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A Vida Invisível de Eurídice Gusmão

Por Carlos São Paulo

Os complexos culturais atravessam as gerações como a girar em torno de um eixo


em que as razões objetivas dos comportamentos vão sendo esquecidas e, em seu lugar,
surgem condutas reativas ao que foi perdido. Essa é uma das razões que nos leva a dar
importância ao conhecimento sobre a história que conta como nossas mães e avós
viveram as experiências de serem mulheres, esposas e mães, em uma cultura patriarcal.
Na psicologia de C. G. Jung, denominamos “complexos” tudo que atrapalha o
exercício da vontade livre e nos faz sentir a experiência com a carga afetiva de algum fato
análogo que foi doloroso. Essa é a razão de certos acontecimentos em nossas vidas nos
fazerem sofrer de forma desproporcional ao que aconteceu. Estamos inconscientes desses
fatos. Assim como reagimos a vivências pessoais com os complexos, também a cultura
de um povo procura se proteger do que já foi vivido de forma traumática e estabelece o
que chamamos de complexos culturais Intergeracionais.
A família patriarcal, por exemplo, tinha o sexo no corpo feminino como o mal.
Talvez essa seja a razão que fez surgir, nos tempos atuais, as “relações líquidas", como
denomina o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman. É um modo de viver sem o
cimento de Eros e com as consequências que fizeram ambos os sexos correrem para o
mundo do poder, do penetrar, em lugar do acolhimento vaginal como se a feminilidade
fosse o mal.
Jung defende que o nosso interesse é saber o que as pessoas fazem com seus
complexos. É o que fazemos com os nossos complexos pessoais e culturais que determina
quem nos tornamos como indivíduos, grupos e sociedades. Daí a importância de uma boa
literatura, mais que qualquer compêndio informativo, para nos alertar sobre os complexos
existentes na cultura em que nascemos.
O romance da brasileira Martha Batalha, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão,
adaptado para o cinema, conta a história de duas irmãs nascidas nos anos 40. A mais
velha, Eurídice, era uma mulher brilhante, provavelmente vocacionada para a música. Em
obediência ao seu pai, por ser mulher, teve que declinar o convite de Heitor Villa-Lobos
para seguir uma vida artística.
Eurídice, que escolheu obedecer ao pai, casou-se com Antenor e perdeu a
liberdade de ser ela mesma. Nem se dedicou à sua vocação, nem teve seu talento
reconhecido por ser do lar. Guida, a irmã mais nova, escolheu desobedecer ao pai e fugiu
com Marcos. Apareceu grávida, imaginando que o amor de pai superaria o complexo
cultural de ter uma filha mãe solteira, mas foi despejada por ele, que considerou Eurídice
como sua única filha. As duas irmãs, portanto, seguiram caminhos opostos e nenhuma
das duas foram felizes em suas escolhas. Guida viveu na extrema pobreza e conseguiu
criar seu filho com a ajuda da Filomena — uma ex-prostituta que cuidava de crianças —
, enquanto Eurídice viveu na pobreza de espírito, em sua “vida invisível”.
Há uma diferença entre ter talento e ter vocação. Talento é fazer bem o que se
dispõe a fazer; vocação é tão maior que não leva em conta a valorização econômica da
profissão. A vocação é um fazer com alma, mas parece que nem todas as pessoas
possuem; o talento é uma habilidade adquirida por muitas pessoas que são capazes de
fazer bem aquilo a que se dedicam.
Para entendermos um complexo cultural, precisamos retroceder no tempo e
analisarmos os mitos. Mitos são verdades psíquicas que os historiadores, às vezes,
contam, dando a impressão de que deixaram de lado sua importância simbólica. Sabe-se
que a “Imaculada Concepção” de Maria só veio a ganhar importância dogmática no
século XIX. O corpo feminino representado nessa ideia não poderia deixar o desejo sexual
tomar conta do lugar sagrado da família.
Nesse passado, uma figura feminina, para ser amada, teria que ser depurada do
pecado e do sexo. Então qual a razão da mulher não virgem ser odiada? O corpo da mulher
mobilizava no homem o desejo impróprio que poderia produzir a gravidez indesejada.
Além disso, dentre tantas outras análises, poderemos considerar também um mecanismo
de defesa masculino para que o homem não vivesse a responsabilidade de corresponder
ao desejo feminino caso esse fosse considerado. Quando a ciência ofereceu a homens e
mulheres a condição de ter o sexo evitando a gravidez, que não se queria, a sociedade
modificou a expressão desse complexo cultural que ainda persiste, vendendo o mundo
dos homens como algo cobiçado — ter o poder —, em lugar do mundo cristão e feminino,
que é acolhedor ao tempo em que Eros mostra como é uma relação de alteridade ou mais
evoluída.
Homens hoje formam famílias e lutam com a dificuldade de ter uma esposa que
é, ao mesmo tempo, mulher e mãe. Mãe que guarda em si o tema arquetípico da
“Imaculada Concepção”. Como voltar a erotizar a família ou essa mulher que se tornou
mãe? É o estado de consciência de um complexo cultural em que muito se precisa fazer
para que o homem não faça de sua família o estado de amor dissociado de sexo e necessite
das “Madalenas” para efeito de suas experiências sexuais, nem falte às mulheres um
homem capaz de respeitá-las com o seu feminino acolhedor e suas realizações nesse
mundo cíclico em que vivem as mulheres.

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