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HISTÓRIA DO

BRASIL
COLÔNIA

Caroline Silveira Bauer


Povos africanos e a
escravidão no Brasil
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Descrever como ocorreu a escravidão de povos africanos no Brasil.


 Analisar as relações políticas e econômicas existentes entre os impérios
e reinos do continente africano e o governo português.
 Relacionar a economia açucareira à utilização da mão-de-obra escrava
africana no território colonial brasileiro.

Introdução
A escravidão e o tráfico transatlântico transformaram o continente africano:
impérios e reinos formam reformulados; surgiu uma elite que comercia-
lizava escravizados que, anteriormente, eram utilizados de outra forma,
em uma “escravidão doméstica”; e, a partir da transformação na vida de
seres humanos, houve o enriquecimento de elites coloniais americanas
e metropolitanas europeias.
Neste capítulo, você estudará como se deu o processo de escravi-
zação dos povos africanos e a realização do tráfico transatlântico por
Portugal. Analisará as relações estabelecidas entre o reino português e
suas feitorias estabelecidas no continente africano, bem como as rela-
ções com os diferentes povos da África. Por fim, estudará a situação dos
africanos escravizados nas lavouras de cana e nos engenhos do nordeste
da América portuguesa.
2 Povos africanos e a escravidão no Brasil

1 A escravização dos povos africanos e o tráfico


Para estudarmos a escravização dos povos africanos e a constituição do
tráfico, é preciso que aprendamos um pouco sobre a história da África e
da colonização europeia naquele continente, pois assim conseguiremos
entender como aquele se tornou o maior centro de dispersão populacional
do mundo moderno.
Antes de mais nada, não resta dúvida de que havia diferenças significativas
entre a cultura portuguesa e a africana, como nos lembram Albuquerque e
Fraga Filho (2006, p. 13):

Entre os africanos, a organização social e econômica girava em torno de


vínculos de parentesco em famílias extensas, da coabitação de vários povos
num mesmo território, da exploração tributária de um povo por outro.
A vinculação por parentesco a um grupo era uma das mais recorrentes
formas de se definir a identidade de alguém. Isto quer dizer que o lugar
social das pessoas era dado pelo seu grau de parentesco em relação ao
patriarca ou à matriarca da linhagem familiar. Nessas sociedades, a coesão
dependia, em grande parte, da preservação da memória dos antepassados,
da reverência e privilégios reservados aos mais velhos e da partilha da
mesma fé religiosa.

Na África, existia toda uma gama de organizações sociais, abrangendo


desde os impérios do Kongo e do Mali até aldeias reunidas por laços de
descendência ou linhagem, bem como sociedades de agricultores e pasto-
res nômades ou seminômades. Vale lembrar que a África é um continente
vastíssimo — quase duas vezes maior que a América do Sul, por exemplo
—, e, por isso, havia e há uma heterogeneidade de situações em todo o
território. A expansão de reinos, a migração de grupos, as rotas realizadas
pelas caravanas de mercadores, a disputa pelo acesso aos rios e o controle
sobre estradas e rotas podiam levar a conflitos e à subjugação de um povo
a outro, cuja população era muitas vezes submetida à escravidão (ALBU-
QUERQUE; FRAGA FILHO, 2006).
Dessa forma, é correto afirmar que a escravidão existia como prática
no continente africano antes da expansão e colonização europeia. Con-
tudo, o escravismo e o tráfico de escravos realizados pelas metrópoles
europeias eram bastante diferentes do praticado pelos africanos, o que
Povos africanos e a escravidão no Brasil 3

poderia ser denominado de “escravidão doméstica”, ou seja, a utilização


da mão-de-obra de um prisioneiro para a agricultura de subsistência ou de
pequena escala.

