foi, mas o fato é que um belo dia esse toco de pau
apareceu na oficina do velho marceneiro Mestre Antônio, chamado por
todos de Mestre Cereja por causa da ponta de seu nariz, sempre lustrosa e
vermelha como uma cereja madura.
Logo que viu aquele toco de pau, Mestre
Cereja alegrou-se todo e, esfregando as mãos de
tão contente que estava, murmurou:
– Esse toco apareceu em boa hora, serve para
eu fazer as pernas de uma mesinha.
Dito e feito: pegou logo o machado afiado para
começar a tirar a casca e acertar a madeira. Mas,
quando ia dar a primeira machadada, ficou com o
braço parado no ar, pois ouviu uma vozinha fraca,
fraca, que pedia:
...ouviu uma vozinha fraca, fraca.
N
aquele momento, bateram na porta.
– Entre! – disse o marceneiro, sem força para ficar de pé.
Quem entrou na oficina foi um velhote muito ágil, chamado Gepeto. As
crianças da vizinhança, quando queriam provocar muita raiva nele, o
chamavam de Polenta, por causa de sua peruca amarela, que parecia
muitíssimo com uma polenta feita de milho.
Gepeto era muito bravo. Ai de quem o chamasse de Polenta! Virava uma
fera, e não havia mais como segurá-lo.
– Bom dia, Mestre Antônio. O que faz no chão?
– Ensino tabuada às formigas.
– Boa sorte nessa tarefa!
– O que o trouxe aqui, Compadre Gepeto?
– Minhas pernas, Mestre Antônio. Vim lhe
pedir um favor.
– Estou aqui, pronto para servi-lo – disse o
marceneiro, ficando de pé.
– Esta manhã, tive uma ideia.
– Que ideia?
– Pensei em fabricar um belo boneco de pau,
mas um boneco extraordinário, que saiba dançar,
praticar esgrima e dar saltos mortais. Com esse
boneco, quero andar pelo mundo, para ganhar um Um velhote muito ágil, chamado
naco de pão e um copo de vinho. O que acha Gepeto.
disso?
– Bravo, Polenta! – gritou a vozinha que não se sabia de onde vinha.
Ao ser chamado de Polenta, Compadre Gepeto ficou vermelho feito um
pimentão e, virando para o marceneiro, disse, furioso por causa do
atrevimento:
– Por que me ofende?
– Quem está ofendendo você?
– Você, que me chamou de Polenta!
– Não fui eu.
– Então, por acaso, fui eu mesmo?! Foi você, sim!
– Não!
– Sim!
– Não!
– Sim!
E, cada vez mais furiosos, das palavras os dois partiram para a ação e se
atracaram, se unharam, se morderam e se rasgaram.
Terminada a luta, Mestre Antônio tinha na mão a peruca amarela de
Gepeto, e Gepeto tinha na boca a peruca cinza do marceneiro.
– Devolva minha peruca! – gritou Mestre Antônio.
– E você devolva a minha, e vamos fazer as pazes.
Os dois velhotes, depois de cada um ter recuperado a própria peruca,
apertaram as mãos e juraram ser bons amigos por toda a vida.
– Então, Compadre Gepeto, o que quer de mim? – disse o marceneiro,
em sinal de que tinham mesmo feito as pazes.
– Quero um toco de pau para fabricar meu boneco. Pode me dar?
Mestre Antônio, todo contente, foi logo pegar aquele pedaço de pau que
lhe causara tanto medo. Mas quando ia entregá-lo ao amigo, o toco deu um
pinote e, escapando violentamente das mãos do Mestre, foi bater com força
nas canelas magricelas do pobre Gepeto.
– Ah! É dessa bela maneira, Mestre Antônio, que você me dá essa coisa?
Você quase me estropiou!...
– Juro que não fui eu!
– Então fui eu, por acaso?!
– A culpa é toda desse toco...
– Sei que é do toco, mas foi você que o atirou nas minhas pernas!
– Eu não atirei nada!
– Mentiroso!
– Gepeto, não me ofenda, senão chamo você de Polenta!...
– Asno!
– Polenta!
– Burro!
– Polenta!
– Macaco feio!
– Polenta!
Ao ser chamado de Polenta pela terceira vez,
Gepeto ficou cego de raiva, avançou sobre o
marceneiro... e os dois se pegaram com unhas e
dentes.
Terminada a batalha, Mestre Antônio se viu
com dois arranhões a mais no nariz, e Gepeto,
com dois botões a menos no casaco. Com as
contas assim empatadas, apertaram as mãos e
juraram ser bons amigos por toda a vida.
Então Gepeto pegou o bravo toco de pau e,
agradecendo ao Mestre Antônio, voltou
mancando para casa.
3.
GEPETO COMEÇA LOGO A FABRICAR O BONECO, A QUEM DÁ O NOME DE PINÓQUIO.
PRIMEIRAS TRAVESSURAS DO BONECO
Depois do nariz, começou a boca. Ela ainda não estava pronta quando se
pôs a rir e a zombar dele.
– Pare de rir! – disse Gepeto, irritado, mas foi como falar com um muro.
– PARE DE RIR, REPITO! – gritou, com voz ameaçadora.
Então a boca parou de rir, mas botou a língua toda para fora.
Gepeto, para não estragar seu dia, fingiu não notar e continuou a
trabalhar. Depois da boca fez o queixo, depois o pescoço, depois os ombros,
a barriga, os braços e as mãos.
Terminadas as mãos, Gepeto sentiu a peruca ser tirada de sua cabeça.
Olhou para cima da bancada... e o que viu? Sua peruca amarela na mão do
boneco.
– Pinóquio!... Devolva já minha peruca!
Mas Pinóquio, em vez de devolver, colocou a peruca na própria cabeça,
ficando meio sufocado debaixo dela.
Com aquele gesto atrevido e debochado, Gepeto ficou triste e
desanimado como nunca tinha ficado na vida e, virando-se para Pinóquio,
disse:
– Filho moleque! Ainda não está pronto e já está faltando com o respeito
ao seu pai! Mal, meu filho, começou mal!
E
nquanto o pobre Gepeto era conduzido à prisão, sem ter culpa
nenhuma, o moleque do Pinóquio, livrando-se das garras do guarda,
danou a correr pelo campo, para voltar mais depressa para casa. E, no
grande entusiasmo de correr, pulava barrancos altíssimos, moitas de
ameixas e valas cheias d’água, tal e qual teria feito um cabrito ou um coelho
perseguido por caçadores.
Chegando em casa, empurrou a porta da rua, que estava meio aberta,
entrou, trancou-a e sentou-se no chão, deixando escapar um grande suspiro
de contentamento.
Mas aquele contentamento durou pouco, pois ouviu bem perto alguém
que cantava assim:
– Cri-cri-cri!
– Quem está aí? – disse Pinóquio com medo.
– Sou eu!
Pinóquio virou para aquele lado e viu um grande grilo que subia devagar,
passo a passo, pela parede.
– Diga-me, Grilo, quem é você?
– Eu sou o Grilo Falante, e moro aqui há mais de cem anos.
– Mas agora este lugar é meu! E se quer me fazer um grande favor, vá
logo embora, sem olhar para trás – disse o boneco.
– Eu não vou embora daqui sem antes lhe dizer uma grande verdade –
respondeu o Grilo.
– Diga e vá embora depressa.
– Ai daquelas crianças que se rebelam contra os pais e que, por capricho,
abandonam a casa paterna. Nunca terão nada neste mundo e, cedo ou tarde,
vão se arrepender amargamente.
– Então cante, seu Grilo, como parece que gosta de fazer, porque
amanhã, ao amanhecer, vou embora daqui, pois, se eu ficar, vai me
acontecer o que acontece a todas as outras crianças: vão me mandar para a
escola, e, por bem ou por mal, terei de estudar, e eu, para dizer a verdade,
não tenho um pingo de vontade de estudar, eu quero é me divertir, correr
atrás das borboletas, subir nas árvores e pegar os passarinhos no ninho...
– Pobre tolinho!... Você não sabe que, fazendo isso, quando crescer será
um belíssimo burro, e todos vão rir de você?
– Cale a boca, Grilão azarento! – berrou Pinóquio.
Mas o Grilo, que era paciente e filósofo, em vez de levar a mal esse
atrevimento, continuou, com o mesmo tom de voz:
– E se não gosta de ir à escola, por que não
aprende ao menos um ofício que dê para ganhar
honestamente um pedaço de pão?
– Quer que lhe diga? Entre os ofícios do
mundo, há só um que verdadeiramente me dá
prazer – respondeu Pinóquio, que começava a
perder a paciência.
– E que ofício seria esse?
– O de comer, beber, dormir, me divertir; o de
levar, da manhã até a noite, a vida de vagabundo.
– Todos aqueles que praticam esse ofício
acabam quase sempre no hospital ou na prisão –
disse o Grilo Falante com a calma de sempre.
– Olhe aqui, Grilão azarento!... Se eu ficar
com raiva, ai de você!
– Pobre Pinóquio, você me dá dó!... ...pegando na bancada um
N
esse meio-tempo, começou a cair a noite, e Pinóquio, lembrando que
não tinha comido nada, sentiu um vazio no estômago muito parecido
com apetite.
E o apetite das crianças aumenta rápido, e, de fato, poucos minutos
depois o apetite virou fome, e a fome, pelo visto e pelo não visto, se
transformou em uma fome de lobos, uma fome tão dura, que quase se podia
cortar com a faca.
O pobre Pinóquio correu depressa à lareira, onde uma panela fervia, e foi
destampá-la, para ver o que havia dentro, mas a panela era pintada na
parede. Imagine como ele ficou. Seu nariz, que já era comprido, ficou pelo
menos quatro dedos mais comprido.
Então o boneco começou a correr pelo quarto e a remexer em todas as
caixas e em todos os esconderijos em busca de um pedaço de pão – e podia
ser até uma fatia seca, uma casquinha de pão ou um osso reservado para o
cachorro, um pouco de polenta mofada, uma espinha de peixe, um bago de
cereja, afinal, qualquer coisa para mastigar... Mas o que encontrou? Nada,
um grande nada, o próprio nada.
Entretanto a fome crescia, crescia sempre, e o pobre Pinóquio não tinha o
que fazer a não ser bocejar, e dava bocejos tão longos que às vezes a boca
lhe chegava até as orelhas. E depois de ter bocejado, cuspia, e sentia que o
estômago parecia ter ido embora.
Então, chorando, desesperado, dizia:
– O Grilo Falante tinha razão. Eu fiz mal em me revoltar contra meu pai
e em fugir de casa... Se o meu pai estivesse aqui agora, eu não estaria
morrendo de bocejar! Oh! Que doença ruim é a fome!
Nisso, ele pensou ver, no monte de lixo, algo redondo e branco, que
parecia em tudo com um ovo de galinha. Deu um salto e jogou-se em cima
dele. Foi um pulo só: era um ovo, mesmo!
Impossível descrever a alegria do boneco: é preciso imaginá-la. Quase
pensando que fosse um sonho, revirava o ovo entre as mãos, acariciando-o,
beijando-o, tornando a beijá-lo, e dizia:
– E agora, como devo cozinhá-lo? Faço uma omelete?... Não, é melhor
fazer um prato com ele!... Não ficaria mais gostoso se o fritasse na
frigideira? E se em vez disso o cozinhasse como ovo quente, para beber?
Não, o modo mais rápido de todos é cozinhá-lo na frigideirinha: estou com
muita vontade de comê-lo!
Dito e feito: colocou a frigideirinha sobre o fogareiro sempre cheio de
brasas acesas e nela, em vez de azeite ou de manteiga, jogou um pouco de
água. E, quando a água começou a fumegar...
– Tac!... – quebrou a casca do ovo para despejá-lo lá dentro.
Mas em vez da clara e da gema, saiu lá de dentro, todo alegre e gentil,
um pintinho que, fazendo uma bela reverência, disse:
– Mil agradecimentos, senhor Pinóquio, por ter me poupado o trabalho
de quebrar a casca! Até mais ver, fique bem, e muita saúde aos de casa!
Dito isso, abriu as asas e, atravessando a janela aberta, voou até se perder
de vista.
O pobre boneco ficou ali, como encantado, os olhos parados, a boca
aberta e as cascas do ovo na mão. Refeito, porém, do primeiro susto,
começou a chorar, a gritar, a bater os pés no chão, desesperado e aos
prantos:
– O Grilo Falante tinha razão! Se eu não tivesse fugido de casa e se meu
pai estivesse aqui, eu agora não estaria morrendo de fome. Ah! Que doença
grave é a fome!...
E porque o estômago continuava a roncar mais que nunca e não sabia
como fazer para acalmá-lo, Pinóquio pensou em sair e dar uma escapada até
algum lugar próximo, na esperança de encontrar alguém caridoso que lhe
desse de esmola um pedaço de pão.
6.
Pinóquio adormece com os pés sobre o fogareiro e, na manhã seguinte, acorda com eles queimados
E
ra decididamente uma noite infernal. Trovejava forte, relampejava
como se o céu pegasse fogo, e uma ventania fria e cortante, assobiando
raivosamente e levantando uma imensa nuvem de poeira, fazia gemer e
ranger todas as árvores do campo.
Pinóquio tinha um medo enorme dos trovões e
dos raios, embora a fome fosse mais forte que o
medo, motivo pelo qual encostou a porta de casa,
pegou a estrada e, com uma centena de saltos,
chegou até um lugar vizinho, com a língua de
fora e ofegando como um cão de caça.
Mas encontrou tudo escuro e deserto. As lojas
estavam fechadas, as portas das casas, fechadas,
as janelas, fechadas, e na rua nem ao menos um
cão. Parecia um lugar de mortos.
Tomado pelo desespero e pela fome, Pinóquio
se agarrou à campainha de uma casa e começou a
tocá-la sem parar, dizendo baixinho: Voltou para casa molhado como
– Vai aparecer alguém. um pintinho...
De fato, apareceu uma touca de dormir e, debaixo dela, um velho, que
gritou, irritado:
O que quer a esta hora?
– Você faria o favor de me dar um pedaço de pão?
– Espera aí, que eu volto já! – respondeu o velhinho, acreditando ser
alguma daquelas crianças maluquinhas que se divertem, de noite, tocando
as campainhas das casas, para incomodar as pessoas de bem que dormem
tranquilamente.
Depois de meio minuto a janela se abriu, e a voz do mesmo velhinho
gritou para Pinóquio:
– Venha cá embaixo e apara com o chapéu.
Pinóquio, que não tinha ainda um chapéu, aproximou-se e sentiu chover
em cima dele uma enorme baciada d’água, que o regou todo, da cabeça aos
pés, como se fosse um vaso de gerânios murcho.
Voltou para casa molhado como um pintinho e morto de cansaço e de
fome. E porque não tinha mais forças para ficar de pé, foi sentar-se,
apoiando os pés encharcados e enlameados sobre o fogareiro cheio de
brasas acesas.
Ali adormeceu; enquanto isso, seus pés, que eram de pau, pegaram fogo:
pouco a pouco viraram carvão e depois, cinzas.
Pinóquio continuava a dormir e a roncar, como se os pés não fossem
dele. Finalmente, ao clarear o dia, acordou, pois alguém tinha batido na
porta.
– Quem é? – perguntou, bocejando e esfregando os olhos.
– Sou eu! – respondeu uma voz.
Era a voz de Gepeto.
7.
Gepeto volta para casa e dá ao boneco o lanche que tinha trazido para si
O
pobre Pinóquio, que tinha os olhos ainda sonolentos, não havia visto
que seus pés estavam queimados. Assim que ouviu a voz do pai,
escorregou do tamborete para correr e tirar a tranca da porta, mas, em vez
disso, depois de dois ou três tropeções, caiu de bruços, estendido de
comprido no chão.
Ao bater no chão, fez o mesmo barulho que teria feito um monte de
colheres caindo de um quinto andar.
– Abra para mim! – Gepeto gritava da rua.
