Você está na página 1de 284

LIÇÕES DE MESTRE | MARK SHAW

10 insights para a edificação da igreja local

TKADUZIDO POR

JARBAS A R A G Ã O

fâWtf ÉÊ
MM I **1

Editora Mundo Cristão


São Paulo
L I Ç Õ E S DE M E S T R E
CATEGORIA: TF.OI.OGIA/IC.REJA

Copyright © 1997 p o r Mark Shaw


Publicado originalmente por InterVasity Press (Downers Grove,
Illinois - EUA)
Todos os direitos reservados
Título Original em Inglês: Teu Great Ideas from Church Histar/y'' r \ . y
r$

Tradução: Jarbas Aragão ^ ** "^


Preparação: Renato Potenza
Revisão: Vera Lúcia da Costa
Capa: Douglas Lucas
Diagramação: Viviane R. Fernandes Costa
Impressão: OESP Gráfica S. A.
Os textos das referências bíblicas foram extraídos da versão Almeida
Revista e Atualizada (Sociedade Bíblica do Brasil), 2- ed., salvo
indicação específica.
A 1- edição brasileira foi publicada em setembro de 2004, com uma
tiragem de 5.000 exemplares.

Dados I n t e r n a c i o n a i s de Catalogação na Publicação (CIP)


( C â m a r a Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Shaw, Mark, 1949-
Lições de Mestre: 10 insights para a edificação da igreja local / Mark
Shaw; traduzido por Jarbas Aragão - São Paulo: Mundo Cristão, 2004.

Título original: 10 great ideas from church history


Bibliografia
ISBN 85-7325-367-3
1. História da Igreja 2. Teologia pastoral I. Tírulo.

04-5884 CDD-253

í n d i c e para catálogo sistemático:


1. Teologia pastoral: Cristianismo 253
Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados pela:
Associação Religiosa Editora Mundo Cristão
Rua Antônio Carlos Tacconi, 79 - CEP 04810-020 - São Paulo-SP - Brasil
Telefone: (11) 5668-1 700-Home page: www.munclocristao.com.br

Editora associada a: • Associação Brasileira de Editores Cristãos


• Câmara Brasileira do Livro
• Evangelical Christian Publishers Association
Impresso no Brasil
10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 04 05 06 07 08 09 10 11
SUMÁRIO

Introdução 7

1. Uma Lição Sobre a Verdade: A Teologia da Cruz de


Martinho Lutero 17

2. Uma Lição de Espiritualidade: João Calvino e a


Vida Cristã 47

3. Uma Lição de Unidade: Jeremiah Burroughs e a Teoria


Denominacional da Igreja 73

i. I Jma Lição de Segurança: O Modelo de Conversão e


Segurança de William Perkins 87

S. Uma Lição de Adoração: As Instruções de Richard Baxter


Para lermos Prazer em Deus 107

d, l Jma Lição de Renovação: ATeologia do Avivamento de


lonatlian Edwards 129
LIÇÕES DE MESTRE

7. Uma Lição de Crescimento: O Conceito de Discipulado


de John Wesley. 1 57

8. Uma Lição Sobre os Perdidos: O Modelo de Missões de


William Carey. 177

9. Uma Lição de Justiça: O Modelo de Ação Social Cristã de


WilliamWilberforce 203

10. Uma Lição de Comunhão: Os Princípios de Comunidade


Cristã de Dietrich Bonhoeffer 225

Epílogo: Passando da Lição para a Decisão 253

Notas 267

6
INTRODUÇÃO

l\cidade de Quincy fica ao sul de Boston, Massachusetts. Locali-


zada entre o mar e a selva urbana de Boston, Quincy ficou famosa
por ser a terra natal de dois presidentes americanos. John Adams e
John Quincy Adams nasceram e foram enterrados naquela cidade.
Assim como muitos municípios da Nova Inglaterra, Quincy está re-
pleta de igrejas históricas. Uma delas, a Primeira Igreja Presbiteriana,
foi fundada no final do século xix, algo bem recente para o padrão da
Nova Inglaterra. Essa igreja foi organizada por imigrantes escoceses
em 1884.
Durante seus primeiros cinqüenta anos de existência, a "Primei-
ra" experimentou um crescimento estável e contínuo. Porém, na dé-
cada de 1950 os descendentes espirituais dos 62 membros originais
haviam chegado a um total de setecentos. O responsável por aquele
rebanho durante os "anos dourados" foi o reverendo Roy Schoaf
Durante seu ministério, a igreja era nominalmente cristã, "não
distinguível pelo seu zelo extremamente fundamentalista ou
evangelístico, nem por nenhum dos vários tipos de liberalismo que
dominavam as igrejas tradicionais".1
Tudo isso mudou em 1961, quando Schoaf se aposentou e o
reverendo David Muir assumiu como seu substituto. Muir era um

7
LIÇÕES DE MESTRE

homem sensível às mudanças que ocorriam nos Estados Unidos. Os


direitos civis e a revolução cultural deixavam de lado o mundo
"romântico" que reinava até então. Contudo, os sermões confrontadores
de Muir e sua paixão pela justiça social foram incapazes de mobilizar
a igreja e fazê-la agir. Para sua grande surpresa, seu ministério acabou
tendo um efeito inverso. A maioria de seus membros começou a sair
da igreja, reclamando que seus valores tradicionais haviam sido viola-
dos. A redução dos membros logo gerou uma crise financeira, que
culminou na saída de Muir em 1964.
Steve Brown se tornou o novo pastor daquela igreja em 1967. Ele
encontrou uma congregação profundamente dividida e financeira-
mente instável. Brown optou por um estilo de ministério bastante
diferente de seus dois antecessores. Seus sermões eram recheados de
promessas e esperança, em vez de confrontações e críticas. Ele dimi-
nuiu a importância da política e enfatizou as verdades do Evangelho
bíblico. Uma nova atmosfera de comunidade foi criada e a igreja
começou a crescer novamente.
Em seu relatório anual de 1967, Brown registrou seu plano para
aquela congregação:

Toda igreja, em algum momento de sua vida eclesiástica, se


depara com uma encruzilhada. Uma estrada conduz à medio-
cridade, à frustração e ao fracasso. A outra leva à grandeza, à
satisfação e ao progresso do Reino de Deus. Creio que esse é o
nosso momento para tomar uma decisão.2

O pastor Brown escreveu as diretrizes para alcançar essa estrada de


grandeza, ressaltando os valores cristãos históricos como a crença no
Evangelho pela pregação (kerigma), serviço {diakonia) e criação de
uma atmosfera de comunidade (koinoniá).
Após a saída de Brown, a igreja passou por outra grande crise.
Nem todos estavam contentes com a teologia conservadora de seu
pastor. Mas em vez de mudar de rumo, os líderes da igreja insistiram
em seguir a rota traçada por Brown. Roger Kvam assumiu a igreja em

8
INTRODUÇÃO

1974. Durante seu longo pastorado, Kvam deu início a um progra-


ma evangelístico agressivo e levou sua igreja ao evangelicalismo,
sem nunca criar uma divisão entre os "antigos" (membros antes de
Brown) e os "novos" (membros após Brown). Durante toda a déca-
da de 1980 e o início da década de 1990, a Primeira Igreja
Presbiteriana de Quincy seguiu a estrada antiga de kerigma, diakonia
e koinonia. E valeu a pena! Os líderes que decidiram seguir essa
"estrada da excelência" ajudaram a igreja a crescer em quantidade e
qualidade.

As estradas antigas

Este livro fala sobre seguirmos as estradas antigas — algumas das


grandes lições da história da Igreja — que podem ajudar sua igreja a
percorrer a "estrada da excelência" hoje. Meu objetivo é ajudá-lo a
tomar decisões mais acertadas e se tornar um líder mais sábio. Um
dos pressupostos deste livro é que a história pode clarear sua visão e
ajudá-lo a enxergar a direção de seu caminho.
Talvez você conheça o antigo provérbio russo que diz: "Quem só
olha para o passado perde um olho, mas quem esquece o passado
perde os dois". Pessoalmente, gostaria de manter os meus dois olhos
intactos. Certamente você também pensa assim. É difícil ver para
onde se vai quando existe algo errado com a visão.
Todo líder cristão precisa manter seus dois olhos em perfeito esta-
do. Acredito que as melhores decisões são tomadas quando estamos
com os dois olhos bem abertos. Nas páginas seguintes, escrevi que
podemos ser líderes melhores se evitarmos as decisões "cegas" de pes-
soas que consideram a história algo irrelevante e as decisões "tradicio-
nais" (tomadas somente com um olho aberto), de pessoas que estão
aprisionadas pelo passado e se mostram cegas para as necessidades e
oportunidades contemporâneas.
Que tipo de líder pode se beneficiar com um livro como este?
No meu entendimento, primordialmente os líderes de uma igreja
loi.il (pastores, presbíteros, diáconos), sem esquecer dos líderes de

9
LIÇÕES DE MESTRE

organizações cristãs. Porém, os exemplos de decisões apresentados no


final de cada capítulo estão mais voltados para a igreja local.
Você pode estar se perguntando: "De que modo essa análise de
algumas situações históricas e idéias do passado me ajudarão a ser
um líder mais sábio"? Essa é uma dúvida compreensível. Eu já me
perguntei isso muitas vezes ao longo desses anos, enquanto procu-
rava constantemente me tornar um líder melhor. Em minha busca
pela resposta, fiz algumas descobertas importantes. Nos capítulos
seguintes, gostaria de compartilhar essas descobertas. Cada capítu-
lo aborda uma lição ensinada por grandes líderes do passado. Em
resumo, você aprenderá como:

• A teologia da cruz de Martinho Lutero pode aprofundar a fé


de sua congregação.
• O modelo de santidade de João Calvino pode combater o cristia-
nismo centrado no "eu".
• A teoria denominacional da Igreja proposta por Jeremiah
Burroughs pode ser um grande incentivo para a unidade de
sua congregação.
• A lição de William Perkins sobre a segurança de salvação con-
quistada pela verdadeira conversão pode vencer os extremos da
apatia e da ansiedade dentro da igreja.
• As instruções de Richard Baxter para termos prazer em Deus
podem revitalizar a adoração.
• A lição de avivamento de Jonathan Edwards pode proteger a
igreja dos ataques do secularismo.
• A estratégia de John Wesley para grupos pequenos pode trans-
formar membros instáveis da igreja em discípulos dedicados.
• O modelo de missões proposto por William Carey pode inspi-
rar homens e mulheres a cumprir a grande comissão.
• O paradigma de ação social cristã criado por William Wilberforce
pode guiar os cristãos em sua luta contra ao males de nosso tempo.

10
INTRODUÇÃO

• A visão de Dietrich Bonhoeffer da comunhão cristã pode unir


as pessoas de sua igreja e se opor ao tribalismo e ao individua-
lismo radical da vida pós-moderna.

Pode haver ainda outra dúvida, ou seja, saber se revirar o passado


realmente vale a pena. Afinal de contas, não é preciso limpar quilos
de poeira acadêmica antes de encontrar algumas gramas de sabedo-
ria? Gostaria de responder essa questão ressaltando que a maioria dos
grupos fora da Igreja — como o governo federal, as universidades e as
maiores companhias do mundo — gasta uma quantia significativa
de dinheiro todo ano para resgatar alguns tesouros do passado. Gos-
taria de lembrar alguns exemplos.
Há muitos anos, Richard Neustadt e Ernest May, da Escola
Kennedy de Governo da Universidade de Harvard, criaram um curso
pioneiro, que utilizava a história para falar sobre as decisões na polí-
tica. Dentro de pouco tempo, o auditório ficou superlotado de "legis-
ladores, chefes de departamento, coronéis, generais, embaixadores
e profissionais similares".3 A Universidade de Chicago também ini-
ciou um programa de políticas públicas, que mostrava aos líderes
como usar a história para aprender a tomar decisões de maneira
mais sábia. Os líderes vieram. A escola de urbanismo e gestão pú-
blica da Universidade Carnegíe-Mellon aproveitou essa onda de
interesse pelo valor do estudo histórico e começou a oferecer um
curso chamado "Perspectivas Históricas de Problemas Urbanos". A
escola Harriman de Urbanismo e Gestão Pública (que faz parte da
Universidade Estadual de Nova Iorque) oferece um curso similar. A
história está falando, e os líderes políticos ouvem atentamente.
O mundo dos negócios também desperta para o valor da história
na tomada de decisões. O Instituto de Graduação da Rand Corpora-
tion, na Califórnia, oferece um curso sobre "os usos da história" aos
alunos de Ph.D. que dedicam tempo aos projetos da Rand. Escolas de
negócios captaram a mensagem. O programa de MBA da escola
de graduação em administração da Universidade da Carolina do
Norte, em Chapei Hill, inclui um curso sobre o uso da história no
processo de tomada de decisões.

li
LIÇÕES DE MESTRE

Infelizmente, muitos líderes cristãos ainda não descobriram o


valor que a história possui em nos ajudar a tomar decisões. Durante
muitos anos, ministrei cursos sobre como usar a história para tomar
decisões tanto no seminário quanto na universidade. Meus alunos,
e muitos deles são líderes de igrejas, ficaram entusiasmados com o
valor da história cristã. Eles se perguntam por que as igrejas e orga-
nizações cristãs (incluindo a sua própria) geralmente falham em
lembrar da história quando precisam tomar decisões. Esses alunos
estão acostumados a ver as decisões sendo tomadas na igreja de uma
maneira essencialmente pragmática — reações temerosas perante a
"crise do momento" ou a pressão para apresentar uma resposta rápida.
As decisões baseadas em princípios ou em uma visão maior são rela-
tivamente raras hoje em dia.

Decisões baseadas em princípios

Alguns gurus do gerenciamento como George Barna (O Poder da


Visão) e Stephen Covey (Os 7 Hábitos das Pessoas Altamente Eficazes)
ressaltam os benefícios existentes a longo prazo (e também a curto
prazo) quando baseamos nossas decisões em princípios e idéias. Barna
pede que os líderes usem a visão como base para as suas decisões, não
o pragmatismo sem princípios:

Os pastores que buscam ativamente cumprir a visão de Deus


quanto ao seu ministério, são tesouros para a igreja. São pasto-
res não impulsionados pela necessidade de auto-engrandeci-
mento ou gratificação do próprio eu, mas por um requeimado
desejo de ver a vontade de Deus ser cumprida de modo pleno
[...] Suas igrejas conseguem realizar algo singular, significativo
e especial, pois o Espírito Santo os tem capacitado a compreen-
der uma imagem do futuro, mapeando-o e traçando um curso
de ação que leve àquele alvo.4

O tipo de liderança visionária que Barna descreve, contudo, parece


ser orientada para o futuro, não para o passado. A história da Igreja é

12
INTRODUÇÃO

relevante para o líder visionário? Barna responde a essa questão de


maneira direta:

Uma tradição é usualmente reflexo do passado. A visão, por


sua vez, é sempre um reflexo do futuro. Haverá algum espaço
para o casamento entre uma tradição assim e a visão espiri-
tual? Absolutamente não! Visto que Deus é aquele que criou
e reinou sobre o passado, agora ele pode utilizar-se da História
para servir aos seus propósitos na sua vida e no seu ministério
[...] Deus há de usar o seu passado a fim de aprimorar o seu
futuro. 5

Deus pode usar a história para melhorar o seu futuro. Na verdade,


uma outra premissa deste livro é o poder de Deus em usar o passado
para moldar um futuro melhor, usando para isso as boas decisões do
presente.
Nos próximos capítulos veremos algumas das lições mais impor-
tantes dos últimos quinhentos anos de história da Igreja. Eu poderia
escolher lições que surgiram nos primeiros séculos, mas acredito que
as dez idéias selecionadas são as mais proveitosas para os líderes cristãos
contemporâneos. Não examinarei apenas o modo como cada uma
dessas idéias gera a visão, mas também sugerirei algumas decisões
que podem resultar dessa visão. As dez lições foram tiradas da vida e
dos escritos de reformadores (Lutero e Calvino), avivalistas (Wesley e
Edwards), ativistas sociais (Wilberforce e Bonhoeffer), pastores e
pioneiros (Baxter, Perkins, Burroughs e Carey). Antes de selecionar
as idéias que poderiam nos ajudar a tomar decisões melhores, fiz um
teste usando duas perguntas: (1) Essa lição (ou modelo) está profun-
damente baseada na Bíblia?; (2) Esse modelo (ou lição) deixou um
registro histórico mais eficaz na edificação de cristãos e igrejas?
Cada capítulo descreverá um líder e a situação que ele enfrentava.
1 depois, explicará melhor a idéia central que essa pessoa descobriu ou
articulou. Além disso, apresentarei algumas sugestões de como essa
idéia pode ser aplicada na igreja hoje em dia e os tipos de decisões

13
LIÇÕES DE MESTRE

que ela pode gerar. Algumas questões para reflexão e debate foram
colocadas ao final de cada capítulo, a fim de ajudar você na assimila-
ção da idéia e no lado prático de sua implementação.

Agradecimentos

Antes de iniciarmos o nosso estudo, quero expressar minha grati-


dão por aqueles que ajudaram esse projeto em questões cruciais.
Uma vez mais sou devedor aos estudantes que se dispuseram a ser
"cobaias" tanto dessas idéias quanto da abordagem deste livro.
Meu muito obrigado aos alunos do Seminário Teológico Gordon-
Conwell, Seminário Batista Conservador do Leste, Faculdade de
Teologia Evangélica de Nairobi e Faculdade Teológica Scott. Agra-
deço também aos queridos amigos Karl e Debbie Dortzbach, que
fizeram este livro surgir quando convidaram a mim e minha espo-
sa Lois para fazermos um "retiro literário" em sua casa. Cindy
Bunch-Hotaling, da IVP, que se tornou a editora de meus dois
livros, passei a depender profundamente do seu bom-senso e con-
selhos sábios. Dois professores da Faculdade Wheaton; Timothy
Beougher e Mark Noll, que me encorajaram com sua disposição
para ler os capítulos selecionados. Três grandes amigos que tam-
bém são grandes pastores leram e criticaram este trabalho em sua
forma manuscrita. Meus agradecimentos, então, aos reverendos
Irfon Hughes, Tom Kenney e Ron Sylvester, que fizeram comen-
tários honestos de grande valia.
Uma menção especial deve ser feita a Lois, minha esposa, que
acreditou neste projeto desde o seu início, algumas vezes mais do
que eu mesmo. Não posso deixar de lembrar de dois dos melhores
filhos da história da Igreja; Anne Bradstreet Shaw e Jonathan
Edwards Shaw. O dom desses dois de provocar riso em nossa casa
ajudou seu pai, às vezes um tanto carrancudo, a não levar a si mes-
mo muito a sério.
Bem, chega de preliminares. A melhor maneira de mostrar como
esse processo de tomada de decisões funciona é simplesmente analisar

14
INTRODUÇÃO

uma dessas grande lições e retirar dela todo seu potencial para nos
ajudar a sermos líderes melhores. Voltemos nossa atenção para
Martinho Lutero, o grande reformador, que possuía algumas idéias
sobre como era essa "estrada para a excelência".

15
CAPÍTULO I

UMA LIÇÃO SOBRE A VERDADE:


A TEOLOGIA DA CRUZ DE
MARTINHO LUTERO

1VJL inha esposa Lois e eu éramos novos na cidade. Aquela era a nossa
primeira visita à igreja. Tratava-se de uma igreja evangélica conserva-
dora bem estabelecida na comunidade. Nos primeiros dois domin-
gos, sentimos uma vibração e um calor impressionantes durante o
período de adoração. Aquele louvor era tão animado que também
criamos grandes expectativas para a classe de adultos da escola bíblica
dominical.
A aula começou bem e o professor era muito amigável. Sentamos
ao lado de George e Jane, membros da igreja que estavam ativamente
envolvidos no ministério evangelístico. Eles também foram muito
gentis. Nosso professor manteve a conversa animada, propondo
algumas ilustrações. As histórias contadas por ele geraram discussão,
tanto que ele nem chegou a expor a passagem bíblica naquela manhã.
As pessoas comentavam e interagiam bastante. Era como se elas pre-
cisassem apenas de uma chance para falar sobre os seus problemas.
Quando voltamos para a aula, no domingo seguinte, aconteceu a
mesma coisa. Um longo tempo foi dedicado para o compartilhamento
c as opiniões pessoais. Não houve tempo para a Bíblia. Faltando cer-
ca de dez minutos para o final da aula, o professor leu um capítulo de
I C Àmntios e perguntou o que achávamos.

17
LIÇÕES DE MESTRE

Jane se pronunciou

— Não acredito nessa passagem. Acho que Paulo estava confuso


quando escreveu isso. Eu não deixaria meus filhos lerem isso.
Ficamos alguns minutos em silêncio para assimilar as palavras de
Jane. O professor também não disse nada.
Embora eu fosse novo ali, decidi que alguém deveria se pronun-
ciar. Procurando ser gentil, fiz alguns comentários sobre a inspiração,
a autoridade e a confiabilidade das Escrituras. Os outros não pres-
taram muita atenção. Meus comentários aparentemente não tiveram
efeito.
A aula chegou ao fim. Conversamos sobre amenidades com George
e Jane enquanto saíamos. Para ser honesto, considerando a reputação
daquela igreja, eu ainda estava um pouco chocado com as palavras
ditas por Jane. Fiquei pensando se estávamos no lugar certo. As pes-
soas daquela congregação levavam suas Bíblias para a igreja, mas pelo
menos alguns deles deixavam sua teologia em casa. Não tinha muita
certeza se voltaríamos no domingo seguinte.

Em busca de conhecimento bíblico

Estou certo de que Jane não é a única a pensar assim. Em muitas


igrejas evangélicas espalhadas pelo país, o nível de conhecimento teo-
lógico e a clareza doutrinaria parecem cair mais rápido que alguém
saltando de bungeejump. Um relatório apresentado pelo Grupo Barna
em 1994 comprova esse declínio nas crenças evangélicas dos ameri-
canos. Barna descobriu que a porcentagem de pessoas que aceitavam
a inerrância da Bíblia, a soberania de Deus e a necessidade de novo
nascimento pela fé em Cristo caiu de um percentual estimado em
12%, em 1992, para apenas 7%, em 1994. "O movimento dos nú-
meros", concluiu Barna, "sugere que podemos ver um decréscimo
contínuo do número de evangélicos em um futuro imediato, a me-
nos que ocorra um derramamento milagroso do Espírito de Deus
sobre o povo de nossa terra".1

18
UMA LIÇÃO SOBRE A VERDADE: A TEOLOGIA DA CRUZ DI; MARTINHO LUTF.RO

Talvez o leitor saiba que nas décadas de 1970 e 1980 houve um


debate evangélico sobre a Bíblia. Para muitos foi uma evidência de
que os americanos ainda se preocupavam com a verdade bíblica. David
Wells comentou a questão, lembrando a grande ironia existente: "En-
quanto a natureza da Bíblia estava sendo debatida, a própria Bíblia
estava silenciosamente caindo em desuso na Igreja". 2 A mente
consumista não invadiu apenas a Igreja, mas também influenciou a
nossa teologia. Um cristianismo "terapêutico" que me ajuda a criar
meus filhos, renovar minha vida sexual e desenvolver todo o meu
potencial substituiu o cristianismo mais antigo e doutrinário, que se
preocupava com questões relativas a Deus, ao pecado, à salvação e à
cruz. Conforme sugeriu um livro lançado nos Estados Unidos, na
década de 1990, é cada vez menor o lugar para a verdade na Igreja.
Por onde devemos começar nossa busca pela renovação teológica
na Igreja? "Nos últimos tempos", escreveu o historiador Mark Noll,
"a maior esperança para o pensamento evangélico está no centro da
mensagem evangélica: a cruz de Cristo". 3 Os líderes que desejam ver
sua igreja crescer precisam redescobrir a cruz. Embora o pensamento
evangélico contemporâneo seja útil para promover o crescimento da
Igreja, a ação social cristã, as missões mundiais e a renovação da ado-
ração, o canal estreito do sucesso a longo prazo de uma igreja se
resume a um comprometimento renovado com a mensagem da cruz.
Aparentemente, isso é loucura. Dizer que a percepção da cruz
tem um poder de renovação maior que a ação evangelística ou o
marketing direcionado é o tipo de escândalo que Paulo descreveu em
1 Coríntios 1:27: "Deus escolheu as coisas loucas do m u n d o
para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para
envergonhar as fortes". Conforme G. K. Chesterton sugeriu certa
vez, um diagrama correto da mente cristã não deveria ser um cír-
culo que engloba tudo em um sistema, mas uma cruz que, a partir
de um paradoxo central, desloca-se em todas as direções para que
possa lançar luz sobre todos os aspectos da realidade. A cruz real-
mente é a base para todas as decisões que os líderes devem tomar,
conforme veremos neste livro.

19
LIÇÕES DE MESTRE

Compreender o poder e a importância da cruz em relação a todas


as áreas da vida é a chave para que haja saúde e plenitude na Igreja de
Cristo durante um logo tempo. A decisão mais importante que um
líder pode tomar é revelar o significado total da cruz.
Nenhum personagem histórico entendeu melhor e mais profun-
damente o poder da cruz que Martinho Lutero, o reformador do
século XVI. A revolução teológica de Lutero algumas vezes se resume
pela frase "justificação somente pela fé". Mas nem sempre valoriza-se
o fato que a percepção da cruz de Lutero vai muito além de seu poder
para salvar, pois inclui seu poder para nos ajudar a ver. Alister McGrath,
um teólogo de Oxford, definiu a teologia da cruz de Lutero como
"uma das compreensões mais poderosas e radicais da natureza da
teologia cristã que a Igreja já conheceu". 4
Se a vida e o ministério parecem um mistério para você, a cruz
oferece uma resposta. O antigo enigma da cruz pode resolver os no-
vos enigmas de nossa existência fragmentada neste mundo moderno.
Assim como uma bússola, a teologia da cruz de Lutero aponta para o
progresso que de outra maneira poderíamos ignorar e rejeitar.
Mas de que maneiras a morte de Cristo oferece soluções para líde-
res confusos e cristãos igualmente confusos? O que Lutero queria
dizer com "teologia da cruz"? Como os líderes podem aplicar essa
percepção hoje? Em seguida, analisaremos essas questões.