Os escravos eram poucos por unidade familiar, mas a posse deles as-
segurava poder e prestígio para seus senhores, já que representavam a
capacidade de autossustentação da linhagem. Não por acaso, nesse tipo
de cativeiro se preferia mulheres e crianças. A fertilidade das mulhe-
res garantia a ampliação do grupo. Daí que era legítimo as escravas se
tornarem concubinas e terem filhos com os seus senhores. Seguindo a
mesma lógica, a incorporação dos escravos na família se dava de modo
gradativo: os filhos de cativos, quando nascidos na casa do senhor, não
podiam ser vendidos e seus descendentes iam, de geração em geração,
perdendo a condição servil e sendo assimilados à linhagem. Assim, o
grupo podia crescer com o nascimento de escravos, fortalecendo as rela-
ções de parentesco e aumentando o número de subordinados ao senhor.
A integração dos cativos também explica a predileção pela escravização
de crianças, visto que elas mais facilmente assimilavam regras e consti-
tuíam vínculos com a família do seu senhor (ALBUQUERQUE; FRAGA
FILHO, 2006, p. 14).

A escravização ocorria não somente por conflitos e guerras, mas também


como forma de punição para certas práticas delituosas, como garantia para o
pagamento de dívidas. Havia ainda outras situações de cativeiro relacionadas
a estratégias de sobrevivência frente à fome e à seca:

Certamente estamos falando de um recurso extremo, porque ser escravo


naquelas sociedades tão fortemente estruturadas por laços de parentesco
significava ser exilado, torna-se um estrangeiro, muitas vezes tendo que pro-
fessar outra fé, se comunicar em outro idioma, estar alheio às suas tradições.
Sentenciar alguém à escravidão era acima de tudo desenraizá-lo e desonrá-lo
(ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 15).

Essas práticas de escravidão foram paulatinamente transformadas com a


ocupação pelos árabes do Egito e do norte da África entre o fim do século
VII e o século VIII. A escravidão em pequena escala foi acompanhada do
início de uma comercialização dos escravizados dentro da própria África,
para o restante do mundo árabe e, posteriormente, no tráfico transatlântico
(ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006).
4 Povos africanos e a escravidão no Brasil

A expansão dos árabes pela África se deu a partir da realização da jihad (“guerra
santa”), destinada a converter os povos ao islamismo seja por vontade própria, por
acordos comerciais ou pela força. Os “infiéis”, ou seja, aqueles que não aceitassem a
fé islâmica, eram escravizados.
Um dos primeiros povos a se converter ao islamismo, na África do Nor-
te, foi o povo berbere. As cáfilas, como ficaram conhecidas as grandes
caravanas que percorriam o Saara, eram formadas principalmente por
berberes islamizados. Foi assim, seguindo a trilha desses comerciantes,
que o islamismo ganhou adeptos na região sudanesa, na savana africana
ao sul do deserto do Saara. [...] Já na metade daquele século [século IX] os
escravos eram os principais produtos dos caravaneiros do Saara, que por ali
transportaram cerca de 300 mil pessoas. As cáfilas rumavam do Norte da
África para as savanas sudanesas carregadas de espadas, tecidos, cavalos,
cobre, contas de vidro e pedra, conchas, perfumes e, principalmente, sal.
No retorno, depois de meses, traziam ouro, peles, marfim e, cada vez
mais, escravos. Calcula-se que entre 650 e 1800 esse tráfico transaariano
de escravos vitimou cerca de 7 milhões de pessoas, sendo que 20% delas
morreram no deserto (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 16)

Assim, por medo da escravidão ou pela rentabilidade dos tratados comer-


ciais, populações inteiras converteram-se ao islamismo. O Corão, livro sagrado
dos islâmicos, não condenava o cativeiro, ao contrário, estimulava a conversão
como a possibilidade de garantir a liberdade. Os indivíduos escravizados
desempenhavam uma série de atividades no mundo árabe:

[...] concubinas, agricultores, artesãos, funcionários encarregados da bu-


rocracia, domésticas, tecelões, ceramistas. Mas era principalmente como
soldados que os cativos passavam a ser indispensáveis. A conquista de ter-
ritórios e o domínio de líderes locais dispostos a interpretar à sua maneira
a lei islâmica requeriam mais e mais soldados (ALBUQUERQUE; FRAGA
FILHO, 2006, p. 18).