– Papai, não posso... – respondia o boneco, chorando e rolando no chão.
– Por que não pode?
– Porque comeram meus pés.
– E quem os comeu?
– O gato! – disse Pinóquio, vendo o gato, que se divertia fazendo dançar
alguns gravetos de pau com as patas dianteiras.
– Abra, já! Senão, quando entrar em casa, pego você em vez do gato! –
repetiu Gepeto.
– Não posso ficar de pé, acredite. Oh! Pobre de mim! Pobre de mim,
terei de andar de joelhos por toda a vida!
Gepeto, acreditando que todo esse chororô fosse outra travessura do
boneco, resolveu acabar com ela e, encarapitando-se em cima do muro,
entrou em casa pela janela.
A princípio, queria fazer o que disse, mas quando viu seu Pinóquio
esticado no chão e, realmente, sem pés, se enterneceu. E logo o pegou no
colo e se pôs a beijá-lo e a fazer mil carícias e agrados, e, com as lágrimas
rolando por suas bochechas, disse, soluçando:
– Pinoquinho meu! Como é que foi queimar os pés?!
Entrou em casa pela janela.
– Não sei, papai, mas acredite que foi uma noite dos infernos, da qual me
lembrarei enquanto viver. Trovejava, relampejava, e eu tinha uma baita
fome, e o Grilo Falante me disse: “Bem feito: você foi malvado e mereceu
isso”, e eu disse: “Cuide-se, Grilo!...”, e ele me disse: “Você é um boneco e
tem a cabeça de pau”, e eu acertei nele o cabo do martelo, e ele morreu, mas
a culpa foi dele, pois eu não queria matá-lo, prova é que pus uma
frigideirinha na brasa sempre acesa do fogareiro, mas o pintinho pulou para
fora e escapou dizendo: “Até mais ver... e muitas lembranças aos de casa”.
E a fome crescia sempre, motivo pelo qual apareceu na janela a touca de
dormir na cabeça de um velhinho, que me disse: “Venha aqui embaixo e
apara com o chapéu”. E eu levei toda aquela baciada de água, mas pedir um
pouco de pão não é uma vergonha, não é verdade? Voltei logo para casa, e
porque estava ainda com uma fome muito grande, pus os pés sobre o
fogareiro para me secar, e você voltou, e aqui estou eu todo queimado, e no
entanto continuo tendo fome, e pés não tenho mais! Ai! Ai! Ai! Ai!
E o pobre Pinóquio começou a chorar e a berrar tão forte, que o ouviam a
cinco quilômetros de distância.
Gepeto, que de todo aquele discurso complicado tinha entendido uma
coisa só, isto é, que o boneco estava morrendo de tanta fome, tirou do bolso
três peras e estendeu-as a ele, dizendo:
– Essas três peras eram o meu lanche, mas eu dou a você de boa vontade.
Coma, e bom apetite.
– Se quer que eu coma, faça o favor de descascar.
– Descascar? – replicou Gepeto, surpreso. – Não sabia, meu filho, que
você tivesse tão pouco apetite e fosse tão enjoado para comer. Vai mal!
Neste mundo, desde criança, devemos nos acostumar a morder e a comer de
tudo, pois não se sabe nunca o que pode vir pela frente. Acontece tanta
coisa!...
– Você está certo. Mas eu não comerei nunca uma fruta que não esteja
descascada. Não suporto cascas – acrescentou Pinóquio.
E aquele bom homem pegou um canivete e, armado de santa paciência,
descascou as três peras e pôs todas as cascas sobre um canto da mesa.
Quando, em duas bocadas, Pinóquio comeu a primeira pera e fez que ia
jogar fora o miolo, Gepeto segurou seu braço, dizendo:
– Não jogue fora, tudo neste mundo pode ser aproveitado.
– Mas eu não como o miolo, de jeito nenhum!... – gritou o boneco,
revoltando-se, furioso.
– Quem sabe! Acontece tanta coisa!... – repetiu Gepeto, sem se perturbar.
Fato é que os três miolos, em vez de jogados fora pela janela, foram
postos no canto da mesa, junto com as cascas.
Comidas, ou, melhor dizendo, devoradas as três peras, Pinóquio deu um
longuíssimo bocejo e disse, choramingando:
– Ainda tenho fome!
– Mas eu, meu filho, não tenho mais nada para lhe dar.
– Nada mesmo, NADA?
– Tenho somente essas cascas e esses miolos de pera.
– Paciência! Se não há outra coisa, como uma casca – disse Pinóquio.
E começou a mastigar. A princípio, retorceu um pouco a boca, mas
depois, uma após a outra, engoliu de uma vez todas as cascas, e depois das
cascas, também os miolos, e quando acabou de comer tudo, bateu todo
contente na barriga e disse, feliz:
– Agora sim, estou bem!
– Veja, então, que tenho razão quando digo que não devemos ser nem
muito exigentes nem muito enjoados de paladar. Meu caro, não se sabe
nunca o que se pode encontrar neste mundo. Acontece tanta coisa!... –
observou Gepeto.
8.
Gepeto refaz os pés de Pinóquio e vende a própria casaca para comprar-lhe o Abecedário
A
ssim que parou de nevar, Pinóquio, com seu belo Abecedário novo
debaixo do braço, saiu e foi andando pela rua que levava à escola;
enquanto caminhava, fantasiava mil raciocínios e mil castelos no ar, cada um
mais bonito que o outro. E discursando para si mesmo, dizia, todo
comovido:
– Hoje, na escola, quero logo aprender a ler; amanhã aprenderei a
escrever, e depois de amanhã, a fazer contas. Então, com minha habilidade,
ganharei muitas moedas, e com as primeiras moedas que ganhar, quero logo
fazer para meu pai uma bela casaca de pano. Mas... por que de pano? Vou
fazê-la toda de prata e de ouro, com botões de brilhantes. Aquele pobre
homem merece isso de verdade, pois, afinal, para me comprar os livros e
para me instruir, ficou só de camisa... neste frio! Não há muitos pais capazes
de um sacrifício como esse!...
Nesse momento, ouviu à distância uma música de pífaros:
– Pi-pi-pi, pi-pi-pi...
E batidas de bumbo:
– Bum, bum, bum, bum...
Parou e ficou escutando. Os sons vinham do fundo de uma rua comprida,
que atravessava a rua da escola e levava a um lugarejo à beira do mar.
– O que será essa música? Pena que eu tenho de ir para a escola...
E permaneceu ali, indeciso. Mas precisava tomar uma decisão: ou ir para
a escola ou ir ouvir os pífaros.
– Hoje vou ouvir os pífaros e amanhã vou à escola. Para ir à escola
sempre há tempo – disse finalmente o moleque, sacudindo os ombros.
Dito e feito: entrou na rua comprida e começou a correr. Quanto mais
corria, mais claro ficava o som dos pífaros:
– Pi-pi-pi, pi-pi-pi, pi-pi-pi...
E as batidas do bumbo:
– Bum, bum, bum, bum...
Logo Pinóquio se encontrou no meio de uma praça cheia de gente, a qual
rodeava um grande barracão de madeira e de lona pintada de mil cores.
– O que é aquele barracão? – perguntou Pinóquio a um menino do
lugarejo.
– Leia o cartaz e saberá.
– Leria numa boa, mas justo hoje não sei ler.
– Belo burro! Então eu leio. Naquele cartaz de letras vermelhas como o
fogo está escrito:
GRANDE TEATRO DE BONECOS
– E faz muito tempo que começou a comédia?
– Vai começar agora.
– E quanto se paga para entrar?
– Quatro moedas.
Pinóquio, que tinha a febre da curiosidade, perdeu toda a timidez e, sem
se envergonhar, disse ao menino:
– Você me emprestaria quatro moedas até amanhã?
– Emprestaria numa boa, mas justo hoje não posso emprestar – respondeu
o outro, rindo dele.
– Por quatro moedas eu lhe vendo a minha jaqueta – disse o boneco.
– Que quer que eu faça com uma jaqueta de papel florido? Se chove, não
há mais como tirá-la do corpo.
– Quer comprar os meus sapatos?
– São bons para acender o fogo.
– Quanto me dá pelo chapéu?
– Bela compra, essa! Um chapéu de miolo de pão! Os ratos podem até vir
comer minha cabeça!
− Você me dá quatro moedas por este Abecedário novo?
Pinóquio pisava em ovos. Estava prestes a fazer a última oferta, mas não
tinha coragem, duvidava, agitava-se, sofria. Por fim, disse:
– Você me dá quatro moedas por este Abecedário novo?
– Eu sou uma criança, e não compro nada de crianças – respondeu o
menino, que tinha mais juízo que ele.
– Por quatro moedas, eu compro o Abecedário! – gritou um revendedor
de roupas usadas que estava ouvindo a conversa.
E o livro foi vendido em dois tempos. E pensar que o pobre do Gepeto
tinha ficado em casa, tremendo de frio, só de camisa, para comprar o
Abecedário do filho!
10.
Os bonecos reconhecem em Pinóquio um irmão e lhe fazem uma grande festa; mas, no melhor dela,
aparece o titereiro Come-Fogo, e Pinóquio corre o risco de ter um péssimo fim
Q
uando Pinóquio entrou no teatro de marionetes, aconteceu um fato que
quase provocou uma revolução.
A cortina estava levantada, e uma comédia muito antiga e conhecida por
todo mundo já tinha começado.
Em cena, os personagens de sempre, Arlequim e Pulcinela, estavam
brigando e, como costumavam fazer, ameaçavam de um momento para o
outro trocar uma sequência de tapas e pauladas.
A plateia, muito atenta, passava mal de tanto dar risadas ao ouvir o bate-
boca dos dois bonecos, que gesticulavam e falavam cada insulto com tanta
perfeição que pareciam ser dois animais racionais de verdade, duas pessoas
de carne e osso.
De repente, no meio daquele “é-não é”, Arlequim parou de recitar e,
virando-se para o público e abanando a mão para alguém no fundo da
plateia, começou a gritar em tom dramático:
– Deuses do céu! Estou sonhando ou estou acordado? Aquele lá embaixo
é Pinóquio!...
– Verdade! É Pinóquio! – gritou Pulcinela.
– É ele mesmo! – gritou a personagem Rosaura, apontando a cabeça no
fundo da cena.
– É Pinóquio! É Pinóquio! – gritaram em coro todos os bonecos, saindo
aos saltos das coxias.
– É Pinóquio! É nosso irmão Pinóquio! Viva Pinóquio!...
− Aquele lá embaixo é Pinóquio!...
– Pinóquio, venha para cá, junto de mim! Venha se jogar nos braços de
seus irmãos de madeira! – gritou Arlequim.
Ao ouvir esse afetuoso convite, Pinóquio deu um salto e, do fundo da
plateia, foi pulando aqui e ali, e depois, com mais saltos, acabou montado na
cabeça do diretor da orquestra, e dali pulou para o palco.
É impossível imaginar os abraços, os apertões e os beliscões de amizade e
as cabeçadas de verdadeira e sincera fraternidade que Pinóquio recebeu, em
meio a tamanha confusão, dos atores e das atrizes daquela companhia
dramático-vegetal.
Era um espetáculo comovente, não há como negar, mas o público, vendo
que a comédia não ia adiante, se impacientou e começou a gritar:
– A comédia! Queremos a comédia!
Tanto fôlego jogado fora! Pois os bonecos, em vez de continuar a
apresentação, redobraram o barulho e os gritos e, pondo Pinóquio sobre os
ombros, o levaram em triunfo às luzes da ribalta.
Então surgiu o titereiro, um homem feio, mas tão feio, que dava medo só
de olhá-lo. Tinha uma barba negra como um borrão de tinta e tão longa que
descia do queixo até o chão. Basta dizer que,
quando caminhava, embaraçava os pés nela. A
boca era larga como a de um forno, os olhos
pareciam duas lanternas com luzes acesas por trás
de vidros vermelhos, e na mão direita ele estalava
um grosso chicote, feito de serpentes e de rabos de
raposas trançados juntos.
À aparição inesperada do titereiro, todos
ficaram mudos, ninguém respirou mais. Seria
possível ouvir voar uma mosca. Os pobres
À aparição inesperada do
bonecos, machos e fêmeas, tremiam como varas
titereiro, todos ficaram mudos...
verdes.
– Por que veio fazer confusão no meu teatro? – o titereiro perguntou
friamente a Pinóquio, com o vozeirão grave de um ogro.
– Creia, ilustríssimo, que a culpa não foi minha!...
– Basta disso! Essa noite acertaremos nossas contas.
De fato, acabada a apresentação da comédia, o titereiro foi à cozinha,
onde preparavam, para o jantar, um belo cordeiro que girava lentamente,
enfiado no espeto. E, como faltava lenha para acabar de assá-lo e de dourá-
lo, o titereiro chamou Arlequim e Pulcinela e disse:
– Tragam aqui aquele boneco bagunceiro que deixei pendurado no prego.
Parece feito de uma madeira muito seca, e estou certo de que, se jogá-lo no
fogo, dará uma belíssima tostada no assado.
Arlequim e Pulcinela a princípio vacilaram, mas, amedrontados por um
olhar do patrão, obedeceram, e voltaram à cozinha trazendo nos braços o
pobre Pinóquio, que, contorcendo-se como uma enguia fora d’água, gritava,
em desespero:
– Papai, salve-me! Não quero morrer, não, não quero morrer!...
11.
Come-Fogo espirra e perdoa Pinóquio, que então salva da morte o amigo Arlequim
N
o dia seguinte, Come-Fogo chamou Pinóquio de lado e perguntou:
– Como se chama seu pai?
– Gepeto.
– E que ofício ele tem?
– O ofício de pobre.
– Ganha muito?
– Ganha tanto quanto é preciso para não ter nunca uma moedinha no
bolso. Imagine que, para me comprar o Abecedário da escola, teve de
vender a única casaca que vestia: uma casaca que, entre puídos e remendos,
era um trapo só.
– Pobre diabo! Quase me dá compaixão. Eis aqui cinco moedas de ouro.
Vá logo levar para ele, com minhas saudações.
Pinóquio, como é fácil imaginar, agradeceu mil vezes ao titereiro,
abraçou um a um todos os bonecos da companhia, os guardas e, fora de si
de contentamento, começou a viagem de volta para casa.
Mas não tinha caminhado nem meio quilômetro quando encontrou uma
Raposa coxa de um pé e um Gato cego dos dois olhos, que vagavam por ali,
um ajudando o outro, bons companheiros de desventura. A Raposa, que era
manca, caminhava apoiando-se no Gato, e o Gato, que era cego, era guiado
pela Raposa.
− Como é que sabe o meu nome?
C
aminharam, caminharam, caminharam e, afinal, no início da noite,
chegaram mortos de cansaço à Pousada do Camarão Vermelho.
– Vamos parar aqui um pouco, para comer alguma coisa e para
descansarmos algumas horas. À meia-noite, partiremos, para estarmos
amanhã, ao amanhecer, no Campo dos Milagres – disse a Raposa.
Na Pousada, os três sentaram-se à mesa, mas nenhum deles tinha apetite.
O pobre Gato, sentindo-se gravemente indisposto do estômago, não pôde
comer a não ser trinta e cinco tainhas com molho de tomate e quatro
porções de dobradinha com manteiga e queijo. E como a dobradinha não
lhe parecia temperada a seu gosto, refez por três vezes o pedido de mais
manteiga e queijo ralado!
A Raposa tinha beliscado, com prazer, alguma coisa também, mas como
o médico lhe tinha passado uma rigorosíssima dieta, teve de se contentar
com uma simples lebre ao molho doce e azedo, com um levíssimo
acompanhamento de frangos gordos e de galetos al primo canto.** Depois
da lebre, pediu, para arrematar, um refogadinho de perdizes, codornas,
coelhos, rãs, lagartixas e uva do paraíso, e depois não quis mais nada. Tinha
tanto enjoo da comida, dizia ela, que não podia nem sentir o cheiro dela.
