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Anotações: Tempos voláteis: um estudo do amor contemporâneo

Denise Bacellar Nunes


Mestre e Doutora em Psicologia e Psicanalista Junguiana

O amor contemporâneo tem sido tratado como produto de aspectos culturais do momento. Se
de um lado a arquitetura do amor se atualiza pela cultura, emerge as consequências desse “novo
modelo do amor”, o aumento da violência de gênero e o assassinato de mulheres no Brasil.
O feminicídio caracteriza-se pelo assassinato mulheres, com quem o autor tenha tido
relacionamento íntimo ou amoroso. A frequência do feminicídio tipifica um desequilíbrio nas relações
de gênero, as vezes escancarando intolerância pela decisão da mulher de encerrar uma relação, após
uma história de amor que pode ter implicado na procriação e contínuas atividades domésticas, às
vezes com parcos recursos materiais.
A crença no patriarcalismo é a sombra do feminicídio. Registros históricos indicam que as
filhas não mereciam apreço da família desde a Antiguidade. Isso inspirou muitas medidas do Estado
para consolidar tradições em que as mulheres tinham status mais ou menos equivalente ao dos
escravos, das crianças e dos estrangeiros e deveriam viver tuteladas por pais, irmãos e maridos.
Em nossa sociedade, o nascimento de um menino ainda é comemorado como um troféu de
perpetuação desse paternalismo, da mesma forma como na antiguidade, onde hebreus, gregos e
romanos preferiam o nascimento de varões, que seriam guerreiros e gerariam riqueza no campo e nos
negócios, em benefício de todos. A herança equivocada dessa ideia, inspirou os grupos religiosos que
hoje se manifestam no ocidente.
Enquanto isso, às meninas eram e ainda são reservadas as preocupações para formação de
preservar a honra da família, através do casamento. Cabia-lhes apenas adquirir as qualificações para
a procriação responsável e os trabalhos domésticos que propiciassem conforto aos homens ocupados
com a provisão econômica. Essa concepção ainda se perpetua em nossa sociedade, mesmo diante de
um novo cenário onde se instala as relações amorosas, os novos contextos econômicos sociais.
Apesar do desenvolvimento tecnológico das últimas décadas, persistem inúmeros casos de
discriminação sexual, em que os homens rejeitam compartilhar espaços e obrigações em ambientes
públicos e privados. Os pais incentivam-os, desde pequeninos, para superar todos os obstáculos a
qualquer preço. Eles não se acostumam com a frustração amorosa, revidando contra quem se interpõe
ao seu sucesso, especialmente no que se refere às suas experiências sexuais e ao bem-estar doméstico.
Acreditam que as ex-companheiras tumultuam seu cotidiano, enquanto elas têm pleno domínio do
conforto familiar. A revanche torna-se inevitável, especialmente quando elas mantêm a prole em
condições favoráveis.
Se de um lado, temos uma legislação avançada quanto às relações de gênero, do outro ainda
predominam preceitos quanto à legitimidade da dominação masculina. Enquanto eles não forem
alterados, haverá alta frequência de feminicídio, porque as mulheres vêm conseguindo autonomia
econômica, e isso lhes permite romper relacionamento que não esteja correspondendo às suas
expectativas de união feliz.
Para compreendermos como essa realidade se organiza refletimos, aqui, sobre alguns
conceitos de relações amorosas, baseadas na realidade de consumo, incluindo aqui como as relações,
com os conceitos de fast food, redes sociais, fidelidade, imaginário, tempos líquidos, aos poucos
interferiram e interferem, mesmo que inconsciente, nas nossas formas de assimilar e conceber as
relações amorosas, intensificando os conflitos internos e particulares patriarcais masculinos com a
nova ordem social moderna, onde a mulher que trabalha, assume o protagonismo de sua própria vida
e história.
Antigamente, em tempos no qual o desenvolvimento tecnológico era mais vagaroso, as
novidades, evidentemente, vinham em um ritmo mais lento. A velocidade e alta demanda por
conhecimento, devido ao rápido desenvolvimento de novos métodos e tecnologias de diferentes áreas
do trabalho, acabou por impor uma certa instabilidade em as antigas relações de trabalho. Essas
relações aos poucos começaram a influenciar também a própria família. Dessa forma, antigamente
existia uma "segurança" que hoje se transmutou em "insegurança", tanto no trabalho como na
organização e no ordenamento familiar contemporâneo.
O mesmo pode ser dito para os relacionamentos amorosos, um exemplo muito mais banal do
que o primeiro, por ser muito mais perceptível na nossa realidade. Devido à intensificação da
globalização e da tecnologia, sobretudo de comunicação (redes sociais, por exemplo), os
relacionamentos adquiriram um caráter mais banal e efêmero na atualidade. Com o advento das redes
sociais, hoje você pode conhecer e se relacionar com dezenas de pessoas em pouco tempo e ao mesmo
tempo. De maneira rápida, você é capaz de denominá-las “amigas” e de “amores”. Mas, de maneira
mais rápida ainda, descartá-las, como um produto fast food.
De um modo geral, há algumas décadas, os relacionamentos transmitiam maior segurança.
Tinham uma durabilidade muito maior, além de serem muito menos numerosos. O significado de
amigos e os relacionamentos amorosos, ontem e hoje, sofreram uma drástica mudança. O que
corrobora para denominarmos os primeiros de "estáveis" e os segundos de "instáveis". Mas não
podemos esquecer que esses relacionamentos eram sustentados por um sistema patriarcal, onde a
dona de casa era fiel a família e aos filhos, o que muitas vezes não correspondia a postura de seu
companheiro, o marido infiel, esse na qual era perdoada as aventuras, em nome da unidade da família,