A vida de Lutero

Martinho Lutero (1483-1546) nasceu em um período em que a


paixão pela verdade perdia sua força e as pessoas pareciam cada vez
mais entediadas com o Evangelho. O cristianismo europeu estava
em perigo. Três eram seus problemas mais sérios: cristãos inquie-
tos, igrejas mundanas e reformadores moralistas.
Timothy George chamou o século XVI de "uma época de ansie-
dade". Essa ansiedade possuía três aspectos. O medo das doenças
e da morte gerava uma ansiedade física (ôntica). O medo da culpa e
da condenação e as respostas inadequadas da Igreja a esses terrores

20
UMA LIÇÃO SOBRE A VERDADE: A TEOLOGIA DA CRUZ DE MARTINHO LUTERO

produziram uma ansiedade moral. O medo de que a vida não tivesse


sentido nem propósito gerava uma profunda ansiedade existencial.
No século xvi e durante o final da Idade Média existia uma obsessão
mórbida pela morte. O prospecto de punição no fogo do purgatório
e do inferno aumentava o sentimento de culpa e de condenação das
pessoas. O medo da anarquia e do caos aliado ao temor de um
apocalipse iminente levantavam inúmeras questões sobre o sentido e
o propósito da vida.
A resposta da teologia popular a esses terrores era simples: esfor-
ce-se ao máximo e espere pelo melhor. A libertação das ansiedades
dessa era não vinha primariamente por Cristo, mas pelos esforços
da própria pessoa. Mas o quanto seria o suficiente? Que nível de
perfeição uma pessoa precisava alcançar para receber a graça divina
que tiraria uma alma ansiosa do abismo do medo? O cristão típico
do final de Idade Média encontrava pouca ajuda para lidar com
essas ansiedades. Os cristãos eram nervosos, e suas ansiedades cres-
ciam continuamente.
A Igreja a que esses cristãos ansiosos recorriam estava mal equi-
pada para confortar essas almas atribuladas. Nas classes mais altas,
um sentimento crescente de secularização minava a Igreja e as es-
truturas paraeclesiásticas (escolas, ordens monásticas, ministérios e
outras). Leão X (1475-1521) simboliza essa atitude. Ele fora eleito
papa em 1513. Filho de Lourenço de Mediei, o Magnífico, Leão
era sincero em sua fé, mas as áreas em que apresentava as maiores
fraquezas eram finanças e política. Leão gastava grandes somas pa-
trocinando artes, música e teatro, e o dinheiro do papado estava
acabando. Para financiar seu projeto mais extravagante, a basílica
de São Pedro em Roma (incluindo a capela Sistina), Leão resgatou
a prática de cobrar indulgências (receber dinheiro para reduzir a
estada de uma pessoa no purgatório), o que precipitou a Reforma
Protestante. Ele excomungou Lutero em 1520, más nunca anali-
sou a profundidade do protesto de Lutero ou a extensão de seu
impacto. Para Leão, o único problema real na Igreja era a falta de
dinheiro. Esse papa também fazia política com o objetivo de au-
mentar o poder secular do papado. A situação era praticamente a

21
LIÇÕES DE MESTRE

mesma em toda a sociedade da época. Todos os líderes da Igreja,


desde os grandes até os mais humildes, caíam em três tentações mui-
to comuns: dinheiro, sexo e poder.
Muitos procuravam reformar a Igreja para vencer os abusos de di-
nheiro, sexo e poder, e assim suprir as necessidades dos fiéis ansiosos.
Numerosas curas para as mazelas da Igreja eram oferecidas. Desidério
Erasmo (1466 ou 1469-1536), o erudito mais famoso de seus dias,
representava as pessoas que pediam uma reforma moral e espiritual.
Influenciado pelos irmãos da vida comum, um movimento pietista
que enfatizava a imitação de Cristo, Erasmo escreveu um grande nú-
mero de obras populares e eruditas para tratar da moral decadente da
Igreja e da sociedade. Os mais notáveis desses trabalhos foram A Inqui-
rição (1501), o Elogio da Loucura (1509) e a edição pioneira do Novo
Testamento em grego (1516). Erasmo e os humanistas clamavam por
um estudo novo das Escrituras e dos pais da Igreja. Eles falavam contra
abusos como as indulgências. Mas Erasmo e seus companheiros
reformadores não conseguiram ver que os problemas da Igreja e da sua
era resumiam-se à questão da verdade, que tinha suas raízes na teolo-
gia. Um tipo diferente de reformador era necessário. Alguém que não
apenas podasse os ramos, mas que pudesse atacar a raiz.
Durante os seus anos como estudante, Martinho Lutero demons-
trou pouca preocupação por esses problemas ou as suas possíveis so-
luções. Ele entrou na Universidade de Erfurt para se tornar advogado
e ajudar seu pai, Hans, no pequeno negócio de mineração da família.
Quando Lutero se formou na Universidade, em 1505, fez uma festa
para seus amigos em um bar local para comemorar. Para o espanto de
seus companheiros de bebedeira, Lutero anunciou que não iria exer-
cer o direito, pois decidira ir para um monastério.
Seus amigos, a princípio, riram, pensando que aquela era apenas
outra piada de seu alegre ex-colega de turma. Mas Lutero falava muito
sério. A experiência que tivera com um raio que quase o matara du-
rante uma tempestade, algum tempo antes, servia para lembrá-lo de
sua mortalidade. Ele prometera a Santa Ana que se tornaria um monge
se ela poupasse a sua vida. Suas orações foram atendidas e Lutero

22
UMA LIÇÃO SOBRE A VERDADE: A TEOLOGIA DA CRUZ DE MARTINHO LUTERO

pretendia pagar sua promessa. Ele foi para um monastério agostiniano


em Erfurt, em que procurou descanso para sua alma atribulada.
Mas o descanso que Lutero buscava parecia fugir dele. Ele dese-
java ter certeza de sua salvação, porém nenhuma quantidade de exer-
cício religioso ou disciplina parecia ser suficiente para acalmar a sua
consciência atribulada. Lutero rapidamente esgotou todos os meios
católicos conhecidos para a obtenção da graça e viu que eles eram
insuficientes. Nenhuma segurança plena poderia ser dada. As ansie-
dades morais, físicas e existenciais de sua época eram grandes demais
para a versão do Evangelho ensinada no final da Idade Média.
Johannes Staupitz, o superior de Lutero no monastério, ficou preo-
cupado com a ansiedade de seu colega e sugeriu que Lutero parasse
de olhar para si mesmo e olhasse para a Bíblia. A partir de 1510,
Lutero passou a ser um aplicado estudioso das Escrituras. Seu esforço
foi tão grande que ele acabou nomeado professor de Bíblia na Uni-
versidade de Wittenberg, uma pequena escola com sessenta alunos e
pouca reputação ou futuro.
Em algum momento entre 1514 e 1516, enquanto fazia seus
estudos do Livro de Salmos e de Romanos, Lutero "descobriu" que
somos justificados somente pela fé, ou seja, Deus nos declara perfei-
tamente justos aos seus olhos, sem levar em conta a nossa condição
atual (que seria insuficiente). Com base apenas na perfeição do sacri-
fício de Jesus, que é colocada sobre nós e que recebemos como heran-
ça, somos considerados justos aos olhos de Deus. Em outras palavras,
pagamos nossas contas com Deus por meio da fé no que Cristo fez, e
não com base naquilo que fizemos.
Para um monge esgotado espiritualmente, que vivia em uma épo-
ca contaminada pela ansiedade mal resolvida, a verdade da justifica-
ção pela fé parecia ser uma cura milagrosa. Lutero escreveu que, quando
entendeu que a justiça de Cristo é imputada (transferida) sobre nós,
os "portões do paraíso" pareciam se abrir diante de seus olhos.
Lutero agiu rapidamente e decidiu compartilhar sua descoberta
com os demais cristãos nervosos da Europa. Ele pregou suas "Noven-
ta e Cinco Teses" (protestando contra a cobrança de indulgências e o

23
LIÇÕES DE MESTRE

afastamento da verdade pela Igreja) na porta da igreja do Castelo, em


1517, dando início à Reforma Protestante. Lutero travou debates
públicos acirrados com João Eck em 1519, na cidade alemã de Leipzig.
Em 1520, desafiando a excomunhão papal que recebera, Lutero es-
creveu seus magníficos tratados que incitaram a Reforma: Do Cati-
veiro Babilônico da Igreja, Apelo à Nobreza Cristã da Nação Alemã e o
mais bombástico de todos, Da Liberdade do Homem Cristão. "Aqui es-
tou!", bradou ele em 1521, enquanto desafiava o santo imperador de
Roma Carlos V, recusando-se a negar a sua nova descoberta. As explo-
sões o seguiram até a sua morte, em 1546 — explosões espirituais que
revolucionaram a Europa e tiveram grande impacto em todo o mundo
conhecido —, e continuam ecoando em nossos ouvidos até hoje.

Paradoxo e a teologia da cruz

Em contraste com os anos "de fúria" da vida de Lutero, 1518 pare-


ce ter sido um sussurro silencioso e ignorado. Quando contamos a
história de Lutero, é fácil passarmos desapercebidos pelo que ocor-
reu naquele ano, mas isso seria um grande engano. Durante a con-
venção dos monges agostinianos em Heidelberg, em 1518, Lutero
pronunciou as palavras que têm periodicamente sacudido a igreja
desde então. Seus pensamentos eram uma meditação ampliada do
texto de 1 Coríntios 1:25: "Porque a loucura de Deus é mais sábia
do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os
homens". Lutero sabia que as idéias de Paulo sobre a cruz ofereciam
uma percepção completamente nova de Deus.
Lutero também descobriu que a chave para entendermos a verda-
de bíblica à luz da morte de Jesus é que Deus agora fala por meio de
um paradoxo. Paradoxo é uma declaração que parece ser contraditó-
ria, mas na realidade apresenta uma verdade profunda. Por exemplo,
Cristo disse quem acha sua vida perdê-la-á; (Mt 10:39). Para a mai-
oria de nós, isso parece confuso. Mas está claro o que Jesus queria
dizer. Para encontrar a vida verdadeira, devemos abrir mão de nossa
independência e entregar nossas vidas a ele.

24
UMA LIÇÃO SOBRE A VERDADE: A TEOLOGIA DA CRUZ DE MARTINHO LUTERO

Preste muita atenção. Se eu quero entender a Bíblia hoje, preciso


aprender a pensar usando paradoxos. A teologia cristã falha quando
utiliza apenas a lógica linear. O caminho para a verdade suprema é
como uma estrada que sobe a montanha, cheia de curvas e com um
vento incessante. A percepção que Lutero tinha da cruz ilustra a
maneira como devemos pensar, se realmente desejamos entender a
verdade das Escrituras. O paradoxo presente nos pontos que exami-
naremos a seguir é de que Deus faz as coisas usando o seu oposto. Ele
faz algo surgir a partir do nada. Ele ganha quando perde. Ele nos
exalta quando nos humilhamos. Ele transforma as sextas-feiras da
paixão em domingos de Páscoa. Ele age de maneira oposta ao que a
humanidade espera, segundo a lógica, que um Deus onipotente agiria.
Lutero ajudou a restaurar o amor pela verdade bíblica ao colocar a
cruz de Cristo no centro da teologia cristã. Durante séculos, a teolo-
gia medieval tentou conciliar a filosofia grega com a teologia genui-
namente cristã. O estado doentio da Igreja fez Lutero ver que essa
tentativa havia fracassado. Enquanto estudava as epístolas de Roma-
nos e Coríntios, ele descobriu um fato surpreendente: Deus trabalha
usando opostos. A única salvação segura é aquela que renuncia às
obras. A força de Cristo foi revelada na morte de Cristo. Quando
estamos fracos é que somos fortes. Lutero viu que o Evangelho estava
recheado de paradoxos.
Se não entendermos essa idéia central do paradoxo divino, Lutero
não fará sentido para nós e, o mais importante, as verdades mais
profundas da Bíblia estarão fora do nosso alcance. Portanto, fique
firme quando se deparar com os paradoxos da mensagem da cruz e
não desista. As reviravoltas podem ser drásticas, mas elas nos levarão
ao alto da montanha, de onde teremos uma nova visão da verdade.

O paradoxo de Deus

Voltemos a Heidelberg. Olhando para o texto de 1 Coríntios 1:25


como um garimpeiro à procura de ouro, as palavras de Lutero se
assemelhavam a pepitas para aquela assembléia solene de monges.

25
LIÇÕES DE MESTRE

Ele descreveu a teologia da cruz que ofereceu uma nova maneira de


ver a salvação, Deus, a realidade, o sofrimento, a igreja e a própria
teologia. Qual era a essência dessas coisas?
"Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a
fraqueza de Deus é mais forte do que os homens" (1 Co 1:25). A partir
desse verso e de seu contexto, Lutero apresentou muitas propostas que
entendia serem capazes de atingir o centro do mistério de Deus e da
perdição da humanidade. Naquela ocasião, ele proferiu um discurso
que passou a ser conhecido como o "Debate de Heidelberg", em que
apresentou várias teses diante dos religiosos ali reunidos.
O que a cruz nos diz a respeito de Deus? Essa é pergunta que
Lutero fez e que também deveríamos fazer. Mas Lutero não chegou
ao cerne de sua resposta tratando da "pergunta sobre Deus", até que
chegou em sua 19 a tese. Se algum daqueles monges agostinianos
estava cochilando enquanto as 18 primeiras foram lidas, Lutero acor-
dou a todos quando leu a próxima.
Ele começou atacando a maneira como falamos sobre Deus. "Não
pode ser chamado de teólogo" aquele que descreve a natureza de Deus
e seus atributos "com base nas coisas que foram criadas". O que há de
errado em falar sobre Deus conforme nossas observações sobre a vida e
a natureza? "O conhecimento de todas essas coisas", insistiu Lutero,
"não torna ninguém nem digno nem sábio".5 Isso eqüivale a dizer que
as especulações sobre Deus baseadas em dias de sol ou em sistemas
solares não mudam os nossos corações. Idéias arrogantes, por mais be-
las ou impressionantes que sejam, não podem salvar as nossas almas.
Lutero chamou toda teologia baseada em especulação humana e
em teologia natural de "teologia da glória". Existem vários tipos de
teólogos da glória. Um professor de escola bíblica dominical de
sessenta anos ou um anjinho de seis anos de um presépio vivo podem
ser agentes dessa teologia que faz tanto mal às nossas almas. Paul
Althaus, um erudito especializado em Lutero, escreveu: "A teologia
natural e a metafísica especulativa que procuram conhecer a Deus
pelas obras da criação estão na mesma categoria que as obras de
justiça dos moralistas". 6 Em outras palavras, falar sobre Deus com

26
UMA LIÇÃO SOBRE A VERDADE: A TEOLOGIA DA CRUZ DE MARTINHO LUTERO

base primariamente no que pensamos sobre suas obras gera o


orgulho dentro de nós. Essa teologia da glória "leva o homem a
ficar perante Deus e propor uma barganha baseada em suas con-
quistas éticas em cumprir a Lei". 7 A teologia ou o louvor feitos de
maneira errada podem gerar uma praga, o orgulho espiritual —
algo que Deus odeia.
Qual é a alternativa? Nós precisamos falar sobre Deus e pensar
sobre a sua glória como se fôssemos adorá-lo e servi-lo. O que Lutero
sugere que façamos? Essa maneira de pensar e falar sobre Deus que
conduz a uma vida espiritual intensa e evita o orgulho espiritual
mortífero é bastante estranha. Lutero nos diz isso firmemente em sua
tese número 20: "Antes, só pode ser chamado, com justiça, teólogo
quem apreende as coisas visíveis e escondidas de Deus a partir da
paixão e da cruz". Qual é a o lado visível de Deus? "Essas partes
visíveis são a humanidade de Deus, sua fraqueza e sua loucura".
Por que o nosso Deus glorioso e todo-poderoso deseja ser entendi-
do em termos de fraqueza e loucura? Como podemos adorar a um
Deus tomado pela loucura? A resposta de Lutero parece dolorosa:
"Pelo fato de os homens usarem errado o conhecimento de Deus que
eles obtiveram por suas obras, Deus determinou que seria conhecido
pelos sofrimentos".8 Por que os sofrimentos existem? Porque não nos
beneficiamos de nosso conhecimento natural de Deus ("penso que
Deus é desse ou daquele jeito"), a menos que ele seja conhecido "na
humilhação e na vergonha da cruz".
A maneira correta de entender Deus é olhar para a cruz e não
meditar sobre a Via Láctea, pois ela nos confronta com duas verdades
que de outra maneira não iríamos encarar: primeiro, somos inimigos
de Deus; e segundo, Deus amou os seus inimigos em Cristo. C o n h e ^
cer a Deus pela fraqueza e a loucura da cruz nos humilha, porque foi
a nossa fraqueza, a nossa loucura e a nossa vergonha que Deus carre-
gou sobre si quando subiu na cruz. Deus na cruz se torna um retrato
apropriado da humanidade como ela verdadeiramente é; fraca, im-
potente diante da morte, mas ainda sob o julgamento da morte.
Nossos pensamentos arrogantes sobre Deus se transformam em um

27
LIÇÕES DE MESTRE

jogo sujo, no qual procuramos tomar o lugar de Deus. Por isso, a


aparência de Deus como um tolo derrotado é como um jogo, onde
ele dá vida em lugar da humanidade caída. A cruz é um microscópio
que localiza Deus no emaranhado de nossa pecaminosidade fraca e
tola e seu amor vulnerável e imerecido para esses inimigos. Conhecer
a Deus pela cruz é conhecer o nosso pecado e seu amor redentor.
Mas esse tipo de conversa sobre Deus não beira a blasfêmia? Como
podemos apresentar imagens de um Deus tão fraco e louco e conti-
nuar a adorá-lo? Lutero proclamou que a glória de Deus é ampliada,
não diminuída, quando pensamos e falamos sobre ele nos termos da
crucificação. Como? "Deus mostra que ele é Deus", explica Althaus,
"precisamente no fato de que ele é poderoso na fraqueza, glorioso na
humilhação, vivo e vivificado na morte". 9 Somente Deus é grande o
suficiente para ganhar perdendo. Somente Deus é amoroso o sufi-
ciente para amar o que não pode ser amado. Somente Deus é eterno
o suficiente para ser tragado pelo tempo e pela morte e ainda sobre-
viver para contar como foi. A cruz intensifica o rei divino que bancou
o louco para acabar com a loucura do pecado e da morte.
O que toda essa conversa sobre a loucura e a fraqueza de Deus
significa para nós? Significa que tudo o que dizemos sobre Deus na
adoração e na pregação deveria ser moldado pelo vocabulário da
cruz. Como pecadores, não temos o direito de adorar os atributos
de Deus como santidade, infinitude e soberania até que nos que-
brantemos e nos arrependamos diante de seu amor, que custou tão
caro quando foi proclamado na cruz. A adoração ou a pregação que
faz as pessoas sentirem-se bem consigo mesmas ou satisfeitas com
suas palavras e pensamentos arrogantes sobre Deus é uma adoração
da glória que condena nossa alma e nos separa de Deus. Mas a
adoração e a pregação que consideram em primeiro lugar o paradoxo
da derrota aparente do Rei dos reis na Sexta-feira Santa serão res-
suscitadas para ter uma nova vida pascal.
Desse modo, Deus jamais deve ser conhecido pelas circunstâncias.
As circunstâncias freqüentemente são confusas e, algumas vezes, ne-
gativas. Não iremos entendê-lo a menos que procuremos por Deus

28
UMA LIÇÃO SOBRE A VERDADE: A TEOLOGIA DA CRUZ DE MARTINHO LLTERO

onde ele está mais escondido — nas sombras escuras da fraqueza


aparente e da derrota que envolvem a morte de Cristo na cruz.

O paradoxo da salvação

O mundo está cheio de religiões que desejam construir escadas para


que a humanidade possa subir até Deus. O cristianismo, invejando
as conquistas e a força das religiões rivais, pode ser seduzido a seguir
o mesmo caminho e se transformar em uma religião de boas obras e
análises de desempenho dos fiéis.
O sistema de salvação medieval que Lutero herdou, quando ainda
era um jovem sacerdote, tentou fazer esse tipo de reformulação. Gabriel
Biel, um teólogo do século xv cujos ensinamentos sobre a salvação
influenciaram a geração de Lutero, falou sobre a "centelha de Deus"
dentro de cada pessoa. Se fizermos o melhor que pudermos, continua-
va o ensinamento, Deus soprará essa centelha de divindade dentro
de nós, e a cada dia ficaremos mais cheios de santidade e amor.

Todo o amor de Deus por


nós, porque somos
merecedores O amor
DEUS inicial de
Deus em
Cristo nos
faz começar
uma viagem
Escada das que nos fará
conquistas aceitáveis
humanas aos olhos de
onde nos Deus
tornamos
aceitáveis
aos olhos
de Deus
Humanidade em seu
pior estado

Figura 1. A compreensão medieval de que a cruz havia conquistado


apenas a salvação e a união parcial com Deus

29
LIÇÕES DE MESTRE

Segundo este esquema, pela graça e boas obras poderemos subir a


escada da conquista religiosa e moral até o ponto em que Deus ficará
tão impressionado com nosso desempenho que nos declarará justos e
nos recompensará com o dom da vida eterna no céu (assim evitamos
os tormentos do purgatório —veja a figura 1). Se conseguirmos subir
essa escada, o sacramento da penitência estará lá para nos segurar. A
confissão a um padre, aliada ao medo da punição, é o suficiente para
garantir que o penitente suba outro degrau dessa escada.
Esse sistema de "subir a escada" fracassou para Lutero. Por mais
que tentasse, sempre acabava machucado e cansado ao pé da escada,
irado com Deus e desesperado pela sua salvação. Porém, uma nova
compreensão da cruz mudou isso tudo (veja a figura 2). O amor de
Deus por nós é demonstrado quando Cristo subiu essa escada das
conquistas religiosas e morais em nosso lugar, depois se encontrou
conosco em nosso estado de pecado, ira, derrota e juízo e tomou o
nosso lugar. O amor redentor de Deus é dado no início da escada,
para os peregrinos aleijados, e não no alto da escada, para os super-
heróis espirituais. A cruz é, portanto, um paradoxo: Deus rejeita os

O amor de
Deus por mim é
DEUS pleno e final no
meu pior
estado por
A cruz como causa da sua
base para a alegria e
justificação satisfação em
perfeita e Cristo. O amor
A escada das união perfeita de Deus é
conquistas se certo porque
transforma na nunca está
escada da fundamentado
graça e da em mim, mas
gratidão somente em
Cristo

Figura 2. A revelação evangélica de Lutero: a cruz como uma nova


maneira de ver a salvação

30
UMA LIÇÃO SOBRE A VERDADE: A TEOLOGIA DA CRUZ DE MARTINHO LUTERO

orgulhosos, mas dá graça aos humildes; ele rejeita os belos heróis e


derrama ser amor justificador sobre os feios fracassados. O pecador
no início da escada precisa apenas crer para que possa ser liberto.
Lutero estava tão entusiasmado com esse aspecto da teologia da
cruz que se dedicou a essa área com mais afinco. "Cristo, que é perce-
bido pela fé", disse ele ao seu público formado por monges
agostinianos, "é a justiça cristã. Por causa dele Deus nos fez justos e
garantiu a nossa vida eterna". Os cristãos são justificados diante de
Deus, portanto, apenas quando abrem mão de sua própria justiça.
A teologia da cruz, aplicada à questão da salvação, transformou o
meu entendimento. A morte de Cristo é a conquista que me salva,
não os meus passos atrapalhados nessa escada da salvação. A menos
que eu viva pela fé na conquista dos eventos ocorridos na Sexta-feira
da Paixão e comprovada pelas surpresas do Domingo de Páscoa, jamais
entenderia como Deus pode justificar e aceitar como seu filho um
pecador que merece a maldição, e não sua benção. Mas quando apren-
do a ver Deus e sua salvação na perspectiva da cruz, vejo as coisas de
uma maneira diferente.
O princípio da cruz é que Deus faz as coisas de maneira surpreen-
dente e contraditória. Para inspirar o nosso louvor, ele usa as vestes
engraçadas da fraqueza e da loucura. Para fazer tudo, ele parte do
nada. Para livrar os pecadores, decide ser derrotado por eles.
Quando me acostumo a essa maneira esquisita de ver as coisas, a
salvação se torna clara e maravilhosa. Posso estar seguro de que sou
insto aos olhos de Deus, porque ele também é esquisito, pois me vê
segundo a morte viçaria de seu filho. Por esse motivo, posso ter con-
liança no amor de Deus quando perco toda a confiança em meu
próprio amor. Posso estar cheio de alegria em Deus, mesmo quando
lico desesperado ao olhar para mim mesmo.
O que isso tudo significa para nós? A teologia da cruz deveria
mudar o nosso modo de ver a salvação. Se desejamos que nossas igrejas
.ibriguem corridas pela superioridade moral e espiritual, podemos
silenciar a teologia da cruz enquanto tentamos subir a escada da jus-
tiça própria. Todavia, se queremos encher nossas igrejas de pessoas

31
LIÇÕES DE MESTRE

que brilhem com a glória, gratidão e confiança inabalável no amor e


na aceitação por parte de Deus, devemos ensinar essa teologia da
cruz e a estranha maneira de Deus fazer pecadores quebrantados se
tornarem santos completos.

O paradoxo da realidade

As primeiras 21 teses apresentadas por Lutero em Heidelberg


Disputation levaram a cruz a uma nova direção. "A teologia da glória",
declarou ele, "diz que o bom é ruim e o ruim é bom". Em contraste,
"a teologia da cruz" denomina as coisas "como elas realmente são".10
Do que Lutero estava falando?
O raciocínio de Lutero seguia uma determinada lógica. Para ele,
os teólogos da glória, além de entender mal Deus e a salvação, pois
não conseguiram ver as coisas pela perspectiva da cruz, também
distorceram o restante da realidade, avaliando tudo de maneira erra-
da. Paul Althaus explica o pensamento de Lutero:

A verdadeira realidade não é o que o mundo e a razão pensam


que ela é. A verdadeira realidade de Deus e de sua salvação é
"paradoxal" e oculta nos seus opostos. A razão não é capaz de
entender nem de experimentar isso. Julgada pelos padrões da
razão e da experiência, ou seja, pelos padrões deste mundo, a
verdadeira realidade é irreal e seu exato oposto é real. Somente
a fé pode compreender essa realidade verdadeira e paradoxal.11

"Somente a fé pode compreender essa realidade verdadeira e parado-


xal". Quando Cristo estava morrendo na cruz, a explicação razoável
para o fato é que ele seria mentiroso e fracassado. A verdade é que sua
magnífica derrota vingou todas as suas palavras e marcou a maior
vitória de todos os tempos: a conquista do pecado e da morte. Quan-
do Pilatos e Cristo ficaram frente a frente no dia do julgamento
romano, a explicação razoável seria que Pilatos estava no controle e
aquele judeu preso estava à mercê de Roma. A cruz me diz, contudo,

32
UMA LIÇÃO SOBRE, A VERDADE: A TEOLOGIA DA CRUZ DE MARTINHO LUTF.RO

que as coisas não são o que parecem ser. Na perspectiva da cruz, a


realidade é que Cristo estava no controle dos eventos da Sexta-feira
Santa, que Pilatos foi conduzido pela força de um Reino e um Rei
i|tie ele não conhecia.
Falando sobre os paradoxos de Lutero, Althus conclui: "Crer
significa viver em contradição constante com a realidade empírica e
confiar no que não pode ser visto".12 Quando Deus me humilha, a
realidade da cruz me faz concluir que ele me exaltará. Por quê? Por-
que o princípio do paradoxo da cruz reflete a maneira como Deus
estruturou toda a realidade. A morte conduzirá à vida. A sepultura se
torna um lugar de esperança. O estado atual das coisas será transfor-
mado em uma oposição preordenada por Deus. O primeiro será o
último e o último, o primeiro. "A fé deve resistir ao ser contrariada
pela razão e pela experiência", mas, se persistir, poderá "romper a
realidade deste mundo ao fixar seus olhos na palavra da promessa."13

O paradoxo da dor

Uma razão, diz Lutero, pela qual as pessoas querem uma teologia da
glória, ao invés de uma teologia da cruz, é que "eles odeiam a cruz e
o sofrimento".14 Mas, à luz da cruz, o sofrimento serve a um propó-
sito importante: o cultivo da autonegação. "E impossível para um
homem não ficar orgulhoso com as suas próprias boas obras, a menos
que a experiência do sofrimento e do mal tenha retirado previamente
todo o espírito de seu interior e o quebrantado, ensinando que ele
não é nada e suas obras não pertencem a ele, mas a Deus". 15
O caminho para o Domingo de Páscoa passa pela Sexta-feira da
Paixão. Ela nos exalta quando nos humilha. Ela nos esvazia de nossa
autoconfiança para que possamos ter confiança em Deus. Ela destrói
nossa língua orgulhosa para que possamos nos orgulhar ainda mais
de Cristo. Alister McGrath explica:

O homem é humilhado quando experimenta a ira de Deus,


sendo forçado a admitir que não pode, por si mesmo, ficar na

33
LIÇÕES DE MESTRE

presença de Deus — assim, ele se volta para Deus em sua


desesperança e impotência, mas ao fazer isso é justificado. Pa-
radoxalmente, acaba sendo pela ira de Deus que a misericórdia
opera, para que o homem não busque essa misericórdia a me-
nos que saiba o quanto necessita dela.16

Mas o que dizer do sofrimento como parte da vida cristã? Por que
Deus nos faz passar por circunstâncias dolorosas e humilhantes
após sermos justificados? A resposta é que o padrão da cruz se
torna o padrão de toda a minha jornada cristã. A experiência de
aparente abandono por parte de Deus e o desespero que a acom-
panha será seguida pela surpresa da graça e pela renovação.
McGrath comenta:

Enquanto a Sexta-feira Santa dá lugar ao Domingo de Pás-


coa, a experiência da ausência de Deus começa a assumir um
novo significado. Onde Deus estava? Enquanto as testemu-
nhas da crucificação viam a Jesus com arrogância, olhando
para os céus à espera de um livramento, elas não viram sinal
algum de Deus e presumiram que ele estava ausente [...] A
presença de Deus era despercebida, foi menosprezada e igno-
rada, porque Deus escolheu estar presente onde ninguém
esperava encontrá-lo: no sofrimento, na vergonha, na humi-
lhação, na fraqueza e na loucura da cruz de Jesus Cristo. 17

Deus escolhe continuar presente com seus filhos de maneiras inespe-


radas. Do mesmo modo como ele estava presente no Cristo sofredor,
a presença de Deus em nosso julgamento não é visível a menos que
vejamos a sua presença dentro de nossa fraqueza e dor.
Por que ele faz isso? Por que ele não faz com que as nossas vidas
sejam fáceis e livres de problemas? A resposta de Lutero seria olhar
para a cruz. Deus opera nas vidas das pessoas que ele ama como seus
filhos — seja ele Cristo, seu Filho Unigênito, ou a nós, seus filhos
adotados — humilhando-os para poder exaltá-los. O padrão da vida

34
UMA LIÇÃO SOBRE A VERDADE: A TEOLOGIA DA CRUZ DE MARTINHO LUTF.RO

cristã, expresso ao longo dos Evangelhos e resumido em Filipenses


2:1-11, é o padrão da humilhação e da exaltação. Esse também é o
padrão de Deus para nós.
Quando nossas histórias começam a se conformar com a história
de Cristo, precisamos responder exercitando nossa fé. "A razão se
escandaliza com a cruz, mas a fé a abraça com alegria".18 Confiar
que o Deus que nos leva para uma Sexta-feira Santa de dor, rejeição
e derrota também nos levará para um Domingo de Páscoa de vitória
e contentamento assegura bênção e libertação. A descrença que igno-
ra o significado da dor também ignorará a experiência da exaltação.
O mistério de Romanos 8:17 é revelado pela teologia da cruz desta
maneira: "Ora, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros
de Deus e co-herdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também
com ele seremos glorificados".