O que comeu menos foi Pinóquio. Pediu a metade de uma noz e uma
ponta de pão e deixou tudo no prato. O pobre menino, com o pensamento
fixo no Campo dos Milagres, teve uma indigestão antecipada por causa das
moedas de ouro.
O que comeu menos foi Pinóquio.
– E pagaram a ceia?
– Nem pensar! Eles são criaturas muito educadas para fazerem
semelhante afronta a Vossa Senhoria.
– Pena! Essa afronta teria me dado muito prazer! – disse Pinóquio,
coçando a cabeça; então perguntou:
– E onde meus bons amigos disseram que iam esperar por mim?
– No Campo dos Milagres, de manhãzinha, ao despontar o dia.
Pinóquio pagou uma moeda pelos quartos, por sua ceia e pelas de seus
companheiros, e partiu.
Pode-se dizer até que partiu tateando pelo caminho, pois fora da Pousada
estava uma escuridão tão escura, que não se via nada daqui até ali. No
campo em torno não se ouvia farfalhar uma folha. Somente alguns
passarões noturnos, atravessando a estrada de uma moita a outra, vinham
bater as asas no nariz de Pinóquio, que, dando um salto para trás de medo,
gritava:
– Quem vem lá?
E o eco das colinas em volta repetia à distância: – Quem vem lá? Quem
vem lá? Quem vem lá?
Enquanto caminhava, o boneco viu no tronco de uma árvore um
animalzinho minúsculo que reluzia com uma luz pálida e opaca, como uma
chama dentro de uma lâmpada de porcelana transparente de noite.
– Quem é você? – perguntou Pinóquio.
– Sou a sombra do Grilo Falante – respondeu o animalzinho com uma
vozinha fraca, fraca, que parecia vir de outro mundo.
– O que quer de mim? – disse o boneco.
– Quero dar um conselho. Volte e leve as quatro moedas que sobraram ao
seu pobre pai, que chora e se desespera por não ter mais visto você.
– Amanhã meu pai será um grande senhor, pois estas quatro moedas
virarão duas mil.
– Não confie, meu menino, naqueles que prometem fazer você rico da
noite para o dia. Em geral, ou são loucos ou trapaceiros! Preste atenção,
volte!
– Ao contrário, quero ir em frente.
– Já está tarde!...
– Quero ir em frente.
– A noite está escura...
– Quero ir em frente.
– A estrada é perigosa...
– Quero ir em frente.
– Lembre-se de que as crianças que querem fazer tudo por capricho e ao
modo delas cedo ou tarde se arrependem.
– Sempre as mesmas histórias. Boa noite, Grilo.
– Boa noite, Pinóquio, e que o céu o salve da geada e dos assassinos.
Assim que disse essas últimas palavras, o Grilo Falante se apagou de
repente, como quando se sopra uma vela, e a estrada ficou mais escura que
antes.
14.
Pinóquio, por não dar atenção aos bons conselhos do Grilo Falante, se encontra com os assassinos
– Não, não, não, meu pobre pai, não! – gritou Pinóquio desesperado –, e
as moedas tilintaram na sua boca.
– Ah, trapaceiro! Então você escondeu as moedas debaixo da língua?
Cuspa, logo!
E Pinóquio, firme.
– Ah! Você finge de surdo? Espere um pouco, nós vamos fazê-lo cuspir!
De fato, um deles agarrou o boneco pela ponta do nariz, o outro o pegou
pelo queixo, e começaram a puxar brutalmente, um para cá, o outro para lá,
para obrigá-lo a abrir a boca, mas não havia como: a boca do boneco
parecia pregada e firme.
Então o assassino mais baixo, pegando um facão, tentou enfiá-lo, como
se fosse uma alavanca, entre os lábios do Pinóquio, mas o boneco, rápido
como um raio, agarrou sua mão com os dentes, e depois tê-la arrancado de
uma só vez com uma mordida, cuspiu-a, e imagine qual não foi sua surpresa
quando, em vez de uma mão, percebeu ter cuspido uma patinha de gato.
Encorajado por essa primeira vitória, o boneco se libertou à força das
unhas dos malfeitores e, saltando a cerca viva da estrada, começou a fugir
pelo campo, com os assassinos atrás dele como dois cães atrás de um
coelho. Aquele que tinha perdido uma pata corria com uma perna só, e não
se soube nunca como conseguia.
Depois de uma corrida de quinze quilômetros, Pinóquio não se
aguentava mais. Então, vendo-se perdido, encarapitou-se no tronco de um
altíssimo pinheiro e foi se sentar no topo dos galhos. Os assassinos tentaram
fazer o mesmo, mas, chegando à metade do tronco, escorregaram e, na
descida, esfolaram as mãos e os pés.
Nem por esse motivo se deram por vencidos. Em vez disso, juntando um
feixe de lenhas secas ao pé do pinheiro, atearam fogo nele. Em um piscar de
olhos a árvore começou a queimar, incendiando-se como uma vela soprada
pelo vento. Pinóquio, vendo que as chamas subiam mais e mais, e não
querendo acabar como um pombo assado, deu um belo salto do alto da
árvore, danando a correr de novo pelos campos e vinhedos, com os
assassinos atrás, sempre atrás, sem nunca se cansar.
Entretanto, quando o dia começava a clarear, Pinóquio encontrou a
passagem interrompida por um fosso largo e profundíssimo, cheio de uma
aguaceira suja, cor de café com leite. O que fazer?
– Um, dois, três! – gritou o boneco e, com um grande impulso, saltou
para o outro lado.
Os assassinos saltaram, também, mas, não tendo calculado bem a
distância...
TCHIBUM-SPLASH-SPLOSH!... – caíram no meio do fosso.
Pinóquio, que ouviu o baque e sentiu os respingos de água, gritou rindo e
continuando a correr:
– Bom banho, senhores assassinos!
Já imaginava que estivessem bem afogados quando, em vez disso, ao
olhar para trás, percebeu que os dois corriam bem perto dele, sempre
empacotados nos seus sacos, gotejando água como dois balaios.
15.
Os assassinos perseguem Pinóquio e, alcançando-o, logo o penduram em um galho do Grande
Carvalho
N
aquele momento em que o pobre Pinóquio, enforcado pelos assassinos
em um galho do Grande Carvalho, parecia mais morto que vivo, a
Bela Menina dos Cabelos Azuis chegou de novo à janela e, com pena
daquele infeliz suspenso pelo pescoço que dançava no ar aos sopros do
vento norte, bateu palmas por três vezes, produzindo três delicados sons.
A esse sinal, ouviu-se um grande rumor de asas apressadas que voavam
com vigor, e um grande Falcão veio pousar no parapeito da janela.
– O que ordena, minha graciosa Fada? – disse o Falcão, baixando o bico
em ato de reverência, pois fique sabendo que a Menina dos Cabelos Azuis
não era outra, no final das contas, senão uma boníssima Fada, que há mais
de mil anos vivia nas vizinhanças daquele bosque.
– Vê aquele boneco balançando em um galho do Grande Carvalho?
– Vejo.
– Bem: voe até lá, corte com seu fortíssimo bico o nó que o mantém
suspenso e, delicadamente, deite-o no capim ao pé do Carvalho.
O Falcão voou e voltou dois minutos depois, dizendo:
– O que ordenou está feito.
– E como o encontrou? Vivo ou morto?
Um grande falcão veio pousar no parapeito da janela.
– Parecia morto, mas não devia estar ainda completamente morto, pois,
logo que afrouxei o nó de correr em volta da garganta dele, soltou um
suspiro, murmurando em voz baixa:
– Agora me sinto melhor!...
A Fada bateu palmas, e apareceu um magnífico Cão Cacheado,*** que
caminhava em pé sobre as pernas traseiras, como se fosse humano.
O Cão Cacheado estava vestido de cocheiro em uniforme de gala. Tinha
na cabeça um chapeuzinho de três pontas contornado de ouro, uma peruca
loura com os cachos que desciam pescoço abaixo, uma jaqueta cor de
chocolate com botões de brilhantes e dois grandes bolsos para levar os
ossos que a patroa Fada lhe dava para comer, um par de calças curtas de
veludo vermelho, meias de seda, sapatos cavados e, saindo da casaca, uma
espécie de sacola de cetim azul para pôr a cauda dentro quando começasse a
chover.
– Seja bondoso, Medoro! Mande atrelar a mais bela carruagem da minha
cocheira e tome o caminho do bosque. Chegando sob o Grande Carvalho,
encontrará estendido no capim um pobre boneco meio morto. Recolha-o
com delicadeza, pouse-o cuidadosamente sobre as almofadas da carruagem
e traga-o aqui. Entendeu? – disse a Fada ao Cão Cacheado.
O Cão Cacheado, para mostrar que havia entendido, abanou três ou
quatro vezes a sacola de cetim azul que levava sobre o lombo e partiu como
um cavalo de corrida.
Dali a pouco, saiu da cocheira uma bela carruagenzinha cor de ar, toda
recoberta de penas de canarinho e forrada, no interior, de creme chantili e
de musse com biscoito champanhe. Era puxada por cem parelhas de
camundongos brancos, e o Cão Cacheado, sentado na boleia, estalava o
chicote para a direita e para a esquerda feito um cocheiro quando está
atrasado.
A
ssim que os três médicos saíram do quarto, a Fada aproximou-se de
Pinóquio e, depois de tocar sua testa, percebeu que era acometido de
uma febrona de não se acreditar.
Então dissolveu um pozinho branco em meio copo d’água e, estendendo-
o ao boneco, disse, amorosamente:
– Beba, e em poucos dias estará curado.
Pinóquio olhou o copo, torceu um pouco a boca e perguntou, com voz de
choro:
– É doce ou amargo?
– É amargo, mas lhe fará bem.
– Se é amargo não quero.
– Confie em mim: beba.
– O amargo não me agrada.
– Beba, e quando tiver bebido darei a você uma balinha de açúcar, para
refrescar a boca.
– Onde está a balinha de açúcar?
– Aqui – disse a Fada, tirando-a de um açucareiro de ouro.
– Antes quero a balinha de açúcar, e depois beberei aquela água
amarga...
– Promete?
– Sim...
A Fada lhe deu a balinha, e Pinóquio, depois de mastigar e engolir em
um segundo, disse, lambendo os lábios:
– Beleza! Se o açúcar também fosse um remédio!... Eu me medicaria
todos os dias.
– Agora mantenha a promessa e beba essas poucas gotas d’água, que lhe
devolverão a saúde.
Pinóquio pegou o copo com má vontade, enfiou dentro dele a ponta do
nariz, depois o aproximou da boca, depois tornou a enfiar nele a ponta do
nariz, e, finalmente, disse:
– É muito amarga! Não posso beber. Muito amarga!
– Como pode dizer isso, se nem ao menos provou?
– Eu imagino! Senti o cheiro. Quero antes outra balinha de açúcar... e
então beberei!
Então a Fada, com toda a paciência de uma boa mãe, pôs em sua boca
outro pouco de açúcar, depois lhe ofereceu de novo o copo.
– Assim não posso beber! – disse o boneco, fazendo mil caretas.
– Por quê?
– Porque me dá enjoo aquele travesseiro que tenho lá embaixo nos pés.
A Fada tirou o travesseiro.
– É inútil! Nem mesmo assim posso beber.
– Que outra coisa lhe dá enjoo?
– A porta do quarto, que está meio aberta.
A Fada foi lá e fechou a porta do quarto.
– Afinal, não quero beber essa água amarga, não, não, não!... – gritou
Pinóquio em um ataque de choro.
– Meu menino, você se arrependerá...
– Não me importa...
– A sua doença é grave.
– Não me importa...
– A febre levará você em poucas horas para o outro mundo...
– Não me importa...
– Não tem medo da morte?
– Nenhum medo! Antes morrer que beber esse remédio ruim.
Nesse momento, a porta do quarto se escancarou, e entraram quatro
coelhos negros como breu, carregando nos ombros um pequeno caixão.
Entraram quatro coelhos negros como tinta...
C
omo você pode imaginar, a Fada deixou que o boneco chorasse e
berrasse uma boa meia hora por causa daquele nariz que não passava
mais pela porta do quarto. Fez isso para lhe dar uma severa lição e para que
corrigisse o feio hábito de dizer mentiras, o mais feio vício que uma criança
pode ter. Mas, quando o viu transfigurado e com os olhos arregalados de
desespero, ficou com pena: bateu palmas, e a esse sinal entraram pela janela
mil grandes pássaros chamados pica-paus que, pousando sobre o nariz de
Pinóquio, começaram a bicá-lo tanto, tanto, que em poucos minutos aquele
nariz enorme e despropositado foi reduzido ao seu tamanho natural.
– Como você é boa, minha Fada, e quanto lhe quero bem! – disse o
boneco, enxugando os olhos.
– Quero-lhe bem também, e, se quiser ficar comigo, será o meu
irmãozinho, e eu, a sua boa irmãzinha... – respondeu a Fada.
– Eu ficaria numa boa, mas... e o meu pobre pai?
– Pensei em tudo. O seu pai já foi avisado, e antes que anoiteça estará
aqui.
– Verdade? Então, Fadinha minha, se não se importa, queria ir ao
encontro dele! Não vejo a hora de poder dar um beijo naquele pobre velho
que tanto sofreu por mim! – gritou Pinóquio, saltando de alegria.
– Vá, então, mas cuide de não se distrair. Pegue o caminho do bosque,
estou certa de que o encontrará.
Pinóquio partiu, e logo que entrou no bosque começou a correr como um
cabrito. Mas quando chegou quase diante do Grande Carvalho, parou, pois
pareceu ter percebido vultos andando por entre as árvores. De fato, viu
aparecer, na estrada, adivinhe quem? A Raposa e o Gato, ou seja, os dois
companheiros de viagem com os quais tinha jantado na Pousada do
Camarão Vermelho.
– Eis o nosso caro Pinóquio! Como veio parar aqui? – gritou a Raposa,
abraçando-o e beijando-o.
– Como veio parar aqui? – repetiu o Gato.
– É uma longa história, depois conto com calma. Saibam, porém, que na
outra noite, quando me deixaram sozinho na Pousada, encontrei assassinos
na estrada... – disse o boneco.
– Assassinos?... Oh, pobre amigo! E o que queriam?
V
oltando à cidade, o boneco começou a contar os minutos. Quando
pareceu ser a hora, correu para a estrada que levava ao Campo dos
Milagres.
Enquanto caminhava com passo apressado, seu coração batia forte,
parecia um relógio de sala quando funciona de verdade: – Tique-taque,
tique-taque...
Ao mesmo tempo, Pinóquio falava consigo mesmo:
– E se em vez de mil moedas eu encontrasse
duas mil nos galhos da árvore? E se em vez de
duas mil, eu encontrasse cinco mil? E se em vez
de cinco mil, eu encontrasse cem mil? Oh, eu me
tornaria, então, um belo senhor! Teria um belo
palácio, mil pôneis de madeira e mil estábulos
para me divertir, uma adega de licores, com
aquele bem docinho, e uma estante cheinha de
doces cristalizados, tortas, panetones, torrões de
amêndoas e enrolados com chantili.
Assim fantasiando, chegou bem perto do
campo e parou para verificar se avistava alguma
árvore com os galhos carregados de moedas, mas
não viu nada. Deu mais cem passos adiante, e
nada; entrou no campo e foi justo até o pequeno ...tirou uma mão do bolso e deu
uma longuíssima coçada na
buraco no qual tinha enterrado suas moedas... e
cabeça.
nada. Ficou um tempo pensativo e, esquecendo as
regras da etiqueta e da boa educação, tirou uma mão do bolso e deu uma
longuíssima coçada na cabeça.
Nisso, uma grande risada retumbou em seus ouvidos; olhando para cima,
viu em uma árvore um grande papagaio que arrepiava as poucas penas que
tinha pelo corpo.
– Por que ri? – perguntou Pinóquio com voz irritada.
– Rio porque arrepiar me dá cócegas sob as asas.