Os árabes também comerciavam escravizados provenientes da Índia, da


China, do Sudeste asiático e da Europa Ocidental, mas a África foi o principal
fornecedor de mão-de-obra cativa.
Povos africanos e a escravidão no Brasil 5

O califado de Bagdá contava no século IX com 45 mil escravos negros comerciados


por traficantes berberes. Um século mais tarde, esses escravos excediam em número o
turcos na região. Tal tendência se acentuou, e no século XVIII cerca de 700 mil africanos
subsaarianos foram capturados e levados para serem escravos no Egito, Líbia, Tunísia,
Argélia e Marrocos (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006).

Como vimos, a escravidão foi mudando ao longo do tempo, e, no século


XV, com a presença dos europeus nas costas africanas, a escravização tornou-
-se uma prática intercontinental. E não foram apenas os portugueses que
comercializaram seres humanos nos mercados africanos: espanhóis, franceses,
ingleses e holandeses também lucraram muito com o tráfico de africanos
escravizados (HARRIS, 2010). Vejamos como se deu a relação entre Portugal
e o continente africano no comércio de cativos.

2 Portugal, África e o comércio de escravizados


A conquista de Ceuta, importante centro comercial no norte da África, pelos
portugueses em 1415 representa um marco na expansão comercial e marítima
europeia. Em Arguim, parte do Império Jalofo, na região da atual Mauritânia,
ao sul do Cabo Branco, foi construída a primeira feitoria portuguesa na África,
em 1445, e foram estabelecidas as primeiras relações comerciais, mas não foi
uma negociação fácil. Os portugueses desejavam escravos, especiarias e ouro,
e, de acordo com Albuquerque e Fraga Filho (2006, p. 22):

Havia, por exemplo, uma crença entre os africanos de que os europeus eram
ferozes canibais, capazes de devorar a carne negra e guardar o sangue para
tingir tecidos ou preparar vinho. Desconfiados de que os europeus podiam
prejudicar seus negócios, nada lhes foi facilitado. Nenhum chefe político
franqueou-lhes o acesso às zonas auríferas no interior da África, nem os
comerciantes os introduziram nas rotas transaarianas. Mas os europeus
persistiram. [...] A persistência portuguesa foi bem recompensada. Aos
poucos, foram sendo vencidas desconfianças, combinados preços satis-
fatórios, e foram crescendo os negócios com os africanos que viviam nas
proximidades do rio Gâmbia, gente do poderoso Império do Mali. Tanto
6 Povos africanos e a escravidão no Brasil

que, por volta de 1460, tinham com eles boas relações comerciais. Mas
o principal objetivo dos portugueses, que era se apropriar do comércio
transaariano, ainda não havia sido alcançado. Tampouco tiveram acesso às
minas de ouro, como sonhavam.

Nas rotas marítimas estabelecidas entre os diferentes entrepostos comerciais


lusos, com a navegação de cabotagem, os portugueses passaram a comerciar
escravos, que possuíam um grande valor como moeda de troca. Essa mudança
de perspectiva afetou diretamente as relações e os modos de vida das socie-
dades litorâneas africanas. O comércio com os europeus reforçou o poder de
chefes dispostos a guerrear contra inimigos e fazer cativos. Assim, presença
portuguesa transformou as populações litorâneas, que, até então, não tinham
poder econômico e político significativo, A partir daí, a captura de cativos se
tornou uma atividade corriqueira (HARRIS, 2006, p. 24)
Assim, os portugueses também ampliaram a construção de feitorias e
fortalezas, para incrementar os negócios e abrigar e proteger as mercadorias
comercializadas. A mais impressionante construção portuguesa na África
foi o Castelo de São Jorge da Mina, erguido em 1482, e que hoje pertence à
República de Gana. Porém, a construção do forte não foi facilitada pelos povos
africanos. Os fantes (ou fantis) e os acãs (ou akans), moradores da localidade,
dificultaram a realização da construção, do ponto de vista humano e material.
Após oito anos, a construção foi terminada, e era capaz de abrigar até mil
cativos (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006).
Com essa construção, os portugueses atraíram para a região muitos nego-
ciantes profissionais, os mandingas, que compravam dos lusitanos escravos
e tudo mais que pudessem revender aos caravaneiros do deserto. Isso acabou
formando uma rede comercial que gerava material humano aos portugueses,
mas que também dava muito lucros aos comerciantes africanos.