O paradoxo da verdade

A teologia da cruz transformou de tal maneira o pensamento de


Lutero sobre Deus, salvação, realidade e sofrimento que ele declarou:
"Somente a cruz é a nossa teologia".19 Essa declaração dramática
parece ser um claro exagero. Afinal, existem tantas outras doutrinas
na teologia (Deus, a Criação, a humanidade, o pecado, a Igreja, as
últimas coisas) além da doutrina da cruz. O que Lutero estava que-
rendo dizer?
Lutero propõe que a cruz deve mudar a maneira como vemos cada
doutrina. Como a cruz pode fazer isso? A cruz nos diz que a revelação
do próprio Deus como Criador, Sustentador e Juiz deve ser entendi-
da de uma nova maneira por causa da obra realizada da cruz. Em
todas as outras obras de Deus, como a criação e a providência, Deus
revela a si mesmo como alguém infinitamente poderoso. Mas na cruz
ele se mostra aparentemente fraco, contradizendo, assim, toda a nos-
sa teologia.
Uma reflexão mais aprofundada sobre a cruz contradiz toda dou-
iiina que temos em um sentido particular: a conclusão de que o

35
LIÇÕES DE MESTRE

poder de Deus é revelado diretamente pelas suas ações. A doutrina


da criação revela o poder de Deus para fazer as coisas. A doutrina da
escatologia revela o poder de Deus para julgar e transformar. Mas a
cruz nos mostra algo mais profundo sobre a maneira como Deus
revela a verdade sobre si mesmo. A obra da cruz apresenta indireta-
mente como Deus trabalha. Deus, em suma, evidencia o seu poder
por meio da fraqueza aparente. E mostra melhor a sua sabedoria atra-
vés da loucura aparente. A plenitude de sua divindade revelou-se
paradoxalmente, segundo Colossenses 1:19, na fragilidade da encarnação
de Cristo. Deus se revela melhor onde ele está mais oculto.
A cruz é a chave hermenêutica que abre novas dimensões e corrige
nossa compreensão em todas as áreas da teologia. Explicando o pen-
samento de Lutero, Althaus escreve:

Toda a verdadeira teologia é a "sabedoria da cruz"; isso signi-


fica que a cruz de Cristo é o padrão para medir todo o conhe-
cimento teológico genuíno, seja a realidade de Deus, de sua
graça, de sua salvação, da vida cristã ou da Igreja de Cristo.
A cruz significa que todas essas realidades estão escondidas. A
cruz esconde o próprio Deus. Pois ela não revela a força, mas a
impotência de Deus. O poder de Deus não aparece de forma
direta, mas paradoxalmente, aparentando impotência e solidão.20

Portanto, quando os críticos atacam a "mente limitada" dos evan-


gélicos, que insistem em afirmar que somente Jesus é o caminho da
salvação neste mundo pluralista, ou em defender a autoridade su-
prema da Bíblia em um mundo em que muitas autoridades com-
petem entre si, a cruz nos ajuda a reconhecer que Deus não opera
como poderíamos esperar. Deus não oferece a verdade salvadora na
natureza, da qual podemos esperar que venha uma Palavra universal.
Ele a sussurra para o mundo de um modo totalmente surpreenden-
te e escandaloso, por meio da cruz de Cristo. Toda a nossa teologia
precisa ser reinterpretada à luz da cruz porque, no fundo, a verda-
deira teologia é a teologia da cruz.

36
UMA LIÇÃO SOBRE A VERDADE: A TEOLOGIA DA C R L Z DE MARTINHO LUTERO

O paradoxo do ministério

Nada é mais poderoso no ministério da Igreja do que a fraqueza.


A crise teológica de Lutero aconteceu pela primeira vez durante
uma crise ministerial. Ele não conseguia ensinar nada para os ou-
tros nem encontrar a paz e a segurança da salvação para si mesmo
dentro das tradições da Igreja. A Reforma Protestante foi o resulta-
do da tentativa de Lutero para consertar o ministério da Igreja em
todos os seus níveis. O mais impressionante na vida do jovem Lutero
(embora tenha ficado mais negativo com o passar dos anos) é que
ele nunca desistiu da Igreja. Sua teologia da cruz ajuda a explicar o
porquê.
"A Igreja", admitiu Lutero, "pereceria diante dos nossos olhos, e
nós junto com ela [...] se não fosse por aquele outro homem [Jesus]
que obviamente ainda sustenta a Igreja e a nós". O Cristo morto e
ressurreto está trabalhando em meio à fraqueza da Igreja, preparando
para mostrar a sua força. De modo similar, o Cristo morto e ressurreto
"julga a Igreja onde ela se tornou orgulhosa e triunfante, ou segura e
presunçosa, e a chama para voltar ao pé da cruz, onde lembra da
maneira misteriosa e secreta que Deus trabalha no mundo". 2 1
McGrath explica esse paradoxo final:

Na cena de delírio total, de aparente fraqueza e loucura, no


Calvário está o paradigma teológico para compreendermos a
presença e a atividade ocultas de Deus neste mundo e em sua
Igreja. Onde a Igreja reconhece a sua desesperança e impotên-
cia, ali descobre a chave para a continuação de sua existência
como Igreja de Deus no mundo. Em sua fraqueza reside a
sua maior força. O "Deus crucificado e oculto" é o Deus cuja
força está por trás da aparente fraqueza, e cuja sabedoria se
esconde por trás da aparente loucura. A teologia da cruz é,
portanto, no passado e no presente, uma teologia de espe-
rança para os desesperados, da aparente fraqueza e loucura da
Igreja cristã.22

37
LIÇÕES DE MESTRE

Quando a Igreja perder quase tudo e decidir acreditar radical-


mente que o Evangelho da cruz de Cristo continua sendo seu maior
tesouro e esperança de sucesso futuro, Deus a exaltará. Mas quando a
Igreja perde a sua cruz, trocando-a pelo aplauso desta era ou a medida
de sucesso deste mundo, acaba se deparando com um futuro pouco
promissor. As triunfantes igrejas liberais das décadas de 1950 e 1960
se tornaram as igrejas decadentes da década de 1990. As igrejas evan-
gélicas e carismáticas culturalmente periféricas, mas que mantiveram
os olhos na cruz durante as décadas de 1950 e 1960, se tornaram as
megaigrejas da década de 1990. Deus opera em sua Igreja usando
opostos. A cruz de Cristo nos ajuda a ver isso.

A teologia da cruz e nossas decisões

O chamado "ano silencioso" de Lutero, 1518, na verdade foi de


fundamental importância. Como uma estrela brilhante, a teologia da
cruz de Lutero apontava o caminho para a Igreja atordoada e os cris-
tãos desorientados em um mundo pós-moderno. Mas como os líderes
podem traduzir essa grande lição de Lutero em decisões adequadas?
Vamos analisar algumas decisões possíveis que podem liberar o poder
da cruz em nossas igrejas, famílias ou organizações.
Uso n° 1: A cruz e a pregação. Quando falo em "pregar a cruz",
não quero dizer que deveríamos pregar apenas sermões evangelísticos.
O que precisamos é colocar a perspectiva da cruz em tudo o que
pregamos. William Willimon, capelão da Universidade Duke, es-
creveu sobre a pregação para congregações de pessoas consumistas
que parecem desejar mais o entretenimento do que a iluminação. E
fácil para os pregadores cometerem um ou dois enganos ao falar
diante desse tipo de congregação. Um dos enganos aparece quando
pregam para essa mentalidade consumista os sermões de "alto-as-
tral", que evitam as verdades bíblicas. O segundo engano reside na
desistência. Podemos desenvolver uma atitude do tipo "meu povo
não se importa com o Evangelho, ele só quer ser entretido". 23 E
impressionante o que Willimon descobriu sobre como podemos
derrotar a mentalidade consumista:

38
U M A L I Ç Ã O S O B R E A V E R D A D E : A T E O L O G I A DA C R U Z I >I M A U I INI H > I i: 11 no

Minha prioridade, então, é pregar um sermão que fale sobre o


Evangelho, não um discurso que explore as experiências das
pessoas. Nas admiráveis tentativas de serem relevantes, escuto
muitos sermões que misturam soluções terapêuticas com "prin-
cípios" bíblicos, em que a Bíblia acaba soando como a última
tendência da psicologia popular.24

0 que precisamos em nossas igrejas é falar "sobre Jesus Cristo e o que


ele fez por nós, e o que ele nos chama para fazer por ele e um pelo
outro". 25 Quando levantamos a cruz a cada semana como o único
caminho para a salvação e única maneira de ver, transformamos nosso
público em uma igreja e os consumistas em comprometidos. Con-
forme escreveu David Wells: "A Igreja é chamada para anunciar a
mensagem da cruz, não para encobrir os propósitos ocultos de Deus
no mundo ou os segredos de sua terapia interior".26 Devemos trazer
as pessoas para baixo da cruz, e somente então poderemos enviá-las
para o mundo.
Uso n°2:A cruz e o conhecimento teológico. Se a teologia geralmen-
te for desprezada em nossas igrejas e organizações, o mesmo ocorrerá
com a teologia da cruz. Contudo, se incentivarmos a necessidade de
nosso povo por doutrina, a teologia da cruz se propagará.
George Barna descreveu a "teologia do típico americano" como
"nada menos do que assustadora". Qual o problema?

A falta de um conhecimento preciso sobre a Palavra de Deus,


seus princípios de vida e a aparente ausência de influência da
Igreja sobre o pensamento e o comportamento desta nação
compõem um despertar abrupto para os que presumem estar-
mos em meio a um avivamento espiritual.27

isse desvio teológico também ocorre em meio aos evangélicos.


1 'cnominações que antigamente eram conhecidas pela sua defesa
il.i lé agora falam apenas sobre "fazer o marketing' de suas igrejas
c "organizar a vida das pessoas". No entanto, "valorizar a teologia",

39
i
LIÇÕES DE MESTRE

argumenta David Wells, "é valorizar o meio pelo qual a Igreja pode
se tornar mais fiel e mais eficaz neste mundo". 28
Felizmente, as estruturas para que essa renovação teológica ocor-
ra já estão estabelecidas. As classes de escola bíblica dominical e as
reuniões em grupos pequenos no meio da semana são comuns. Existe
abundância de material bíblico bem preparado que poderia ser es-
tudado nesse tipo de encontro. Talvez A Cruz de Cristo *, de John
Stott, seja um bom lugar para começar. Novos métodos estão fazendo
com que o estudo teológico seja mais acessível para um número
maior de pessoas. É o caso da teologia das narrativas, que utiliza a
técnica de recontar as histórias bíblicas para comunicar verdades
teológicas. 29
Quando a teologia fizer a diferença, a teologia da cruz fará uma
diferença ainda maior. Os líderes sábios devem ter sempre em mente
o alerta de Lutero de que a teologia da glória causará mais mal do
que bem. Assim, darão passos práticos para o aumento do nível de
conhecimento teológico de sua congregação.
Uso n°3: A cruz e o culto. O que as pessoas precisam quando estão
sentadas nos bancos da igreja, em um domingo, às 11 horas da ma-
nhã? Algumas estão cheias de tédio, a maioria procura porém algum
tipo de contato com Deus, embora muitas já tenham desistido de
esperar por isso. O que se pode oferecer a elas não é somente uma
mensagem de "alto-astral", dizendo que "tudo vai dar certo". É pos-
sível lembrar-lhes do que aconteceu no final de semana mais impor-
tante da história, que mudou para sempre as esperanças de futuro
dos pecadores.
Quando a cruz é levantada com orações de confissão, hinos e
músicas de louvor, sermões encharcados de Cristo e outros elemen-
tos que olham para a vida com a perspectiva da grandeza que a cruz
representa, acontece algo diferente com as pessoas. As realidades da
Sexta-feira da Paixão que todos estão vivendo se transformam em
possibilidades de manhãs de Páscoa, que poucos ousavam esperar.
"Não há situações desesperadoras", escreveu Winifred Newman,
* Editora Vida.

40
UMA LiçAo SOBRE A VERDADE: A TEOLOGIA DA CRUZ DE MARTINHO LUTERO

"apenas pessoas que já não têm mais esperança". A adoração centrada


na cruz transforma as pessoas sem esperança em adoradores confian-
tes. Optar por colocar isso em prática é uma oportunidade que não
se pode desperdiçar.
Uso n° 4: A cruz e o convívio com as pessoas. Em determinados
momentos, as pessoas me frustram, porque nem sempre querem o
mesmo que eu. Amigos me decepcionam, filhos arraigados às suas
próprias idéias, alunos desatentos que às vezes não acompanham meus
ensinamentos. Em outras ocasiões, tenho a tentação de desistir de
certas pessoas, considerando-as incorrigíveis, casos perdidos. Mas
Deus não me deixa fazer isso. A cruz me lembra de que as frustrações
da Sexta-feira da Paixão estavam conquistando uma vitória secreta,
que somente seria revelada na manhã do Domingo de Páscoa.
Deus pode fazer grandes coisas por meio de um aluno indis-
ciplinado, uma criança teimosa ou um amigo insensível. Ele pode
fazer algo maravilhoso nas vidas dessas pessoas e usar o que, aos
meus olhos, é "fraco e louco" para confundir os sábios. A cruz me
lembra de que eu era "fraco e louco" aos olhos de Deus, e mesmo
assim o Senhor me escolheu para fazer algo para ele. A cruz me faz
ser proativo e opera contra minhas tendências reativas de desistir
dos seres humanos. Tome a decisão de olhar para as pessoas proble-
máticas de sua igreja ou organização com novos olhos, lembrando
da cruz.
Uso n° 5: A cruz e a realidade objetiva. Os líderes de organizações
cristãs podem pensar de que maneira a cruz se relaciona com o levan-
tamento de fundos e as realidades práticas da administração de uma
organização cristã. É verdade que marketing, promoções, administra-
ção ao estilo dos negócios e boa mordomia são elementos necessários
se desejamos ser eficazes nesses tempos competitivos. Mas cada um
desses recursos deve ser analisado pela perspectiva da cruz.
Muitas organizações cristãs americanas foram atingidas pela fa-
lência de uma organização filantrópica chamada New Era em 1995.
Milhões de dólares foram perdidos. Muitas organizações e igrejas
* listas ficaram abaladas.

41
LIÇÕES DE MESTRE

Líderes de algumas dessas organizações se preocuparam com a


recuperação dos prejuízos. Pessoas foram demitidas; programas
cortados. Ministérios se enfraqueceram. Outros se concentraram no
padrão estabelecido pela cruz e viram nessa experiência de perda
financeira uma oportunidade para exercitar a fé. Eles acreditaram
que as experiências do tipo "Sexta-feira da Paixão" podem ser ocasiões
para vitórias secretas, embora pareçam derrotas para o mundo. A fé
exercitada acabou sendo recompensada, e algumas organizações saí-
ram do desastre da New Era com sua energia, visão e força renovadas.
A decisão de filtrar a realidade objetiva pela perspectiva da cruz foi
um fator importante em sua renovação.
Quando surgem crises ou restrições financeiras, temos a oportuni-
dade de experimentar vitórias secretas. Mas os líderes devem decidir
que exercitarão a fé em meio aos eventos desanimadores e esperar que
Deus ajuste a nossa realidade presente às realidades supremas da cruz.
Uso n° 6: A cruz e a justiça social. Muitas igrejas, famílias e organi-
zações preocupam-se com a justiça social em suas comunidades e
nações. Como a perspectiva da cruz pode nos ajudar a tomar boas
decisões nessa área? Em uma entrevista, o bispo Desmond Tutu reve-
lou como o padrão da cruz capacitou os cristãos a lutar contra o
apartheid na África do Sul. Perguntaram a Tutu, ganhador do Prêmio
Nobel da Paz pelos seus esforços em promover a igualdade étnica,
como a sua organização pobre, com pouco pessoal e recursos esparsos,
o Conselho Sul-africano de Igrejas, foi capaz de sustentar durante
décadas a sua luta não violenta contra a injustiça. Foi o marxismo? O
capitalismo? O humanismo? Sua resposta: "A cruz". Ele declarou: "A
Bíblia capacita uma pessoa a responder" que Deus "está sempre do
lado do fraco, do pequeno, do que tem pouca importância". Por isso,
"não importa qual seja o caso agora, por mais poderoso que o governo
possa ser militarmente e de todas as outras maneiras, tenha certeza
de que a vitória será nossa". A crença de Tutu, segundo a qual a cruz
revelava estar Deus do lado dos fracos do mundo, o capacitou a dizer
ao governo: "Você perdeu. Você pode ser poderoso agora, mas isso
não diz nada sobre o resultado final".30

42
UMA LIÇÃO SOBRE A VERDADE: A TEOLOGIA DA CRUZ DE MARTINHO LUTERO

A decisão de basear a sua campanha contra o apartheid na teologia


il.i cruz e o que ela ensinava sobre Deus gerou um espírito indomável,
i|iie sustentou o movimento sul-africano pelos direitos civis durante
décadas desanimadoras, até que acabou triunfando, no início da dé-
cada de 1990.

Penhascos e portais

1 ,cmbro de uma complicada viagem de canoa que fiz há muitos anos


com meu cunhado, John. Nós separamos uma semana de nossas fé-
rias para atravessar de canoa o trecho que ia do norte de Ontário até
.1 baía Hudson. Dormimos em acampamentos desconfortáveis, tive-
mos a canoa inundada, descemos corredeiras difíceis e percorremos
longos trajetos levando a canoa por terra. Porém, o episódio mais
bizarro dessa viagem ocorreu quando perdemos o rio. Como você
[iode perder o rio quando está remando dentro dele? Fácil. Em um
certo ponto, o rio fora inundado por uma represa e se transformou
cm um lago imenso. Acabamos perdendo a correnteza. Estávamos
perdidos.
Depois de ficar dois dias remando de um lado para outro no lago,
estudando o mapa e consultando nossa bússola, concluímos que o
rio devia retomar o seu curso em um canto distante de uma determi-
nada baía. Embora olhássemos para as margens, não encontrávamos
uma saída. Tudo o que conseguíamos ver era um penhasco alto, se
erguendo sobre nós como uma fortaleza. De onde estávamos, era
impossível divisar uma saída para o rio.
Decidimos insistir. Fomos nos aproximando do penhasco e, quando
demos a volta, para nossa surpresa, avistamos uma passagem estreita,
i|ue margeava a rocha e conduzia a uma continuação do rio do outro
l.ulo. Aquele penhasco, antes uma barreira para nossa jornada, em
verdade se transformou num portal que possibilitou a continuação
de nossa viagem.
Acredito que a cruz seja como aquele penhasco. A princípio, ela não
I i.irece guardar os segredos de uma jornada pela vida. Ela se mostra até

43
LIÇÕES DE MESTRE

insignificante para muitos de nossos planos e necessidades. Contu-


do, ao explorá-la mais de perto, nos é revelado um extraordinário
paradoxo. Essa barreira pouco promissora na verdade se torna um
portal para o crescimento e o progresso em todas as áreas da vida.
Quando John e eu terminamos nossa viagem de canoa, chegamos
ao final do rio na cidade canadense de Moosenee. Então, tomamos o
trem da Polar Bear Express, que nos levou de volta àquelas partes do
rio por nós percorrido. Aquela viagem de canoa que fizemos agora
parecia fácil. As correntezas, os longos trajetos carregando a canoa na
mão onde o leito estava muito raso, os acampamentos de chão irre-
gular, tudo ficara para trás.
Embora esses fatos fizessem parte do passado, lá fora, no meio
da imensidão escura, existia um pequeno fio de água que fizera
nossa viagem de volta para a civilização parecer mais um triunfo do
que uma derrota. Explorar aquela passagem improvável foi a me-
lhor decisão tomada durante nossa viagem. Assim como as estradas
divergentes de Robert Frost, aquela decisão fez toda a diferença.

tÜQUESTÕES PARA DEBATE

1. Um texto-chave para a teologia da cruz de Lutero é 1 Coríntios


1:18-31. Quantos paradoxos você consegue identificar nessa
passagem? Como a cruz gera esses paradoxos?

2. Qual dos seis paradoxos de Lutero é o mais relevante para


você e sua igreja neste momento? Por quê?

3. Quais das seis aplicações podem ser as mais proveitosas para


a sua igreja neste momento? Por quê?

44
UMA LIÇÃO SOBRE A VERDADE: A TEOLOGIA DA CRUZ DE MARTINHO LUTERO

LEITURAS COMPLEMENTARES

Se você deseja conhecer melhor a vida de Lutero, veja Martim


Lutero, Tempo, Vida e Mensagem, de Marc Linhard e Lutero, de
Albert Greiner (ambos da Editora Sinodal). Além disso, a
maioria dos escritos de Lutero foi reunida em uma série de
oito volumes chamada Obras Selecionadas de Martinho Lutero
(Editora Sinodal).
Sobre a teologia de Lutero, consulte A Teologia da Cruz de
Lutero, de WalterVon Loewenich, Temas da Teologia de Lutero,
de Helmar Junghans (ambos da Editora Sinodal) ou ainda Teo-
logia dos Reformadores, de Timothy George (Edições Vida Nova).

45
CAPÍTULO 2

UMA LIÇÃO DE ESPIRITUALIDADE:


JOÃO CALVINO E A VIDA CRISTÃ

A Igo engraçado aconteceu com a sociedade secular quando ela estava se


aproximando do pós-modernismo; ela descobriu uma coisa chamada
espiritualidade. Homens e mulheres que passaram décadas vivendo
como agnósticos religiosos e "ignósticos" (ignorante sobre Deus) agora
ralam sobre sua espiritualidade redescoberta, como se ela fosse algum
ponto turístico em moda para se passar as férias.
Pense sobre o caso do escritor Douglas Coupland. Mesmo que
não admita, Coupland é um dos gurus da chamada "Geração X",
termo usado por ele para descrever a geração confusa nascida no final
da década de 1960 e no início da de 1970, que encara um futuro de
mobilidade cada vez menor em um mundo onde os "McEmpregos"*
parecem ser a única forma confiável de trabalho. O romance de
C Àmpland, Generation X: Tales for an Accelerated Culture não apenas
criou um termo, mas também definiu uma geração, hoje na casa dos
ninta anos. Eles se tornaram cínicos após crescerem assistindo a
reprises de seriados antigos, e absorveram muito da retração de seus
pais. Coupland escreveu as crônicas da vida de uma geração sem reli-
gião, que aplacou a necessidade dessas perdas com "drogas, empregos
improdutivos e sexo vazio".1

I Mc UTino se refere a empregos de baixo salário, com pouco reconhecimento e perspecriva de fururo.

47
LIÇÕES DE MESTRE

Um livro posterior do mesmo autor, Life Afier God, traçou uma


nova tendência dentro da "Geração X". Um dos personagens confessa
que procura ser salvo do seu cinismo. "Estou tentando escapar do
inferno da ironia. Trocar cinismo pela fé, aleatoriedade por claridade,
preocupação por devoção". Em outro momento, Scout, o protago-
nista, pergunta em voz alta se o cinismo "é o preço que pagamos por
termos perdido Deus". O romance termina com um grito pela
redescoberta de Deus. 2 Em favor dessa primeira geração criada sem
religião e esperança de uma vida após a morte, Coupland anseia por
uma saída da terra devastada. Ele pressente que, se existe uma saída,
provavelmente está ligada à descoberta de Deus.

Deus ou p eu?

Uma nova busca por Deus está ocorrendo entre a geração nascida
após a Segunda Guerra, secularistas, os céticos da geração-depressão
e os "ignósticos" da geração pré-Segunda Guerra. Os psicólogos
Thomas Moore e M. Scott Peck escreveram best-sellers em que procu-
ravam orientar essa busca por satisfação espiritual. No início da déca-
da de 1990, a revista Newsweek dedicou sua reportagem de capa a
esse fenômeno. A manchete era "A Procura do Sagrado: A Busca dos
Americanos pelo Sentido Espiritual".3
Que tipo de espiritualidade esses "filhos pródigos" estão desco-
brindo? Conforme indicou o artigo da Newsweek, os novos peregri-
nos parecem ter um apetite pós-cristão. A espiritualidade da Nova
Era, a espiritualidade egoísta, o misticismo panteísta e outras for-
mas de pseudopiedade encantam a muitos dos novos peregrinos da
religião. O objeto real de seu louvor assemelha-se a eles mesmos.
No início da década de 1980, o psicólogo Paul Vitz viu que essa
espiritualidade crescente de adoração do eu, na verdade, era "um
substituto secular popular para a religião".4 Ele argumentava que o
egoísmo poderia se disfarçar de espiritualidade. Os verdadeiros objeti-
vos da piedade egoísta são colocar auto-atualização e a auto-satisfação
em lugar da verdade ou da glória de Deus. Vitz também destacou

48
UMA LIÇÃO DF. ESPIRITUALIDADE: JOÃO CAI.VINO F. A VIDA CRISTA

que o egoísmo é sempre destrutivo, seja em sua forma espiritual ou


secular. As alegrias de servir e amar aos outros vagarosamente mur-
cham diante do olhar narcisista do egoísmo.
Os consumidores espirituais da "Geração X" e seus pais e avós
precisam mais do que uma espiritualidade egoísta encoberta pela
linguagem do avivamento. Esse tipo de piedade centrada no eu,
embora inicialmente pareça atraente, acaba se revelando insatisfatória.
Vitz previu que na década de 1990 "milhões de pessoas ficarão
entediadas com o culto ao eu e procurarão uma vida nova". Os sinais
desse tédio com o egoísmo já podem ser vistos em todos os lugares.
O motivo para esse tédio não é difícil de identificar. A auto-absor-
ção não faz as pessoas felizes. O psicólogo Abraham Maslow, famoso
por sua "hierarquia das necessidades", revisou suas teorias de maneira
significativa no final de sua vida. Ele acreditava que o maior nível de
satisfação humana era a auto-realização, um ponro de desenvolvi-
mento total alcançado quando alguém era capaz de suprir suas
necessidades físicas, sociais, mentais e espirituais básicas. Em seus
últimos anos de vida, Maslow descobriu que a autotranscendência,
não a auto-realização, é a maior das experiências humanas. Viver para
os outros é um estado espiritual mais satisfatório do que apenas "sen-
tir-se bem consigo mesmo".
Como a Igreja pode ajudar esses peregrinos perdidos e confu-
sos a encontrar a verdadeira espiritualidade? Vitz está convencido
de que a grande necessidade do momento é voltarmos para as
fontes espirituais do cristianismo histórico, que ensina "muito sim-
plesmente que a única saída é perder o eu, despojar-se dele e, com
mais disposição, tornar-se um [...] objeto no amor e no serviço de
Deus". 5
Historicamente, o evangelismo ensinou que conhecer a Deus é a
chave para a autotranscendência. Também se ensina que esse conhe-
cimento de Deus é o ápice da alegria humana. "Na tua presença há
plenitude de alegria", cantou o salmista, "na tua destra, delícias per-
petuamente" (SI 16:11). Assim, nossa marca no passado foi uma
abordagem verdadeiramente centrada em Deus à piedade.

49
LIÇÕES DF. MESTRE

Durante o século xx, no entanto, nosso legado espiritual de


autotranscendência em Deus como centro tornou-se confuso em
razão de várias idéias americanas, como pragmatismo, autoconfiança
e outras formas de humanismo em evidência. Para muitos cristãos,
a procura por uma nova espiritualidade significava percorrer a ade-
ga teológica das tradições do cristianismo, com nosso atual estoque
exaurido.
"><JVitz, ciente da pobreza espiritual da Igreja moderna, insiste que a
pergunta-chave não é se os filhos pródigos espirituais voltarão para a
Igreja, mas "se a casa do seu Pai, a verdadeira fé, continua esperando
por eles para recebê-los e festejar o seu retorno". E, podemos acres-
centar, a casa do Pai terá a verdadeira espiritualidade que os pródigos
procuram e precisam?
X João Calvino, um contemporâneo mais jovem de Lutero, passou a
vida inteira mapeando uma espiritualidade, que coloca o Deus vivo e
verdadeiro das Escrituras no centro da busca espiritual. O seu mode-
lo de vida cristã evitava muitas das armadilhas antigas e modernas na
estrada da espiritualidade, portanto ele merece um lugar de destaque
como uma das maiores lições da história da Igreja. Calvino acreditava
que a espiritualidade é produzida quando seguimos disciplinas diárias,
em vez de algumas explosões de inspiração e entusiasmo. Sua grande
lição foi que podemos muito bem vencer a espiritualidade centrada
no eu de nossa era quando aprendemos os hábitos de uma santidade
bíblica.
Quais são esses hábitos de santidade? Calvino ressaltou seis deles.
Assim como a maioria dos líderes cristãos eficazes, ele cultivou esses
hábitos em meio a muitas dificuldades.

A vida de Calvino

O poeta John Milton certa vez escreveu sobre Oliver Cromwell,


dizendo que "primeiro conseguiu governar a si mesmo e conquistar
sobre si mesmo as vitórias mais singulares, a ponto de se tornar
um veterano de guerra antes de combater um inimigo exterior".