O boneco não respondeu. Foi ao açude, encheu de água o mesmo chinelo
e começou novamente a regar a terra que recobria as moedas de ouro.
Outra risada, ainda mais impertinente que a primeira, se fez ouvir na
solidão silenciosa do campo.
– Afinal, posso saber, Papagaio malcriado, do que está rindo? – gritou
Pinóquio, com raiva.
– Rio dos bobalhões que acreditam em toda e qualquer bobagem e se
deixam enganar por quem é mais esperto que eles.
– Por acaso está falando de mim?
– Sim, falo de você, pobre Pinóquio, de você, que é tão desmiolado que
acredita que é possível semear e colher dinheiro nos campos, como se faz
com os feijões e as abóboras. Eu também acreditei nisso uma vez e hoje
pago com minhas penas! Hoje estou convencido de que, para juntar
honestamente algum dinheiro, é preciso saber ganhar ou com o trabalho das
próprias mãos, ou com a inteligência da própria cabeça. Mas agora é tarde.
– Não entendo – disse o boneco, que já começava a tremer de medo.
– Paciência! Explico melhor. Fique sabendo que, enquanto você estava
na cidade, a Raposa e o Gato voltaram aqui, pegaram as moedas de ouro
enterradas e fugiram com a rapidez do vento. E agora, quem pode alcançá-
los? – contou o Papagaio.
Pinóquio ficou boquiaberto, não querendo acreditar nas palavras do
Papagaio, e com as mãos e as unhas começou a escavar o terreno que tinha
regado. E escava, que escava, que escava, acabou fazendo um buraco tão
fundo que nele caberia, em pé, um monte de feno – mas as moedas não
estavam mais lá.
Tomado de desespero, o boneco voltou correndo à cidade e foi direto ao
tribunal, para denunciar os dois malandrinhos que o tinham roubado.
Pinóquio, na presença do juiz, contou tintim por tintim a injusta fraude...
− Esse pobre diabo foi roubado em quatro moedas de ouro; portanto, levem-no e metam-no logo na
prisão.
I
magine a alegria de Pinóquio quando se viu livre. Sem dizer uma
palavra, saiu logo da cidade e pegou a estrada para voltar à casa da Fada.
Por causa do tempo chuvoso, a estrada virou uma lama só, que ia até o
meio de suas pernas. Mas o boneco não se importava. Entusiasmado pelo
desejo de rever o pai e a irmãzinha de cabelos azuis, ia aos pulos como um
cão de caça; com isso, os respingos chegavam até a altura de seu chapéu.
Enquanto corria, Pinóquio ia dizendo consigo mesmo:
– Quantas desgraças me aconteceram... E eu mereço! Pois sou um
boneco teimoso e pirracento, quero sempre fazer as coisas do meu modo,
sem dar atenção aos que me querem bem e que têm mil vezes mais juízo
que eu! Mas, quando chegar em casa, prometo mudar de vida e me tornar
um menino comportado e obediente! Só agora eu sei, e muito bem, que as
crianças, por serem desobedientes, sempre se dão mal e enfiam os pés pelas
mãos. E meu pai, estará me esperando? Será que vou encontrá-lo na casa da
Fada? Faz tanto tempo que não o vejo, pobre homem, que morro de vontade
de fazer mil carinhos nele e de enchê-lo de beijos! E a Fada, me perdoará
pelo mal que fiz a ele? E pensar que recebi tantas atenções e tantos
cuidados amorosos de meu pai... E pensar que, se ainda estou vivo, devo a
ele! Será que existe um menino mais ingrato e mais sem coração que eu?!
Nesse momento, Pinóquio levou um susto tão grande que deu quatro
pulos para trás. O que tinha visto?
Estendida de atravessado na estrada, estava uma enorme serpente de pele
verde, olhos de fogo e uma cauda pontuda que fumegava como uma
chaminé.
Impossível imaginar o medo do boneco. Afastando-se mais de meio
quilômetro, resolveu sentar-se sobre um montinho de pedras, esperando que
a serpente fosse dar uma bela volta para cuidar de seus afazeres e deixasse a
passagem livre.
Esperou uma hora, duas horas, três horas, mas a serpente estava sempre
lá, e mesmo de longe Pinóquio via o avermelhado de seus olhos de fogo e a
coluna de fumaça que saía da ponta da cauda.
Então, fingindo ter coragem, o boneco chegou a poucos passos de
distância e, com uma vozinha doce, jeitosa e suave, disse:
– Desculpe, Dona Serpente, a senhora faria o favor de sair um pouquinho
da frente, um tanto que desse para eu passar?
Foi o mesmo que falar com um muro. Ela não se moveu.
Então ele continuou, com a mesma vozinha:
– Sabe, Dona Serpente, estou indo para casa, onde está meu pai, que me
espera e que há muito tempo não vejo! Portanto, permite que eu siga meu
caminho?
Esperou alguma resposta para aquela pergunta, mas ela não veio. Pelo
contrário: a serpente, que até então parecia ágil e cheia de vida, ficou
imóvel e quase dura. Os olhos se fecharam, e a cauda parou de fumegar.
– Está morta de verdade? – disse Pinóquio com grande alegria,
esfregando as mãos de contente e, sem perder tempo, fez que ia pular por
cima dela, para passar para o outro lado da estrada. Mas ele ainda não tinha
acabado de levantar a perna quando a serpente se ergueu de repente, como
uma mola, e o boneco, ao pular para trás de susto, tropeçou e caiu no chão.
E caiu tão mal, tão mal mesmo, que ficou com a cabeça enfiada na lama
da estrada e com as pernas para o ar.
Ao ver aquele boneco que esperneava, em uma velocidade incrível, de
cabeça para baixo, a serpente teve tamanho ataque de riso, que riu, riu, riu
e, por fim, pelo esforço de tanto rir, uma veia arrebentou em seu peito e,
dessa vez, ela morreu de verdade.
E caiu tão mal, que ficou com a cabeça enfiada na lama da estrada...
Então Pinóquio começou a correr para chegar à casa da Fada antes que
escurecesse. Porém, ao longo da estrada, não podendo mais controlar as
pontadas terríveis da fome, entrou em um campo com a intenção de colher
alguns cachos de uva. Não devia nunca ter feito isso! Logo que chegou
debaixo da parreira, ouviu:
– Crac...
E sentiu as pernas apertadas por dois ferros cortantes, que o fizeram ver
quantas estrelas existem no céu.
O pobre boneco tinha ficado preso em uma armadilha posta por
camponeses para agarrar o bando das Fuinhas, o terror de todas as galinhas
da vizinhança.
21.
Pinóquio é preso por um camponês, que o obriga a fingir de cão de guarda em um galinheiro
P
inóquio, como você pode imaginar, começou a chorar, a gritar, a se
lamentar, mas eram choros e gritarias inúteis, pois ali em volta não
havia casas, e na estrada não passava vivalma.
Então anoiteceu.
Um pouco pela dor causada pela armadilha que lhe apertava os
tornozelos, um pouco pelo medo de ficar sozinho e no escuro no meio
daquele campo, o boneco já ia desmaiar quando, vendo passar um vaga-
lume sobre sua cabeça, chamou-o e disse:
– Oi, Vaga-Lume, faria a caridade de me libertar desse suplício?
– Pobre filhote! Como foi ficar com as pernas agarradas entre esses
ferros afiados? – perguntou o Vaga-Lume, parando e olhando-o com pena.
– Entrei no campo para colher dois cachos dessa uva moscatel, e...
– Mas a uva é sua?
– Não, não é...
– E quem ensinou você a pegar as coisas dos outros?
– Estou com fome...
– A fome, meu menino, não é uma boa razão para pegar as coisas que
não são nossas...
– É verdade, é verdade! Mas de outra vez não farei mais isso – gritou
Pinóquio chorando.
Nesse momento, a conversa foi interrompida por um barulhinho de
passos que se aproximavam. Era o dono do campo, que vinha na ponta dos
pés para ver se alguma das Fuinhas, que durante a noite comiam suas
galinhas, tinha ficado presa na armadilha.
E sua surpresa foi enorme quando, tirando a lanterna do bolso do paletó,
percebeu que, em vez de uma das Fuinhas, tinha ficado preso um menino.
– Ah, ladrãozinho! Então é você que leva embora as galinhas? – disse o
camponês, enraivecido.
– Eu não, eu não! Entrei neste campo somente para pegar dois cachos de
uva! – gritou Pinóquio, soluçando.
– Quem rouba uvas é bem capaz de roubar também galinhas. Faça isso,
que darei a você uma lição para não esquecer por muito tempo.
F
azia mais de duas horas que dormia gostosamente quando, perto da
meia-noite, foi acordado por um sussurro e por um ti-ti-ti de vozinhas
estranhas, que pareciam vir do terreiro. Botando a ponta do nariz para fora
da entrada da casinhola, viu, reunidos em um pequeno grupo, quatro bichos
de pelo escuro que pareciam gatos. Mas não eram gatos, eram fuinhas,
animaizinhos carnívoros, gulosíssimos de ovos e de franguinhos jovens.
Uma das Fuinhas, afastando-se das companheiras, foi até o buraco da
casinhola e disse baixinho:
– Boa noite, Melampo.
– Eu não me chamo Melampo – respondeu o boneco.
– Então quem é você?
– Eu sou Pinóquio.
– E o que faz aqui?
– Finjo que sou o cão de guarda.
– Onde está o Melampo? Onde está o velho cão que ficava nessa
casinhola?
– Morreu essa manhã.
– Morreu? Pobre animal! Era tão bom! Mas, pela sua cara, você também
me parece um cão educado.
– Peço desculpas, mas eu não sou um cão!
– E o que é?
– Eu sou um boneco.
– E finge ser cão de guarda?
– Infelizmente, para meu castigo!
– Bem, eu lhe proponho o mesmo combinado que tinha com o falecido
Melampo, e você ficará contente.
– E qual é esse combinado?
– Nós viremos uma noite por semana, como no passado, para visitar este
galinheiro, e levaremos embora oito galinhas. Dessas galinhas, sete nós
comeremos e uma daremos a você, com a condição – está entendendo? – de
você fingir dormir e não ter nunca a ideia de latir e acordar o camponês.
– E Melampo fazia isso mesmo? – perguntou Pinóquio.
– Fazia, sim, ele e nós sempre tivemos esse acordo. Então, durma
tranquilamente e esteja certo de que, antes de partir, deixaremos na casinhola
uma galinha bem depenada para o seu café da manhã. Estamos entendidos?
– Entendidos até demais!... – respondeu Pinóquio, e balançou a cabeça de
modo ameaçador, como se estivesse querendo dizer: – Daqui a pouco,
veremos!...
Quando as quatro Fuinhas acreditaram ter acertado o plano, foram direto
ao galinheiro, que ficava bem próximo à casinhola de cachorro, e, abrindo
com fúria de dentes e unhas a porteirinha de madeira, escorregaram para
dentro, uma depois da outra. Mas nem bem tinham acabado de entrar,
ouviram a porteirinha se fechar com enorme violência.
Uma das fuinhas, afastando-se das companheiras, foi até o buraco da casinhola...
A
ssim que deixou de sentir o peso incômodo e humilhante daquela
coleira em volta do pescoço, Pinóquio começou a correr pelos campos
e não parou nem um minuto enquanto não alcançou a estrada principal, que
devia levá-lo à casinha da Fada.
Chegando à estrada principal, virou-se para olhar a planície abaixo e viu
muitíssimo bem, a olho nu, o bosque onde, por infelicidade, tinha
encontrado a Raposa e o Gato. Viu, acima das árvores, a copa do Grande
Carvalho, no qual tinha sido pendurado pelo pescoço. Mas, olha daqui, olha
dali, não conseguiu ver a casinha da Bela Menina dos Cabelos Azuis.
Então teve uma espécie de triste pressentimento e, correndo com toda a
força que tinha nas pernas, chegou em poucos minutos ao prado onde, um
dia, tinha encontrado a casinha branca. Porém ela não existia mais. Havia,
em seu lugar, uma pequena pedra de mármore, na qual se liam, em letras
maiúsculas, estas dolorosas palavras:
AQUI JAZ A MENINA DOS CABELOS AZUIS,MORTA DE
DOR POR TER SIDO ABANDONADA POR SEU
IRMÃOZINHO PINÓQUIO
Como ficou o boneco quando aquelas palavras anunciaram o pior, deixo
para você imaginar. Caiu de bruços no chão e, cobrindo de mil beijos aquele
túmulo de mármore, teve um grande ataque de choro. Chorou toda a noite e
no dia seguinte, no início da manhã, chorava ainda, embora não tivesse
mais lágrimas nos olhos; e seus gritos e seus lamentos, de cortar o coração,
eram tão agudos, que todas as colinas em volta repetiam seus ecos.
Chorando, Pinóquio dizia:
– Ó Fadinha minha, por que está morta? Por que, em vez de você, não
estou morto eu, que sou tão mau, enquanto você era tão boa? E meu pai,
onde estará? Ó Fadinha minha, diga-me onde posso encontrá-lo, quero estar
sempre com ele, não vou deixá-lo nunca mais! Nunca mais! Nunca mais! Ó
Fadinha minha, diga que não é verdade que está morta! Se me quer bem de
verdade... se quer bem ao seu irmãozinho, reviva... fique viva como antes!
Não se incomoda de me ver sozinho, abandonado por todos? Se chegarem
os assassinos, me amarrarão de novo ao galho da árvore... e então morrerei
para sempre. O que quer que eu faça sozinho neste mundo? Agora que perdi
você e meu pai, quem me dará o que comer? Onde dormirei à noite? Quem
me fará uma jaquetinha nova? Oh! Seria melhor, cem vezes melhor, que eu
também morresse! Sim, quero morrer! Ai! Ai! Ai!
A
nimado pela esperança de chegar a tempo de ajudar o pai, Pinóquio
nadou a noite toda.
E que noite horrível, aquela! Foi um dilúvio: choveu granizo, trovejou
assustadoramente e com tantos relâmpagos que parecia dia.
No início da manhã, o boneco conseguiu ver, a pouca distância, uma
longa faixa de terra. Era uma ilha no meio do mar.
Fez de tudo para chegar àquela praia, mas foi inútil. As ondas,
perseguindo-se e encavalando-se, o embolavam entre elas, como se fosse
um galho ou um fio de palha. Por fim, e por sorte, veio uma onda tão forte e
poderosa, que o atirou de uma vez na areia da praia. O golpe foi tão forte
que, batendo no chão, todas as costelas e todas as juntas de Pinóquio
estalaram, mas ele logo se consolou, dizendo:
– Mais uma vez, escapei de boa!
Pouco a pouco, o céu se acalmou, o sol apareceu em todo o seu brilho, e
o mar ficou muito tranquilo, liso como um lago.
Então o boneco estendeu suas roupas ao sol, para enxugá-las, e começou
a olhar por todos os lados para ver se avistava, naquela imensa superfície de
água, uma barquinha com um homenzinho dentro. Entretanto, depois de ter
olhado com muita atenção, não viu nada a não ser céu, mar e alguma vela
de navio, mas longe, tão longe, que parecia uma mosca.
– Se eu soubesse ao menos como se chama esta ilha! Se soubesse ao
menos se ela é habitada por gente de bem, quero dizer, por gente que não
tenha mania de pendurar meninos em galhos de árvores! Mas a quem posso
perguntar? A quem, se não há ninguém?... – dizia.
A ideia de estar só, só, só no meio daquele grande lugar desabitado lhe
deu tanta tristeza, que estava quase chorando quando viu passar, pertinho da
margem, um grande peixe que nadava tranquilamente, na dele, com a
cabeça fora d’água.
Não sabendo seu nome, o boneco gritou bem alto, para que ele não
deixasse de ouvir:
– Ei, Senhor Peixe, me permite uma palavrinha?
– Até duas – respondeu o peixe, que era um golfinho muito educado,
como poucos que se pode encontrar em todos os mares do mundo.