Os europeus levavam sal para uns, arroz, tecidos de lã e panos de algodão para
outros e, em contrapartida, recebiam ouro e escravos, que, por sua vez, eram
trocados por outros produtos, a exemplo da pimenta. Estima-se que, entre 1500
e 1535, os portugueses levaram para o castelo de São Jorge entre 10 e 12 mil
escravos (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 25).

Esses africanos escravizados foram entregues pelos mandingas, mas


também adquiridos no Golfo do Benim, espaço que os portugueses passa-
ram a frequentar no final do século XV. O reino do Benim localizava-se
em uma região florestal e sua capital era uma grande cidade, com ruas
largas e compridas e muitas casas. A expansão desse reino deveu-se à sua
Povos africanos e a escravidão no Brasil 7

incorporação ao comércio de escravizados nos séculos XVI e XVII. Os


portugueses, na tentativa de estabelecer um monopólio comercial com o rei
do Benim, tentaram convertê-lo ao catolicismo, mas o rei tinha interesse em
negociar com outras metrópoles europeias, que também lhe haviam proposto
acordos mercantis, como franceses, holandeses e ingleses. Por isso, quando
falamos sobre a escravidão e o tráfico, é fundamental que seja abordada
a combinação de interesses de africanos e europeus. De fato, as nações
europeias buscaram impor seu controle sobre áreas produtoras de escravos,
mas o tráfico no continente era um negócio complexo, que dependia da
cooperação de uma cadeia extensa de participantes, incluindo chefes locais
e comerciantes africanos especializados (INIKORI, 2010).
Além do incremento das guerras como forma de captura, esse cenário teve
como consequências para o continente africano uma reorganização política
geral, com o apogeu de alguns reinos durante os séculos XVII e XVIII como
resultado do tráfico de escravizados, como os reinos de Daomé, Sadra, Achanti
e Oió. Assim como esse último reino, originado de uma cidade-estado iorubá,
outras cidades daomeanas e iorubás dedicaram-se ao comércio de cativos,
tanto que a região do Golfo de Benim passou a ser conhecida como “Costa
dos Escravos” (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006).
Os compradores pertenciam às mais diversas nacionalidades. Franceses,
holandeses, ingleses e portugueses, além de traficantes brasileiros, lotavam
seus navios negreiros. Os africanos passaram a ser escravizados, por captura
ou por guerra, em regiões cada vez mais distantes do litoral. Eram levados
para os mercados onde aguardavam compradores, às vezes por meses, e
eram trocados por diferentes produtos. As mercadorias brasileiras que mais
interessavam na troca por escravizados eram a cachaça, a farinha de man-
dioca e o fumo. Em conflitos internos devido à expansão dos reinos pelo
tráfico, o reino de Daomé subjugou o reino de Oió, escravizando os iorubás
em cativos a partir do final do século XVIII, e transformando-se em um
dos reinos mais poderosos da África. “O tráfico era tão fundamental para
o reino de Daomé que em 1750, 1795 e 1805 foram enviados embaixadores
daomeanos à Bahia com a incumbência de firmar acordos de monopólio
comercial para o envio de cativos” (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO,
2006, p. 28). Esse fato evidencia que havia uma demanda tão grande por
africanos escravizados e sua comercialização era tão lucrativa que essas
transações ocorriam também diretamente entre o Brasil e a África, sem a
intermediação de Portugal.
Embora isso aumentasse a concorrência, não chegava a ser um problema
para Portugal, que já se dedicava a comercializar escravizados em outras
8 Povos africanos e a escravidão no Brasil

regiões africanas. Em 1483, o navegador português Diogo Cão já tinha atingido


a foz do rio Zaire, no reino do Kongo, e conhecido sua estrutura econômica,
política e social, apresentada pelo próprio manicongo, o rei. No ano seguinte,
o rei português, D. João II, e o manicongo Nzinga firmaram uma aliança
entre os dois reinos:

O rei do Kongo visava apropriar-se dos conhecimentos, técnicas e até hábitos


e costumes europeus que pudessem fortalecer ainda mais o seu reino. O mani-
congo, uma de suas esposas e um filho foram batizados numa igreja de pedra
e cal que mandou erguer em 1491. Daquele dia em diante, ao rei do Kongo
foi dado o nome de d. João I, a sua mulher, Leonor, e ao seu filho, Afonso. É
certo que houve quem se negasse a aderir ao catolicismo, dentre eles, um outro
filho do rei, Mpanzu a Kitima, mas este foi vencido por Afonso na disputa
pela sucessão do trono. Vitória facilitada pela ajuda militar portuguesa na
forma de cavalos e armas. Além de propagar o catolicismo, d. Afonso sempre
se mostrava interessado em aproximar o Kongo de Portugal também por meio
dos costumes, língua, ensino e conhecimento tecnológico (ALBUQUERQUE;
FRAGA FILHO, 2006, p. 30)

Essa relação manteve-se até meados do século XVI, quando cada vez
mais os africanos escravizados foram utilizados como moeda de troca, sem
o intermédio da nobreza ou do rei. A partir daí, disseminaram-se na região
guerras com o objetivo específico de capturar cada vez mais pessoas a serem
embarcadas nos navios portugueses.
Novamente, entretanto, os portugueses encontraram resistência nas
tentativas de conquista do interior do continente africano. Chefes políticos,
como a rainha Jinga (ou Nzinga), reagiram ao processo de colonização.
Somando-se aos problemas políticos, havia as doenças, a fome e a sede,
os insetos e a frustração de não encontrar ouro e prata. Essas dificuldades
fizeram com que os portugueses se decidissem por não investir na colo-
nização do continente africano, somente no comércio de escravizados.
Assim, a capital de Angola, Luanda, transformou-se em uma das maiores
cidades de comércio de cativos:

[...] desde fins do século XVI até a primeira metade do século XVIII,
foi o maior fornecedor de escravos para as Américas portuguesa e es-
panhola. Entre 1575 e 1591 foram embarcados da região de Ango-
la mais de 52 mil africanos para o Brasil (ALBUQUERQUE; FRAGA
FILHO, 2006, p. 33).
Povos africanos e a escravidão no Brasil 9

Além da costa ocidental, os portugueses também exploraram a costa oriental da


África. Nessa região, procuravam marfim, ouro e prata, e, em função de adentrarem
em um território e em rotas comerciais dominadas por islâmicos, tiveram que disputar
o controle dos principais centros comerciais: Quiloa, Mombaça, Massapa, Melinde e
Moçambique. Tentaram manter sua hegemonia na região construindo fortificações,
como na costa atlântica, e, assim, ergueram em Moçamba, em 1593, a Fortaleza de
Jesus (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006).

3 A economia colonial e a escravidão


A escravidão no Brasil foi muito mais que uma forma de exploração de mão-de-
-obra: estruturou a sociedade brasileira do século XVI ao final do século XIX, e
as consequências do tratamento dado à população africana e afro-brasileira no
pós-abolição geraram consequências sentidas e perceptíveis até os dias de hoje.
Estima-se que durante os mais de 300 anos em que a escravidão esteve vigente
na América portuguesa e no Império do Brasil, mesmo depois de ser declarada
ilegal, teriam sido transportados mais de 4 milhões de homens, mulheres e
crianças, sem incluir as pessoas que morreram durante a captura ou a travessia.