50
UMA LIÇÃO DF ESPIRITUALIDADE: JOÃO CALVINO L A VIDA CRISTÃ

Obter vitórias.sobre o eu foi uma batalha que durou a vida inteira


para João Calvino. Ele se debateu com a questão do significado e
direção em sua vida, assim como Lutero precisou lutar com a questão
da morte e da condenação. A busca por direção consumiu grande
parte da vida de Calvino.
João Calvino nasceu em 1509, na vila de Noyon, França. Seu pai,
Gerard, trabalhava para o bispo local e determinou que seu filho
deveria buscar sua carreira na Igreja. Calvino foi enviado para a Uni-
versidade de Paris com o objetivo de estudar para o sacerdócio.
Depois que Calvino começou os seus estudos, no entanto, seu pai
foi excomungado da Igreja. Por isso, Gerard, talvez desiludido com o
catolicismo, ordenou que seu filho mudasse o rumo e estudasse Di-
reito. Logo que o jovem Calvino começou seus estudos jurídicos,
recebeu a notícia de que seu pai havia morrido. Ele ficou arrasado.
Que direção deveria tomar agora? Livre para seguir as suas próprias
inclinações, Calvino se dedicou aos estudos humanistas, que envol-
viam o estudo da antiga literatura paga e cristã.
x
Em 1533, quando Calvino completava o seu aprendizado, ocor-
reu outra mudança de direção. As idéias de Lutero circulavam em
Paris, e um aluno brilhante e inquiridor como Calvino dificilmente
poderia ignorar sua influência. Em algum momento antes de 1533,
algo mudou em seu coração, que mais tarde Calvino descreveu no
prefácio de seu comentário de Salmos:

Deus finalmente mudou o meu curso para outra direção pelo


reino secreto da providência. O que aconteceu primeiro foi
que, por uma conversão inesperada, ele domou uma mente que
fora teimosa durante anos, pois eu estava tão fortemente
devotado às superstições do papado que nada mais poderia
me retirar das profundezas daquele lamaçal.6

Quase tão memorável quanto sua "conversão inesperada" foi o rápido


crescimento de sua compreensão da nova fé. Calvino escreveu que a

51
LIÇOES DE MESTRE

conversão "me deixou com um desejo tão ardente de progredir que


busquei o restante dos meus estudos mais friamente, embora não
tenha desistido deles. Antes que um ano inteiro tivesse se passado,
qualquer um que ansiava por uma doutrina mais pura continuava
vindo até mim, ainda um novato, um recruta sem preparo".
A reputação de Calvino como evangélico logo trouxe problemas
para ele; uma revolta contra o evangelismo na Universidade de Paris o
forçou a fugir para salvar a sua vida. De 1533 a 1536, ele permane-
ceu em fuga, vivendo sob nomes falsos e usando disfarces diferentes.
Por fim, fixou residência em Basel, Suíça, tempo o suficiente para
escrever um pequeno livro com a intenção de explicar a fé evangélica
em termos simples. Esse livro, chamado de Institutos da Religião Cris-
tã, tornou-se um best-seller, reeditado várias vezes ao longo de sua
vida. A publicação das Institutas garantiu fama imediata a Calvino
como um porta-voz articulado da causa evangélica.
A nova fama alcançada por Calvino fez dele um alvo dos refor-
madores zelosos, que estavam desejosos para contar com seu apoio.
Enquanto visitava Genebra, Suíça, Calvino ouviu alguém batendo
em sua porta certa noite. O visitante era William Farei, um reformador
evangélico que estava ansioso para renovar a Igreja em Genebra, mas
precisava de ajuda. Farei insistia que Calvino se aliasse a ele como
co-pastor da igreja alemã. Calvino recusou educadamente, explican-
do que pretendia viver a vida de um erudito discreto. Farei não ficou
convencido e clamou pela maldição de Deus sobre os estudos de
Calvino, caso ele se recusasse a ajudar na reforma de Genebra. Calvino
se sentiu balançado por aquela ameaça e entendeu que Deus estava
mudando a direção de sua vida mais uma vez.
Calvino ministrou em Genebra durante dois anos, até ser demi-
tido pelo conselho da cidade, que ficara desencantado com a refor-
ma da Igreja. Então, ele se m u d o u para a pacífica cidade de
Estrasburgo, na época parte da Alemanha, e de 1538 a 1541 pas-
sou três anos idílicos como pastor da igreja de refugiados na cidade.
Ali também escreveu um comentário de Romanos, o primeiro dos
muitos comentários bíblicos que aumentariam a sua fama de exegeta.

52
UMA LIÇÃO DF ESPIRITUALIDADE: JOÃO CALVINO t A VIDA CRISTA

Durante seus dias em Estrasburgo, Calvino casou com uma jovem


viúva, Idellette de Bure. Ele realmente estava feliz.
Tudo ia bem até o dia em que Farei apareceu para chamá-lo de
volta a Genebra, pois os líderes da cidade haviam mudado de idéia.
Calvino se recusou a voltar, porém quando Farei o ameaçou novamente
com a maldição de Deus, ele fez as malas e voltou para Genebra.
De 1541 até a sua morte, em 1564, Calvino trabalhou para reformar
a Igreja e a cidade, que se tornou a sua Nínive pessoal. Dessa vez Deus
garantiu o seu sucesso. Enquanto as décadas passavam, Genebra foi se
transformando no que um visitante, John Knox, chamou de "a escola
mais perfeita de Cristo desde os tempos dos apóstolos". A influência de
Calvino se espalhou por toda a Europa. Na época de sua morte, ele havia
se tornado o líder internacional da Reforma e uma das figuras mais im-
portantes na formação do pensamento do mundo moderno. 7
No centro das vitórias públicas de Calvino, como defensor da
Reforma, estavam as vitórias pessoais que conquistou em sua busca
incansável pelos segredos da santidade. A piedade era predominante
na mente de Calvino, conforme ele escreveu nas Institutos, que
receberam originalmente o subtítulo de Um Resumo de Piedade. Ele
valorizava de forma especial os capítulos que lidavam com a vida cristã.
A certa altura, ele chegou a reimprimi-los como livros separados.
Esses capítulos sobre a vida cristã forneceram à Igreja os segredos de
uma espiritualidade verdadeira, que transcendia o eu e nos ligava a
Deus. Calvino não entendia a vida espiritual como uma série de
experiências que causam arrepios na espinha, preferindo vê-las como
"hábitos do coração" diários (para tomar emprestado uma frase de
Ibcqueville). Stephen Covey alega que existem "sete hábitos das pessoas
altamente eficazes"; Calvino defendia a existência de "seis hábitos dos
cristãos altamente eficazes".

Hábito n° 1: dependa do Espírito Santo

1'ara Calvino, o maior segredo da santidade é a obra que o Espírito


S.nuo faz em nosso interior. E a maior obra do Espírito é nos colocar

53
LIÇÕES DE MESTRE

em união com Cristo. O que Calvino entendia por "união com Cris-
to"? Trata-se de uma união relacionai, similar ao casamento, e o Espí-
rito tem uma parte importante nesse processo. "O Espírito Santo é o
elo pelo qual Cristo nos une efetivamente a ele."8 Mas como o Espí-
rito Santo nos une com Cristo? Essa união acontece pela fé, que para
Calvino era a "principal obra do Espírito Santo" {Institutas 3.1.4).
O conteúdo dessa fé gerada pelo Espírito que leva à união com
Cristo é ver Cristo como redentor. A verdadeira fé é:

O firme e seguro conhecimento da divina benevolência para


conosco, conhecimento que, fundado na verdade da graciosa
promessa em Cristo, não só é revelado à nossa mente, como
também é selado em nosso coração, mediante o Espírito
Santo (3.2.7).

Uma união com Cristo pela fé produzida por meio do Espírito Santo
é, portanto, fundamental para a verdadeira espiritualidade.
Se cultivarmos qualquer incerteza em relação a essa dinâmica, a
santidade em nossa teologia se tornará uma manipulação nervosa
de um Deus imprevisível. Gratidão é o único motivo verdadeira-
mente evangélico para a santidade, mas não pode correr livremente
em nós se a justificação pela fé for percebida de forma tímida. O
medo servil ou a autojustificação arrogante se tornam a motivação
destrutiva para a espiritualidade, se o impulso evangélico for fraco
ou inexistente.
A união com Cristo não é estática, entretanto produz duas ações
internas chamadas de mortificação (mote da vida velha) e vivificação
(criação de uma nova vida). O Espírito Santo é central nesses dois
processos. Calvino viu essas duas ações como o conteúdo real do arre-
pendimento, que é "a verdadeira conversão de nossa vida a Deus,
procedente de um sincero e real temor de Deus, que consista da
mortificação de nossa carne e do velho homem e da vivificação do
Espírito" (3.3.5).

54
UMA LIÇÃO DE ESPIRITUALIDADE: JOÃO CALVINO L A VIDA CRISTÃ

Pensemos sobre como ocorre a mortificação. A união com Cristo


é, antes de tudo, nossa união com a sua morte. A tarefa do Espírito
Santo é fazer, com o nosso pecado, o mesmo que Cristo fez com o
nosso pecado na cruz; remover sua maldição de nossas vidas. A morte
diária do poder do pecado é necessária, porque o pecado que habita o
interior do ser humano continua existindo na vida do cristão após a
sua conversão. O pecado inerente é uma orientação para vivermos
para o eu, e deve ser destruído (3.3.8). Para Calvino, a verdadeira
espiritualidade é, portanto, um eterno arrependimento e luta contra
o pecado. Para Calvino é somente:

[...] através de avanços contínuos, ainda que, por vezes, lentos,


[que] Deus destrói em seus eleitos as corrupções da carne, lim-
pa-os de sua sordidez e a si os consagra por templos, a verda-
deira pureza renovando-lhes os sentimentos todos, para que se
exercitem no arrependimento a vida toda e saibam que a esta
luta fim nenhum há senão a morte (3.3.9).

Essa mortificação do pecado é seguida por uma segunda ação do


Espírito: a vivificação. Assim como a mortificação tinha como base a
união do cristão com a morte de Cristo, a vivificação também se
baseia na união do cristão com a ressurreição de Cristo. O Espírito
traz ao cristão o mesmo poder que Cristo experimentou quando se
levantou dentre os mortos. Unidos com ele pelo poder da sua ressur-
reição, podemos viver uma nova vida na terra. Esse processo maravi-
lhoso de vivificação "se dá quando o Espírito de Deus se impregna
em nossas almas, embebidas de sua santidade, não só com pensa-
mentos novos, como também com sentimentos novos, que possam
com razão ser considerados novos" (3.3.8).
As atitudes básicas que Calvino posteriormente destaca como
expressões da verdadeira piedade são recebidas por meio dessa expe-
riência de união. Uma vez que estou unido com Cristo, não sou mais
uma pessoa autônoma (que "tem" uma religião); agora sou apenas uma
"pessoa em Cristo".

55
LIÇÕES DE MESTRE

Wilhelm Niesel resume o primeiro hábito da santidade de Calvino


assim:

Cristo não foi crucificado e ressuscitou para si mesmo. Ele não


permanece distante de nós, mas ele, que uma vez por todas
experimentou a morte e a ressurreição, hoje nos encontra e
realmente nos comunica esses benefícios que obteve por nossa
causa. Nosso velho homem é derrotado e crucificado pelo po-
der da morte de Jesus Cristo. Somos despertados para uma
nova vida pelo poder de sua ressurreição. Isso ocorre por meio
do Espírito de Cristo, que nos liga a ele e gera em nós fé e
obediência. 9

Para Calvino, o resumo da verdadeira espiritualidade é a nossa união


com Cristo pelo Espírito. Dessa raiz mais profunda brotam a fé, a
justificação, a santificação e todos os outros benefícios da salvação.
Quando Calvino compara a vida do cristão com uma jornada com
Cristo para negarmos o eu, carregarmos a cruz e meditarmos na
vida futura, não devemos pensar em um peregrino solitário, andan-
do sozinho por uma estrada tortuosa. Devemos pensar no cristão
ligado a Cristo, incapaz de se desvencilhar de seu amado Salvador,
que luta com ele e por ele a cada passo dessa caminhada.

Hábito n° 2: pratique a negação do eu

De Mateus 16:24, Calvino retirou três elementos centrais da vida


cristã: "A si mesmo se negue, tome a cruz e siga-me". O que ele
entendia por essa negação do eu? Para Calvino, a autonegação não era
apenas o flagelo do corpo ou deixar de ingerir doces durante a
Quaresma. A verdadeira negação do eu vai muito além desses proce-
dimentos superficiais. A base da negação do eu é uma questão de
posse. Quem realmente está no controle de minha vida: Deus ou eu?
Para Calvino, a resposta egoísta era inaceitável. O verdadeiro dono de
cada pessoa é o Deus que criou, sustenta e redime.

56
UMA LIÇÃO DF ESPIRITUALIDADE: JOÃO CALVINO L A VIDA CRISTÃ

A espiritualidade calvinista é construída com base em Romanos


12:1-2 e a negação dupla que essa passagem ensina: (1) não perten-
cemos a nós mesmos e (2) pertencemos a Deus. Não existe um peca-
do em particular que deva ser mortificado primeiro, mas a raiz do
pecado, que é a nossa autonomia em relação a Deus.
O que Calvino quis dizer quando afirmou que não pertencemos a
nós mesmos? "Nós não somos nossos; portanto, nossa razão não contro-
lará nossos planos e ações. Não somos nossos; não nos proponhamos
a este fim de acordo com o que convém à carne. Não somos nossos;
portanto, até onde seja exeqüível, esqueçamos a nós mesmos e a tudo
que é nosso" (3.7.1). Se não somos pessoas autônomas, então quem
somos? A resposta de Calvino é que somos criaturas pertencentes a
Deus. A essência do calvinismo não é aprisionada pelas doutrinas da
eleição ou da predestinação, mas se encontra na declaração de Calvino
a respeito da posse de Deus sobre as nossas vidas:

Pelo contrário, somos de Deus, logo, para ele vivamos e mor-


ramos; somos de Deus, logo, a todas as ações nossas presi-
dam a sabedoria e a vontade; somos de Deus, logo, para com
ele, como ao só legítimo fim, se polarizem as expressões todas
de nossas vidas. Oh, quanto há de proveito experimentado
aquele que, ensinado que se não pertence, ab-rogou à sua
própria razão a soberania e o mandato para que a Deus o
aproprie! (3.7.1).

lissa negação fundamental do eu leva a uma negação específica de


nossa preocupação com o eu e a vontade própria. Precisamos nos
preocupar com o nome, a vontade e o plano de Deus, e não os nossos:

Pois quando a Escritura nos manda renunciar à consideração


particular de nós próprios, não só do ânimo nos expunge a
cupidez de possuir, a afetação do poder, o favor dos homens,
como também nos erradica a ambição, e todo anseio de glória
humana, e outras pestes mais secretas (3.7.2).

57
LIÇÕES DE MESTRE

Uma vida de negação do eu muda a maneira como nos relaciona-


mos com os outros. Calvino destacou que o orgulho, o ciúme e a
inveja (e a rivalidade que eles produzem) são endêmicos nos relacio-
namentos humanos:

Mas ninguém há que não nutra interiormente algum conceito


de sua excelência própria. Destarte, a si adulando, no peito,
um a um, engendram os homens um reino, pois, em a si arro-
gando o de que se aprazam, censura movem acerca do caráter e
dos costumes dos outros (3.7.4).

Sendo esse o caso, a gentileza, a humildade e a inferioridade diante


dos outros são as principais marcas da negação do eu em nossos
relacionamentos.
Quando negamos a nós mesmos, procuramos usar nossos recursos
para o bem dos outros, e não apenas para nós mesmos. Calvino insis-
te que:

A Escritura, porém, para que pela mão a isto nos conduza,


premune que todas as graças do Senhor que obtemos nos são
confiadas com esta condição; que se destine ao bem comum da
Igreja e, por isso, o uso legítimo de todas as graças é o liberal e
generoso compartilhar com os outros (3.7.5).

A autonegação buscará servir até ao mais indesejável, pois não surge


de um amor egoísta, mas de um amor pelos outros por causa de
Deus. Mesmo:

[...] quando não só nada de bom há merecido, mas até te há


provocado com injustiças e malefícios, não é esta, na verda-
de, justa causa por que te deixes tanto de abraçar com amor
quanto de cumular dos benefícios da estima (3.7.6).

58
UMA LIÇÃO DE ESPIRITUALIDADE: JOÃO CALVINO L A VIDA CRISTÃ

O contentamento é a expressão primária da negação do eu diante


ile Deus:

Também resta que não porfiemos cobiçosamente por posses


e honras, fiados ou em nossa própria agudeza de intelecto,
ou em nossa diligência de ação, nem no favor dos homens, ou
confiados na vã imaginação da sorte; pelo contrário, volvamos
sempre os olhos para com o Senhor, a fim de que, por seus
auspícios, sejamos conduzidos a qualquer destino que nos haja
ele providenciado (3.7.9).

Km resumo, a prática da negação do eu levará a atitudes de desapego


e contentamento. Segundo a conclusão de Calvino, a pessoa que apren-
deu a negar a si mesma ficará contente com:

[...] o que quer que lhe aconteça, porque o saberá ordenado


pela mão do Senhor, recebê-lo de ânimo sereno e agradecido,
para que não resista contumazmente à autoridade daquele a
cujo poder a si próprio e a tudo o que é seu há submetido de
uma vez por todas (3.7.10).

hsse é o segredo espiritual da negação do eu.

Hábito n° 3: carregue a cruz

O terceiro hábito da espiritualidade eficaz é conhecer o poder do


sofrimento. Esse poder entra em cena na batalha espiritual cons-
tante na qual os cristãos estão engajados. Para Calvino, a verdadeira
batalha espiritual não é lutar contra espíritos territoriais ou con-
hontar os demônios. A verdadeira guerra ocorre em nosso interior.
"O cristão", observou Calvino, "está em conflito perpétuo com a
sua própria descrença" (3.2.17). O ataque primário de Satanás é
contra a nossa fé em Cristo. A vida é uma guerra diária para manter
a lé viva e crescente.

59
LIÇÕES DE MESTRE

Como vencer essa guerra diária? Qual é a arma secreta do cris-


tão? A resposta de Calvino é surpreendente: nossa arma secreta é
o sofrimento. Falando de maneira que lembra a teologia da cruz
de Lutero, Calvino mostra a importância do sofrimento e o poder
que ele libera. Devemos carregar as cruzes de nossas vidas, imi-
tando a Cristo. O próprio Cristo "aprendeu a obediência pelas
coisas que sofreu" (Hb 5:8). Se nossa batalha é nos tornarmos
como Cristo, o sofrimento nos ajuda a vencer porque nos confor-
ma com Cristo.
Quais são alguns dos benefícios específicos do sofrimento na vida
do cristão? Ele nos conforma a Cristo. Ele quebra o nosso orgulho e
nos capacita a transferir a nossa confiança para Deus. Ele nos purifica
do pecado (3.8.6). Ele aumenta as nossas recompensas espirituais,
pois se sofremos por causa da justiça, "com isso em mais amplo lugar
estamos no Reino de Deus" (3.8.7).
O elogio de Calvino ao sofrimento é algo extremado? Trata-se
de um cristianismo do tipo "agüente e sorria"? Calvino nega que
seja assim e fala contra os estóicos cristãos que dizem ser pecami-
noso lamentar (veja Mt 5:4 e Institutas 3.8.9). O estoicismo nos
ensinou que devemos ser pacientes na aflição, simplesmente por
causa de uma percepção intelectual de que não se pode resistir a
Deus; se você não pode vencê-lo, junte-se a ele. Calvino rejeita
essa maneira de pensar, considerando-a fatalismo. Em seu lugar,
ele oferece uma compreensão evangélica de por que deveríamos
ser pacientes na aflição:

Agora, porque, na verdade, aprazível nos é, afinal, aquilo que


reconhecemos ser-nos para a salvação e para o bem, também
neste aspecto consola-nos o Pai boníssimo, enquanto declara
que nesse próprio fato de que nos aflige com uma cruz à sal-
vação nos consulta (3.8.11).

Por esse motivo existe uma alegria secreta escondida por trás de toda
cruz externa.

60
UMA LIÇÃO DIÍ ESPIRITUALIOAIIF: JOÃO CALVINO K A VIDA CRIM A

Hábito n° 4: olhe para a eternidade

Juntamente com os hábitos da negação do eu e de carregar a cruz


existe um hábito ainda mais misterioso da vida crista; seguir a Cristo,
colocando nossos olhos nas realidades celestiais. Calvino chamou isso
de "meditação sobre a vida futura". Desde que Cristo se levantou dos
mortos e ascendeu ao céu, seguir a Cristo significa meditar na
dimensão eterna e futura, em que Cristo reina em poder e da qual ele
voltará em poder. Cristo continua agindo, reinando desde o céu e
preparando sua volta a esta terra. Segui-lo significa acompanhar as
suas novas atividades. Calvino acreditava que somente enxergamos
de maneira perfeita quando mantemos um olho na vaidade dessa
vida e o outro nas glórias da vida eterna.
Para Calvino, é vazia a vida terrena que ignora a realidade do mundo
eterno futuro. Por quê? Ele apresenta duas razões. Primeiro, esta vida
é um mar de acontecimentos imprevistos; portanto, confiar nela é
como construir nossa casa sobre a areia (3.9.1). Segundo, precisamos
realmente escolher qual mundo ocupará o primeiro lugar em nosso
coração: o mundo ao nosso redor, que passará, ou o mundo que ainda
está por vir (3.9.2).
Calvino não se opõe a que vivamos esta vida com satisfação total
(falaremos mais sobre isso). Ele afirma de imediato que esta vida
terrena merece uma apreciação própria. Na verdade, as benevolên-
cias de Deus brilham ao longo desta vida, mas não tão claramente
para perdermos nosso desejo de alcançar o maior bem; a vida eterna
(3.8.3). O amor adequado por este mundo, apesar de toda a bonda-
de com que foi criado, compreenderia um amor secundário. Em
primeiro lugar em nosso coração deve estar o Cristo que ressuscitou
e ascendeu aos céus. Segui-lo significa amar agora a sua posição
exaltada e receber dele tudo o que precisamos para nos sustentar
durante nossa peregrinação na terra. Assim, a escatologia é a matriz
apropriada para a alegria e a esperança presentes; "Contudo, tenha-
mos isto estabelecido: ninguém há progredido bem na escola de
Cristo, senão aqueles que aguardem com regozijo o dia da morte e
ressurreição final" (3.9.5).

61
LIÇÕES DE MESTRE

Mas o cristão precisa saber que o poder da ressurreição futura


pode se manifestar nesta vida presente.

Para que conclua em uma palavra; então, afinal, sobre o Dia-


bo, a carne, o pecado e os ímpios triunfa no coração dos fiéis a
cruz de Cristo, se ao poder da ressurreição se lhe volvem os
olhos (3.9.6).

Como? A fé alimenta essa glória e justiça futuras, esperando alegre-


mente por elas. Essas atitudes de fé, contentamento e alegria nos dão
a felicidade em nossa existência presente. Seguir a Cristo meditando
na vida futura pode, então, transformar a nossa vida presente.

Hábito n° 5: use tudo desta vida para a glória de Deus

A luz da forte ênfase de Calvino nas coisas eternas, como devemos


tratar a criação material de Deus e a cultura humana? Calvino não
gostaria de que entendêssemos incorretamente essa ênfase. Por isso, o
seu quinto hábito da verdadeira espiritualidade é que deveríamos
usar essa vida boa para a glória de Deus. Todas as coisas boas desta vida
são alimento espiritual, se usadas para os seus devidos propósitos.
Quais são os devidos propósitos para as coisas criadas? Calvino
mencionou dois; beleza e utilidade (3.10.2). Podemos até crescer
em santidade quando usamos as coisas materiais para o prazer e a
recreação:

Seja-nos este o princípio; não aberrar o uso de Deus quando a


esse fim se refere a que no-los criou e destinou o próprio Criador,
por isso que para o nosso benefício, não para o nosso detri-
mento os criou [...] Agora, se ponderamos a que fim haja Deus
criado os alimentos, verificaremos haver ele querido consultar
não apenas à necessidade, o propósito lhe foi o decoro e digni-
dade; nas ervas, árvores e frutas, além dos variados usos, a bele-
za da aparência e a suavidade do perfume. (3.10.2)10

62
UMA LIÇÃO DL ESPIRITUALIDADE: JOÃO CALVINO L A VIDA CRISTÃ

Mas como podemos usar especificamente a criação e a cultura


de uma maneira que elas coloquem Deus no centro de nossos
sentimentos? Calvino apresenta quatro regras para o uso santo da
criação. (1) Desligamento significa desenvolver uma atitude de
"tudo ou nada" em relação às coisas passageiras deste mundo. (2)
Contentamento com pouco nos capacita a ter uma alegria constan-
te em tempos de fartura e em tempos de necessidade. (3) Presta-
ção de contas significa percebermos que Deus irá nos julgar pela
maneira como usamos os dons da criação e da cultura. Por isso,
não é suficiente fazermos nosso trabalho quando o chefe está olhan-
do. Nós trabalhamos para o Senhor, que está sempre olhando o
que fazemos. A integridade ética e a justiça social devem ser preo-
cupações do trabalhador cristão, pois o seu Deus também está
preocupado com essas coisas (3.10.5). (4) Diligência em nossa
humilde chamada não é uma tarefa assustadora, pois "desde que
obedeças à tua vocação, nenhuma obra tão ignóbil e vil haverá de
ser que diante de Deus não resplandeça e seja tida por valiosíssima"
(3.10.6).
A piedade de Calvino evita tanto os erros da piedade que de-
fende o mundo quanto da piedade altamente crítica, que nega o
mundo. Segundo o sociólogo Max Weber, a ética puritana era
uma piedade centrada neste mundo, que se opunha à piedade do
monasticismo, voltada para o outro mundo. A piedade dos puri-
tanos seguia o modelo de Calvino para a vida cristã. Conforme
escreveu Alister McGrath, Calvino acreditava no que:

[...] poderia terminar o apoio crítico da ordem secular. Você


vive no mundo, se relaciona com ele, o valoriza, a criação de
Deus está nele, mas você também reconhece que esta é uma
criação caída, que, em princípio, é capaz de ser redimida."

Quando vemos as piedades escapistas de nossos dias, percebemos


que esse quinto hábito de santidade pode ser um corretivo muito
.Mil.

63
LIÇÕES DE MESTRE

Hábito n° 6: seja persistente na oração

O último hábito da espiritualidade eficaz é a oração. Se precisamos


do ministério do Espírito para mortificar o pecado e nos dar vida
nova em Cristo, e se seguimos a Cristo, colocando nossos olhos
sobre ele e sua glória celestial, então devemos no dedicar à oração.
Calvino chama a oração de "o principal exercício da fé[...] mediante
a qual recebemos diariamente os benefícios de Deus". Pela oração "se
escavam os tesouros que [...] nossa fé visualizado os haja" (3.6.2).
Calvino apresenta quatro regras para sermos eficazes na oração. A
primeira regra é reverência a Deus. "Saibamos, portanto", anunciou
Calvino, "que não outros se cingem correta e adequadamente para
orar senão aqueles aos quais a majestade de Deus azadamente dispõe,
de sorte que, desvencilhados de terrenos cuidados e preocupações, a
ela se acheguem" (3.20.5). A regra de reverência deveria fazer de nós
pessoas dependentes do Espírito, que nos ajuda durante a oração.
"Deus, em nossas preces por ensinador, nos dá o Espírito, que dite o
que é reto e os sentimentos nos modere" (3.20.5).
A segunda regra da oração é a necessidade sincera. Calvino se opôs
às orações repetitivas, que ele não acreditava serem sinceras. Em
contraste:

Os piedosos hão de especialmente guardar-se para que nunca


à presença de Deus compareçam a suplicar o que quer que
seja, a não ser o que não só ardentemente anelem com sério
afeto de coração, como também, ao mesmo tempo, dele alme-
jam obter (3.20.6).

A terceira regra da oração é um espírito humilde e contrito. A união


com Cristo pela fé é, portanto, uma precondição necessária para a
oração:

Nem é de esperar-se que de Deus qualquer coisa obtenha


alguém, por mais santo que seja, até que lhe haja sido

64
UMA LIÇÁO DE ESPIRITUAI IDADE: JOÃO CALVINO E A VIDA CRISTA

graciosamente reconciliado, nem pode acontecer que Deus


seja propício a outros, senão àqueles a quem perdoa"
(3.20.9).

A quarta e última regra para a oração éafé confiante. Devemos orar


com esperança resoluta. Calvino zomba daqueles que oram como se
Deus não tivesse enviado um redentor para cobrir os seus pecados:
"O Senhor, eu, na verdade, estou em dúvida se, porventura, queiras
ouvir-me; contudo, porque estou premido de ansiedade, junto de ti
me refugio, para que, se sou digno, me socorras". Tal oração não é
aceitável a Deus "Pois, afinal [...] é a oração aceitável a Deus aquela
que, por assim dizer, nasce de tal pressuposto de fé e está embasada
em tranqüila certeza de esperança" (3.20.12). Como podemos orar
com tamanha confiança, conhecendo o nosso próprio pecado e insegu-
rança? Cristo é o fundamento da nossa esperança (3-20.17). Cristo
deixou a oração do Pai Nosso para nos guiar.' 2
O debate sobre a oração e a importância da fé na oração levou
Calvino ao seu primeiro hábito: depender do Espírito Santo, produtor
da fé de que necessitamos. A piedade de Calvino começa e termina
com Deus, e os seis hábitos formam um círculo de crescimento espi-
ritual (veja a figura abaixo).