– Faria o favor de me dizer se nesta ilha há lugares onde se possa comer,
sem perigo de ser comido?
– Com certeza! Encontrará um, um pouco longe daqui – respondeu o
Golfinho.
– E que caminho eu pego para ir lá?
– Deve pegar aquela estradinha ali, à esquerda, e caminhar sempre
seguindo seu nariz. Não pode errar.
– Diga-me outra coisa. Você, que passeia todo o dia e toda a noite pelo
mar, não teria encontrado, por acaso, uma barquinha com meu pai dentro?
– E quem é seu pai?
– Ele é o melhor pai do mundo, como eu sou o pior filho que possa
existir.
– Com a tempestade que caiu esta noite, a barquinha deve ter ido para o
fundo – respondeu o Golfinho.
– E meu pai?
– A esta hora pode ter sido engolido pelo terrível Peixe-Cão,***** que há
alguns dias veio espalhar a morte e a desolação nas nossas águas.
– É muito grande, esse Peixe-Cão? – perguntou Pinóquio, que já
começava a tremer de medo.
− Até mais ver, Senhor Peixe, desculpe tanto incômodo, e mil agradecimentos pela sua gentileza.
– Se é grande?!... Para você ter uma ideia, eu diria que é maior que um
prédio de cinco andares e tem uma bocarra tão larga e profunda que nela
passaria, comodamente, todo o trem da estrada de ferro, com locomotiva e
tudo – replicou o Golfinho.
– Minha mãe! – gritou espantado o boneco e, tomado de pressa e de
raiva, disse:
– Até mais ver, Senhor Peixe, desculpe tanto incômodo, e mil
agradecimentos pela sua gentileza.
O boneco pegou logo a estradinha e começou a caminhar bem rápido.
Tão rápido que parecia correr. E a cada barulhinho que ouvia, virava-se
para trás, com medo de estar sendo perseguido por aquele terrível Peixe-
Cão, grande como um prédio de cinco andares e com um trem da estrada de
ferro na boca.
Depois de caminhar por mais de meia hora, chegou a um lugarejo
chamado País das Abelhas Trabalhadoras. As ruas formigavam de criaturas
que corriam daqui e dali em suas tarefas. Todas trabalhavam, todas tinham
alguma coisa para fazer. Não era possível encontrar, nem mesmo com uma
lanterna, alguma delas zanzando, desocupada.
– Este lugar não é feito para mim! Eu não nasci para trabalhar! – disse
logo o preguiçoso do Pinóquio.
Entretanto, a fome o atormentava, pois já fazia vinte e quatro horas que
tinha comido alguma coisa, e depois mais nada, nem ao menos uma pratada
de ervilhas.
O que fazer?
Só lhe restavam dois jeitos para matar a fome: ou procurar algum
trabalho ou pedir, de esmola, algum dinheiro ou um bocado de pão.
Tinha vergonha de pedir esmola, pois seu pai sempre lhe disse que só os
velhos e os doentes têm o direito de fazer isso. Os verdadeiros pobres,
merecedores de assistência e de compaixão, são os que, por causa da idade
ou de doença, não conseguem ganhar o pão com o trabalho das próprias
mãos. Todos os outros têm a obrigação de trabalhar, e, se não trabalham e
passam fome, pior para eles.
Naquele meio-tempo, passou pela rua um homem todo suado e ofegante
que puxava sozinho, com grande esforço, duas carretas carregadas de
carvão.
Pinóquio, julgando ser um bom homem, pelo jeito dele, chegou perto e,
baixando os olhos de vergonha, disse em voz baixa:
– Faria a caridade de me dar uma moeda, pois estou morrendo de fome?
– Não só uma, mas até quatro, desde que você me ajude a puxar até em
casa essas duas carretas de carvão – respondeu o carvoeiro.
– Epa! Essa não! – respondeu o boneco, ofendido. – Fique sabendo que
eu nunca me fiz de burro de carga, nunca puxei uma carroça.
– Melhor para você! Então, meu menino, se está mesmo morrendo de
fome, coma duas belas fatias de seu orgulho, e cuidado para não ter uma
indigestão – respondeu o carvoeiro.
Poucos minutos depois, passou pela rua um pedreiro levando nos ombros
uma lata de cal.
– Cavalheiro, faria a caridade de dar uma moeda a um pobre menino que
está morrendo de fome?
– De boa vontade. Venha comigo levar a cal, e em vez de uma moeda,
lhe darei cinco – respondeu o pedreiro.
– Mas a cal é pesada, e eu não quero trabalhar duro – replicou Pinóquio.
– Se não quer trabalhar duro, então, meu menino, divirta-se com sua
fome, e boa sorte.
Em menos de meia hora passaram outras vinte pessoas, e a todas
Pinóquio pediu alguma esmola, mas todas lhe responderam:
– Não se envergonha? Em vez de bancar o preguiçoso pela rua, trate de
procurar algum trabalho, aprenda a ganhar o pão!
Finalmente passou uma boa moça que carregava dois jarros de água.
– Permita, boa moça, que eu beba um gole de água do seu jarro? – pediu
Pinóquio, seco de sede.
– Pois beba, meu menino! – disse a moça, pousando os dois jarros no
chão.
Quando terminou de beber como uma esponja, Pinóquio murmurou em
voz baixa, enxugando a boca:
– Já que me matou a sede, talvez pudesse matar minha fome!...
A boa moça, ouvindo essas palavras, disse:
– Se me ajudar a levar para casa um desses jarros de água, lhe darei um
belo pedaço de pão.
Pinóquio olhou o jarro e não respondeu nem sim nem não.
– E, junto com o pão, lhe darei um belo prato de couve-flor temperada
com azeite e vinagre – acrescentou a moça.
Pinóquio deu outra olhada no jarro e não respondeu nem sim nem não.
– E, depois da couve-flor, lhe darei um belo bombom recheado de licor.
Atraído por essas últimas guloseimas, Pinóquio não pôde mais resistir e,
tomando uma firme decisão, disse:
– Paciência! Levarei o jarro até sua casa!
O jarro era muito pesado, e o boneco, não tendo força para levá-lo nas
mãos, teve de levá-lo na cabeça.
Chegando em casa, a moça fez Pinóquio sentar-se diante de uma
pequena mesa posta e lhe serviu o pão, a couve-flor temperada e o
bombom.
Pinóquio não comeu: devorou. Seu estômago parecia um bairro inteiro
vazio e desabitado por cinco meses.
Aos poucos, acalmadas as mordidas raivosas
da fome, o boneco ergueu a cabeça para
agradecer à sua benfeitora, mas não tinha ainda
acabado de olhar aquele rosto quando soltou uma
longa exclamação de surpresa:
– Ohhh! – e ficou encantado, com os olhos
arregalados, o garfo no ar e a boca cheia de pão e
de couve-flor.
– O que é toda essa surpresa, agora? – disse,
rindo, a boa moça.
– É que... É que... É que... que você parece...
você me lembra... sim, sim, sim, a mesma voz... os mesmos olhos... os
mesmos cabelos... sim, sim, sim... você também tem os cabelos azuis...
como ela! Ó Fadinha minha!... Ó Fadinha minha!... Diga-me que é você,
que é mesmo você!... Não me faça mais chorar! Se soubesse! Chorei tanto,
sofri tanto!... – respondeu Pinóquio, gaguejando.
Pinóquio chorava sem parar e, jogando-se de joelhos no chão, abraçava
as pernas da moça misteriosa.
25.
Pinóquio promete à Fada ser bom e estudar, pois está cansado de ser um boneco e quer virar um
menino de bem
D
e início, a moça começou a dizer que não era a pequena Fada dos
Cabelos Azuis, mas depois, vendo-se desmascarada e não querendo
levar mais longe aquela comédia, acabou por concordar e disse a Pinóquio:
– Boneco malvado! Como você percebeu que era eu?!
– Foi o grande bem que lhe quero que me contou.
– Lembra, não é? Quando você partiu eu era menina, agora sou uma
moça, tanto que quase poderia ser sua mãe.
– E eu gostei muito, pois assim, em vez de irmãzinha, chamarei você de
mãe. Faz tanto tempo que desejo ter uma mãe, como todas as outras
crianças! Mas como fez para crescer tão depressa?
– É segredo.
– Ensine-me como, pois eu gostaria de crescer um pouco também. Não
vê? Fiquei sempre da mesma altura.
– Mas você não pode crescer – replicou a Fada.
– Por quê?
– Porque os bonecos não crescem nunca. Nascem bonecos, vivem
bonecos e morrem bonecos.
– Oh! Estou cansado de ser sempre um boneco! Já é hora de me tornar
também um homem... – gritou Pinóquio, dando um tapa em si mesmo.
– E poderia se tornar, se fizesse por merecer...
– Verdade? E o que devo fazer para merecer?
– Uma coisa facílima: aprender a ser um bom menino.
– E por acaso eu não sou?
– Ao contrário! As crianças boas são obedientes, e você, em vez disso...
– ...não obedeço nunca.
– As crianças boas tomam amor pelo estudo e pelo trabalho, e você...
– E eu, em vez disso, banco o preguiçoso e o vagabundo o ano todo.
– As crianças boas dizem sempre a verdade...
– E eu, sempre mentiras.
– Os bons meninos vão contentes à escola...
– E a mim, a escola dá dor de barriga... Mas de hoje em diante quero
mudar de vida.
– Promete?
– Prometo. Quero virar um bom menino e quero ser a alegria do meu
pai... Onde estará o meu pobre pai, a esta hora?
– Não sei.
– Terei ainda a sorte de poder revê-lo e abraçá-lo?
– Creio que sim; mais ainda: tenho certeza.
Ao ouvir isso, foi tão grande o contentamento de Pinóquio, que ele
pegou as mãos da Fada e começou a beijá-las com tanto entusiasmo, que
parecia fora de si.
De repente, erguendo o rosto e olhando-a amorosamente, perguntou:
– Diga, mãezinha, então você não está mesmo morta?
– Claro que não – respondeu a Fada Sorrindo.
– Se você soubesse que dor e que aperto na garganta eu senti quando li:
AQUI JAZ...
– Eu sei, e é por isso que o perdoei. A sinceridade de sua dor me fez
saber que você tem um coração bom. E dos meninos bons de coração, ainda
que sejam um pouco moleques e se comportem mal, há sempre algo a
esperar. Ou seja, sempre se pode esperar que entrem no caminho da
verdade. Por isso vim até aqui para procurá-lo. Eu serei a sua mãe...
− Diga, mãezinha, então você não está mesmo morta?
N
o dia seguinte, Pinóquio foi à escola pública.
Imagine aqueles meninos maldosos quando viram um boneco
entrar na escola! Foi uma risada só, que não acabava mais. Era uma
brincadeira atrás da outra: um tirava o chapéu de sua mão, outro puxava sua
jaqueta para trás, um terceiro tentava fazer, com tinta, dois grandes bigodes
debaixo de seu nariz, e outro, ainda, queria amarrar fios aos pés e às mãos
para fazê-lo dançar.
Por um tempo Pinóquio foi esperto e escapou, mas, sentindo sua
paciência acabar, se revoltou contra aqueles que mais o incomodavam e
disse-lhes, de cara feia:
– Cuidado, meninos! Eu não vim aqui para ser o palhaço de vocês. Eu
respeito os outros e quero ser respeitado.
– Bravo, diabrete! Falou como em um livro ilustrado! – gritaram os
moleques, dando loucas risadas; e um deles, mais impertinente que os
outros, estendeu a mão para pegar o boneco pela ponta do nariz.
Mas não deu tempo, pois Pinóquio esticou a perna debaixo da mesa e
deu um chute nas canelas dele.
– Ai! Que pés duros! – gritou o menino, esfregando o machucado.
– E os cotovelos!... Ainda mais duros que os pés! – disse outro que, por
suas piadas grosseiras, tinha ganhado uma cotovelada no estômago.
O fato é que, depois daquele chute e daquela cotovelada, Pinóquio
ganhou logo a estima e a simpatia de todos os meninos da escola, que
passaram a gostar dele de coração e a lhe fazer mil carinhos.
Até o professor o elogiava, pois o via atento, estudioso, inteligente,
sempre o primeiro a entrar na escola, sempre o último a se levantar quando
a aula acabava.
O único problema que tinha era o de se dar bem com todos os colegas,
sem exceção, e entre eles havia muitos moleques conhecidíssimos pela
pouca vontade de estudar e ser corretos.
Até o professor o elogiava, pois o via atento, estudioso, inteligente...
C
hegando à praia, Pinóquio deu uma bela espiada no mar, mas não viu
nenhum Peixe-Cão. O mar estava liso como um grande espelho de
cristal.
– Onde está o Peixe-Cão? – perguntou, virando-se para os colegas.
– Deve ter ido tomar café – respondeu um deles, rindo.
– Ou se jogou na cama para tirar uma soneca – acrescentou outro, rindo
mais ainda.
Por aquelas respostas inconsequentes e aquelas gargalhadas tolas,
Pinóquio entendeu que os colegas tinham feito uma grande brincadeira com
ele, dando a entender uma coisa que não era verdade. E levando aquilo a
mal, disse, com raiva:
– E então? Que motivo tinham para inventar a história do Peixe-Cão?
– Um bom motivo! – responderam em coro os moleques.
– E qual seria?
– Fazer você matar aula e vir conosco. Não tem vergonha de se mostrar o
tempo todo tão correto e dedicado nas aulas? Não tem vergonha de estudar
tanto como faz?
– Se eu estudo, o que isso importa a vocês?
– Importa muitíssimo, pois prejudica nossa imagem com o professor...
– Por quê?
– Porque os alunos que brilham sempre ofuscam aqueles que, como nós,
não têm vontade de estudar. E nós não queremos ser ofuscados! Nós
também temos amor próprio!...
– E o que devo fazer para alegrá-los?
– Deve ficar com raiva da escola, das aulas e do professor, que são os
nossos três grandes inimigos.
– E se eu quiser continuar a estudar?
– Nós não olharemos mais na sua cara, e na primeira ocasião você pagará
por isso.
– Vocês me fazem rir – disse o boneco com uma sacudida de cabeça.
– Ei, Pinóquio! Não venha bancar o valentão, não venha bancar o galo de
briga! Pois, se não tem medo de nós, nós muito menos temos medo de
você! Lembre-se de que você é um só, e nós somos sete – gritou o maior
daqueles meninos, encarando-o.
– Sete como os pecados capitais – disse Pinóquio com uma grande
risada.
– Ouviram? Insultou a todos nós! Disse que somos pecados capitais!...
– Pinóquio! Peça desculpa pela ofensa... senão, ai de você!
– Cuco! – fez o boneco, batendo o indicador na ponta do nariz, zoando.
– Pinóquio! Vai acabar mal!
– Cuco!
– Zurrará como um burro!
– Cuco!
– Voltará para casa com o nariz quebrado!
– Cuco!
– Agora quem vai lhe dar o Cuco sou eu! Pegue esse pagamento e sirva
no jantar desta noite – gritou o mais atrevido dos moleques, antes de dar um
soco na cabeça de Pinóquio.
Mas foi, como se costuma dizer, vapt-vupt, pois o boneco, conforme era
de se esperar, respondeu logo com outro soco – e aí, de um momento para o
outro, a luta ficou geral e violenta.
Pinóquio, embora estivesse sozinho, se defendia como um herói. Com
aqueles pés de madeira duríssimos, lutava tão bem, que mantinha os
inimigos sempre a uma respeitosa distância. Onde seus pés conseguiam
alcançar e bater, deixavam sempre uma marca de lembrança.
Então os meninos, envergonhados por não poderem medir forças no
corpo a corpo com o boneco, pensaram logo em puxar suas armas: pegaram
os livros de escola e começaram a atirar contra ele os dicionários, as
gramáticas, os compêndios de aritmética, de geografia, de história, de
ciências e outros livros escolares; mas o boneco, que tinha olho rápido e
malicioso, desviava a tempo, de modo que os livros, passando sobre sua
cabeça, iam todos cair no mar.