A escravidão foi muito mais do que um sistema econômico. Ela moldou con-
dutas, definiu desigualdades sociais e raciais, forjou sentimentos, valores e
etiquetas de mando e obediência. A partir dela instituíram-se os lugares que
os indivíduos deveriam ocupar na sociedade, quem mandava e quem devia
obedecer. Os cativos representavam o grupo mais oprimido da sociedade, pois
eram impossibilitados legalmente de firmar contratos, dispor de suas vidas e
possuir bens, testemunhar em processos judiciais contra pessoas livres, esco-
lher trabalho e empregador (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 66)

O site intitulado Slave Voyages traz um ótimo banco de dados sobre o tráfico tran-
satlântico de escravos. Nesse memorial digital, você pode conhecer mais sobre o
comércio de seres humanos, com informações quantitativas, qualitativas e muitas
imagens, mapas interativos e animações. A referência completa pode ser encontrada
ao final deste capítulo, na seção Leituras Recomendadas.
10 Povos africanos e a escravidão no Brasil

Os africanos escravizados foram utilizados como mão-de-obra no processo


de colonização e expansão europeia no Novo Mundo. Desempenharam as mais
diversas funções, e a própria escravidão enquanto instituição se transformou
ao longo de seus mais de três séculos de existência na América. Como o
Brasil dependia de grande suprimento de africanos para atender às neces-
sidades crescentes de uma economia de mão-de-obra escassa, a migração
transatlântica forçada foi a principal fonte de renovação da população cativa
no Brasil, sobretudo na agricultura de exportação, como cana-de-açúcar.
Para esse contingente humano, o índice de mortalidade infantil era imenso e
a expectativa de vida baixíssima. Para repor os que morriam, bem como os
que eram alforriados ou fugiam para quilombos, havia demanda constante de
escravos africanos, o que se intensificava em épocas de crescimento econômico
(DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2010).
É preciso lembrar os motivos pelos quais o trabalho do africano escravizado
foi preferido em relação aos cativos indígenas:

As epidemias dizimaram grande número dos que trabalhavam nos engenhos


ou que viviam em aldeamentos organizados pelos jesuítas. A fuga dos ín-
dios para o interior do território provocou aumento dos custos de captura
e transporte de cativos até aos engenhos e fazendas do litoral. Além do
mais, o apresamento não atendia ao interesse da Coroa portuguesa de ligar
o Brasil ao comércio europeu e africano. O apresamento de indígenas era
uma atividade exclusiva dos colonos, dele ficava de fora o grande comer-
ciante sediado em Portugal ou aquele que atuava no tráfico africano. Para
completar, nenhuma comunidade indígena se firmou como fornecedora
regular de cativos, o que dificultou a formação de redes comerciais que
pudessem atender à demanda crescente de mão-de-obra (ALBUQUERQUE;
FRAGA FILHO, 2006, p. 40).

Com a necessidade de mão-de-obra na América Portuguesa, o tráfico


se tornou a atividade comercial mais lucrativa do Atlântico sul, ainda que
necessitasse de um considerável investimento. Com o passar do tempo, tra-
ficantes radicados em Portugal foram gradativamente perdendo espaço para
traficantes radicados no Brasil.

No século XVIII, o comércio para Benguela e Luanda já era feito diretamente


do Brasil, sem a intermediação exclusiva de comerciantes portugueses.
Por isso mesmo, os traficantes constituíram parte importante dos grupos
dominantes da colônia, ocupando postos políticos estratégicos para a ma-
nutenção e ampliação do comércio de gente” (ALBUQUERQUE; FRAGA
FILHO, 2006, p. 41).
Povos africanos e a escravidão no Brasil 11

Os traficantes exibiam sua riqueza com grandes e luxuosas propriedades,


participavam de irmandades religiosas (como uma forma de “salvar suas almas”)
e ocupavam cargos públicos nas Câmaras Municipais, afinal, eram considerados
os “homens bons”. Ideologicamente, os europeus justificavam e legitimavam
o tráfico de africanos como uma missão evangelizadora. “No século XVIII, o
conceito de civilização complementará a justificativa religiosa do tráfico atlântico
ao introduzir a ideia de que se tratava de uma cruzada contra as supostas barbárie
e selvageria africanas” (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 41)