dos bens e dos herdeiros.
Os textos de Pereira e Pereira, A psicoterapia no mundo contemporâneo: um affaire
coletivo e político e de Pereira e Timm O amor em tempos de consumo refletem sobre a relação
humana sejam elas amorosas ou não no mundo contemporâneo. Em a Psicoterapia no mundo
contemporâneo: um affaire coletivo e político, os autores estabelecem uma relação entre a forma
de vida no mundo contemporâneo - marcado pela presença de refinadas tecnologias, pela deterioração
das relações na esfera coletiva e pública e pela excessiva individualização do ser humano, cujo
resultado é o aparecimento das subjetividades privatizadas - suas possibilidades e limites dos
sofrimentos psíquicos gerados por esse contexto e os conceitos de imaginário instituinte Castoriadis
(1982) e fluxos desterritorializados do desejo Deleuze (1976; 1992).
O imaginário, segundo Castoriadis (1982) é criado a partir do nada. Dessa forma, o autor
acredita que o imaginário cria o mundo, pois está na base de todo pensamento e possibilidade de
sentido. O real, o ser, a racionalidade, não são mais que produtos do imaginário. Enquanto criação, o
ser não se fecha em uma única determinação possível, pelo contrário, está sempre aberto Castoriadis
(1982).
No que tange o conceito e a função de desterritorialização, voltamos nosso olhar para a ideia
de movimento pelo qual se deixa o território esse território pode ser físico, virtual ou pessoal. O
território não é primeiro em relação à marca qualitativa, pois é a marca que faz o território. As funções
num território não são primeiras; elas supõem, antes de tudo, uma expressividade que faz o território.
É de fato, nesse sentido, que o território e as funções que aí se exercem, são produtos da
territorialização.
A territorialização é o ato do ritmo tornado expressivo ou componentes de meios tornados
qualitativos. Quando trazemos a definição de desrretorialização Deleuze (1976; 1992) para o campo
do desejo assistimos um esvaziamento do desejo (território) em detrimento do prazer descartável e
efêmero (fulgás e passageiro). Onde a figura feminina da “virgem” “para casar”, preservada no
patriarcalismo passa a ser substituída pelo imaginário da figura da “cachorra” “da novinha topa tudo”,
e outros termos materializados no imaginário, do homem acerca da condição da mulher
contemporânea, nas músicas de funk e sertaneja.
Avançando para entender a relação do amor em tempos de consumo, as autoras Timm e
Pereira refletem as relações humanas e as suas implicações com o consumo, no capitalismo
contemporâneo. As autoras avançam refletindo que as simulações ontológicas, de acordo com
Baudellaire (1992) do sentir, parecem permear a contemporaneidade e nos impele a diferentes
emergências emocionais, dentre elas, a experiência do amor como solução para as nossas angústias
frente às contradições e tensões do mundo público. Timm e Pereira acreditam que ao longo da
modernidade, fomos convencidos/as de que a vida íntima é o único projeto satisfatório e que a esfera
pública é caótica e está permeada por severas ameaças ao Eu.
Foi a partir dessas reflexões que o projeto de pesquisa “Amor, gênero e subjetividade de
consumo: desafios teóricos para uma vida sem violência” foi gestado, por Timm e Pereira, e o tema
dos afetos articulados com o problema da violência contra mulheres, que marca as relações de poder
na perspectiva de gênero, marcadas pelas idealizações do amor patriarcal herdadas da modernidade.
Pereira e Timm acreditam também que vida afetiva está atravessada por condições econômicas,
políticas e subjetivas. Elas reúnem e refletem o processo investigativo que buscou explicitar a relação
entre as exigências normalizadoras do amor – chamado de amor-norma (moral, ágape, filia) – e as
linhas de fuga às modelizações – amor-experiência (eros) - que versa sobre uma forma de afeto livre
e nômade. Para as autoras sobre determinações do amor-norma, encontramos o consumo e sua oferta
ilimitada de objetos de desejo, que além de ser um dos maiores trunfos do capitalismo em eterna crise,
cria a forma de existência paradoxal e, com isso, subjetividades travessadas pelo mesmo paradoxo: a
proliferação das ofertas amorosa tipo fast food. As autoras refletem que esse tipo de amor cria a
impressão de vivermos nossa vida com liberdade para escolher, ao passo que não podemos escolher,
de forma isolada, nossa forma de viver.
Nota-se, segundo Timm e Pereira que essa economia contemporânea da moral, tem também
capturado o amor. Nesse conjunto complexo de forças que atravessam o ser humano e seus amores
há, pois, a possibilidade de novos agenciamentos para se jogar o jogo do amor com o mínimo de
dominação. Citamos que atualmente, homens e mulheres se permitem viver em relacionamentos
difíceis, desencontrando-se em seus desejos, desfrutando de pouco companheirismo, acumulando
desentendimentos e revezes, permitindo-se pelas circunstâncias da vida, preparar e estar no ambiente
profícuo para o próprio feminicídio, como condição e causa.
Algumas percepções povoam a reflexão a partir da leitura desses dois textos (Pereira e Pereira;
Timm e Pereira): a primeira delas é que do mesmo modo que consumimos objetos e depois os
trocamos por outros mais novos, influenciados pela publicidade e a mídia que torna tudo muito mais
atraente; também no amor há uma sede de consumo. Assim as pessoas buscam namoros e
experiências sexuais diferentes, numa ânsia de provar tudo e, ao mesmo tempo; e quando finalmente
encontram alguém, sentem uma sensação de prisão. Então, logo partem para outras conquistas, talvez
maiores ou mais emocionantes, descartando as anteriores.