Imagine os peixes! Os peixes, acreditando que aqueles livros fossem
coisas de comer, corriam em massa à superfície, mas, depois de
abocanharem alguma página ou alguma capa, cuspiam logo, fazendo careta,
torcendo a boca, como se dissessem:
– Isso não é bom para nós, estamos acostumados a comer muito melhor!
Entretanto, a luta crescia, e eis que um grande Caranguejo, saindo da
água devagar e, devagar, subindo em uma pedra, gritou, com um vozeirão
de trombone resfriado:
– Parem, moleques, vocês não são de nada! Essa guerra de braço entre
meninos raramente acaba bem. Acontece sempre alguma desgraça!...
D
urante aquela corrida desesperada, houve um momento terrível, o
momento em que Pinóquio acreditou estar perdido, pois Heliodoro
(era esse o nome do cão mastim), na fúria de correr e correr, quase o tinha
alcançado.
...o boneco ouvia atrás de si, à distância de um palmo, o arfar ofegante daquela fera...
O pobre cão não se aguentava mais em pé. Tinha bebido tanta água
salgada, que estava inchado feito um balão. Por outro lado, o boneco, não
querendo confiar muito nisso, achou prudente se jogar novamente no mar e,
afastando-se da praia, gritou ao amigo salvo:
– Adeus, Heliodoro, boa viagem e muitas lembranças aos de casa.
– Adeus, Pinóquio, mil agradecimentos por me salvar da morte. Você me
fez um grande favor, e neste mundo o que é feito está feito. Se houver
oportunidade, nos encontraremos... – respondeu o cão.
Pinóquio continuou a nadar, mantendo-se sempre perto da areia.
Finalmente, lhe pareceu ter chegado a um lugar seguro e, dando uma olhada
na praia, viu sobre os rochedos uma espécie de gruta da qual saía um
longuíssimo penacho de fumaça.
– Naquela gruta deve ter fogo. Ainda bem! Poderei me enxugar, me
aquecer, e depois... E, depois, o que será, será! – disse para si próprio.
Tomada essa decisão, aproximou-se dos rochedos, mas quando foi se
encarapitar neles, sentiu debaixo da água alguma coisa que subia, subia,
subia e o levava para o ar. Tentou fugir, mas já era tarde, pois, para sua
grande surpresa, se viu preso dentro de uma grande rede, no meio de um
cardume de peixes de toda forma e tamanho, que davam rabanadas e se
debatiam, desesperados.
Ao mesmo tempo, viu sair da gruta um pescador tão feio, mas tão feio,
que parecia um monstro marinho. Em vez de cabelos, tinha um grosso tufo
de algas verdes, e verde era a pele de seu corpo, verdes os olhos, verde a
enorme barba que descia até o chão. Parecia um grande lagarto erguido
sobre os pés de trás.
Quando o pescador puxou a rede, gritou, todo contente:
– Bendito seja! Hoje ainda poderei fazer uma bela fritada de peixe!
– Menos mal, eu não sou um peixe! – disse Pinóquio consigo mesmo,
retomando um pouco de coragem.
A rede cheia de peixes foi levada para dentro da gruta, um lugar escuro e
enfumaçado, no meio do qual fervia uma grande frigideira com azeite, que
soltava um cheiro de gordura, forte, de cortar a respiração.
– Agora, vejamos que peixes pegamos! – disse o pescador verde, e,
enfiando na rede uma mão tão enorme que parecia uma pá de padeiro,
puxou um punhado de tainhas.
– Boas, essas tainhas! – disse, olhando-as e cheirando-as com carinho. E
depois de cheirá-las, jogou em uma bacia sem água.
Então repetiu mais vezes a mesma operação e, a cada vez que tirava
outros peixes, ficava com água na boca e, alegre, dizia:
– Boas, essas merluzas!...
– Saborosos, esses salmões!...
– Deliciosos, esses linguados!...
– Gostosos, esses caranguejos!...
– Lindas, essas anchovas com cabeça!
Como se pode imaginar, as merluzas, os salmões, os linguados, os
caranguejos e as anchovas iam todos para a bacia, fazer companhia para as
tainhas.
O último que ficou na rede foi Pinóquio.
Logo que o pescador o pegou, arregalou com surpresa os olhões verdes,
gritando, quase apavorado:
– Que raça de peixe é essa?! Não me lembro de ter comido um peixe
assim, nunca!
Tornou a olhá-lo atentamente e depois de tê-lo examinado muito bem, de
todos os lados, concluiu:
– Entendi, deve ser um caranguejo do mar.
Então Pinóquio, deprimido por ser confundido com um caranguejo,
disse, com voz zangada:
– Que caranguejo, que nada! Olhe como você
me trata! Eu, fique sabendo, sou um boneco.
– Um boneco?! Confesso, peixe-boneco é
novidade para mim! Melhor assim! Comerei com
mais vontade – replicou o pescador.
– Comerá? Quer fazer o favor de entender que
eu não sou um peixe? Ou não vê que falo e penso
como você?
– Verdadíssima! E como vejo que é um peixe e
que tem a sorte de falar e de pensar como eu,
então quero tratá-lo também com a devida
consideração – acrescentou o pescador.
– Que consideração...?
– Em sinal de amizade e de estima especial, −Que raça de peixe é essa?!
deixarei você escolher como quer ser preparado. Deseja ser frito na
frigideira ou prefere ser cozido na panela com molho de tomate?
– Para dizer a verdade, se posso escolher, prefiro ser deixado livre para
poder voltar para minha casa – respondeu Pinóquio.
– Tá brincando! Quer que eu perca a oportunidade de saborear um peixe
tão raro? Nunca aparece, nunquinha, dia nenhum, um peixe-boneco nesses
mares. Deixa comigo: fritarei você na frigideira, junto com todos os outros
peixes, e você ficará contente. Ser frito em boa companhia é sempre um
consolo.
O infeliz Pinóquio, ouvindo essa falação, começou a chorar, a gritar, a se
lamentar e a dizer:
– Como teria sido melhor se eu tivesse ido à escola! Fui dar ouvidos aos
meus colegas e agora pago por isso! Ai! Ai! Ai!
O boneco escorregava como uma enguia e fazia esforços incríveis para
escapar das suas garras, então o pescador verde pegou um belo cipó e,
depois de amarrá-lo pelas mãos e pelos pés, como um salame, jogou-o no
fundo da bacia com os outros.
Depois, pegando uma gamela de madeira cheia de farinha, começou a
empanar todos os peixes e a jogá-los na frigideira.
As primeiras a dançar no azeite fervendo foram as pobres merluzas,
seguidas dos caranguejos, dos salmões, dos linguados, das anchovas, e
então chegou a vez de Pinóquio. Que, ao ver tão de perto a morte (e que
morte!), foi tomado de tanto tremor e de tanto espanto, que não tinha mais
nem voz nem fôlego para se lamentar.
O pobre boneco se lamentava apenas com os olhos! Mas o pescador
verde, sem se importar, o passou cinco ou seis vezes na farinha,
empanando-o tão bem da cabeça aos pés, que agora ele parecia um boneco
de gesso.
Então o homem o pegou pela cabeça e...
29.
Pinóquio volta para a casa da Fada, e ela lhe promete que no dia seguinte não será mais um boneco,
mas um menino. Grande lanche de café com leite para festejar o acontecimento
Q
uando o pescador já ia jogar Pinóquio na frigideira, entrou na gruta um
grande cão, atraído até ali pelo cheiro fortíssimo e apetitoso da fritura.
– Passe fora! – gritou o pescador, ameaçando-o, sem largar o boneco
enfarinhado.
Mas o pobre cão tinha uma fome de quatro cães e, gemendo e agitando a
cauda, parecia dizer:
– Me dê um bocado de fritura e vou embora.
– Passe fora, já disse! – repetiu o pescador, esticando a perna para um
chute.
O cão, que, quando tinha fome de verdade, não era de deixar pousar nem
moscas no seu nariz, se voltou rosnando para o pescador, mostrando suas
terríveis presas.
Naquele instante se ouviu uma vozinha fraca, fraquinha:
– Salve-me, Heliodoro! Se não me salvar, estou frito!
O cão reconheceu logo a voz de Pinóquio e percebeu, com grande
surpresa, que ela havia saído daquele pacote enfarinhado que o pescador
segurava.
O que faz, então? Dá um grande salto, abocanha o pacote e, segurando-o
delicadamente entre os dentes, sai correndo da gruta, rápido como um raio!
O pescador, raivosíssimo ao ver arrancado da sua mão aquele peixe que
teria comido de muito bom grado, tentou perseguir o cão, mas com poucos
passos teve um acesso de tosse e foi obrigado a voltar.
− Passa fora! – gritou o pescador...
De fato, nos exames antes das férias teve a honra de ser o melhor da
escola, e seu comportamento, em geral, foi julgado tão louvável e
satisfatório que a Fada, toda contente, lhe disse:
– Amanhã, finalmente, seu desejo será satisfeito!
– Qual?
– Amanhã deixará de ser um boneco de pau e se tornará um menino para
sempre.
Quem não viu Pinóquio recebendo essa notícia tão desejada nunca
poderá imaginar sua alegria. Todos os seus amigos e colegas de escola
seriam convidados para um grande lanche no dia seguinte na casa da Fada,
para festejarem juntos o grande acontecimento, e a Fada tinha mandado
preparar duzentas xícaras de café com leite e quatrocentos pãezinhos com
manteiga passada por dentro e por fora. Aquele dia prometia ser muito bom
e muito alegre, mas...
Infelizmente, na vida dos bonecos, há sempre um mas, que estraga
tudo...
Quem não viu Pinóquio recebendo essa notícia tão desejada nunca poderá imaginar sua alegria.
30.
Pinóquio, em vez de virar um menino, viaja escondido com seu amigo Pavio para o País dos
Brinquedos
C
omo era natural, Pinóquio logo pediu permissão à Fada para andar pela
cidade e fazer os convites, e a Fada disse:
– Vá, sim, convidar seus colegas para o lanche de amanhã, mas lembre-
se de voltar para casa antes que escureça. Entendeu?
– Dentro de uma hora prometo estar de volta – replicou o boneco.
– Cuidado, Pinóquio! Os meninos têm pressa em prometer, mas na
maioria das vezes demoram a cumprir.
– Mas eu não sou como os outros. Eu, quando digo uma coisa, cumpro.
– Veremos. Caso desobedeça, pior para você.
– Por quê?
– Porque os meninos que não dão atenção aos conselhos de quem sabe
mais que eles vão sempre ao encontro de algum problema.
– Eu já caí nessa! Mas agora não caio mais! – disse Pinóquio.
– Veremos se diz a verdade.
Sem dizer mais nada, o boneco se despediu da Fada, que era para ele
uma espécie de mãe, e, cantando e dançando, saiu.
Em pouco mais de uma hora, todos os seus amigos tinham sido
convidados. Alguns aceitaram logo e de coração o convite; outros, de
início, se fizeram um pouco de difíceis, mas, quando souberam que os
pãezinhos de molhar no café com leite teriam manteiga também na parte de
fora, confirmaram:
– Iremos também, para agradar você...
Entre os amigos e colegas de escola, Pinóquio tinha um predileto e
queridíssimo, Romeu, que todos chamavam pelo apelido de Pavio, por
causa de sua aparência esguia, seca e fina, tal e qual o pavio novo de uma
lamparina.
Pavio era o menino mais preguiçoso e mais moleque de toda a escola,
porém Pinóquio queria muito bem a ele. De fato, foi um dos primeiros que
procurou em casa para convidar para o lanche, mas não o encontrou; voltou
uma segunda vez, e Pavio não estava; voltou uma terceira vez, e perdeu a
caminhada.
Onde poderia encontrá-lo? Procura daqui, procura dali, finalmente o viu
escondido debaixo da varanda de uma casa de camponeses.
– O que faz aqui? – perguntou Pinóquio.
– Espero a meia-noite, para partir...
– Aonde vai?
– Longe, longe, longe!
– E eu que fui procurá-lo em casa três vezes!
– O que queria de mim?
– Não sabe do grande acontecimento? Não sabe a sorte que tive?
– Qual?
– Amanhã deixo de ser um boneco e viro um menino, igual a você e a
todos os outros.
– Grande sorte!
– Amanhã, portanto, espero você para o lanche na minha casa.
– Mas se estou dizendo que parto esta noite.
– A que hora?
– Daqui a pouco.
– E para onde vai?
– Vou morar em um país... que é o mais belo país deste mundo, uma
verdadeira boa vida!...
– Como se chama?
– Chama-se País dos Brinquedos. Por que não vem também?
– Eu? Não, nem pensar!
– Deixe de ser bobo, Pinóquio! Acredite em mim, se não for, se
arrependerá. Onde vai encontrar um país mais saudável para nós, meninos?
Lá não há escolas, não há professores, não há livros. Naquele país bendito
não se estuda nunca. Na quinta-feira não tem aula, e cada semana é
composta de seis quintas-feiras e de um domingo. Imagine que as férias
começam em 1º de janeiro e acabam no último dia de dezembro. Eis um
país que verdadeiramente me agrada! Assim deveriam ser todos os países
civilizados!
– Mas como são os dias no País dos Brinquedos?
– Os dias são feitos para entretenimento e diversão, da manhã à noite.
Então, cama, e na manhã seguinte começa tudo de novo. O que lhe parece?
– Hum! É uma vida que eu levaria sem reclamar, também – pensou
Pinóquio, balançando ligeiramente a cabeça.
– E então, quer partir comigo? Sim ou não? Decida.
– Não, não, não e não. Prometi à minha boa Fada virar um bom menino e
quero cumprir o prometido. E agora, como o sol está caindo, deixo você e
dou o fora. Portanto, adeus e boa viagem.
– Aonde vai com tanta pressa?
– Para casa. A Fada quer que eu volte antes da noite.
– Espere mais dois minutos.
– Ficará muito tarde.
– Dois minutos apenas.
– E se a Fada gritar comigo?
– Deixe gritar. Quando tiver gritado bastante, se calará – disse o moleque
do Pavio.
– E como você vai? Parte sozinho ou tem companhia?
– Sozinho? Seremos mais de cem meninos.
– E vão a pé?
– Daqui a pouco passará aqui a carruagem que vai me pegar e me levar
até dentro dos limites daquele afortunadíssimo país.
– O que eu não daria para que a carruagem passasse agora!
– Para quê?
– Para ver vocês partirem todos juntos.
– Fique aqui mais um pouco e verá.
– Não, não, quero é voltar para casa.
– Espere mais dois minutos.
– Já demorei muito. A Fada deve estar pensando em mim.
– Pobre Fada! Por acaso tem medo que os morcegos comam você?
– Mas, vem cá, você tem certeza de que naquele país não há mesmo
escolas? – perguntou Pinóquio.
– Nem sombra delas.
– E nem mesmo professores?
– Nem mesmo um.
– E não há nunca a obrigação de estudar?
– Nunca, nunca, nunca!
– Que belo país! Que belo país! Eu nunca estive lá, mas posso imaginar!
– disse Pinóquio com água na boca.
– Por que não vem também?
– É inútil insistir! Como disse, prometi à Fada que vou virar um menino
ajuizado e não quero faltar com a palavra.
– Portanto, adeus, Pinóquio, mande lembranças minhas à escola! E
também aos nossos colegas que encontrar pela rua.
– Adeus, Pavio, boa viagem, divirta-se e lembre-se de vez em quando
dos amigos.
O boneco deu dois passos, como se fosse embora, mas, parando e
virando-se para o amigo, perguntou:
– Mas está mesmo certo de que naquele país todas as semanas são
compostas de seis quintas-feiras e de um domingo?
– Certíssimo.
– E está certo de que as férias começam em 1º de janeiro e acabam no
último dia de dezembro?
– Certíssimo.
– Que belo país! – repetiu Pinóquio, cuspindo inveja.
Então, em uma firme decisão, acrescentou, com pressa e raiva:
– Portanto, adeus de verdade e boa viagem.