Como forma de justificar religiosamente o crescente tráfico de escravos africanos, os


papas Nicolau V e Calisto III expediram bulas (1454 e 1456, respectivamente) em que
interpretavam a expansão portuguesa na África como uma cruzada de cristianização
do continente africano. Desse ponto de vista, a escravização de africanos por cristãos
era encarada como algo proveitoso para aqueles povos “pagãos”. Segundo Harris
(2010, p. 136), esse argumento era reforçado pelo mito bíblico segundo o qual “os
descendentes de Ham, um dos filhos de Noé, eram amaldiçoados e destinados à
escravidão”. Por esse prisma bíblico, os europeus cristãos estariam oportunamente
absolvidos, pela própria natureza “inferior” daqueles africanos.

No século XVI, a maioria dos africanos escravizados trazidos para o Brasil


provinha da região de Senegal e Gâmbia, chamada de Guiné pelos portugueses.

Dali os portugueses deportaram membros de vários povos, como os manjacas,


balantas, bijagos, mandigas, jalofos, entre outros. Mas, no decorrer daquele
século até a primeira metade do século XVIII, os chefes políticos e mercadores
do território presentemente ocupado por Angola forneceram a maior parte dos
escravos utilizados em todas as regiões do Brasil. A célebre frase do padre
Antônio Vieira, “quem diz açúcar, diz Brasil, e quem diz Brasil diz Angola”,
ilustra muito bem as ligações da mais rica colônia portuguesa na América
com aquela região da África. Luanda, Benguela e Cabinda eram os principais
portos de embarque (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 44).

Após a longa viagem oceânica, os africanos escravizados eram desembarcados


nos principais portos da América portuguesa — Rio de Janeiro, Salvador, Recife,
Fortaleza, Belém e São Luís —, que, posteriormente, redistribuíam os escravizados
pelas diferentes regiões da colônia. Recife e Salvador acabaram se tornando os
12 Povos africanos e a escravidão no Brasil

principais polos distribuidores de africanos desembarcados no Brasil no século


XVII. A partir dessas cidades, os africanos seguiam para Maranhão, Pará, Rio
Amazonas e Mato Grosso. Com a descoberta de ouro e diamantes nas Minas
Gerais, essa distribuição passou a ser dominada pela cidade do Rio de Janeiro. O
incrível é que, segundo Albuquerque e Fraga Filho (2006), nessa época muitos
escravos eram obrigados a seguir a pé do porto de Salvador até a região mineira.
As lavouras de cana e os engenhos concentravam o maior número de
africanos escravizados. Esse número podia variar conforme o tamanho da
propriedade e com as flutuações do mercado internacional de açúcar, mas
girava entre 60 e 80 escravizados. A maior parte do trabalho era dedicada
ao cultivo da cana. Esse trabalho era desempenhado por homens, mulheres
e crianças. Além de ajudarem os pais na lavoura, muitas crianças desempe-
nhavam tarefas na casa dos senhores, além de caçar animais. As mulheres,
inclusive grávidas ou amamentando, também eram obrigadas a trabalhar,
principalmente na época da colheita, quando as atividades se intensificavam:

Com o início da safra, a carga de trabalho aumentava, a labuta era contínua


e por vezes se estendia até à noite. A moenda não podia parar, pois a cana
colhida tinha que ser logo processada para não estragar. Nesse período, a
moenda ficava em funcionamento ininterrupto de 18 a 20 horas. Esse ritmo
intenso de trabalho ia de agosto a maio, quando chegavam as chuvas de inver-
no, impossibilitando as atividades nos canaviais. Na moagem, certas tarefas
eram exercidas quase sempre por mulheres. Algumas eram encarregadas de
trazer as canas para serem moídas e outras para recolherem o bagaço. Duas
ou três escravas eram ocupadas em enfiar as canas nas moendas. O serviço na
moenda exigia muito cuidado, pois o mínimo descuido podia custar a perda
de uma mão ou braço esmagado pelos possantes cilindros que prensavam a
cana para fazer o suco (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 72).