Hábito n° 1: Dependa do Espírito Santo

Hábito n° 6: Seja Hábito n° 2: Pratique a


persistente na oração negação do eu

t
Hábito n° 5: Use tudo desta vida
i
Hábito n° 3: Carregue
a cruz
para a glória de Deus

\ 4
Hábito n° 4: Olhe para a eternidade

65
LIÇÕES DE MESTRE

Até que ponto alguém espera chegar com esse tipo de espiritualidade?
Embora esses seis hábitos sejam agentes poderosos de mudança,
Calvino é realista sobre os progressos ao longo do caminho em dire-
ção à espiritualidade:

Mas, uma vez que a ninguém tanto de força sobeja nesse cárce-
re terreno do corpo, que se possa açodar com a justa celeridade
da corrida, na verdade, fraqueza tão grande oprime a grande
maioria que, vacilando e claudicando, até mesmo rastejando
no solo, à frente se move apoucadamente (3.6.5).

Isso significa que o progresso espiritual verdadeiro é fútil? De modo


algum, diz Calvino: "[Não] desesperemos ante a insignificância de
êxito alcançado. Ora, por mais que o êxito não corresponda ao dese-
jo, contudo, perdido não foi o labor quando o dia de hoje supera o de
ontem" (3.6.5). Em resumo, enquanto nos movemos em cada um
desses hábitos de espiritualidade eficaz, podemos aguardar o cresci-
mento, embora jamais devêssemos esperar a perfeição.
Quando os seis hábitos desse ciclo passam a ser parte do ritmo
de nossa vida, crescemos em uma espiritualidade que transcende o
eu e nos leva a desfrutar de uma intimidade consciente com Deus.
Como é possível cultivar essa intimidade com Deus em nossa igreja
ou organização será discutido a seguir.

Colocando em prática os hábitos de espiritualidade


eficazes de Calvino

Como podemos aplicar o modelo de Calvino em nosso ministério?


Gostaria de mencionar algumas possibilidades:
Uso n° 1: A verdadeira espiritualidade e o caráter do líder. Segundo
James Means, "um número demasiado de pastores se equivoca ao
pensar que a mudança nas outras pessoas ou uma mudança de
circunstâncias traria sucesso ao seu ministério". O que muitos não
percebem é que "Deus raramente abençoa o ministério de pessoas

66
UMA LIÇÃO DE ESPIRITUALIDADE: JOÃO CALVINO E A VIDA CRISTÃ

de caráter duvidoso, comportamento questionável e espiritualidade


inexpressiva".13 Lemos em 1 Timóteo 3:2 que um líder deve ser
"irrepreensível".
A espiritualidade é necessária para a liderança cristã autêntica.
Mesmo assim, vemos modelos populares de liderança provenientes
do movimento de crescimento de igrejas ou do mundo dos negócios
que não enfatizam o caráter e a piedade. Em contrapartida, Stephen
Covey, em seu famoso livro Os 7 Hábitos das Pessoas Altamente Efi-
cazes, comenta sobre a importância de alcançar vitórias particulares
antes de buscarmos as vitórias na esfera pública. Os hábitos de lide-
rança pessoal (uma visão para a vida de uma pessoa) deveriam ser
coadunados com a administração pessoal, em que a pessoa coloca
essa visão integrada em prática. 1 ' Se queremos ajudar aqueles que
lideramos a experimentar a verdadeira espiritualidade e evitar as ar-
madilhas do egoísmo, devemos ser capazes de dizer com integridade:
"Siga-me como eu sigo a Cristo". Planejar retiros espirituais particu-
lares, bem como retiros espirituais com toda a liderança, pode ser
uma decisão importante para conduzir sua organização à estrada da
excelência.
Uso n° 2: A verdadeira espiritualidade e a prestação de contas. Uma
das ajudas mais úteis para o cultivo da espiritualidade é a formação
de um grupo para a prestação de contas. Patrick Morley acredita que
"o elo perdido na vida da maioria das pessoas é a prestação de con-
tas". Ele defende o que denominou de "hora semanal para a presta-
ção de contas". Trata-se de uma reunião com um grupo pequeno de
cristãos nos quais você confia, em que todos podem fazer perguntas
sobre a vida espiritual, a vida no lar e no trabalho e sobre as maiores
preocupações dos demais. Tenho experimentado os benefícios desse
(ipo de encontro para a prestação de contas e visto como esses grupos
são poderosos para mudar vidas.
Tive o privilégio de trabalhar, há alguns anos, no Centro Billy
(iraham para Evangelização, na sede do Wheaton College. O diretor
do centro naquela época, Jim Kraakevik, me deu a impressão imedia-
ta de ser alguém com piedade e graça fora do comum. Eu o observei
11 abalhar sob muita pressão, lidar com problemas sérios de saúde em

67
LIÇÕES DE MESTRE

sua família e resolver complicados problemas de relacionamento na


organização. Qual era o seu segredo para manter em forma sua vida
espiritual, considerando a pressão de ser um líder que precisava tomar
decisões muito importantes? Além de praticar várias disciplinas espi-
rituais, Jim fazia parte de um grupo de prestação de contas em que
perguntas difíceis eram feitas e respostas honestas eram dadas. De
todas as excelentes decisões que ele tomou como líder daquela orga-
nização de destaque, a mais importante talvez tenha sido buscar a
verdadeira espiritualidade em um grupo de prestação de contas. 15
Precisamos tomar esse mesmo tipo de decisão.
Uso n° 3: A verdadeira espiritualidade e a vida familiar do líder. A
cultura do narcisismo tem crescido dentro do meio evangélico. Em
vez de serem enfermarias de piedade, muitas famílias cristãs se torna-
ram centros de serviço para a "geração eu". No mar hostil da
modernidade, alguns de nossos lares se tornaram ilhas de compaixão.
Os Guiness argumenta que a esfera da vida privada "tornou-se o lu-
gar onde se gasta, e não onde se ganha, e de satisfação pessoal em vez
de obrigação pública [...] O homem privatizado não é apenas um
Atlas ansioso, mas um Narciso mimado". 16 A verdadeira espiritua-
lidade precisa ser modelada por pais e mães, ensinada aos filhos e
praticada nas rotinas diárias da vida.
A verdade é que o ambiente familiar é o lugar ideal para a real
espiritualidade ser trabalhada. Em qualquer casa, todos os dias sobram
oportunidades para se praticar a dependência do Espírito Santo, a
negação do eu, o carregamento da cruz, o uso de maneira piedosa da
cultura e a pratica de orações sinceras. Duas ajudas valiosas para o
cultivo desse tipo de piedade são o culto familiar regular e a redação
de uma declaração de missão para a família.
Alguns anos atrás, eu e minha esposa, juntamente com nossos
dois filhos, elaboramos uma declaração de missão para a nossa fa-
mília. Ela continha uma frase sobre servir aos outros, em conjunto
à ênfase de aprender a amar a Deus como Cristo fazia. Reler essa
declaração quando precisamos tomar decisões tem nos ajudado a
pensar nos outros e em suas necessidades, em vez de olharmos apenas
para o que precisamos.

68
UMA LIÇÃO DH ESPIRITUALIDADE: JOÃO CAIVINO I; A VIDA CRISTÃ

Uso n° 4: A espiritualidade no local de trabalho. Os Guiness nos


alerta sobre a piedade vazia que não consegue penetrar na esfera do
trabalho:

Procure um lugar onde a fé cristã possa fazer diferença no


trabalho, além daquelas coisas puramente pessoais (como dar
testemunho aos colegas e orar por eles, não falar palavrões e
não mentir no imposto de renda). Busque um lugar onde o
cristão pensa de forma "cristã" e criticamente sobre a subs-
tância do trabalho (por exemplo, o uso de lucros, e não apenas
do pessoal; sobre a ética de uma companhia multinacional, e
não apenas aqueles que fazem parte de um negócio pequeno,
familiar; sobre uma ordem econômica justa, e não apenas sobre
a doutrina da justificação). Você continuará procurando por
um longo tempo. 17

Esse tipo de fé é "privativamente engajada, mas socialmente irrelevante".


Ela produz homens de negócio cristãos que freqüentam com regularida-
de a igreja e a escola bíblica dominical, porém, ao mesmo tempo, fazem
negócios "nebulosos" em seu trabalho. Esse tipo de esquizofrenia espiri-
tual prejudica o testemunho da fé. Onde está o desligamento desses
tesouros terrenos, por melhor que possam ser, que evita colocarmos nos-
so dinheiro acima de Deus? A verdadeira espiritualidade aprende a usar
as coisas dessa vida sem dualismo ou engano.
Os cafés da manhã de oração e retiros espirituais só para homens
são boas oportunidades para discutir questões referentes à verdadeira
espiritualidade no ambiente de trabalho. As mulheres poderiam se
beneficiar de estudos bíblicos durante o almoço, seminários ou até
mesmo cursos sobre a ética cristã nos negócios. Identifique os líderes
leigos de sua igreja recebedores de grande graça nessa área, e os deixe
ministrar essa graça para homens e mulheres cristãos que lutam con-
ua essas questões no local de trabalho.
Uso n°5: A espiritualidade e uma vida quebrantada. Se você, líder,
loi colocado para fora nessa corrida da vida cristã por causa de algum

69
LIÇÕES DE MESTRE

pecado ou falha, os hábitos de Calvino para a espiritualidade eficaz


continuam válidos para você. Seu modelo de espiritualidade não serve
apenas para heróis sem culpa. Também serve para soldados feridos.
Gordon McDonald, um destacado pastor da região da Nova
Inglaterra, viu seu ministério ser destruído por uma série de falhas
morais. Nos meses e anos seguintes — meses e anos que algumas
vezes foram cheios de desespero, amargura e quebrantamento —,
Deus fez uma obra de restauração em sua vida pela graça. Sua
espiritualidade foi restaurada. Seu caráter foi restaurado. Ele recon-
quistou sua posição de liderança. Alguns dos seis hábitos de João
Calvino foram mencionados no tocante livro de MacDonald, Ponha
Ordem no seu Mundo Interior? 8
Embora a revista Newsweek negligencie os recursos da ortodoxia
cristã nessa nova busca pela espiritualidade, a Igreja de Cristo não
deve cometer o mesmo erro. Usando o modelo de verdadeira
espiritualidade de Calvino, a Igreja pode recobrar a visão para a
santidade que é extremamente necessária em nossa cultura moderna
de narcisismo.

-"QUESTÕES PARA DEBATE

1. Um texto-chave sobre a santidade é Romanos 6:1-14. Até


que ponto os hábitos de Calvino se encaixam no modelo de
santidade apresentado em Romanos 6?

2. Revise os cinco usos do modelo de Calvino de espirituali-


dade. Quais são os mais relevantes para você neste momento?
Por quê?

70
UMA LIÇÃO DH ESPIRITUALIDADE: JOÃO CALVINO ÍL A VIDA CRISTÃ

LEITURAS COMPLEMENTARES

Ler todas as lnstitutas da Religão Cristã pode ser uma experiên-


cia espiritual recompensadora. Foi isso que descobri quando
ainda era um jovem arminiano e não estava certo se Calvino
tinha muito para me dizer. Confesso que fui forçado a mudar
de idéia. Embora a tradução esteja um pouco defasada, a versão
em quatro volumes de as lnstitutas ainda está disponível (Casa
Editora Presbiteriana). Quem quiser conhecer um pouco mais
da vida de Calvino poderá consultar Calvino: Vida, Influên-
cia e Teologia, de Wilson Castro Ferreira (Editora Luz para o
Caminho).
Os que desejam conhecer mais sobre suas idéias podem
ler outras obras de Calvino, como A Verdadeira Vida Cristã ou
O Livro de Ouro da Oração (ambos da Editora Novo Século).
Também estão disponíveis os comentários que ele escreveu
sobre vários livros da Bíblia (Editora Paracletos). Para quem
deseja conhecer um pouco mais da teologia de Calvino, reco-
mendo os livros Teologia dos Reformadores, de Timothy George
(Edições Vida Nova) e O Pensamento de Calvino, vários autores
(Editora Mackenzie).

71
CAPÍTULO 3

UMA LIÇÃO DE UNIDADE:


JEREMIAH BURROUGHS E A TEORIA
DENOMINACIONAL DA IGREJA

y^Juando fui para a África trabalhar como missionário, fiquei im-


pressionado com dois aspectos distintivos do cristianismo africano. O
primeiro foi o crescimento da Igreja durante o século xx. Os núme-
ros divulgados eram simplesmente impressionantes. Em 1900, havia
um número estimado em 8 milhões de cristãos declarados na Áfri-
ca, cerca de 10% do continente. Na década de 1980, esse número
chegava a 250 milhões, ou seja, cerca de metade da população de
toda a África. Nunca antes na história da Igreja ocorreu um cresci-
mento tão espetacular em um único século.
Minha alegria em descobrir esse aspecto do cristianismo africano
logo foi minimizado pelo descoberta do segundo aspecto. Aprendi
sobre a enorme desunião existente no cristianismo africano. O pes-
quisador David Barrett calcula que existiam mais de 5 mil igrejas
independentes diferentes na África no final da década de 1960. 1
Ksses grupos diziam ter mais de 7 milhões de membros, vindos de
.'.90 tribos de todo o continente. Mais recentemente, o historiador
|ohn Baur calculou que existem perto de 10 mil desses grupos. O
corpo partido de Cristo continua fraturado.
Se esse problema existisse apenas na África, seria uma coisa, mas
ii.io é bem assim. No início do século xx existiam aproximadamente

73
LIÇÕES DE MESTRE

1900 denominações no Ocidente. No final da década de 1980, a


estimativa era de 22 mil.2
Juntamente com as estruturas denominacionais tradicionais da
Igreja existem novas estruturas de igrejas que vêm aumentando a
crescente diversidade no corpo de Cristo. O livro A Church for the
Twenty-First Century descreve novas formas e formatos da Igreja que
estão se m u l t i p l i c a n d o como franquias do M c D o n a l d ' s .
"Megaigrejas", com mais de 2 mil pessoas, "são como shopping centers,
oferecendo uma grande variedade de serviços para uma quantidade
enorme de pessoas". "Metaigrejas" são "baseadas em uma rede de
grupos pequenos que funcionam como centros de assimilação, trei-
namento, cuidado pastoral e evangelização". As "igrejas-hipermercado"
"servem aos mercados rurais regionais"; elas "transcendem as tradições
arraigadas de pequenas comunidades e dão permissão para adorar
sem excluir as histórias de famílias e os relacionamentos". A lista con-
tinua. Muitos desses novos modelos de Igreja estão aparecendo fora
das denominações tradicionais. Eles são sementes para uma nova
geração de denominações e arautos da crescente diversidade no corpo
de Cristo no futuro.

Perigo e promessa

Alguns consideram perigosa essa diversidade na Igreja mundial des-


crita acima. Assim como um câncer descontrolado, as células
destrutivas estão se m u l t i p l i c a n d o no corpo de C r i s t o . O
denominacionalismo vem sendo há muito o protetor de parte do
corpo de Cristo. H. Richard Niebuhr chamou o denominacio-
nalismo de "a falha moral do cristianismo". O bispo Lesslie Newbigin
declarou que o denominacionalismo é o "aspecto religioso da secu-
larização". 3 O que fez Newbigin ver as coisas dessa maneira? O
denominacionalismo é uma concessão ao individualismo, permi-
tindo que o eu decida em que acreditar; logo, relega o Evangelho à
esfera privada e permite que as ideologias seculares reinem na arena
pública. Essa fé privatizada, diz Newbigin, "não pode confrontar a
nossa cultura com o testemunho da verdade, pois eles não alegam

74
UMA LIÇÃO DE UNIDADE: JEREMIAH BURROUCHS F. A TEORIA DENOMINACIONAI. DA ICREJA

nem para si mesmos serem mais do que associações de indivíduos


que compartilham as mesmas opiniões particulares". Newbigin acre-
dita que a unidade visível da Igreja deva se manifestar de maneira que
vá além do denominacionalismo, antes que a Igreja possa dar um
testemunho digno de confiança perante um mundo perdido.
Discordo desse diagnóstico de Newbigin. Embora acredite que
0 denominacionalismo realmente foi secularizado, não creio que o
denominacionalismo não possa ser redimido. Tampouco acredito
que ele seja o verdadeiro motivo para a desunião da igreja. Pelo
contrário, proponho que a teoria denominacionai da Igreja, confor-
me foi concebida originalmente, seja nossa maior esperança para
promoção na terra do tipo de concordância visível do corpo de Cristo
que Newbigin pede.
Minha tendência é concordar com as declarações do teólogo Hans
Küng. "A coexistência de igrejas diferentes não [...] ameaça, por si
mesma, a unidade da Igreja", escreveu Küng. "A unidade somente
corre perigo pela coexistência que não é cooperação nem apoio, mas
basicamente uma confrontação hostil".'1 Mesmo onde existem con-
frontações sérias e, algumas vezes, hostis, ele pergunta: "Essas divi-
sões na Igreja são resultados de mentes limitadas, falta de caridade
e egoísmo"? E responde: "Elas também podem surgir da convicção
honesta de que qualquer outra coisa seria uma traição ao Evangelho
de Jesus Cristo". s
Nessas declarações, Küng chama a nossa atenção para os dois
motivos causadores da desunião cristã; sectarismo e sincretismo. Secta-
rismo é uma atitude de exclusão: "A minha igreja é a única que tem
a verdade". Seu relacionamento com as outras igrejas envolve uma
"confrontação hostil". O orgulho espiritual é o verdadeiro motivo
para as divisões sectárias, não o denominacionalismo. Winthrop
1 ludson conclui:

O denominacionalismo é o oposto do sectarismo. Uma "seita"


afirma que somente ela possui a autoridade de Cristo. Por defi-
nição, uma seita é exclusiva, separada. A palavra "denominação",

75
LIÇÕES DE MESTRE

por outro lado, é um termo inclusivo; um termo ecumênico.


Ela implica que o grupo a que se refere é apenas um mem-
bro, chamado ou denominado por um nome em particular,
de um grupo maior — a Igreja —, ao qual essa denominação
pertence. 6

Uma atitude sectária pode contaminar uma denominação e transfor-


má-la em um motivador para a desunião. Isso não muda o fato, con-
tudo, de que em sua forma não corrompida a denominação é uma
estrutura ecumênica, e não uma estrutura separatista.
Küng aponta mais que o sectarismo em seu diagnóstico da de-
sunião da Igreja. O segundo problema que ele menciona é o
sincretismo, ou a corrupção do Evangelho quando este é mistura-
do com as ideologias de seus dias. Quando uma igreja ou grupo
corrompe o Evangelho, deve haver uma separação para que seja
preservado o único tipo de unidade que a Bíblia conhece: a uni-
dade no Evangelho. Quando a Igreja Confessional da Alemanha
se desligou, na década de 1930, das igrejas históricas que haviam
comprometido o Evangelho com o nazismo, ela não estava pecan-
do contra a unidade cristã. Na verdade, estava confessando que
Cristo, não César [governante humano], é o Senhor. O sincretismo,
assim como o sectatismo, pode invadir as estrututas denomina-
cionais e fazer com que o denominacionalismo pareça ser o pro-
blema. Küng está certo, contudo, ao afirmar que o problema é
mais profundo.

Por isso, em oposição aos críticos do denominacionalismo, propo-


nho que o denominacionalismo, como foi originalmente concebido,
seja um grande motivador para a unidade exatamente porque resiste ao
sectarismo e ao sincretismo, os dois verdadeiros inimigos da unidade.
Eu ousaria dizer que o denominacionalismo clássico é um dos aliados
mais poderosos que possuímos para vencer o sectarismo e o sincretismo
e restaurar a unidade visível do corpo de Cristo. Para persuadi-lo da
verdade dessa declaração, eu precisaria apresentá-lo a um dos arquite-
tos da teoria clássica do denominacionalismo; Jeremiah Burroughs.

76
UMA LIÇÃO DE UNIDADF: JEREMIAH BURROUGHS t A TEORIA DENOMINAI :IONAI DA IORI IA

A vida de Burroughs

Jeremiah Burroughs nasceu em 1599, no último ano do reino de


Elizabeth i. Sabe-se pouco sobre o período de sua vida anterior à
entrada na Faculdade Emanuel, na Universidade de Cambridge. Essa
faculdade fora fundada em 1584 pelo piedoso Laurence Chaderton,
sendo "o maior seminário dos pregadores puritanos" da Inglaterra.
Os puritanos não eram os estraga-prazeres farisaicos que muitos
retratam. Na verdade, eles foram um dos grupos evangélicos mais
dedicados de sua geração, apaixonados pela pureza da Igreja e do
Evangelho. O próprio Burroughs:

[...] combinava harmoniosamente, em sua própria pessoa, o


que poderiam ser consideradas qualidades incompatíveis: um
zelo fervoroso pela pureza da doutrina e da adoração e um
espírito pacífico, que ansiava e trabalhava pela unidade cristã.'

Burroughs se angustiava ao ver o estado da unidade da Igreja. Quan-


do terminou o seu mestrado, em 1624, ele aprendeu sua primeira
lição sobre o que não era a unidade da Igreja. Naquele ano ele foi
perseguido e expulso da universidade por oficiais da Igreja, que se
opunham às suas idéias de que a melhor forma de governo da igreja
era a congregacional, e não a episcopal. Burroughs se recusava a acredi-
tar que a unidade da Igreja implicava em uma conformidade forçada.
A Igreja, pensava ele, precisa ser estruturada para manter o Evangelho
e ainda permitir a diversidade de opinião em áreas como o governo
eclesiástico, formas de louvor e os sacramentos.
Burroughs acabou encontrando seu lugar no ministério, servindo
em duas congregações no Oeste da Inglaterra. Contudo, em 1636,
uma perseguição renovada aos ministros não conformistas, organiza-
da pelo novo e nada popular arcebispo anglicano William Laud, reti-
rou Burroughs de seu púlpito. Forçado ao exílio, ele se tornou pastor
da congregação inglesa de Roterdã, Holanda. Embora tivesse oficial-
mente uma eclesiologia de base reformada, a Holanda tolerava uma

77
LIÇÕES DE MESTRE

diversidade maior de teologias e formas de adoração em suas igrejas


protestantes do que a Inglaterra. Naquele país, Burroughs começou
a formular uma resposta às questões sobre como podemos ter unida-
de na diversidade.
Enquanto isso, a situação na Inglaterra mudava rapidamente. No
início da década de 1640, Charles i enfrentava a oposição de um
Parlamento irado, que exigia reformas na Igreja e no Estado. Esse
"Longo Parlamento" convidou os ministros exilados a voltar para a
Inglaterra. Burroughs estava entre os que aceitaram esse convite. Mas
assim que começou um novo ministério em Londres, pregando regu-
larmente em duas das principais igrejas da cidade, Stepney e
Cripplegate, teve início a guerra entre o rei e o Parlamento.
Essa guerra civil deu ao partido puritano a oportunidade de refor-
mar a Igreja da Inglaterra. Ministros de todo o país se reuniram na
famosa Assembléia de Westminster (1643-1646) para reformar a teo-
logia e o governo das igrejas. Burroughs estava entre os escolhidos. A
maioria dos delegados era de presbiterianos e congregacionalistas sim-
patizantes, e Burroughs se tornou um dos principais porta-vozes do
grupo dos independentes.
Juntamente com outros, Burroughs ficou triste com a dureza dos
debates sobre a forma de governo que ameaçava dividir o movimento
puritano. Ele descreveu assim esse espírito contencioso:

Estamos brigando, dividindo, armando, trabalhando uns con-


tra os outros, preocupados apenas em tirar algo do outro [...]
Amor e unidade são as marcas do povo de Cristo, as armas do
cristão, que mostram onde ele habita [...] Gritamos demasia-
damente contra [divisões] [...] mas dificilmente alguém faz
algo [...] para oferecer alguma ajuda contra as divisões e incen-
tivar nossa união.8

Burroughs se opôs à rigidez dos presbiterianos em Westminster,


muitos dos quais ensinavam que a única forma de governo autorizada
pelas Escrituras era a sua. Por isso decidiu que era hora de expressar

78
UMA LIÇÃO DF UNIDADE: JEREMIAM BURROUGHS E A TEORIA DFNOMINACIONAE DA IGREJA

sua visão sobre o novo tipo de unidade na diversidade. Em 1644,


junto com outros quatro "irmãos dissidentes", ele apresentou a sua
teoria denominacional sobre a Igreja na obra Apologetical Narration*
que estabelecia as diretrizes de uma teoria surpreendentemente ori-
ginal da unidade da Igreja.
As idéias de Burroughs e seus companheiros dissidentes foram
rejeitadas pela assembléia na conclusão de seus trabalhos, em 1646.
Burroughs, desencorajado pelas decisões daquela reunião, voltou para
as suas igrejas. Mais tarde, naquele mesmo ano, sofreu uma queda
enquanto andava a cavalo. Dentro de algumas semanas, acabou mor-
rendo devido a complicações causadas pelo acidente. Sua morte foi
pranteada, inclusive por aqueles que se opuseram a ele em
Westminster. Richard Baxter, um ardoroso defensor do regime
presbiteriano, pagou um alto tributo a ele quando declarou que se
todos os episcopais tivessem sido como o arcebispo Ussher, todos os
presbiterianos como Stephen Marshall e todos os independentes como
Jeremiah Burroughs, "então as brechas da Igreja em breve seriam
todas cobertas".''
Um pouco da paixão de Burroughs pela unidade foi registrada em
um livro publicado pouco tempo após a sua morte com o título
Irenicum: To the Lovers ofTruth and Peace Concerning the Causes and
Evils of Heart Divisions (1646).** Nessa obra, Burroughs "pedia pela
unidade de todos os amantes da verdade, e argumentava que, com-
parativamente, faziam menor diferença na causa das divisões rígidas
tanto o espírito quanto os motivos equivocados".10
Embora Burroughs tenha perdido a batalha na Assembléia de
Westminster, ele não perdeu a guerra. A Inglaterra experimentou a
teoria denominacional da Igreja com algum sucesso durante o prote-
torado de Oliver Cromwell ( 1 6 5 3 - 1 6 5 8 ) , q u a n d o batistas,
congregacionalistas e outros grupos faziam parte da "organização na-
cional voluntária". Quando os Stuarts reconquistaram o trono da
I nglaterra, em 1660, a tentativa de denominacionalismo de Cromwell

,V,// ialira Apologética.


'' luitn um aos Amantes da Verdade e da Paz, Sobreas Causas e os Males das Divisões do Coração.

79
LIÇÕES DE MESTRE

chegou ao fim. No entanto, em 1689, o Ato de Tolerância preparou


o caminho para a aceitação permanente do denominacionalismo na
Inglaterra e o começo de sua prática em todo o mundo.

A teoria denominacional da igreja

Quais foram as principais idéias na visão de Burroughs que provaram


ser tão influentes ao longo da jornada? Burroughs e seus aliados em
Westminster levantaram argumentos em defesa da teoria denomina-
cional da Igreja com base em seis princípios:
Princípio n° 1: As diferenças doutrinárias são inevitáveis. "Conside-
rando os desejos e as fraquezas que normalmente estão envolvidos nas
apreensões humanas", disse Burroughs, as diferenças de opinião teo-
lógica são inevitáveis. Embora o ensinamento bíblico sobre a salvação
seja suficientemente claro para que todos os cristãos verdadeiros con-
cordem com ele, outras questões não foram colocadas de maneira tão
óbvia. "Os cristãos de todos os tempos", lembra Winthrop Hudson,
"possuem diferenças de opinião sobre os tipos de organização e de
louvor que servem para melhor expressar e resguardar a fé cristã".11
Os cristãos vêm brigando há 2 mil anos por causa dessas questões
secundárias, seria irreal esperar que as discórdias pudessem desapare-
cer de alguma maneira.
Princípio n° 2: As diferenças doutrinárias em questões secundárias
continuam sendo importantes. Embora essas outras questões sejam
secundárias em relação às verdades primárias da salvação, elas não
podem ser ignoradas, pois são abordadas pela Palavra de Deus. "Todo
cristão tem a obrigação de praticar sua fé conforme sua crença, bus-
cando até o fim as implicações e convicções que ele honestamente
possui". 12 Fundamentado apenas na Bíblia, e não na autoridade
humana, ele tem o direito de determinar em sua consciência as
opiniões, inclusive sobre princípios secundários de doutrina (e não
os fundamentos da fé), que continuam valendo. Essas opiniões di-
ferentes (sobre tipos de louvor, formas de governo, liberdade cristã,
escatologia etc.) devem ser preservadas, pois a Bíblia tem autoridade

80
UMA LIÇAO DE UNIDAOF: J LRFMIAH BURROUGHS F A TF.ORIA DF.NOMINACIONAI. DA IGRFJA

suprema sobre a nossa consciência. É incorreto forçar uma pessoa a


violar sua consciência, mesmo em se tratando de questões secundá-
rias. Organizar igrejas e denominações para preservar essas diferenças
c, portanto, algo legítimo.
Princípio n° 3: As diferenças podem ser úteis. Deus pode usar as
nossas diferenças, disse Burroughs, para trazer à tona as verdades da
Bíblia, assim como "fagulhas são geradas quando duas pedras são
batidas uma contra a outra". Em vez de ser ameaçado pelas diferen-
ças de pontos de vista sobre questões secundárias, os cristãos podem
ser fortalecidos pela relação de troca que ocorre em "debates, orações,
leituras e meditações" sobre as questões em que eles discordam. Sen-
lir-se ameaçado pelas diferenças já é avançar em direção ao espírito
de sectarismo.
Princípio n° 4: Nenhuma estrutura pode representar sozinha a Igre-
ja de Cristo em sua totalidade. O centro do sectarismo é a tendência
de identificarmos a verdadeira Igreja com a expressão de uma única
organização. O denominacionalismo contraria esse espírito ao pre-
servar o "princípio protestante"; nenhuma estrutura eclesiástica pode
representar sozinha a verdadeira Igreja de Cristo.