– Adeus.
– Dentro de quanto tempo vai partir?
– Daqui a pouco.
– Pena! Se faltasse só uma hora para a partida, eu seria bem capaz de
esperar.
– E a Fada?
– Agora já estou atrasado!... E voltar para casa uma hora antes ou uma
hora depois dá no mesmo.
– Pobre Pinóquio! E se a Fada gritar com você?
– Paciência! Deixarei que grite. Quando tiver gritado bastante, vai se
calar.
Já era noite, e noite escura; de repente viram mover-se a distância uma
luzinha, e ouviram o som de algo chacoalhando e um toque de trombeta, tão
fraco e sufocado que parecia o zumbido de um mosquito.
– Aí está ela! – gritou Pavio, ficando em pé.
– O que é? – perguntou Pinóquio em voz baixa.
– É a carruagem que vem me pegar. Então, quer vir, sim ou não?
– Mas é mesmo verdade que nesse país os meninos não têm nunca a
obrigação de estudar? – perguntou o boneco.
– Nunca, nunca, nunca!
– Que país incrível! Que país incrível! Que país incrível!
31.
Depois de cinco meses de boa vida, Pinóquio, para sua grande surpresa, sente nascer um belo par de
orelhas de burro e vira um burrico, com cauda e tudo
F
inalmente a carruagem chegou, e chegou sem fazer o menor barulho,
pois suas rodas eram enfaixadas com estopa e trapos.
Era puxada por doze parelhas de burricos, todos do mesmo tamanho, mas
com pelagens de cores diferentes.
Alguns eram cinzentos, outros brancos, outros pintados feito sal e
pimenta, outros rajados de grandes listras amarelas e azuis.
Mas a coisa mais fora do comum era esta: as doze parelhas, ou seja, os
vinte e quatro burricos, em vez de terem ferraduras como todos os outros
animais de carga, tinham, nos pés, botas de homem feitas de pele branca.
E o cocheiro da carruagem?
Imagine um homenzinho mais largo que alto, macio e oleoso como uma
bola de manteiga, com um rostinho rosa de maçã, uma boquinha de coração
que ria o tempo todo e uma voz suave e ronronante, como a de um gato que
se enrola no colo de uma dona de casa de bom coração.
Todos os meninos, logo que o viam, ficavam
encantados e disputavam para subir na carruagem,
para serem levados por ele para aquela verdadeira
boa vida, conhecida no mapa geográfico pelo
atraente nome de País dos Brinquedos.
De fato, a carruagem já estava cheia de
meninos entre os oito e os doze anos, amontoados
como sardinhas na lata. Estavam desconfortáveis,
estavam esmagados, quase não podiam respirar,
mas nenhum dizia um ai! Nenhum reclamava. O
consolo de saber que dentro de poucas horas
chegariam a um país onde não havia nem livros,
nem escolas, nem professores, deixava-os tão
contentes e resignados, que não sentiam nem Imagine um homenzinho mais
dificuldades, nem cansaço, nem fome, nem sede, largo do que comprido, macio e
nem sono. oleoso como uma bola de
Logo que a carruagem parou, o homenzinho se manteiga.
virou para Pavio e, com mil caretas e salamaleques, perguntou sorrindo:
– Diga, meu belo menino, você também quer ir para nosso afortunado
país?
– Claro que quero ir!
– Mas aviso, meu lindinho, que na carruagem não há mais lugar. Como
vê, está lotada!...
– Paciência! Se não há lugar dentro, vou sentado no eixo da carruagem. –
replicou Pavio e, dando um salto, montou a cavalo em um dos eixos.
− Se eu for com vocês, o que dirá a minha boa Fada?
V
endo que a porta não se abria, o homenzinho a arrebentou com um
violentíssimo chute e, entrando na sala, disse a Pinóquio e a Pavio, com
seu risinho de sempre:
– Bravos meninos! Zurraram bem, eu logo reconheci suas vozes e por
isso estou aqui.
Os dois burricos ficaram abatidos, desanimados, de cabeças e orelhas
baixas e com as caudas entre as pernas.
A princípio o homenzinho os alisou, acariciou, apalpou e, então, pegando
uma escova, começou a escová-los bem.
Escovando com fúria, deixou os dois lustrosos como espelhos; então pôs
cabrestos neles e os conduziu para a praça do mercado, na esperança de
vendê-los e conseguir um bom dinheiro.
Os compradores, de fato, não se fizeram esperar. Pavio foi comprado por
um camponês cujo burro tinha morrido no dia anterior, e Pinóquio foi
vendido ao diretor de uma companhia de palhaços e de saltadores de corda,
que o comprou para amestrá-lo e fazê-lo saltar e dançar junto com os outros
animais da companhia.
Agora você compreendeu qual era o belo trabalho do homenzinho?
Aquele bruto monstro, que tinha a fisionomia doce como leite com mel, ia
de tempos em tempos, com uma carruagem, viajar pelo mundo. Com
promessas e adulações, recolhia os meninos preguiçosos, que tinham horror
a livros e escolas, e, depois de lotar com eles a carruagem, os conduzia ao
País dos Brinquedos para passarem o tempo em jogos, em algazarras e em
divertimentos. Quando aqueles pobres meninos iludidos, na ânsia de brincar
sempre e de não estudar nunca, viravam burricos, o monstro, alegre e
contente, os levava para vender nas feiras e nos mercados. E assim, em
poucos anos, tinha feito rios de dinheiro e ficado milionário.
...e os conduziu para a praça do mercado, na esperança de vendê-los...
O que aconteceu com Pavio, não sei. Sei, por outro lado, que Pinóquio
enfrentou, desde os primeiros dias, uma vida duríssima e atribulada.
Quando foi conduzido ao estábulo, o novo patrão encheu o cocho de
palha, mas Pinóquio, depois de uma bocada, cuspiu no chão.
O patrão, resmungando, encheu o cocho de feno, que também não
agradou ao burrico.
– Ah! Não lhe agrada nem mesmo o feno? Deixa estar, burrico mimado,
que se tem caprichos, vou tratar de livrar você deles! – gritou o patrão,
enraivecido.
E como corretivo, lascou logo uma chicotada nas pernas do burrico.
Pinóquio começou a chorar e a zurrar de dor, e zurrou:
– Hi-hó... Hi-hó... Não posso digerir a palha!
– Então come o feno! – respondeu o patrão, que entendia muitíssimo bem
o dialeto dos burros.
– Hi-hó... hi-hó... O feno me faz doer a barriga!
– Quer que eu sustente um burro como você com peito de galinha e geleia
de mocotó? – retrucou o patrão, enraivecendo-se ainda mais e lascando uma
segunda chicotada.
Com a segunda chicotada, Pinóquio, por prudência, se calou, não disse
mais nada.
Nesse meio-tempo, a estrebaria foi fechada; Pinóquio ficou sozinho e,
como não comia havia muitas horas, começou a salivar de fome, muita
fome. E, salivando, escancarava uma boca que parecia a de um forno.
Afinal, não achando nada no cocho, se conformou em mastigar um pouco
de feno: mastigou bastante, fechou os olhos e engoliu.
– Esse feno até que não é ruim, mas teria sido muito melhor se eu tivesse
continuado a estudar!... A esta hora, em vez de feno, poderia estar comendo
uma ponta de pão fresco e uma bela fatia de salame. Paciência! – disse
consigo mesmo.
Na manhã seguinte, acordando, procurou no cocho um pouco mais de
feno, mas não encontrou, pois tinha comido tudo de noite.
Então deu uma bocada na palha picada e, enquanto mastigava, teve de se
convencer de que o sabor da palha picada não parecia nada com o de risoto à
milanesa ou o de macarrão à napolitana.
– Paciência! Que ao menos minha infelicidade possa servir de lição aos
meninos desobedientes e que não têm vontade de estudar. Paciência!
Paciência! – repetiu, continuando a mastigar.
– Paciência coisa nenhuma! Está pensando, meu belo burrico, que eu
comprei você unicamente para lhe dar de beber e de comer? Eu o comprei
para que trabalhe e me faça ganhar muito dinheiro! Levante, vamos! Venha
comigo ao circo, vou ensiná-lo a saltar através dos aros, a furar com a cabeça
os barris de lata e a dançar a valsa e a polca em pé sobre as patas traseiras–
gritou o patrão, entrando na estrebaria.
O pobre Pinóquio, ou por amor ou pela força, teve que aprender todas
essas belíssimas coisas, mas para isso foram precisos três meses de lições e
muitas chicotadas de arrancar o pelo.
Chegou finalmente o dia em que seu patrão pôde anunciar um espetáculo
verdadeiramente extraordinário. Os cartazes de várias cores, pregados nas
esquinas das ruas, diziam:
Naquela noite, como pode imaginar, uma hora antes que começasse o
espetáculo o teatro estava repleto.
Não se achava mais nem uma poltrona, nem um lugar especial, nem um
camarote, nem que se pagasse a peso de ouro.
As arquibancadas do circo formigavam de meninos, de meninas e de
jovens de todas as idades, atraídos pela ideia de ver dançar o famoso burrico
Pinóquio.
Acabada a primeira parte do espetáculo, o diretor da companhia, vestido
de túnica negra, calções brancos na altura das coxas e botas de pele até
acima dos joelhos, se apresentou à lotadíssima plateia e, depois de uma
grande reverência, recitou com muita solenidade o seguinte e despropositado
discurso:
– Respeitável público, cavalheiros e damas! O humilde subscrito, estando
de passagem por esta ilustre metrópole, quis conferir-me a honra, senão o
prazer, de apresentar a esse inteligente e notável auditório um célebre
burrico que teve já a honra de dançar na presença de Suas Majestades, os
Imperadores de todas as principais cortes da Europa. E, agradecendo-vos,
ajudem-nos com vossa animadora presença e compreensão!
O discurso foi recebido com muitas risadas e com muitos aplausos, mas
os aplausos se redobraram e viraram uma espécie de furacão quando o
burrico Pinóquio chegou ao meio do picadeiro. Ele estava todo embonecado
para a festa: tinha uma rédea nova de couro encerado, com fivelas e tachas
de bronze, duas camélias brancas nas orelhas, a crina dividida em muitos
cachos amarrados com fitinhas de seda vermelha, uma grande faixa de ouro
e prata atravessada no peito e a cauda trançada com fitas de veludo roxo e
azul. Era, para resumir, um burrico apaixonante!
O diretor, ao apresentá-lo ao público, acrescentou:
– Meus respeitáveis ouvintes! Não estarei aqui a falar mentiras sobre as
grandes dificuldades que me oprimiram para compreender e subjugar esse
mamífero, enquanto ele pastava livremente de montanha em montanha nas
planícies da zona tórrida. Observem, peço, quanta selvageria transparece em
seus olhos, já que tendo sido inúteis todos os meios para domesticá-lo, a fim
de que convivesse com os quadrúpedes civis, tive muitas vezes de recorrer
ao delicado dialeto do chicote. Mas toda a minha gentileza, em vez de me
fazer querer bem a ele, me prejudicou enormemente o ânimo. Eu, porém,
seguindo o sistema de Galles, achei em seu crânio uma pequena cartilagem
óssea que a própria Faculdade Médica de Paris reconheceu ser o bulbo
regenerador dos cabelos e da dança pírrica.******* E por isso eu quis amestrá-
lo na dança, bem como nos relativos saltos através dos aros e dos barris
revestidos de metal. Admirem-no e depois julguem! Antes, porém, de verem
com seus próprios olhos, permitam, senhores, que eu os convide ao diurno
espetáculo de amanhã à noite, mas na apoteose de que o tempo chuvoso
ameace água, então o espetáculo, em vez de amanhã à noite, será adiado para
amanhã de manhã, às 11 horas antemeridianas da tarde.
E aqui o diretor fez outra profundíssima reverência e, em seguida,
virando-se para Pinóquio, disse:
– Ânimo, Pinóquio! Antes de dar início a seus exercícios, cumprimente o
respeitável público, cavalheiros, damas e crianças!
Pinóquio, obediente, dobrou os joelhos da frente e ficou ajoelhado até que
o diretor, estalando o chicote, gritou:
– A passo!
Então o burrico se ergueu sobre as quatro patas, e começou a girar em
torno do picadeiro, caminhando devagar, sempre a passo.
Depois de um tempo, o diretor gritou:
– A trote! – E Pinóquio, obedecendo, trocou o passo por trote.
– A galope! – e Pinóquio começou a galopar.
– À carreira! – e Pinóquio desandou a correr, em grande carreira. Mas
enquanto corria como um cavalo de corrida, o diretor, erguendo o braço para
o alto, descarregou um tiro de pistola.
O burrico, então, fingindo estar ferido, caiu estendido no picadeiro, como
se estivesse morrendo de verdade.
Erguendo-se em meio a uma explosão de aplausos, de urras e de palmas
que iam até as estrelas, ele levantou a cabeça e olhou para cima... e viu, em
um camarote, uma bela senhora que tinha no pescoço um grosso colar de
ouro, do qual pendia um medalhão. No medalhão estava pintado o retrato de
um boneco.
Pinóquio, obediente, dobrou os joelhos da frente...
D
epois de cinquenta minutos que o burrico estava na água, o comprador
concluiu:
– A esta hora, o meu pobre burrico manco deve estar bem afogado.
Vamos, portanto, retirá-lo, e fazer com a pele um belo tambor!
E começou a puxar a corda, e puxa que puxa, viu aparecer na
superfície... adivinhe? Em vez de um burrico morto, surgiu na outra ponta
da corda um boneco vivo que se contorcia feito uma enguia.
Vendo aquele boneco de pau, o pobre homem acreditou que sonhava e
ficou ali tonto, de boca aberta e olhos esbugalhados.
Recuperando-se um pouco do primeiro susto, disse, chorando e
gaguejando:
– E o burrico que joguei no mar, onde está?
– Aquele burrico sou eu! – respondeu o boneco, rindo.
– Você?!
– Eu mesmo.
– Ah! Ladrão! Está me zoando?!
– Zoando? Muito pelo contrário, eu falo sério.
– Mas como você, que há pouco era um burrico, entrou na água e virou
um boneco de pau?!
– Deve ser efeito da água do mar. O mar tem dessas manhas.
– Sem essa, boneco, sem essa! Nem pense em se divertir às minhas
custas. Ai de você, se perco a paciência!
– Bem, patrão, quer saber a verdadeira história? Desamarre minha perna
e eu conto.
Em vez de um burrico morto, surgiu na outra ponta da corda um boneco vivo...
E Pinóquio, nadando mais rápido que nunca, ia, ia e ia, como uma bala
de fuzil. E quando estava chegando no rochedo, a cabritinha já debruçada,
estendendo as patinhas para ajudá-lo a sair da água...
...era tarde! O monstro o alcançou. Ao tomar fôlego, o monstro bebeu o
pobre boneco como teria bebido um ovo de galinha, e o engoliu com tanta
violência e com tanta avidez, que Pinóquio, a caminho da barriga dele,
bateu de um modo tão desajeitado que ficou atordoado por um bom quarto
de hora.
Quando voltou a si, não sabia nem se orientar, nem ao menos em que
mundo estava. A seu redor havia uma grande escuridão, uma escuridão tão
negra e tão profunda que parecia ter entrado de cabeça em um tinteiro
cheio. Prestou atenção e não ouviu nenhum rumor; somente, de tempo em
tempo, sentia bater no rosto um grande sopro de vento. A princípio não
sabia de onde saía aquele vento, mas logo entendeu que vinha dos pulmões
do monstro: é que o Peixe-Cão sofria muitíssimo de asma, e quando
respirava parecia até que o vento norte estava soprando.
Pinóquio, de início, tentou criar um pouco de coragem, mas, quando teve
a prova e a contraprova de estar preso na barriga do monstro marinho,
começou a chorar e a gritar e, chorando, gritava:
– Socorro! Socorro! Oh, pobre de mim! Tem alguém aí para me salvar?!