As atividades dos africanos escravizados nas lavouras e no engenho eram


acompanhadas por supervisores ou feitores, que, muitas vezes, eram eles próprios
escravizados ou alforriados. Havia uma hierarquia na distribuição de tarefas de
forma a impedir a sabotagem do processo produtivo ou a revolta dos escravizados.
Contudo, não era apenas nos canaviais e engenhos que os escravizados
trabalhavam. Havia aqueles que trabalhavam nas casas dos senhores ou mesmo
nas cidades, onde se dedicavam à chamada “atividade de ganho”, na qual o escra-
vizado realizava trabalhos variados e dividia com seu senhor parte de sua renda.
Com a descoberta de ouro na região de Minas Gerais, houve um progressivo
deslocamento do eixo econômico da colônia dos canaviais para as minas,
da região Nordeste para a região Sudoeste. Isso fez com que o comércio de
Povos africanos e a escravidão no Brasil 13

africanos escravizados também mudasse. O historiador Boris Fausto (1995,


p. 51) nos dá mais informações sobre essa mudança:

Os traficantes baianos utilizaram-se de uma valiosa moeda de troca no litoral africano,


o fumo produzido no Recôncavo. Estiveram sempre mais ligados à Costa da Mina,
à Guiné e ao Golfo de Benin, nesse último caso após meados de 1770, quando o
tráfico da Mina declinou. O Rio de Janeiro recebeu sobretudo escravos de Angola,
superando a Bahia com a descoberta das minas de ouro, o avanço da economia
açucareira e o grande crescimento urbano da capital, a partir do início do século XIX.

Mary Del Priore e Renato Venâncio (2010, p. 50) também nos lembram
de outras diferenciações importantes na sociedade escravista colonial, em
relação aos escravizados:

[...] os escravos distinguiam-se em boçais — como eram chamados os recém-


-chegados da África – e ladinos, os já aculturados e que entendiam o português.
Ambos os grupos de estrangeiros opunham-se aos crioulos, aqueles nascidos
no Brasil. Havia distinções entre as nações africanas e, dada a miscigenação,
a cor mais clara da pele era também fator de diferenciação. Aos crioulos e
mulatos reservavam-se as tarefas domésticas, artesanais e de supervisão. Aos
africanos, dava-se o trabalho mais árduo.

Ou seja, a escravidão colonial também passou por transformações ao longo


do tempo, não podendo ser considerada uma instituição estanque no transcurso
de seus mais de 300 anos de duração.

ALBUQUERQUE, W. R.; FRAGA FILHO, W. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro
de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.
DEL PRIORE, M.; VENÂNCIO, R. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010.
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História geral da África V: África do século XVI ao XVIII. Brasília: Unesco, 2010. p. 135–164.
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emergência de uma ordem econômica no Atlântico. In: OGOT, B. A. (Ed.). História geral
da África V: África do século XVI ao XVIII. Brasília: Unesco, 2010. p. 91–134.
14 Povos africanos e a escravidão no Brasil

Leituras recomendadas
ALENCASTRO, L. F. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
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v. 8, n. 16, p. 269–284, ago. 1988.
CONRAD, R. E. Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985.
FLORENTINO, M. Em costas negras: história do tráfico de escravos entre a África e o Rio
de Janeiro, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
GATES, H. L. Slave Voyages. 2019. Disponível em: https://www.slavevoyages.org/. Acesso
em: 13 abr. 2020.
REIS, J. J. Notas sobre a escravidão na África pré-colonial. Estudos Afroasiáticos, n. 14,
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SILVA, A. C. A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2002.
SILVA, A. C. Francisco Félix de Souza, mercador de escravos. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2004.
THORNTON, J. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico (1400–1800). Rio
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VAINFAS, R.; SOUZA, M. M. Catolização e poder no tempo do tráfico: o reino do Congo
da conversão corada ao movimento Antoniano, séculos XV-XVIII. Tempo, Niterói, v. 3,
n. 6, p. 95–118, dez. 1998.
VERGER, P. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia de Todos
os Santos: séculos XII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987.

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