Deus não é possessão exclusiva de alguma igreja, e a existência


de diferenças entre as igrejas — cada uma lutando ao máximo de
seu entendimento para ser uma representação digna e fiel da
Igreja de Cristo neste mundo — serve como um corretivo cons-
tante para as pretensões de todas as igrejas.'3

Princípio n° 5: A verdadeira unidade é baseada no Evangelho comum e


deveria ser expressa pela cooperação entre as denominações. A diversida-
de de igrejas não justifica a negligência da unidade visível. Nossa
i oncordância no Evangelho é mais importante que nossas discor-
d.mcias nas áreas secundárias. Burroughs lembra que:

Embora nossas diferenças sejam suficientemente tristes, mes-


mo assim elas não chegam a nos fazer homens de religiões

81
LIÇÕES DE MESTRE

diferentes. Concordamos com o mesmo fim, embora não pelos


mesmos meios. Elas são maneiras diferentes de nos opormos a
um inimigo em comum. Seria muito confortável se pudésse-
mos concordar com os mesmos meios e na mesma maneira de
nos opormos a um inimigo em comum. Seria o nosso ponto
forte. Mas isso não pode ser esperado neste mundo. 14

Então, como podemos expressar essa unidade? Pela cooperação nas


causas comuns. Continuando a usar a metáfora militar, Burroughs
insiste que "os soldados que marcham contra um inimigo em co-
mum estão todos sob o comando de um mesmo capitão, seguem as
mesmas cores de sua insígnia e a colocam sobre suas cabeças ou
braços, trabalham juntos, embora nem todos estejam vestidos da
mesma maneira". O comando de um mesmo "capitão" e as "cores"
em comum seriam a compreensão evangélica do Evangelho, con-
forme delineamento de Lutero e Calvino.
O trabalho de cooperação entre cristãos de denominações diferentes
não é apenas possível, porém extremamente necessário para mostrar-
mos a unidade visível do corpo de Cristo. A unidade deve, portanto,
ser expressa pela cooperação entre as denominações em questões refe-
rentes a missões e serviço, não necessariamente pela união das igrejas.
Hudson diz: "Quando lembramos que, embora os cristãos possam
estar divididos em muitos pontos, eles continuam unidos em Cristo,
então, passa a ser possível", insistia Burroughs, "que eles possam tra-
balhar juntos pela causa comum da 'piedade'". 15
Princípio n° 6: A separação denominacional não é divisionismo.
Alguns m e m b r o s da Assembléia de W e s t m i n s t e r acusaram
Burroughs de defender a cisma — ou seja, dividir a igreja em fac-
ções rivais. Burroughs calmamente respondeu que "a verdadeira
natureza do cisma é [...] um rompimento sem caridade, injusto,
ríspido, violento da união com a Igreja ou com seus membros". O
que Burroughs advogava era diferente. Se a separação "amável e
pacífica" em estruturas eclesiásticas distintas, enquanto prosseguia
o trabalho além das linhas denominacionais, para o avanço do
Evangelho, "pode ser chamado de cisma, isso é algo que está além da

82
UMA LIÇÃO DF. UNIDADE: JEREMIAH BURROUGI IS E A TEORIA DENOMINAI IONAI I >A li .RIJA

minha compreensão". Embora os cristãos individualmente "possam


ser divididos em uma sociedade particular, eles não estão separados
da Igreja".16
Burroughs e seus companheiros dissidentes estavam convictos de
que, se esses princípios fossem seguidos pelos cristãos evangélicos em
um espírito de humildade e paz, poderíamos ter certeza de que "Cristo
não nos culparia no Grande Dia de termos retardado a sua causa".17

C o l o c a n d o em prática a lição de Burroughs

A teoria do denominacionalismo da Igreja pode funcionar conosco


hoje em dia? Vejamos os seguintes usos da idéia de Burroughs.
Uso n° 1: Ensine a teoria denominacionalpara sua igreja ou organi-
zação. Alguns anos atrás, um pastor amigo pediu-me para falar a um
grupo de presbíteros sobre a questão das diferenças denominacionais.
Ele sabia que eu apoiava a teoria denominacional da Igreja. Meu
amigo estava encontrando certa resistência à mudança, fundamenta-
da no argumento de que "na nossa denominação não agimos assim",
fui capaz de mostrar aos presbíteros as diferenças entre ser uma de-
nominação fechada (sectária e resistente ao livre fluxo de idéias e
parcerias com outros grupos) e uma aberta (que defende as verdadei-
ras distinções, mas continua receptiva a novas idéias e parcerias com
outros grupos). Deus abençoou aquele tempo de ensino, e algumas
novas oportunidades de crescimento se abriram para a igreja de meu
amigo.
Mesmo que você pertença a uma igreja independente, sem afiliação
denominacional, os ensinos de Burroughs continuam sendo relevan-
us, pois encorajariam você a fazer uma parceria efetiva com outras
igrejas pela causa do Evangelho. Leve a sério os princípios de Burroughs,
os ensine e os discuta com a liderança de sua igreja ou organização.
Uso n° 2: Busque novas parcerias com organizações paraeclesidsticas.
I hirante as últimas décadas, os evangélicos vêm debatendo qual a
luiurcza das organizações paraeclesidsticas. Elas realmente possuem
b.ise bíblica? Elas não acabam tirando dinheiro e pessoal de nossa

83
LIÇÕES DE MESTRE

igreja local? Alguns estão dispostos a aceitar as organizações paraecle-


siásticas de maneira pragmática. Afinal, elas parecem fazer as coisas
acontecerem onde a igreja local muitas vezes falha.
Mesmo assim, os fundamentos teológicos para a existência das
organizações paraeclesiásticas são difíceis de encontrar. Ocorreu
um grande avanço quando Ralph Winter sugeriu, na década de
1970, que as modalidades bíblicas (estruturas de igreja local) e as
associações (estruturas paraeclesiásticas de propósito único) são
aspectos fundamentais no Livro de Atos. Mas é a teoria denomi-
nacional da Igreja que oferece a fundamentação teológica necessá-
ria nesse caso.
A unidade entre as igrejas foi auxiliada por organizações paraecle-
siásticas, que agem como defensores da "pluriformidade" (unidade
em meio à diversidade denominacional) e agentes de cooperação
entre as denominações. Onde os evangélicos estariam hoje sem o
movimento de Lausanne, a Associação Evangelística Billy Graham,
a Aliança Evangélica Mundial, os Navigators, as agências missio-
nárias, a Aliança Bíblica Universitária, a Cruzada Estudantil e
Profissional para Cristo, a YoungLife, o Focus on the Family, as edito-
ras não denominacionais, as universidades, seminários, rádios e
comunidades evangélicas interdenominacionais? O que organizações
paraeclesiásticas acrescentam à equação da unidade é uma ênfase
no "cristianismo simples," que fortalece nossa percepção dos ele-
mentos essenciais do Evangelho e não compromete, necessariamente,
as diferenças denominacionais.
Um dos desafios encontrados pelas organizações paraeclesiásticas
é aprender como fazer uma prestação de contas melhor e se envolver
mais com as igrejas locais. Além disso, a redescoberta da teoria
denominacional da Igreja pode ser muito útil. 18
Uso n° 3: Restaure os fundamentos teológicos da unidade cooperati-
va. A teoria denominacional da Igreja nos leva de volta à primeira
grande lição deste livro; a teologia da cruz. Se o denominacionalismo
deve ser um motivador para a unidade e não para a desunião, preci-
samos de renovação teológica seguindo as linhas traçadas por Lutero.
UM \ LIÇÃO DE UNIDADE: JEREMIAH BURROUGI LS F. A TEORIA DENOMINACIONAI. DA IGREJA

Ao valorizarmos não somente a cruz, bem como a nova maneira de


olhar para ela e aquilatá-la, concorremos para a colocação de nossas
diferenças na perpectiva exata, e visualizamos maneiras de coopera-
ção para levar adiante a causa da cruz.
Lembre-se de que, junto com o sectarismo, o outro grande agente
ila desunião é o sincretismo — comprometendo o Evangelho ao
misturá-lo com ideologias humanas. Apenas uma teologia da cruz.
que estenda as implicações da morte salvífica de Cristo em todas as
direções pode servir como defesa adequada contra o comprometi-
mento teológico.
Uso n" 4: Faça um "teste de unidade". O que a sua igreja fez durante
o último ano para aumentar a integração com outras igrejas locais em
lavor do Reino? Que organizações paraeclesiásticas têm sido veículos
importantes para o programa de missões, o programa evangelístico
ou de educação e treinamento em sua igreja? Em que tipos de comu-
nhão local ou regional a igreja de sua comunidade (ou organização)
está envolvida? Os membros de sua igreja conhecem a diferença entre
a sua denominação e as outras? Passe algum tempo discutindo essas
questões e avalie a posição em que sua igreja se encontra em termos
de visão pela unidade.
Eu iniciei este capítulo lamentando a fragmentação do corpo
ile Cristo. Mas em vez de culpar o denominacionalismo por essa
situação triste, sugeri que o sectarismo e o sincretismo fossem os
dois verdadeiros motivos da desunião que vemos hoje em dia. Pros-
segui tentando convencê-lo de que o denominacionalismo, como
loi originalmente concebido, pode ser um fator poderoso para a
unidade exatamente porque resiste ao sectarismo e ao sincretismo.
Se fui bem-sucedido em minha tentativa, somente você, leitor,
poderá dizer. No entanto, gostaria que você lançasse um novo
olhar para a lição transmitida por Burroughs sobre a unidade da
lj',ieja e pensasse em sua relevância. Estou convencido de que, se
pudermos seguir essa grande lição e explorar as suas implica-
uu's, "Cristo não nos culpará no Grande Dia de termos retardado
.1 sua causa".

85
LIÇÕES DE MESTRE

QUESTÕES PARA DEBATE

1. Você concorda ou discorda com a declaração: "O sectarismo


e o sincretismo são os dois verdadeiros inimigos da unidade
da igreja"?

2. Revise os pontos da teoria denominacional da Igreja de-


fendida por Burroughs. Como esse modelo ajudaria uma
igreja a vencer o sectarismo e o sincretismo? Quais são
alguns dos outros benefícios de seguirmos o modelo de
Burroughs?

3. Escolha uma das aplicações e sugira passos práticos que pos-


sam ser dados para implementar isso em sua igreja. Quanto
tempo seria necessário para isso acontecer? Que tipo de ins-
truções precisariam ser dadas antes de sua aplicação?

LEITURAS COMPLEMENTARES

O melhor debate sobre a teoria denominacional da Igreja e o


papel de Burroughs em sua formação pode ser encontrado em
American Protestantism, de Winthrop Hudson (University of
Chicago Press). Para conhecer um pouco da piedade de
Burroughs, nada melhor do que ler Aprendendo a Estar Con-
tente (Publicações Evangélicas Selecionadas).

86
CAPÍTULO 4

UMA LIÇÃO DE SEGURANÇA:


O MODELO DE CONVERSÃO E
SEGURANÇA DE WILLIAM PERKINS

Oe alguma vez me pedissem para dar um título aos nossos dias, minha
escolha provavelmente seria "a era da auto-estima". Para a cultura norte-
americana contemporânea em particular, considerar alguém "valoroso"
e ser valorizado pelos outros não são apenas "benefícios extras", mas
aspectos essenciais para uma vida saudável. O conceito de auto-es-
tima ou auto-aceitação deu nova forma a muitas áreas, como a criação
de filhos, política, educação, aconselhamento e até mesmo a religião
atual. Embora algumas vezes me canse a ênfase exagerada na auto-
estima (como "não critique o Júnior por ter escrito nos seus livros,
você acabará destruindo a auto-estima dele"), em meus momentos
mais objetivos percebo que prejuízo a falta de uma auto-estima sau-
dável pode infligir em nossas casas, organizações e igrejas.

Nominais e neuróticos

I )c uma maneira intrigante, a busca pela auto-estima — quando se


(uma maléfica— pode produzir dois tipos de pessoas problemáticas.
() primeiro tipo é o cristão nominal que sofre de auto-estima exagera-
il.i. O cristão nominal muitas vezes está cheio de auto-satisfação e
,mutjustificação. O cristão nominal tem certeza de que ele (ou ela)

87
LIÇÕES DE MESTRE

"é tão bom quanto os outros" e, portanto, acaba sendo resistente à


mudança e ao verdadeiro cristianismo. Isso é presunção espiritual,
uma falsa confiança na saúde espiritual e na segurança dessa pessoa.
O segundo tipo é o cristão neurótico ou nervoso, que sofre de
baixíssima auto-estima. Apesar das promessas encontradas nos Evan-
gelhos, os cristãos neuróticos se sentem fracassados e se depreciam.
Eles não têm segurança de sua salvação. Questionam a profundidade
do amor de Deus por eles. Criticam os outros e a si mesmos.
Igrejas, famílias e organizações que estão repletas de cristãos
nominais e cristãos neuróticos sofrem de uma mistura desagradável
de fria indiferença, por parte de alguns e insegurança fervorosa, por
parte de outros. Liderar uma congregação com esses tipos extrema-
dos pode ser uma experiência angustiante. Como podemos reacender
as brasas existentes sob a falsa auto-estima e o cristianismo nominal
e, ao mesmo tempo, baixar a febre do cristão nervoso? Esse problema
requer uma análise um pouco maior.
O verdadeiro fundamento da auto-estima saudável é, conforme
escreveu Calvino, "uma firme e certeira persuasão da benevolência de
Deus em relação a nós". Essa auto-estima centrada em Deus e funda-
mentada na graça pode fazer, com segurança, a pergunta retórica de
Romanos 8:31: "Se Deus é por nós, quem será contra nós"? Para
aceitarmos a nós mesmos, é preciso internalizar que Deus nos aceita
de maneira graciosa por causa de Cristo. Nossa falha em experimentar
essa segurança interna contribui para o fenômeno do cristianismo
nominal (que baseia sua auto-estima em uma opinião exagerada a
respeito de si mesmo) e o dos cristãos nervosos e descontentes (que
baseiam sua auto-estima na opinião negativa e distorcida que têm
sobre si mesmos).
Mas nossa capacidade de simplesmente repetir a doutrina da
justificação pela fé pode gerar o evangelicalismo nominal. Para as
gerações que se seguiram a Lutero, a percepção profunda do Evan-
gelho, sintetizada pela frase "justificação pela fé", passou a ser um
simples credo, sem poder para transformar vidas. As multidões que
freqüentavam a Igreja estatal a repetiam sem entender realmente o

88
UMA LIÇÃO DE SEGURANÇA: O MODELO DE CONVERSÃO E SEGURANÇA DE W I I I IAM PERKINS

seu significado. O nome desse fenômeno é "ortodoxia morta". Dietrich


Bonhoeffer denominou essa descrição simplificada do Evangelho de
"graça barata". A teologia e as estratégias pastorais em mui.tos países
protestantes europeus, entre o tempo de Lutero e o de Bonhoeffer,
foram incapazes de vencer essa doença espiritual.
Os puritanos ingleses confrontaram esses problemas de nomi-
nalismo e nervosismo nos bancos das igrejas e ofereceram alguns
remédios pastorais criativos. Os pastores puritanos acreditavam que
a maneira de liberar o poder do Evangelho da justificação pela fé era
uni-lo com o conceito evangélico de conversão. A "teologia das alian-
ças" puritana — que explicava tanto o que Deus faz e o que nós
devemos fazer para obter a salvação — procurava mostrar essa fusão.
A cura mágica para o cristão apático e nominal era a "conversão
verdadeira". A cura mágica para o cristão ansioso e neurótico é a "se-
gurança total". Foi a percepção particular do puritano William Perkins
que uniu essas duas estratégias pastorais. Perkins foi o pioneiro do
conceito de segurança total por meio da conversão verdadeira. Foi a
partir dele que a idéia de "nascer de novo", que significava uma expe-
riência de conversão profunda, porém visível, tornou-se um aspecto
central da identidade evangélica.
A lição de Perkins sobre a segurança de salvação, por meio da
conversão verdadeira, é uma das melhores maneiras de produzir a
verdadeira auto-estima cristã e vencer os extremos da apatia e da
ansiedade dentro da igreja. Gostaria de mostrar-lhe a idéia de Perkins
e por que acredito que essa é uma das maiores lições da história da
Igreja.

A vida de Perkins

William Perkins, filho deThomas e Hannah Perkins, nasceu em 1558,


no vilarejo de Marston Jabbet, em Bulkington Parish, Warwickshire,
Inglaterra.1 Sabemos pouco sobre sua juventude até ele deixar sua
casa para começar seus estudos na Faculdade de Cristo, em Cambridge,
em junho de 1577.

89
LIÇÕES DF. MESTRE

Perkins se matriculou na faculdade como "pensionista", o que


sugere ser ele pertencente a uma família de classe média bem
estabelecida. 2 A vida na universidade desafiava a criação religiosa
de Perkins. Ele parecia ter perdido toda e qualquer fé crista que um
dia possuirá. Nesse vácuo espiritual surgiu um substituto novo,
mais fascinante: o oculto. Anos mais tarde, Perkins descreveria assim
essa fascinação pela mágica e pelo oculto:

Durante muito tempo, estudei essa arte e nunca me satisfazia


até descobrir todos os seus segredos. Mas depois, aprouve a
Deus colocar diante de mim a blasfêmia que isso era, ou, devo
dizer francamente, a idolatria, embora por vezes ela pudesse
estar coberta por uma tinta dourada.3

Mas em 1584, Perkins já havia se convertido totalmente ao cristianis-


mo reformado. 4 Em algum momento durante o seu bacharelado,
em 1581, e seu mestrado, em 1584, William Perkins passou pela
experiência do novo nascimento. Naquele mesmo ano, aos 26 anos,
Perkins passou a ser um dos professores na Faculdade de Cristo. Ele
demonstrou ter um talento especial no desempenho dessa função.
Como professor, cresceu em conhecimento e fama até que "poucos
estudantes de teologia saíssem de Cambridge sem terem se beneficia-
do de alguma maneira de sua instrução". 5 Uma das coisas que atraía
seus alunos era o seu amor de simetria e precisão lógica. Segundo
Robert Hill, seu amigo e tradutor de sua obra teológica mais im-
portante, A Golden Chain* "ele tinha um excelente dom para de-
finir de maneira correta, dividir com exatidão, argumentar com
sutileza, responder diretamente, falar com vigor e escrever de ma-
neira judicial". 6
Além de suas tarefas rotineiras de professor, Perkins, pelo restante
de sua vida, foi palestrante na igreja Great St. Andrews, localizada
bem em frente à Faculdade de Cristo. Seu ministério no púlpito
pulsava com a mesma força que animava os seus ensinamentos.
* Uma Corrente Dourada.

90
UMA LIÇÃO DE SEGURANÇA: O MODELO DE CONVERSÃO E SEGURANÇA DE WIEEIAM PERKINS

Thomas Fuller nos diz que "do púlpito, ele pronunciava a palavra
'maldito' com tamanha ênfase, que ela ficava ecoando nos ouvidos de
seu auditório por um bom tempo". 7
Em 1596, Perkins se casou com uma viúva chamada Timothye e
imediatamente se tornou pai de sete filhos. Essa deve ter sido uma
experiência chocante para quem fora solteiro durante tanto tempo.
Perkins escreveu um livro sobre a família cristã, Christian Economy*
que sem dúvida o ajudou a lidar com essa súbita mudança em sua
vida pacata. Como um homem casado, Perkins foi obrigado a abando-
nar seu posto na faculdade. Contudo, permaneceu ativo como pregador
em Great St. Andrews. Ele passou os seus últimos anos escrevendo e
pregando.
Perkins morreu em 1602, aos 44 anos, em pleno vigor de sua
torça e no auge da fama. Em frente à sua sepultura, o seu bom amigo
[ohn Montague, futuro bispo de Winchester, exortou os ouvintes
que estavam ao lado da viúva de Perkins e seus sete filhos, citando
Josué 1:2: "Moisés, meu servo, é morto". Mesmo assim, a morte de
Perkins não pôs fim à sua influência.
Durante muito tempo, Perkins desejou fazer parte do movimento
puritano dentro da Igreja da Inglaterra que defendia a resistência
pacífica. Um pouco de história pode ser interessante. Originalmente,
"puritanismo" era um termo jocoso atribuído aos membros da Igre-
ja da Inglaterra que se opunham ao Acordo Elisabetano, de 1559
— que tratava de questões religiosas —, considerado muito "católi-
co". Os puritanos pretendiam terminar a reforma na Inglaterra,
purificando a Igreja dos elementos que acreditavam ser contrários
aos padrões de adoração, teologia, piedade, forma de governo, cui-
dado pastoral e ética.
O historiador Leonard Trinterud destacou os quatro grupos princi-
pais dentro do puritanismo elisabetano. O grupo original (anti-
vestimenta) surgiu na década de 1560, como uma reação às vestes
e lericais que julgavam serem parecidas demais às que os sacerdotes
i.iiólicos romanos usavam. A principal preocupação desse ramo
' / .'•utiuihl Cristã.

91
LIÇÕES DE MESTRE

original do puritanismo era a pureza da adoração. O primeiro arce-


bispo da Cantuária nomeado pela rainha Elizabeth, Matthew Parker,
se opôs à facção "antivestimenta", reforçando a uniformidade. Mui-
tos sacerdotes foram expulsos. O termo puritano foi usado pela
primeira vez para se referir ao grupo dissidente em 1563.
Nas décadas de 1570 e 1580, surgiu um segundo tipo de purita-
nismo: o presbiterianismo acrescentou a preocupação com a forma
de governo à lista das questões puritanas. As preleções de Thomas
Cartwright (1535?—1603) sobre o Livro de Atos na Universidade de
Cambridge, em 1570, algumas vezes são consideradas o início do
presbiterianismo inglês. Mas seu apoio declarado ao sacerdócio de
todos os cristãos, a abolição do episcopalismo e sua substituição pelo
presbiterianismo o forçaram ao exílio. John Field e Thomas Wilcox
continuaram o ataque aos bispos em um documento de 1572,
Admonition to Parliament. * Um "classis" (grupo de presbíteros) sub-
terrâneo foi criado. Os textos de "Martin Marprelate" (pseudônimo
de Job Throckmorton) popularizaram a campanha antiepiscopal. Os
puritanos leigos e os membros do Parlamento, como Peter Wentworth,
procuravam estabelecer o presbiterianismo pela legislação. O
presbiterianismo puritano também buscou o apoio de membros pode-
rosos da corte de Elizabeth, como Robert Dudley e Earl de Leicester.
John Whitgift (1530-1604) se tornou o arcebispo da Cantuária em
1583 (sucedendo Grindal, que tolerava o puritanismo), e em 1593
já havia esmagado o movimento.
Um terceiro grupo puritano surgiu na década de 1580, com
Robert Browne, o líder dos puritanos separatistas. Sua obra Treatise
of Reformation Without Tarrying for Any* explicitava a sua posição
claramente. As idéias de Browne nem sempre foram bem recebidas
pelas autoridades. Henry Barrow e John Greenwood foram enforcados
por seguirem os princípios de Browne. Os separatistas encontra-
ram um lugar mais seguro para suas idéias na Holanda. Muitos dos
primeiros peregrinos que foram para os Estados Unidos, então co-
lônia britânica, a bordo do Mayflower e desembarcaram em Plymouth,
* AAmoestação ao Parlamento.
"* Tratado sobre a Reforma sem Esperar por Ninguém.

92
I IMÃ LIÇÃO DE SEGURANÇA: O M O D E L O DE C O N V E R S Ã O E SEGURANÇA DE W I I LIAM PERKINS

Massachusetts, afirmavam que suas raízes espirituais estavam nesse


u-rceiro grupo.
O quarto grupo puritano era denominado "resistência passiva".
()s grandes nomes desse ramo do movimento incluíam Laurence
( liaderton, Richard Greenham e William Perkins. Evitando muito
desse debate sobre as formas de governo da igreja e as vestimentas,
IVrkins e seus discípulos estabeleceram uma nova estratégia para o
puritanismo no final das décadas de 1580 e 1590. Eles procuraram
ganhar as multidões para a fé e o estilo de vida dos evangélicos
voltando para a estratégia do Novo Testamento: pregação, treinamento
de líderes e persuasão. Perkins e seus colegas estavam convencidos de
que tal estratégia provocaria uma transformação mais profunda na
I nglaterra do que poderia ser alcançado aplicando-se apenas a pressão
governamental ou fazendo os jogos da política eclesiástica. Muitos livros
populares sobre a vida santa e a salvação foram publicados, aumentan-
do a influência desse quarto grupo do movimento puritano. 8
Em retrospecto, Perkins merece crédito por muito do sucesso des-
se programa de reforma por meio do ensino e da persuasão. Perkins
escreveu vários livros para promover uma reforma popular que foram
sucesso de vendas. Esses escritos podem ser divididos em três catego-
rias, cada uma representando uma área estratégica em que Perkins via
necessidade de uma reforma. Primeiro e mais importante, Perkins
trabalhou por uma renovação teológica ao ensinar o calvinismo sim-
plificado em livros como A Golden Chain; The Reformed Catholic.**
A segunda área da reforma foram os sacerdotes. Perkins se empenhou
para criar uma renovação ministerial, treinando uma nova geração na
arte da pregação expositiva (ele escreveu The Art of Prophesying* o
primeiro livro sobre pregação na língua inglesa) e aconselhamento
pastoral. Finalmente, Perkins defendeu a necessidade de uma renova-
ção moral por meio de manuais de prática da vida cristã. Uma das
mais famosas de suas numerosas obras nessa área foi Whole Treatise of
Cases of Conscience.***

' l '/na Corrente Dourada; O Católico Reformado.


'' I Ai te de Profetizar.
''' Iratado Completo de Casos de Consciência.

93
LIÇÕES DE MESTRE

Neste capítulo, nos concentraremos na terceira área da reforma;


a renovação moral. Perkins escreveu muito sobre a prática da vida
cristã, e, em seu trabalho técnico, ele abordou repetidas vezes a
questão da segurança da salvação e da verdadeira conversão. O que
ele descobriu sobre esses tópicos tão importantes?
As descobertas de Perkins sobre a conversão e a segurança po-
dem ser resumidas em seis pontos. Embora seja maravilhoso saber
que Cristo morreu pelos pecadores, a necessidade ardente do meu
coração é descobrir como posso ter certeza de que ele morreu por
mim. Essa questão se torna especialmente traiçoeira quando dize-
mos que somos salvos pela graça. Como sei que minha conversão é
genuína (foi realmente a graça de Deus, ou ocorreu pelo meu pró-
prio esforço?) ou que sou parte dos eleitos? As respostas de Perkins a
essas perguntas fundamentais podem ser resumidas em seis frases.
Quando reunidas, essas declarações formam a descrição da "teologia
das alianças" puritana. E o mais importante: são uma receita para
termos uma fé confiante e a consciência em paz.

1. A segurança somente é possível com a conversão verdadeira

Quando uma pessoa procurava Perkins para pedir conselhos sobre a


salvação de sua alma, Perkins tinha uma resposta pronta. Ele per-
cebeu que Lutero e Calvino haviam estabelecido as bases para a
verdadeira compreensão da salvação, mas deixaram alguma coisa de
fora. Lutero e Calvino ressaltaram o que Deus faz na salvação. A
justificação pela fé em Cristo era a grande resposta. Mas eles não
responderam realmente a questão do que o cristão deveria fazer para
receber essa graça e experimentar essa fé.
Para que o poder transformador do Evangelho pudesse se espa-
lhar, a verdade evangélica da justificação pela fé precisava ser aliada
ao processo de conversão. A "teologia das alianças" puritana, confor-
me descrita por Perkins e outros, buscava fazer essa fusão. Perkins
queria evitar o pelagianismo (crença na salvação pelos esforços huma-
nos) que fazia parte da teologia das alianças no período anterior à

94
UMA LIÇÃO DF SEGURANÇA: O MODELO DE CONVERSÃO F. SEGURANÇA DE W I I I IAM PERKINS

Reforma (lembra de Gabriel Biel, citado no primeiro capítulo?). Por


isso, ele ressaltava o lado divino da aliança pela graça. Perkins também
queria evitar a "graça barata" da ortodoxia morta, por isso ressaltou, ao
mesmo tempo, o lado humano da conversão e suas exigências.
Os dois lados são reais, dizia Perkins. O lado divino é a causa
suprema da salvação, porém o lado humano também é real. Nossa
parte é apenas responder ao que Deus está fazendo de maneira podero-
sa dentro de nós. Mesmo assim, é uma resposta necessária. Deus é
causa primária, mas que também opera usando as causas secundárias.
Essa combinação dos fatores humano e divino na salvação pode
ser chamada de "cooperação". Salvação é uma ação cooperada que
teve início com a graça. Assim como um iceberg, a salvação possui
uma imensa "base" de graça sob a superfície, que produz as formas
visíveis e brilhantes da conversão acima da superfície. A figura 4 ilus-
tra esse princípio de cooperação.