– Quem é que vai salvá-lo, infeliz? – ouviu-se, naquela escuridão, uma
voz rachada de violão desafinado.
– Quem é que está falando? – perguntou Pinóquio, sentindo-se gelar de
espanto.
– Sou eu! Sou um pobre Atum, engolido pelo Peixe-Cão junto com você.
E que peixe é você?
– Eu não tenho nada a ver com peixes. Eu sou um boneco.
– Então, se não é um peixe, por que se deixou engolir pelo monstro?
– Não fui eu que me deixei engolir, foi ele que me engoliu! E agora, o
que devemos fazer aqui nesta escuridão?...
– Nos conformar e esperar que o Peixe-Cão faça sua digestão...
– Mas eu não quero ser digerido! – berrou Pinóquio, recomeçando a
chorar.
– Nem eu quero ser digerido, mas sou um tanto filósofo e me consolo
pensando que, quando se nasce Atum, há mais dignidade em morrer na
água do que no azeite! – retrucou o Atum.
– Bobagem! – gritou Pinóquio.
– É minha opinião, e as opiniões, como dizem os Atuns Políticos, devem
ser respeitadas! – replicou o Atum.
– Eu quero ir embora daqui... Eu quero fugir...
– Fuja, se conseguir!
– É muito grande, esse Peixe-Cão que nos engoliu? – perguntou o
boneco.
– Imagine que seu corpo tem mais de um quilômetro de comprimento,
sem contar a cauda.
No momento em que tinha essa conversa na escuridão, Pinóquio pensou
ver, ao longe, uma espécie de clarão.
– E que diacho será aquela luzinha lá longe, bem longe? – disse
Pinóquio.
– Deve ser algum nosso companheiro de desventura, que espera, como
nós, o momento de ser digerido!
– Quero ir até lá. Não pode ser algum velho peixe capaz de me ensinar o
caminho para fugir?
– Desejo que sim, de coração, caro boneco.
– Adeus, Atum.
– Adeus, boneco, e boa sorte.
– Quando nos veremos de novo?
– Quem sabe? É melhor nem pensar!
35.
Dentro da barriga do Peixe-Cão, Pinóquio reencontra... Quem? Leia o capítulo e saberá
L
ogo que disse adeus ao Atum, Pinóquio saiu tateando no meio da
escuridão e, caminhando e apalpando as paredes da barriga do Peixe-
Cão, rumou, passo a passo, na direção do pequeno clarão que via brilhar lá
longe.
Ao caminhar, sentiu que seus pés chafurdavam em água oleosa e
escorregadia, e a água tinha um cheiro tão forte de peixe frito que se sentiu
em um vilarejo, em uma noite da Quaresma.
uanto mais avançava, mais brilhante e distinto
ficava o clarão. Pinóquio caminhou, caminhou,
até que chegou, e quando chegou... o que
encontrou? Dou uma chance em mil para você
adivinhar: encontrou uma pequena mesa posta,
com uma vela acesa em cima, enfiada em uma
garrafa de cristal verde. E, sentado diante dela,
um velhote todo branco, como se fosse de neve
ou de creme chantili, que mordiscava alguns
peixinhos vivos, mas tão vivos que às vezes,
quando iam ser mordidos, acabavam escapando
da boca.
Diante daquela cena, Pinóquio teve uma
alegria tão grande e tão inesperada, que não
faltou nadinha para que entrasse em delírio. Quanto mais avançava, mais
brilhante ficava o clarão...
Queria rir, queria chorar, queria dizer um monte
de coisas, mas em vez disso murmurava confusamente e gaguejava palavras
incompletas e incompreensíveis. Finalmente, conseguiu lançar um berro de
alegria e, escancarando os braços e pulando no pescoço do velhote,
começou a gritar:
– Oh! Meu papaizinho! Finalmente o encontrei! Agora não o deixo mais,
nunca mais, nunca mais!
...pulando no pescoço do velhote, começou a gritar...
E
nquanto nadava rápido para alcançar a praia, Pinóquio percebeu que o
pai, a cavalo sobre seus ombros e com as pernas na água, tremia muito,
como se estivesse com febre.
Tremia de frio ou de medo? Quem sabe? Talvez as duas coisas. Mas
Pinóquio, acreditando que a tremedeira fosse de medo, disse, para confortá-
lo:
– Coragem, papai! Em poucos minutos chegaremos à praia e estaremos
salvos.
– Mas onde está essa bendita praia? Olho para toda parte e não vejo
senão céu e mar! – reclamou o velhote, ficando mais inquieto e apertando
os olhos como fazem as costureiras quando vão enfiar a agulha.
– Mas eu já vejo a praia. Saiba que eu sou como os gatos, vejo melhor de
noite que de dia – disse o boneco.
O pobre Pinóquio fingia estar de bom humor, mas em vez disso... em vez
disso, começava a se desencorajar, as forças se acabavam, a respiração
ficava pesada e difícil... Por fim, não aguentava mais, e a praia estava
sempre longe.
Nadou enquanto teve fôlego; então, virou a cabeça para Gepeto e disse,
com palavras entrecortadas:
– Papai, me ajuda... estou morrendo...
Pai e filho estavam a ponto de se afogar quando ouviram uma voz de
violão desafinado dizer:
– Quem é que está morrendo?
– Eu e meu pobre pai!
– Essa voz eu conheço! Você é Pinóquio!
– Certo, e você?
– Eu sou o Atum, seu companheiro de prisão na barriga do Peixe-Cão.
– E como fez para escapar?
– Segui seu exemplo. Você foi quem me ensinou o caminho, e depois de
você eu também fugi.
– Meu caro Atum, você apareceu mesmo a tempo! Peço, pelo amor que
tem aos seus filhotes atuns, que nos ajude, ou estamos perdidos.
– De bom grado e de todo o coração. Agarrem a minha cauda e deixem-
me guiar. Em quatro minutos levarei vocês até a costa.
– Comoveu-se tanto por um burro que não lhe custou nada? E eu, que o
comprei por quatro moedas, o que deveria fazer? – disse Janjão.
– Era um amigo meu...
– Seu amigo?!
– Um colega de escola!
– Como?! Como?! Teve burros como colegas de escola?! Imagino os
belos estudos que faziam!... – gritou Janjão, às gargalhadas.
O boneco, deprimido com aquelas palavras, não respondeu: pegou seu
copo de leite quase quente e voltou para a cabana.
E, daquele dia em diante, continuou por mais de cinco meses a levantar
toda manhã, antes de clarear, para ir girar o sarilho e assim ganhar aquele
copo de leite, que fazia tão bem para a saúde frágil de seu pai. E não se
contentou com isso: passado algum tempo, aprendeu também a tecer cestas
e balaios de junco e, com as moedas que ganhava com a venda, arcava, com
muito juízo, com todas as despesas diárias. Entre outras coisas, construiu
um elegante carrinho em que, nos dias bonitos, levava o pai para tomar um
bocado de ar.
Nos serões, à noite, treinava leitura e escrita. Tinha comprado no
lugarejo vizinho, por poucas moedinhas, um grande livro sem capa e sem
índice, e nele exercitava sua leitura. Quanto a escrever, usava uma vareta
como se fosse uma pena e, não tendo nem tinteiro nem tinta, a molhava em
um frasco cheio de suco de amora e cereja.
O fato é que, com sua boa vontade de planejar, de trabalhar e de
progredir, conseguiu não só manter quase confortavelmente o pai, sempre
adoentado, como também reservar algum dinheiro para comprar uma roupa
nova.
Uma manhã, disse ao pai:
– Vou até o mercado vizinho para comprar uma jaquetinha, um
chapeuzinho e um par de sapatos. Quando voltar, estarei tão bem vestido
que me tomarão por um grande senhor – acrescentou rindo.
E saindo de casa, começou a correr todo contente. De repente, ouviu
chamar seu nome e, virando-se, viu uma bela lesma que saía de uma moita.
– Não está me reconhecendo? – disse a Lesma.
– Parece e não parece com...
– Não se lembra daquela lesma que trabalhava como camareira da Fada
dos Cabelos Azuis? Não se lembra daquela vez que desci levando uma luz
para você, que estava com um pé enfiado na porta de casa?
– Lembro-me de tudo! E me diga, Lesminha bela, onde está a minha boa
Fada? O que ela andou fazendo? Me perdoou? Lembra-se sempre de mim?
Ainda me quer bem? Está muito longe daqui? Posso encontrá-la? – disparou
Pinóquio.
A todas essas perguntas, feitas precipitadamente e sem tomar fôlego, a
Lesma respondeu com a calma de sempre:
– Meu Pinóquio! A pobre Fada jaz no fundo de um leito no hospital!
– No hospital?!
– Infelizmente. Atingida por mil desgraças, está gravemente doente e não
tem mais como comprar um naco de pão!
– É verdade? Oh! Que grande dor! Pobre Fadinha! Pobre Fadinha! Pobre
Fadinha! Se tivesse, levaria um milhão para ela... Mas tenho apenas umas
moedas... Aqui estão! Ia justo comprar uma roupa nova. Pegue, Lesma, e vá
logo levar para minha boa Fada.
– E sua roupa nova?
– Que me importa a roupa nova? Venderia até esses trapos que uso para
poder ajudá-la! Vá, Lesma, depressa! E dentro de dois dias volte aqui, que
espero poder mandar mais algum dinheiro. Até agora tenho trabalhado para
manter meu pai. De hoje em diante, trabalharei cinco horas a mais para
manter também minha mãe. Adeus, Lesma, e dentro de dois dias espero
você.
A Lesma, contra seu costume, começou a correr igual a uma lagartixa
nos dias muito quentes de verão.
Quando Pinóquio voltou para casa, o pai perguntou:
– E a roupa nova?
– Não encontrei uma que me caísse bem. Paciência! Comprarei de outra
vez.
Aquela noite, Pinóquio, em vez de fazer serão até as dez, foi até a meia-
noite! E em vez de fazer só oito cestos de junco, fez dezesseis.
Então foi para a cama e adormeceu. E ao dormir, parecia ver em sonho,
toda bela e sorridente, a Fada, que lhe deu um beijo e disse:
– Bravo, Pinóquio! Graças ao seu bom coração, eu perdoo todas as
travessuras que fez até hoje. As crianças que cuidam amorosamente dos
próprios pais, nas suas dificuldades e nas suas doenças, merecem sempre
grande louvor e grande afeto, mesmo que não possam ser citados como
modelos de obediência e de boa conduta. Tenha juízo para o futuro e será
feliz.
Nesse momento, o sonho acabou, e Pinóquio acordou com os olhos
arregalados.
Agora, imagine você qual foi sua surpresa quando percebeu que não era
mais um boneco de pau, e sim um menino como todos os outros. Deu uma
olhada em volta e, em vez das mesmas paredes de palha da cabana, viu um
belo quarto mobiliado e decorado com uma simplicidade quase elegante.
Saltando da cama, encontrou preparada uma bela roupa nova, um chapéu
novo e um par de botas de pele que o deixavam muito bonito.
Logo que se vestiu, aconteceu, naturalmente, de enfiar as mãos nos
bolsos e encontrar um pequeno porta-moedas de marfim, que logo abriu.
Dentro, em vez de moedas de cobre, brilhavam moedas de ouro, todas
novas. No porta-moedas estava escrito:
A Fada dos Cabelos Azuis restitui as moedas ao seu caro Pinóquio e
agradece muito pelo seu bom coração.
Pinóquio foi se olhar no espelho, e parecia outro. Não viu mais a figura
de uma marionete de pau, mas sim a imagem ativa e inteligente de um belo
menino de cabelos castanhos, olhos azuis e um ar alegre e festivo.
Em meio a todas as maravilhas que não parava de descobrir, Pinóquio
não sabia mais nem se estava acordado de verdade ou se sonhava de olhos
abertos.
– E meu pai, onde estará? – lembrou-se, e, entrando na sala ao lado,
encontrou, sadio, ágil e de bom humor, como antes, o velho Gepeto, que,
tendo retomado a profissão de entalhador, desenhava uma belíssima
moldura cheia de folhagens, de flores e de cabeças de animais.
...apontou para um grande boneco apoiado em uma cadeira...
FIM
Aqui, com o sentido de pessoa nobre ou distinta, elegante, e também de proprietário de terras. (N.E.)
Expressão italiana que significa “no seu primeiro canto” – no caso, um galeto (galinho, franguinho)
abatido muito cedo, assim que canta pela primeira vez. (N.E.)
No original, Can-barbone, cão de pelos longos e enrolados, como o poodle. (N.T.)
Assim eram chamadas as Américas, descobertas por Cristóvão Colombo em 1492. (N.E.)
No original, Pesce-cane, nome popular dado ao tubarão. (N.T.)
Na animação da Disney, de 1940, reproduzida em várias outras versões, era uma baleia. (N.E.)
Pequeno roedor, parecido com o esquilo, que come e dorme muito. (N.T.)
Dança guerreira grega que usa lanças e tochas acesas. (N.T.)
Quinto romance da saga de Anne Shirley, este livro narra o início da vida de
casados de Anne e Gilbert Blythe. Logo após o casamento no pomar de
Green Gables, os dois se mudam para a "casa dos sonhos" – uma casinha
que Gilbert encontrou em Four Winds Point, no litoral, onde ele deve
assumir a clínica médica de seu tio. A casa é velha e pequena, e eles vão
apenas alugá-la. Mesmo assim, Anne tem convicção de que aquela será a
casa dos seus sonhos, especialmente quando Gilbert conta sobre o terreno
ao redor, com muitas árvores grandes e antigas e um riacho que atravessa a
propriedade, além dos jardins que os proprietários anteriores cultivavam.
Anne renuncia à viagem de lua de mel: para ela, a melhor lua de mel é
mesmo estar com Gilbert em seu novo lar. O livro acompanha Anne dos 25
aos 27 anos em sua nova vida, na qual, como é de seu feitio, encontra
pessoas interessantes, se envolve com várias delas, ajuda a resolver
problemas e ganha novos amigos e admiradores. Para Anne Shirley, a vida
parece perfeita e continua cheia de possibilidades. Mas então uma tragédia
acontece e, com ela, uma enorme dor de cabeça para o jovem casal, que
precisa de toda a sua coragem e seu amor para superá-la.
Escrito em 1880, final do século XIX , Heidi, a menina dos Alpes traz
muitas diferenças em relação aos dias de hoje: o jeito de os personagens
verem o mundo, de se relacionarem uns com os outros, seus costumes, seu
modo de falar, de se vestir. Seu jeito de sentir o mundo e a vida, de se
relacionar com Deus.
Esta edição, em um único volume, reúne o texto integral dos dois volumes
originais: Tempo de viajar e aprender e Tempo de usar o que aprendeu.
No início do século XX, Mary Lennox vive na Índia com os pais, que não
lhe dão afeto nem atenção. Uma epidemia de cólera mata o casal, e, seis
meses depois, Mary, uma menina de 10 anos apática e sem graça, mimada,
voluntariosa, que não sabe amar e não tem amigos, desembarca na
Inglaterra para viver com o tio em Yorkshire, na mansão Misselthwaite,
uma construção sombria e labiríntica com mais de cem quartos. Deslocada
e assustada, a menina, sem ter o que fazer, começa a explorar a mansão e
seus arredores, cheios de jardins e hortas. Com a curiosidade despertada,
descobre que um dos jardins estava trancado havia dez anos e a chave,
enterrada não se sabia onde: o tio proibira a entrada de qualquer pessoa.
Mary acaba ficando amiga do velho jardineiro e de um passarinho especial,
um pintarroxo, que a leva até a chave. E ela pode, finalmente, entrar no
jardim. A narrativa é fluente, e o leitor fica preso à história, ansioso por
saber o que vai acontecer. Traz também uma visão extremamente positiva e
rica do contato com a terra, da vida simples e dos valores essenciais das
pessoas do campo. Impossível não se apaixonar pelas personagens e pela
história, publicada em 1911, que faz rir, chorar, sonhar.