A segunda percepção que temos é que vivemos uma época em que tudo se tornou muito
efêmero e vivemos com pressa e ansiedade de mais emoções. Luta-se contra o apego. Vive-se em
nome de uma felicidade a qualquer custo, como se não houvesse o dia de amanhã. E dessa forma as
pessoas têm transferido esses valores para a forma como buscam o amor. E ao misturar esses valores
aos seus anseios e emoções, criam um mecanismo interno que os faz buscar a felicidade fora, sem dar
espaço para que ela entre, e assim, também esse sentimento contraditório - o amor. Essas pessoas
entregam-se a essa busca, como solução para todos os seus problemas, deixam-se fazer reféns de
amores infelizes e destrutivos por não terem a serenidade necessária para compreender que o maior
erro está nessa tentativa de encontrar o outro que o complemente integralmente, sem nem mesmo
saber se é o que querem de verdade.

A terceira percepção é sobre um desejo que é substituído, quase que imediatamente, por outro.
O desejo de posse é contínuo, nunca saciado. Pois o capitalismo do amor contemporâneo trabalha a
partir da ansiedade que ele mesmo gera, tornando a posse eternamente efêmera. O objetivo é claro:
para que as pessoas gastem mais, consumam outros produtos, o amor-produto, em tempos líquidos,
tende a ser exatamente isso: efêmero.

A quarta percepção é que o amor é tão desconsiderado ou ignorado, que o negligenciamos


quando o encontramos. O medo das guerras, das perdas, do apocalipse mundial, da maldade infernal
do dia-dia corrompe-nos, sem percebermos. Passamos a desacreditar ou a forçar uma falsa fidelidade
ou felicidade, um sentimento de amor momentâneo e, além de esquecermos do que realmente
queremos, não percebemos que buscamos um prazer emocional, baseado em carências afetivas. E
muitas relações amorosas assim se compõem: em auto-culpa ou de julgamentos ao outro (como a
clássica culpa contra o sexo oposto), surgem a partir dessa relação.

Por fim observamos que é preciso reconhecer essas questões, e se sensibilizar como elas se
postam em nossa vida privada. Devemos avaliar se o que se deseja é temporário ou veio para ficar
em uma tentativa de permanência maior. E necessário estarmos conscientes que ter confiança no
amor transcender ao ethos contemporâneo, envolve posturas conscientes e maduras. Procurar o bom
e o mal de outrem e não arriscar sem saber com quem está se envolvendo, alimentando faltas fantasias
felizes, pode ser uma das formas de lidar com esses afetos novidade, pois não há uma forma segura
de evitar os envolvimentos as banalidades dos amores de hoje.

É indispensável também, baseado nesse novo ethos de conceber o amor e suas relações advindas, que
crie estratégias para convencer a sociedade de que a diferenciação sexual e cambio de estado amoroso
não implica desigualdade sexual, inspirando alianças mais serenas, profícuas e justas entre homens e
mulheres. Elas têm demonstrado, sobejamente, que avançam nos índices de escolaridade e
produtividade; merecem, portanto, reconhecimento de potencialidades equiparadas às dos homens.
Nesse sentido, educar para o amor contemporâneo e entender as dimensões que o atravessam e o
sustentam, não se esgota nessa reflexão, mas chama a reflexão, que não se encerra em apenas um
artigo.
Referência

PEREIRA, Arthur Henrique; PEREIRA, Ondina Pena. A psicoterapia no mundo contemporâneo: um


affaire coletivo e político. Rev. bras. psicodrama, São Paulo , v. 17, n. 2, p. 33-
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