O que se espera ver e o que


fazer quando Deus está nos
salvando

O que Deus
faz sob a
superfície
durante a
salvação

I Kjtira 4. O "iceberg" da salvação; cooperação humana e divina

95
LIÇÕES DE MESTRE

A Golden Chain, texto de Perkins, procurava apresentar os dois


lados da aliança de graça para as pessoas comuns. O lado divino da
aliança é o decreto de Deus para salvar, e envolve muitas expressões
do amor de Deus, como eleição, chamado, regeneração, justificação,
adoção, santificação, preservação e glorificação. O lado humano da
aliança envolve os quatro passos da conversão seguidos de uma vida
de batalha espiritual constante contra o mundo, a carne e o diabo.
Os quatro estágios da conversão, segundo Perkins, são os seguintes:
humilhação, fé, arrependimento e nova obediência.9
Estagio n° 1: Humilhação. O Espírito Santo normalmente prepara
os eleitos para a salvação, fazendo com que eles se humilhem. As
pessoas se entristecem com o próprio pecado, isso amacia o coração,
fazendo com que aprendam e estejam receptivas ao Evangelho. A
humilhação normalmente ocorre com uma "lei de obras"; as exigên-
cias santas de Deus e as profundezas do pecado humano são mostra-
das ao pecador para destruir todos os vestígios de orgulho e
autojustificação. O primeiro resultado visível dessa humilhação é
negativo. O indivíduo precisa ver a salvação como algo que ocorre em
resultado de algum esforço de sua parte. Até que seja convencido e
perceba que o pecado faz com que ele seja moral e espiritualmente
incapaz de salvar a si mesmo.
Estágio n° 2: Fé. Perkins define fé como um "dom sobrenatural de
Deus sobre a mente, compreendendo a promessa salvífica com todas
as promessas que dependem dela". Essa fé tem vários degraus, mas a
pessoa pode ser salva mesmo no menor degrau de fé — um desejo
simples que Cristo seja o seu Salvador. Até mesmo a fé mais fraca
possui dentro de si as sementes da segurança — uma convicção de
que as promessas salvíficas de Cristo se aplicam a ela de maneira
pessoal.
Estágio n° 3: Arrependimento. A visão de Perkins sobre o verda-
deiro arrependimento difere muito da visão católica tradicional. O
sacramento católico romano da penitência consiste de passos rituais
de confissão, absolvição e satisfação. Todos eles são mediados por
um sacerdote humano. Ele possui duas partes: (1) uma tristeza

%
UMA LIÇÃO DE SEGURANÇA: O MODELO DE CONVERSÃO t SEGURANÇA DE WIEI IAM PEUKINS

santa pelo pecado, que "ofendemos um Deus tão misericordioso e


um Pai amável"; e (2) uma mudança profunda "da mente e de todo
o homem em sentimentos, vida e conversão". Em seu grau mais
profundo, o verdadeiro arrependimento era evidenciado pela deci-
são de um coração regenerado de não pecar contra Deus em nada,
mas agradá-lo em tudo o que fosse possível.
Veja que Perkins não pede que o novo convertido tenha o com-
portamento de arrependimento total. Ele insiste na intenção de ter
um arrependimento total. No arrependimento inicial prometemos
abandonar o pecado e obedecer a Deus em todas as coisas. A vida
contínua de arrependimento que se segue procura transformar essa
intenção em realidade. O arrependimento, portanto, é tanto uma
experiência inicial (a promessa) quanto um processo que dura a vida
toda (a transformação real do comportamento).
Estágio n" 4: Nova obediência. O último passo da conversão é a
conformidade com a Lei de Deus (amar a Deus e aos outros de
maneira radical). A nova obediência envolve cooperar com o Espíri-
to Santo na mortificação de velhos hábitos e atitudes pecaminosas e
cultivar (vivificação) novos hábitos cristãos e atitudes de santidade.
O convertido embarca nessa vida de nova obediência armado com
os mandamentos de Cristo de Lucas 9:23: (1) negação do eu (exal-
tar a graça de Deus, e não as habilidades naturais, e desejar o cres-
cimento do Reino de Cristo [esse governo sobre a vida das pessoas
pela Lei e pelo Evangelho] mais do que a riqueza deste mundo ou
vantagens pessoais); (2) tomar a cruz — paciente e alegremente
carregar os fardos e aflições; e (3) seguir a Cristo, praticando as
virtudes da mansidão, paciência, amor e obediência, por meio da
mortificação e da vivificação. Perkins liga, dessa maneira, o modelo
de Calvino da verdadeira espiritualidade com o último estágio da
conversão.
O verdadeiro convertido deve ser um discípulo que carrega a sua
cruz. Ensinar, aconselhar e pregar esse modelo de conversão pode
ajudar muito a reduzir o problema do cristianismo nominal em muitas
igrejas.

97
LIÇÕES DE MESTRE

2. A segurança é uma ação do Espírito Santo

O que podemos dizer do cristão nervoso? Talvez ele tenha passado


pelo processo de conversão e seguido todos esses passos. Como ele
poderá ter certeza de que sua fé é verdadeira e seus pecados foram
realmente perdoados?
Perkins gastou muito tempo e energia debatendo consigo essa
questão. Sua conclusão fundamental foi que a verdadeira conversão
convence a consciência, e a consciência persuadida dà o veredicto de
segurança.
Gostaria de explicar isso melhor. Para Perkins, a consciência hu-
mana é aquela faculdade interior que nos acusa ou nos inocenta com
base na Lei de Deus. A consciência está sempre ativa, dando-nos
centenas de veredictos todos os dias. Ela nos conforta e dá segurança
quando agimos bem diante de Deus e de sua Lei.
O método fundamental que a consciência usa para nos acusar ou
nos inocentar é um silogismo prático. O silogismo prático é um
método de racionalismo moral que segue três passos lógicos. Primei-
ro é a identificação da regra ou lei que se aplica em meu caso. O
segundo passo é a descrição de meu comportamento em comparação
com a lei. Por exemplo, se eu menti, a consciência, em um piscar de
olhos, faz as seguintes declarações:
Todos os que mentem merecem a condenação.
Você mentiu.
Portanto, é um pecador que merece ser condenado.
Esse raciocínio moral pode parecer frio e distante, mas Perkins
levanta uma questão importante sobre a consciência e seu silogismo
prático: a maioria de nossas emoções flui dos veredictos da consciência.
Culpa e condenação produzem vergonha, tristeza, medo, desespero e
agitação.10 Os sentimentos de aceitação e aprovação, por parte de
Deus, registrados pela consciência regenerada e limpa pelo Evange-
lho, produzem alegria (que Perkins chamou de "entusiasmo"), paz,
paciência na aflição e outros frutos do Espírito.

98
UMA LIÇÃO DH SK;URANÇA: O MODELO DE CONVERSÃO E SEGURANÇA DE WII I IAM PERKINS

Até aqui, tudo bem. A pergunta-chave para cristãos nervosos, con-


tudo, é a seguinte: como adquirimos essa certeza do perdão e amor
de Deus para que nossa consciência dê um veredicto positivo e seguro?
A resposta é que a consciência passa a ser controlada, primeiramente
pelos fatos do Evangelho, e segundo, pelos fatos envolvidos na con-
versão daquela pessoa. Perkins explica:

Certeza inabalável de perdão dos pecados e da vida eterna são


propriedades de toda a consciência renovada [...] O principal
agente e iniciador é o Espírito Santo, que ilumina a mente e a
consciência com luz espiritual e divina. O instrumento dessa
ação é o ministério do Evangelho, quando a Palavra da vida é
aplicada em nome de Deus a cada ouvinte. E isso certamente
é, pouco a pouco, concebido em uma forma de racionalização
de silogismo prático formado na mente do Espírito Santo des-
sa maneira; lodo aquele que crê é filho de Deus. Eu creio.
Portanto, sou filho de Deus. 1!

Uma vez que em minha consciência exista a Palavra do Evangelho


como premissa maior e minha verdadeira conversão como premissa
menor, a única conclusão possível me dará alegria e satisfação.

3. A segurança deve estar enraizada na soberania de D e u s

Se a consciência ainda está agindo, nem tudo está perdido. O cristão


nervoso precisa alimentar sua consciência com mais verdades do Evan-
gelho. Perkins recomenda injetar uma grande dose de graça sobera-
na. Perkins, como um calvinista convicto, acreditava que a salvação
começa quando Deus nos escolhe, e não quando nós escolhemos a
Deus.
Alguém poderá argumentar que tal visão gera uma incerteza espi-
ritual no coração do cristão, porque os inescrutáveis conselhos de
I )eus não podem ser conhecidos. Mas Perkins argumentava exata-
mente o oposto. A menos que a salvação ocorra por um decreto de

99
LIÇÕES DF. MESTRE

Deus, jamais poderemos ter certeza disso na consciência humana.


Para apoiar essa idéia, Perkins cita Romanos 8:30 com sua "corrente
de muitos elos, onde todo mundo está tão ligado ao outro, onde o
que sobe mais alto precisa levar todos os outros consigo". Ser justifi-
cado requer, necessariamente, ser um eleito, que será glorificado, pois
essa corrente de salvação não pode ser rompida. Se eu possuo uma
experiência genuína de conversão, posso ter certeza de que esse elo
está ligado a todos os outros elos e serei preservado e glorificado. A
confiança de que "nada poderá me separar do amor de Deus" produz
uma forte sensação de segurança capaz de aquietar até a consciência
mais teimosa.

4. A segurança está centrada em Cristo pela fé

O cristão nervoso se opõe. Mas tudo não depende de minha fé? O


que acontece se eu fizer algo muito errado? Se a minha fé é fraca, meu
foco nessas verdades será fraco. Assim, minha segurança irá sofrer, e
as ansiedades de uma consciência atribulada voltarão. O que fazer
então?
Perkins oferece uma solução para esse problema. Podemos ter cer-
teza de que pertencemos a Deus mesmo que a nossa fé seja fraca,
porque a fé verdadeira, mesmo fraca, é como:

[...] a mão de uma criança ou de um homem aleijado, embora


frágil, é capaz de se esticar para receber a esmola de um prínci-
pe; por isso mesmo, uma fé fraca é capaz de apreender a receber
Cristo com todos os seus benefícios".12

Se deseja desfrutar dos confortos de uma consciência totalmente se-


gura, a pessoa precisa ser cuidadosa "para não se basear na fé, mas no
objeto dessa fé, que é Cristo". 13 A confiança total em Cristo é o foco
da fé que resulta em segurança. Até mesmo uma fé fraca pode se unir
a Jesus.

100
UMA LIÇÃO DE SEGURANÇA: O MODELO DE CONVERSÃO F. SEGURANÇA DE WIEEIAM PEKKINS

5. A segurança é fortalecida pela santificação

Do mesmo modo que o pecado pode perturbar a nossa consciência e


interromper o fluxo da segurança, a santidade pode fortalecer e ga-
rantir o testemunho da consciência de que somos filhos de Deus.
Com argumentos amplamente fundamentados em 1 João, Perkins
insiste que amar a Deus e aos outros é um apoio secundário, porém
importante, para nossa sensação de segurança.
Perkins alerta, contudo, que um santo não deveria se perturbar
com questões sobre a quantidade de santidade necessária para ofere-
cer evidências da fé verdadeira. Para Perkins, "uma maçã é o suficiente
para manifestar a vida da árvore". 1 '

6. A segurança não elimina a depressão espiritual

Depois de tudo o que foi dito, é possível concluir que, uma vez
conquistada sua segurança, o cristão percorrerá um caminho fácil.
Não é bem assim. Perkins emite um alerta para o cristão que quali-
fica as suas declarações anteriores. Embora a segurança possa ser
certa e total, poderá ser tomada por dúvidas e depressão. Afinal,
estamos em guerra contra o reino das trevas. No meio desses ata-
ques, o inimigo de nossas almas nos tentará a duvidar de Deus e a
questionar o poder da cruz. Essa dúvida pode nos levar ao desespe-
ro quanto à nossa salvação e à graça de Deus.
Perkins tem uma palavra poderosa para as pessoas cujas consciên-
cias estão sob esse tipo de ataque: o ataque da dúvida é, em si mesmo,
um testemunho de nossa salvação. O inimigo faz o hipócrita dormir
com uma "presunção carnal" (uma falsa sensação de segurança), mas
ataca o santo com os dardos da dúvida e da depressão. "Não existe
um filho de Deus", diz Perkins, "que, com intensidade maior ou
menor, uma vez ou outra, não sinta o ferrão do pecado e as pancadas
de Satanás [...] mas essa tristeza é a notável graça de Deus", pois ela
nos impede de confiar em nós mesmos e nos força a fugir para Cristo
em busca de ajuda e segurança."

101
LIÇÕES DE MESTRE

Os ataques de dúvida são um sinal de fé genuína. A estratégia do


inimigo acaba saindo pela culatra, e seus dardos se transformam em
combustível para uma certeza maior da segurança do amor redentor
de Deus.

Colocando em prática a lição de Perkins

A lição de Perkins sobre a segurança pela conversão verdadeira é uma


das melhores maneiras de produzir verdadeira auto-estima cristã e
vencer os extremos da apatia e da ansiedade dentro da igreja. Um
remédio para um problema tão sério certamente deve ser uma das
maiores lições da história da igreja. Sabemos que ela tem muitos
aspectos. Mas como um líder pode usar a idéia de Perkins?
Uso n° 1: Como resposta para a ameaça da graça barata. Para muitas
pessoas, essa compreensão do Evangelho continua sendo difícil de acei-
tar. A idéia de que somos salvos pela fé, e não pelas obras, realmente
pode ser uma pedra no caminho. A célebre frase de Dietrich Bonhoeffer,
"graça barata", vem à nossa mente — e muito seguidamente a acusação
de graça barata é merecida. James Means escreveu sobre a "flacidez
teológica" que barateou o conceito evangélico de conversão:

A nova falha teológica oferece uma segurança de salvação rá-


pida e permanente em resposta a uma crença professada facil-
mente enquanto, ao mesmo tempo, permite que o convertido
viva indefinidamente com a satisfação dos ensinamentos de
Cristo. A flacidez teológica contemporânea separa conceitos
historicamente unificados: justificação de santificação, fé de
arrependimento, salvação de senhorio de Cristo, novo nasci-
mento de discipulado. 16

Mas a fé que é expressada pela verdadeira experiência de conversão


não é barata.
Aos que atacavam a fórmula evangélica de sola fide [salvação só
pela fé] como sendo apenas "graça barata" [...] Puritanos como Perkins

102
UMA LIÇÃO DI:SF.<;URANÇA: O M O D I . I O DKCONVHRSAOF. SK;URANI,.A I>I•: WII.I.IAM PI KKINS

respondiam com uma teologia completa de conversão e novo nas-


cimento. No processo, eles rejeitaram a resposta medieval à "graça
barata" — uma teologia semipelagiana e obras de justiça —, e no seu
lugar criaram um modelo de conversão construído sobre as bases
estabelecidas por Lutero e Calvino. 17
Uso n° 2: Como ajuda para uma pregação poderosa e equilibrada
sobre a graça. Essa "teologia da aliança" de Perkins pode dar o equilí-
brio correto entre o poder convencedor da Lei, a profundidade do
pecado humano, o poder da graça de Deus e a necessidade de res-
posta humana pela conversão. A soberania de Deus, a incapacidade
humana, a ação de se humilhar e buscar a graça soberana de Deus
compõem um modelo poderoso de cooperação que pode glorificar a
Deus e também satisfazer as necessidades das pessoas. A "teologia da
aliança" de Perkins o capacitou a seguir uma linha consistente de
cooperação, que deu grande ênfase à graça soberana de Deus em Cristo
como o motivo supremo da salvação enquanto, ao mesmo tempo,
enfatizava a necessidade de uma resposta humana.
Uso n" 3: Conforto para os que procuram segurança. Em geral, os
membros da igreja que são inseguros em seus relacionamentos com
Deus passam a criar problemas, fazem críticas exageradas e são obs-
táculos para a mudança. Por outro lado, cristãos que sentem, de
maneira profunda e satisfatória, o amor imutável de Deus por eles
em Cristo e estão bastante seguros de sua condição de filhos têm
mais facilidade para produzir os frutos do Espírito e tornarem-se
uma força positiva dentro da congregação.
O silogismo prático de Perkins declara de maneira simples como
o Espírito Santo convence a consciência de que os benefícios e as
promessas de Cristo pertencem ao indivíduo que tem fé. A chave
para alguém desfrutar de Deus e sentir a profundidade da segurança
nele é a existência de uma consciência educada e iluminada, que
continuamente emite veredictos confortadores e de aprovação à alma
por causa da cruz. Os cristãos que têm segurança são mais felizes e
produtivos. Aplicar o Evangelho à consciência de uma pessoa é uma
das chaves para se obter a segurança e a felicidade em Cristo.

103
LIÇÕES DE MESTRE

Uso n° 4: Uma maneira de gerar uma igreja composta de convertidos.


A ênfase na conversão oferece à igreja um modo de aconselhar e testar
a sinceridade da confissão de seus membros. Devemos ter cuidado
com os estereótipos, mas isso não deve diminuir nossa expectativa
de que as pessoas consigam descrever suas experiências com Cristo de
maneira bíblica e convincente.
Os pais também devem se preocupar com a salvação de seus filhos.
Explicar os passos da salvação para os filhos e guiá-los nesse processo
é uma das principais tarefas de um cristão. Também deveríamos ensinar
aos nossos filhos sobre a segurança da salvação e como eles podem ter
certeza que são cristãos de verdade. O modelo de Perkins pode nos
ajudar a fazer isso.
Uso n° 5: Como um guia de evangelização pessoal. Durante muito
anos, participei do ministério de evangelismo em minha igreja. Toda
semana visitávamos pessoas e compartilhávamos com elas as boas novas
sobre Jesus Cristo. Lembro de uma vez, quando explicamos o Evan-
gelho a uma jovem senhora que continuava um pouco confusa sobre
o que significava tudo aquilo. Para minha surpresa, o irmão que esta-
va evangelizando a jovem, pediu que ela repetisse uma oração de
entrega e imediatamente disse: "Bem-vinda à família. Agora você é
uma cristã". Nas semanas seguintes, ficou claro que aquela mulher
não havia aceitado a Cristo e, inclusive, ficou brava pelo que ela con-
siderava ser manipulação de nossa parte.
O modelo de Perkins pode nos ajudar nesse tipo de situação. Não
ignore os aspectos importantes do processo de conversão, e não dê
uma falsa segurança às pessoas fundamentado apenas em uma con-
versão nominal. Quando estiver evangelizando alguém, certifique-se
de que explicou bem o que é a conversão total.
Uso n" 6: Um modo de renovar a adoração. A segurança da salva-
ção pode gerar satisfação e alegria em Deus e em sua redenção,
enchendo nossa adoração de sentimentos profundos. Esse tipo de
alegria elimina o formalismo e o farisaísmo que muitas vezes toma
conta da adoração. A adoração do cristão verdadeiramente conver-
tido que canta, ora e sorve a Palavra de Deus com o coração alegre e

104
UMA LIÇÃO DE SECURANÇA: O MODFI.O DE CONVFRSÀO E SEGURANÇA DE WILLIAM PERKINS

seguro é o melhor tipo de adoração. Ela agrada muito a Deus e


encoraja muito o povo de Deus.
Em nossos tempos, em que a auto-estima não é bem direcionada,
precisamos redescobrir que o verdadeiro fundamento de uma auto-
estima saudável é, conforme escreveu Calvino: "Uma persuasão firme
e certeira da benevolência de Deus em relação a nós". Para as igrejas
que estão lutando contra os problemas do cristianismo nominal, or-
todoxia morta e cristãos nervosos, a percepção de Perkins de que a
segurança de salvação tem como base uma conversão genuína é, sem
dúvida, uma grande lição.

QUESTÕES PARA DEBATE

1. Atos 9:1-19 registra a conversão de Paulo. Em 1 Timóteo


1:16, Paulo fala que sua conversão foi um exemplo de como
Deus salva. Leia novamente a passagem de Atos e veja se
consegue identificar, na conversão de Paulo, algum (ou to-
dos) dos quatro aspectos da conversão levantados por Perkins.

2. A auto-estima é uma questão importante. Perkins acredi-


tava que a auto-estima dos cristãos deveria ter como base
nossa segurança do amor de Deus por nós em Cristo. Você
concorda ou discorda? A idéia de Perkins precisa ser modi-
ficada de alguma maneira?

3. Além das aplicações sugeridas aqui, de que outras manei-


ras um sentimento de segurança total pode ser criado em
sua congregação?

105
LIÇÕES DE MESTRE

LEITURAS COMPLEMENTAR.ES

N ã o existe n e n h u m a biografia completa sobre Perkins


publicada, mas há um artigo sobre ele no Dictionary of
National Biography, vol. 15 (Oxford University Press). Ou-
tros artigos sobre ele podem ser encontrados em The Work of
William Perkins (Editora Sutton Courtenay), de Ian Breward.
Eu tratei da questão abordada neste capítulo em um artigo
chamado "Drama in the Meeting House: The Concept of
Conversion in the Theology of William Perkins", publicado
no Westminster Theological Journal, n ° 45 (1983).

106
CAPÍTULO 5

UMA LIÇÃO DE ADORAÇÃO:


As INSTRUÇÕES DE RICHARD BAXTER
PARA TERMOS PRAZER EM DEUS

1 V enhum mito expôs o que está no coração humano de nossa era de


modo tão magistral como história contada por Christopher Marlowe em
Doutor Fausto. O protagonista dessa peça de teatro do século xvi,
escrita por um contemporâneo de Shakespeare, é um alemão, doutor
em teologia, que flerta com o ocultismo. O coração de Fausto é gra-
dualmente consumido pelo amor que o aprendizado terreno, a fama
e a fortuna podem trazer.
O diabo aparece a Fausto na pessoa de Mefistófeles e lhe faz uma
oferta memorável: "Venda a sua alma para mim por toda a eternida-
de e eu lhe concederei todos os seus desejos aqui na Terra". Fausto
luta contra as implicações eternas dessa oferta. Mas seu amor pelo
mundo é mais forte que seu amor por Deus, por isso Fausto aceita a
oferta satânica e negocia a sua alma. Para a alegria de Fausto, o diabo
cumpre o que prometeu. O coração ganancioso de Fausto fica cheio
de conhecimento, conquista riquezas, fama e muitas mulheres.
Mas o seu tempo na Terra acaba chegando ao fim. O diabo apa-
rece para cobrar a sua dívida. Na hora de sua morte, Fausto percebe
que caiu em uma armadilha. Ele reconhece que fora um tolo em
trocar os prazeres eternos pelos prazeres volúveis desta vida. Mas
é tarde demais. Não há saída (ao menos na versão de Marlowe).

107
LIÇÕES DE MESTRE

Incapaz de comprar a sua alma de volta, Fausto é tragado pelo infer-


no e passa o sofrer o tormento eterno.

Uma troca questionável

O mito de Fausto é a nossa história. E uma descrição do mundo


moderno e da humanidade de hoje em dia, esteja ela em Nova Iorque
ou na África. Abrir mãos dos prazeres de Deus em troca dos prazeres
deste mundo é uma preocupação moderna.
Os cristãos não estão imunes a esse aspecto do espírito secular.
Enquanto o secularismo muitas vezes usa a máscara do ceticismo
e do ateísmo, também pode usar a máscara da religiosidade. Deus
não é buscado como um fim em si mesmo, mas como um meio de
alcançar os fins seculares, o fim faustiniano; riquezas, prazeres ter-
renos e fama. As versões do Evangelho que prometem saúde e
riqueza vêm imediatamente à nossa memória. Porém, algumas ne-
gociações mais sutis com o demônio podem ser feitas nos bancos
da igreja. Podemos buscar a Deus para dar continuidade a um
casamento, consertar a vida de nossos filhos ou encontrar o em-
prego certo.
No entanto, o problema não está limitado aos cristãos sentados
nos bancos da igreja. Os vocacionados para o ministério também
podem sucumbir ao "espírito de Fausto". Somos bem capazes de acor-
dar uma manha e descobrir que estávamos ministrando com base em
razões incorretas e procurando todos os tesouros errados. Os líderes
também podem ser arrastados pela maré que levou Fausto.
A área onde essa percepção secular realmente toca a nossa vida é a
adoração. O secularismo pode criar uma enorme distorção nos sons
emitidos aos domingos pela manhã. Afinal, mesmo com toda a reno-
vação na adoração que foi alcançada em anos recentes, não há liturgia
que compense o espírito de Fausto existente em nosso coração. Um
amor demasiado pelo mundo ataca a raiz da adoração, seja ela feita
em particular ou em público. Sem pensar, cantamos sobre "doces
momentos de oração" e louvamos a Deus, "fonte de todas as bênçãos",

108
UMA LIÇÃO DE ADORAÇÃO: AS INSTRUÇÕES DE RICHARD BAXTER PARA TERMOS PRAZER EM DEUS

mesmo que nossa mente esteja pensando na festa de ontem, nas pró-
ximas férias ou no carpete novo para nossa sala de estar.
Como podemos renovar a adoração em seu nível mais básico? Como
podemos aumentar a convicção de que o Deus triuno é o maior te-
souro desta vida? Precisamos de algumas idéias, algumas boas idéias,
que nos ajudem a furar essas "bolhas de sabão" da afeição pelo mun-
do e redirecionar nossa congregação, nossos alunos da escola bíblica e
nosso próprio coração de volta para Deus.

O hedonismo cristão e o movimento puritano

Um dos melhores antídotos para o faustinianismo é o "hedonismo


cristão". Tomei esse termo emprestado de John Piper, que o utilizou
em seu importante livro Teologia da Alegria: a Plenitude da Satisfação
em Deus. Um hedonista é alguém que vive para ter prazer. Um cristão
hedonista é alguém que vive para os prazeres de Deus. Segundo o
hedonismo cristão, o fim supremo e principal do homem é glorificar
a Deus ao ter prazer nele plena e eternamente. O cristão hedonista não
procura fazer do prazer o seu Deus, mas fazer de Deus seu maior
prazer e tesouro. De fato, o cristão hedonista vê o crescente prazer
em Deus como o fator essencial para romper o vínculo faustiniano
em nossas igrejas e em nossa cultura. Somente assim poderemos ge-
rar um novo espírito de verdadeira adoração.
Al guns cristãos se opõem ao hedonismo cristão, alegando que ele
retira a ênfase das virtudes cristãs tradicionais como o serviço altruís-
ta, o amor sacrificial e a obediência. Outros tratam isso como uma
abordagem retórica e superficial da adoração e da vida cristã. Os críti-
cos do hedonismo cristão nem sempre lembram que ele tem suas
raízes em um dos movimentos mais sérios e altruístas da história do
cristianismo; o movimento puritano da Inglaterra e da América
do Norte.
O puritanismo, conforme mostramos nos capítulos anteriores, foi
um movimento que surgiu na Igreja anglicana da Inglaterra e, poste-
riormente, entre os congregacionalístas da Nova Inglaterra, região dos

109
LIÇÕES DE MESTRE

Estados Unidos. Esse movimento teve início na década de 1560,


mas chegou ao seu ponto mais alto no século XVII. Ele buscava
reformar a adoração, a piedade e a moral de acordo com as Escritu-
ras. A tentativa dos puritanos de reformar o cristianismo e a cultura
na Inglaterra mostrou ser uma batalha ingrata. O século xvii, assim
como ó século XX, foi marcado por propostas faustinianas e
incontáveis revoltas contra a Palavra de Deus. Richard Baxter en-
trou em cena em meio a essa "tempestade" secular. Ele procurou
combater o faustinianismo, dando ênfase à satisfação em Deus — a
busca de Deus como o, "prazer mais duradouro da vida".
Baxter ficou mais conhecido pelas suas obras de piedade e teo-
logia pastoral, como A Call to the Unconverted, The Saints
Everlasting Rest* e O Pastor Reformado. Mas o livro para o qual
voltaremos a nossa atenção neste capítulo é Christian Directory. **
Nessa obra posterior, Baxter oferece à Igreja contemporânea uma
das maiores lições de sua história: orientação clara e diretrizes
para encontrarmos satisfação em Deus em tempos faustinianos.
J.I. Packer chamou Christian Directory de um marco. "É o
tratamento mais completo, mais detalhado e, na minha opinião,
mais profundo sobre a espiritualidade cristã e o padrão que já
foi tentado por um autor evangélico de língua inglesa [...] Baxter
está muito adiante de nós aqui, e deveríamos tentar nos igualar
a ele". 1 Eu compartilho da convicção de Packer. A grande lição
é que nossa adoração a Deus será melhor quando nosso prazer em
Deus estiver no seu ápice. Suas diretrizes para termos prazer em
Deus são um dos antídotos mais poderosos contra o espírito
faustiniano que podemos encontrar na história da Igreja. Vamos
descobrir por que.

A vida de Baxter

Richard Baxter, que escreveu Christian Directory e instou os cristãos a


fazer de Deus o seu prazer supremo, era um homem que conheceu a
* Um Chamado aos não Convertidos; Descanso Eterno dos Santos.
*~ Diretrizes Cristãs.

110
UMA LIÇÃO DE ADORAÇÃO: AS INSTRUÇÕES DE RICHARD BAXTER PARA TIÍRMOS PRAZER EM DEUS

adversidade desde cedo. Nasceu em Rowton, Shropshire, em 1615,


e cresceu em um lar puritano rígido, mas uma casa cheia de amor e
afeição. Terminou sua educação formal em 1633, voltou para casa e
passou a estudar teologia sozinho. Quando tinha 19 anos, ficou arra-
sado com a perda de sua mãe, e encontrou conforto na companhia
dos ministros puritanos. Usando sua influência, ele se tornou um
não conformista de tendência presbiteriana, ordenado ao ministério
em 1638. Quando a Guerra Civil eclodiu na Inglaterra, em 1642,
Baxter era um pastor na vila de Kidderminster. Aquele foi o seu lar
até 1660, apesar das ausências freqüentes para servir como capelão
do exército Parlamentar durante a guerra.
Baxter foi para Kidderminster com temor e tremor. A cidade
possuía a reputação de ter "uma população corrupta e pouco sau-
dável formada de tecelões" e, portanto, pouco promissora. Mas a
verdade é que o ministério de Baxter em Kidderminster foi um
grande sucesso. Uma chave para isso pode ter sido o seu trabalho,
disciplinando as famílias nas casas. Essa estratégia eficaz é registrada
de maneira poderosa em seu clássico pastoral O Pastor Reformado
(1656). Além das suas disciplinas diárias, Baxter era um pregador
consciente. Ele ministrou a Palavra aos operários das tecelagens de
Kidderminster com uma intensidade capaz de mudar a vida deles.
Posteriormente, escreveu: "Eu preguei sem ter certeza se voltaria a
pregar novamente, como um moribundo falando a outros mori-
bundos". 2 Quando George Whitefield visitou Kidderminster, um
século depois, ficou impressionado por ainda constatar os efeitos
do ministério de Baxter.
Após a vitória do Parlamento em 1647, Oliver Cromwell gover-
nou a Inglaterra como seu Lorde Protetor. Baxter não desfrutou do
favor dos poderosos durante o governo de Cromwell, pois a corte era
demasiadamente católica para suportar os extremismos que marca-
ram o cristianismo inglês da década de 1650. Quando solicitaram
que ele pregasse diante de Cromwell, Baxter aumentou a animosi-
dade entre eles, proferindo um sermão duro, em que criticou as po-
líticas religiosas de Cromwell.

m
LIÇÕES DE MESTRE

Charles II recuperou o poder em 1660, e Baxter foi convidado a


ser bispo de Hereford. Ele rejeitou a oferta, e preferiu ser restaurado
ao seu posto em Kidderminster. No entanto, esse pedido humilde
foi negado. O Ato de Uniformidade, de 1662, baniu homens como
Baxter da Igreja Anglicana. A partir daquele momento, ele foi um
homem marcado, perseguido pela lei. O período entre 1665 e 1686
foi um tempo de prisões e sofrimentos intermitentes. Nessa época,
ele fixou residência em Acton, uma pequena cidade perto de Lon-
dres. Ali escreveu vários de seus livros famosos, incluindo Christian
Directory. Richard Baxter escreveu à sombra da perseguição e do jul-
gamento. "Se o senhor Baxter tivesse relaxado em sua piedade", es-
creveu Adam Clarke, "o cetro dos ímpios teria se afastado dele, mas
enquanto seguia a Cristo de forma pura e justa, isso parecia ser um
crime aos olhos do mundo, do qual ele jamais poderia ser perdoa-
do." 3 Enquanto escrevia as suas instruções para termos satisfação em
Deus, a praga de Londres varria Acton, matando centenas de pes-
soas.4 O preço cobrado por essa praga foi terrível. Estima-se que 100
mil pessoas morreram. Baxter escapou desse terror natural somente
para se ver apanhado por outras pragas, as criadas pelos humanos.
Ele passou a maior parte da década de 1670 em atrito com as
autoridades. Seus livros deixavam claro que suas simpatias religiosas
ainda eram puritanas, e sua pregação ocasional quebrou as famosas
leis, fazendo com que a pregação não autorizada fosse considerada
crime. Margaret, sua esposa, morreu em 1681, e "com ela algo den-
tro dele também morreu". 5 Seu coração ficou partido, sua vocação
fora retirada dele por causa de leis injustas e Baxter lutou contra a
amargura.
Mas ele tinha pouco tempo para a autocomiseração. Preso em
1682, Baxter foi condenado, porém solto depois, embora vivesse sob
liberdade vigiada. Em 1685, voltou aos tribunais, acusado de libelar
contra o governo. Depois de um ano na prisão, Baxter foi solto. Mes-
mo com a saúde arrasada, continuou a ser um participante ativo nos
principais eventos de seus dias. Ele foi um dos conspiradores na
derrocada de James li e recebeu de bom grado a tolerância religiosa
declarada por William e Mary em 1688. Baxter morreu em 1691,

112
UMA LIÇÃO DE ADORAÇÃO: AS INSTRUÇÕES DE RICHARD BAXTER RARA TERMOS PRAZER EM DEUS

aos 76 anos, "tendo resistido a muita perseguição, passado por mui-


tos sofrimentos e glorificado a Deus em todas as fogueiras que seus
inimigos acenderam ao redor dele".
Baxter foi lembrado pelos amigos como um homem alto e magro,
cuja postura era um tanto encurvada. Clarke escreveu que "seu rosto
era sério e sereno, e em seus lábios predominava um sorriso de ale-
gria. Seu olhar era penetrante e falava com grande distinção". Porém,
mais do que sua aparência, Baxter foi lembrado por ser um homem
da Palavra de Deus e um pregador poderoso. Como escritor, "seu
sucesso em iluminar a mente e atingir o coração era algo incomum".
A produção literária de Baxter foi enorme. Ele escreveu quase
140 livros "e teve sessenta escritos contra ele; contudo, eles servi-
ram mais para aumentar do que para diminuir a sua reputação".
Sua obra-prima não foi o livro sobre a Trindade, no qual trabalhou
durante anos, e sim um compêndio sobre espiritualidade e ética
cristã, que ele jamais teria tentado escrever se não fosse pelo incen-
tivo dos outros.
As Christian Directory de Baxter foram publicadas em 1672. A
maior parte de seus escritos foi feita entre 1664-1665, quando ele e
Margaret ainda moravam em Acton. Ele fora encorajado pelo grande
bispo James Ussher, da Irlanda, a resgatar a tradição puritana de
"divindade prática", o equivalente de nossos dias a três disciplinas;
formação espiritual, aconselhamento pastoral e ética. Em Christian
Directory estava preocupado, primordialmente, em explorar as impli-
cações do grande mandamento: como amar a Deus totalmente e ao
próximo como a si mesmo. O livro abrange as quatro grandes áreas
da vida cristã: ética cristã, economia cristã (vida familiar), eclesiologia
cristã (vida na igreja) e política cristã (obrigações para com os
governantes e o próximo).
Os escritos de Baxter sobre essas questões fundamentais estão reple-
ios de sabedoria e conselhos prudentes, vindos de alguém que estudou
cuidadosamente a Bíblia e os autores cristãos. Todavia, o que atrai
(>s olhos do leitor ao contemplar essa volumosa obra de fé e prática
cristã é a parte que trata sobre o prazer em Deus como o resumo e o

113
LIÇÕES DE MESTRIÍ

centro da vida santa. Baxter discerniu o que era o espírito faustiniano


e sentiu que poderia oferecer um antídoto poderoso. Mas o que ele
queria dizer quando falava sobre encontrar prazer em Deus?

As diretrizes de Baxter para o prazer em Deus

Baxter é tão útil para entendermos o hedonismo cristão, porque ele


resumiu uma tradição vinda desde os tempos de Agostinho e talvez
até de Paulo: Deus é o verdadeiro objeto de nossos desejos mais pro-
fundos. Para Baxter, esse é o coração e a alma da vida e da fé cristã.
A forma usada por Baxter em Christian Directory é a de pergun-
tas-chave que oferecerem respostas. Iremos nos concentrar em sete
questões levantadas e respondidas por Baxter:

• O amor por Deus e o amor próprio são compatíveis, como


ensinam os cristãos hedonistas?
• O que realmente significa ter prazer em Deus?
• O quanto desse prazer santo em Deus podemos esperar para
esta vida?
• Quais são os perigos de não fazermos do prazer em Deus o
nosso maior objetivo?
• Quais são os benefícios do prazer em Deus?
• Que auxílios Deus nos deu para aumentarmos o nosso prazer
nele?
• Que meditações específicas serviriam melhor para gerar o prazer
em Deus e aumentar minha alegria e satisfação nele?

1. O amor por Deus e o amor próprio são compatíveis, como ensinam os


cristãos hedonistas? "Deus é mais glorificado quando ficamos mais
satisfeitos nele". Baxter admite que existe um perigo real de que o
amor ao eu engane o crisrão: "Sempre fique desconfiado", escreveu,

114
UMA LIÇÃO DE ADORAÇÃO: AS INSTRUÇÕES DE RJCHARD BAXTER PARA TERMOS PRAZER EM DEUS

"do amor carnal egoísta, e vigie — pois esse é o esconderijo ou a


fortaleza do pecado". 6 Mesmo assim, reconhecia nas Escrituras um
ripo de amor próprio que está de acordo com nosso amor a Deus.
"Embora não seja pecado amar a Deus por nós mesmos, e nossa
própria felicidade, não devemos fazer disso apenas um meio para
chegar a essa felicidade como se fosse o nosso objetivo final".7 A
gratidão, um imperativo das Escrituras, não poderia existir sem um
amor próprio centrado em Deus, para que possamos ter prazer em
exaltar a sua bondade e a sua beleza. Se não estivéssemos satisfeitos
com essas coisas em Deus, não iríamos louvá-lo ou glorificá-lo. Por
isso, Baxter conclui que "não há lugar para a dúvida, se devo amar a
Deus ou a mim mesmo"; ou para a questão: "Devo buscar a glória
de Deus e o prazer ou a minha própria felicidade [...] pois sempre
devo buscar as duas coisas, embora não com o mesmo apreço". 8
2. O que realmente significa ter prazer em Deus? Se devo buscar o
meu próprio bem para dar a glória a Deus, o que exatamente é esse
"prazer" que eu deveria procurar e encontrar? Baxter tenta deixar cla-
ro, antes de tudo, o que esse prazer não é. O prazer em Deus não é
criar fantasias sobre Deus ou ter visões individuais. Não é um êxtase
ou entusiasmo, algum tipo de arrepio religioso que sobe e desce pela
espinha. Não é a ausência de tristeza ou de medo, pois o prazer em
Deus pode ocorrer em meio à tristeza e ao medo. A vida de Baxter foi
um testemunho eloqüente desse fato.
Se o prazer em Deus não é agitação, emocionalismo ou uma
euforia isenta de dor, então o que é? Para Baxter, o prazer em Deus é
"uma complacência [satisfação] sólida e racional da alma em Deus
e santidade, resultantes da compreensão que no Senhor desfrutare-
mos dessa situação prazerosa".9 A percepção de Baxter é de que o
prazer em Deus é um estado de satisfação completa de mente e
alma perante a beleza moral e o amor de Deus. Em termos simples,
ter prazer em Deus significa estar plenamente satisfeito com Deus
em todas as áreas da vida.
Esse tipo de prazer é absolutamente necessário para Baxter por-
que "o prazer santo, aliado ao amor, é a parte principal de nossa

115
LIÇÕES DE MESTRE

religião [...] Quando se percebe que os prazeres terrenos terminam


em nada, quem não gostaria de ter escolhido os prazeres santos e
duráveis"? 10 Isso responde diretamente à questão levantada por
Marlowe em sua peça sobre Fausto. Prazer não é uma emoção barata
para Baxter, mas um elemento central da vida. É o amor que gera
todas as ações humanas.

Não é sem motivo que Deus fez do prazer e da complacência


[satisfação] os sentimentos mais importantes e mais poderosos,
o fim de todas as outras paixões que confessadamente servem e
buscam. Os sentimentos mais naturais e inseparáveis da alma
são o desejo e o prazer.11

Logo, o prazer é o hábito mais universal e mais fundamental do cora-


ção humano.
3- O quanto desse prazer santo em Deus podemos esperar para esta
vida? Mesmo se admitirmos que o prazer em Deus é essencial tanto
para a glória de Deus quanto para a nossa necessidade, a questão
continua sendo até que ponto podemos esperar conseguir alguma
coisa neste mundo caído? Após examinar várias passagens das Es-
crituras, Baxter respondeu a essa pergunta de maneira surpreen-
dente: podemos esperar muito mais prazer do que provavelmente
estamos experimentando neste momento. O que podemos esperar?
Podemos esperar: (1) prazer suficiente para sermos mais felizes e
mais contentes do que o incrédulo mais feliz; (2) prazer suficiente
em Deus para fazer dos pensamentos sobre Deus e da vida futura
alegres e bem-vindos em nossas vidas; (3) prazer o suficiente para
nos levar além de nosso cansaço e depressão e fazer nossa caminha-
da cristã ser agradável; (4) prazer suficiente para retirar nosso ape-
tite pelos prazeres pecaminosos; (5) prazer suficiente para fazer de
cada expressão da misericórdia e amor de Deus algo doce e
satisfatório; (6) prazer suficiente para fazer nosso sofrimento mais
suportável e até mesmo agradável às vezes; e (7) prazer suficiente
para fazer com que a idéia da morte seja menos terrível.12

116
UMA LIÇÃO DE ADORAÇÃO: AS INSTRUÇÕES DE RICHARD BAXTER PARA TERMOS PRAZER EM DEUS

O quanto de prazer em Deus podemos esperar alcançar? Muito


mais.
4. Quais são os perigos de não fazermos do prazer em Deus o nosso
maior objetivo? Considerando que os mandamentos para louvar, ter-
mos prazer ou nos alegrarmos em Deus são muito freqüentes nas
Escrituras, o que se pode esperar se não levarmos esses mandamen-
tos muito a sério ou considerarmos coisas não essenciais? Baxter
descreve o deserto espiritual que nos aguarda se continuarmos in-
diferentes a esse chamado para ter prazer em Deus. Para ele, existem
nove perigos que aguardam a todos que negligenciam esse prazer
em Deus:

Irei desagradar a Deus se não considerá-lo o meu maior prazer.13


Não pensarei tanto em Deus ou não pensarei bem dele o
suficiente.
Se Deus não for o meu maior prazer, quando eu falar de Deus
será apenas um "discurso forçado, sem sentido".' 4
Uma vez que o prazer é um motivador maior do que a simples
obrigação, se negligenciar meu prazer em Deus perderei mi-
nha principal motivação para a obediência.

Também perderei meu apetite pelo descanso e pelo trabalho,


pois Deus retirará o poder do prazer daqueles que não fizeram
com que ele fosse o seu maior prazer.

Acabarei brigando com os outros cristãos, porque estarei muito


insatisfeito com a minha vida.
Sofrerei grandes tentações, porque o meu fracasso em ser cheio
dos prazeres de Deus fará com que os prazeres do pecado se
tornem ainda mais atrativos.

Ficarei vulnerável à depressão.


Estarei mais suscetível à apostasia e a uma teologia equivocada.

117
LIÇÕES DE MESTRE

5. Quais são os benefícios do prazer em Deus? Em uma nota mais


positiva, Baxter enumera os vários benefícios de termos prazer em
Deus. Entre as coisas boas que acontecerão em minha vida, posso
esperar o seguinte:15

• Maior certeza de minha salvação, pois "o prazer em Deus


provará que você o conhece e o ama".
• Maior resistência ao materialismo, porque "a prosperidade [...]
não me corrompe".
• Maior paz nos momentos de tribulação, porque quando estou
cheio dos prazeres eternos "a adversidade, que impede os pra-
zeres terrenos, não [me] entristecerá muito". Fazer com que
Deus seja o maior prazer implicará que "tenhamos um ban-
quete contínuo em sua presença, que faz com que todas as
cruzes do mundo sejam mais agradáveis".
• Uma mente mais alerta e vivida, porque "receberemos mais
benefícios de um sermão, um bom livro ou uma conferência
para nos deliciar nele" do que quando esse prazer não existe.
Quando estou buscando o prazer em Deus, minha mente
está alerta para toda idéia que poderia alimentar a minha
paixão.
• Um prazer maior em meu trabalho, porque o prazer retira
muito do peso do trabalho. Quando estou cheio desse pra-
zer, descubro que as palavras de Baxter são verdadeiras: "To-
dos os teus serviços serão doces para ti e aceitáveis a Deus"
(compare com o Salmo 149:4).

• Prazer em Deus aumenta minha alegria em todas as outras


coisas que faço.

"Quando você tem prazer em Deus, os seus prazeres carnais serão san-
tificados e colocados em seu lugar apropriado, algo que para os outros
é idolatria ou corrupção." Deus é livre para nos dar mais prazeres

118
UMA LIÇÃO DE ADORAÇÃO: AS INSTRUÇÕES DE RICHARD BAXTER PARA TERMOS PRAZER EM DEUS

nas coisas e nas experiências, quando sabe que não as transformare-


mos em ídolos. Esses benefícios são incentivos bem fortes para que
busquemos mais de Deus.
6. Que auxílios Deus nos deu para aumentarmos o nosso prazer
nele? A essa altura, você pode estar pronto para tentar aumentar o
seu prazer em Deus. Mas isso levanta uma questão prática: o que
realmente devo fazer para ter esse prazer em Deus? A resposta de
Baxter é apontar que Deus já fez muitas coisas para nos ajudar a
vencer nossa alergia natural a Deus e aumentar o nosso prazer nele.
O reconhecimento das diversas maneiras que ele nos ajudou a fazer
da satisfação no Senhor algo mais fácil é, em si mesmo, uma fonte de
prazer em Deus.
Baxter menciona 16 maneiras como Deus nos ajuda a ter prazer
nele. Mencionarei apenas cinco delas:

• Deus nos deu elementos de beleza santa para guardarmos


em nossa mente, como "seus atributos, amor, misericórdia,
seu Filho, Espírito Santo e Reino". O Deus Triuno e suas
perfeições têm o propósito de inspirar louvor e prazer em
nossos corações.

• Deus nos deu o seu Espírito, que cultiva o prazer em Deus


dentro de nós com "palavras que servem para mortificar, lim-
par, iluminar e ressuscitar".

• Deus nos deu a cruz de Cristo, que comprou alegria para seu
povo ao custo de seu próprio sofrimento: "Tendo carregado os
nossos problemas e se tornando um homem de dores, para que
nós, apesar de não vê-lo, possamos nos alegrar em crer com
prazer inexprimível e cheio de glória".

• Deus nos dá um mandamento, "vez após vez mandando que


nos alegremos, e sempre mandando que nos alegremos".
• Deus nos dá uma promessa: "Nem é em vão que ele tenha
enchido a sua palavra com tanto prazer e conforto, nas correntes

119
LIÇÕES DE MESTRE

mais alegres que poderiam ocorrer com um homem e com tan-


tas promessas gratuitas, completas e fiéis".16

7. Que meditações específicas serviriam melhor para gerar o prazer em


Deus e aumentar minha alegria e satisfação nele? Baxter termina o seu
conselho para aqueles que gostariam de aumentar o seu prazer em
Deus, sugerindo a meditação sobre coisas específicas. Essas "diretri-
zes" são pensamentos que deveríamos procurar em nossa mente para
que possamos aumentar o nosso amor. Baxter apresentou vinte delas
em Christian Directory, de onde eu selecionei apenas dez. Para intensi-
ficar o seu prazer em Deus, faça as seguintes meditações:17
Meditação 1. Pense sobre o quanto de prazer Deus sente em ver você
se alegrar nele. Baxter observa que "isso prejudicou bastante o prazer de
muitos cristãos, pois eles pensaram ser contra a vontade de Deus que nos
alegrássemos tanto". Devemos lembrar que o propósito final de nosso
prazer não é a nossa satisfação pessoal, mas a exaltação de Deus.
Meditação 2. Pense como o Deus Triuno é belo e, portanto, o
quanto ele é merecedor de ser o objeto de nosso prazer.
Ele é (1) mais perfeito e abençoado em si mesmo; (2) cheio de
tudo o que você possa precisar; (3) para seu alívio, ele tem o mundo
todo sob seu comando; (4) sua presença está mais perto de você do
que o mundo; (5) ele planejou todos os elementos da religião para o
seu prazer, seu conteúdo, sua variedade e seu benefício; (6) ele será
um prazer certo e constante para você, e um prazer durável quando
todo os outros falharem.
A experiência de vida de Baxter nos dá uma tremenda credibilidade
nessa questão. Afinal, ele conviveu com a tragédia pessoal e perdeu
tudo o que amava, exceto Deus.
Meditação 3. Pense sobre com que facilidade os pensamentos ne-
gativos podem surgir e matar o nosso prazer.

Cuidado com uma mente impaciente, aborrecida e atormenta-


da, que não consegue carregar cruz alguma, e que supervaloriza
as coisas terrenas, que causa impaciência no seu desejo por elas.

120
UMA LIÇÃO DE ADORAÇÃO: AS INSTRUÇÕES DE RICHARD BAXTER PARA TERMOS PRAZER EM DEUS

Um espírito mal-humorado ou ganancioso é inimigo do cristão


hedonista. Todos ficamos irritados, mas não devemos deixar que isso
atrapalhe a maneira como podemos nos alegrar em Deus.
Meditação 4. Pense como a fé é poderosa para incentivar o nosso
prazer em Deus. "Temos apenas uma vida de fé, que será uma vida
de prazer santo e celestial; exercitem-se, portanto, em acreditar na
contemplação das coisas invisíveis". Sem fé não podemos agradar a
Deus e nem sermos agradados por Deus. Podemos olhar para as
circunstâncias de nossa vida e ver poucas coisas que inspirem prazer
ou satisfação. Mas os olhos da fé podem ver além disso e contemplar
a beleza da Família Trinitária, sua grande graça e amor ou suas pro-
messas abundantes. Esses exercícios de fé nos dão poder para vencer
as dificuldades e encontrar alegria em Deus.
Meditação 5. Lembre-se do valor que a adoração pública tem
para aumentar nossa alegria em Deus. Uma brasa retirada do fogo
logo se apaga, mas quando é reunida com outras, ajuda a reacender
a chama. Um bom culto de louvor, com muita adoração e ação de
graças, aumentará nosso prazer em Deus e banirá a descrença e a
frieza espiritual.
Meditação 6. Pense sobre como todos os outros prazeres desta
vida podem aumentar nossa alegria em Deus. Determine "assim
que o olho, o ouvido ou o paladar perceberem a delícia de vários
artigos, a alma santa possa ter a percepção e a reação, e ser conduzida
a pensamentos prazerosos sobre aquele que nos deu todos esses pra-
zeres". Em contraste com o espírito de Fausto, que vê os tesouros
terrenos em competição com os tesouros eternos, deveríamos fazer
com que tais prazeres fossem um complemento aos "prazeres mais
duráveis".
Meditação 7. Lembre-se de utilizar os problemas para aumentar o
seu prazer.

Os servos de Cristo normalmente não têm tanto prazer no


Espírito Santo como em seus grandes sofrimentos[...] a alma
nunca se abriga tão prontamente e com tanto prazer em Deus

121
LIÇÕES DE MESTRE

como quando ninguém mais a recebe, ou pode dar algum


conforto a ela.

A própria vida de Baxter ilustra isso. Quanto mais ele perdia os seus
tesouros terrenos, mais lutava contra a amargura. No entanto, Deus
logo preencheu o vazio deixado pelas perdas da mulher, do trabalho,
da saúde e da liberdade. Baxter aprendeu a usar os problemas desta
vida para aumentar o seu prazer em Deus.
Meditação 8. Pense sobre como os ímpios sentem satisfação nos
prazeres pecaminosos, e seja motivado a ter mais prazer ainda em
Deus.

Os gaviões e cães; orgulho e lascívia; as cartas, dados, jogos e


esportes; luxúria e passividade; conversas tolas e honrarias
mundanas. Essas coisas não parecem tão agradáveis a esses
pecadores iludidos? E o meu Deus e Salvador: seu amor e
promessas e esperanças do céu não devem ser ainda mais agra-
dáveis para mim?

A idéia aqui não é aceitar o espírito faustiniano desta era como algo
normal, mas vê-lo como um insulto. Devemos deixar que o mundo
secular ao nosso redor gere em nós um zelo pela glória de Deus,
intensificando o nosso prazer no Senhor.
Meditação 9. Recuse-se a deixar o espectro da morte iminente
afastar de você os prazeres eternos. Precisamos vencer o medo da morte,
caso contrário ele "encobrirá [os nossos] prazeres em vista dos praze-
res eternos". Ao contrário do doutor Fausto, que na peça de Marlowe
somente caiu em si quando a morte se aproximava, deveríamos usar o
pensamento de uma morte iminente para aumentar nosso desejo pelos
prazeres que a morte não pode roubar. A morte se mostra impotente
contra aqueles cujos tesouros são eternos.
Meditação 10. Decida-se a fazer do prazer em Deus o propósi-
to por trás de todas as suas atividades religiosas. Por exemplo,

122
UMA LIÇÃO DE ADORAÇÃO: AS INSTRUÇÕES DE RICHARD BAXTER PARA TERMOS PRAZER EM DEUS

"tristeza penitente é apenas um expurgo de todas as corrupções que


0 impedem de aproveitar os seus prazeres espirituais [...] Prazer em
Deus é a saúde de sua alma". Essa é a chave da adoração aceitável.
1 )eus não está satisfeito, nem nós somos renovados, por uma obediência
repleta de tarefas, mas isenta de prazer.
"Prazer em Deus é a saúde de sua alma." Essa frase resume a crença
de Baxter na centralidade do prazer em Deus. Christian Directory lida
com centenas de assuntos adicionais, mas nenhum tópico expõe tanto
o cerne da teologia de Baxter quanto esse.
As sete perguntas revistas aqui não são as únicas a que Baxter
responde sobre a questão de nosso prazer em Deus. Mas elas são
perguntas cruciais para os nossos dias. O conselho que Richard Baxter
transmite traz consigo grandes promessas para vencermos as tenta-
ções geradas por uma sociedade secular. Cada uma dessas respostas
aponta para o Salmo 16:11, confirmando a verdade que "na tua presen-
ça há plenitude de alegria, na tua destra, delícias perpetuamente".
Mas como podemos colocar essas idéias em práticas hoje? Vamos
encerrar nossa análise da lição de Baxter tomando algumas decisões
bastante proveitosas.

Renovando a adoração hoje: como usar as grandes idéias


de Baxter

A grande lição de Baxter é que nossa adoração a Deus será melhor


quando nosso prazer em Deus estiver no seu ápice. Revisamos neste
capítulo sete questões sobre o prazer em Deus para as quais Baxter
oferece respostas úteis e iluminadoras. O que podemos fazer para
gerar essa satisfação santa nas pessoas a quem servimos? Gostaria de
fazer três sugestões:
Uso n° 1. Faça do prazer em Deus parte integrante de sua vida.
Não existem atalhos para a integridade. Todas as pessoas que lide-
ramos, sejam elas os nossos filhos, alunos, membros da igreja ou
luncionários, conhecem a diferença entre a adoração artificial e o
prazer genuíno.

123
LIÇÕES DE MESTRE

Gostaria de recomendar três livros que poderão ajudá-lo a fazer


o hedonismo cristão ser parte integrante de sua liderança. O pri-
meiro é Teologia da Alegria, de John Piper, com seu clamor para
glorificarmos a Deus tendo prazer nele. A leitura desse livro au-
mentou a minha compreensão sobre como fazer que esse seja o maior
alvo de minha vida. O segundo é Os 7 Hábitos das Pessoas Altamente
Eficazes. Stephen Covey não fala nada sobre termos satisfação em
Deus em seu livro, mas tem muito a dizer sobre como redefinir o
sucesso. Ele escreve sobre o sucesso como algo que surge de "vitó-
rias particulares diárias", não apenas de conquistas públicas. Existe
uma grande necessidade de que o caráter ético venha a substituir a
ética pessoal mais superficial, buscando um ideal mais alto no mi-
nistério do que o simples sucesso. Covey acredita que as pessoas
verdadeiramente bem-sucedidas "começam com um fim em men-
te", ou seja, vêem tudo o que fazem no cotidiano pensando como
isso as motivará a alcançar o seu objetivo maior.
Passei a acreditar que o hedonismo cristão — a visão de que Deus
é mais glorificado em nós quando temos mais satisfação nele — é o
maior objetivo que poderei pensar em atingir. O conselho de Covey
me convenceu de que as "vitórias particulares diárias" de que preciso
para ter sucesso na vida envolvem fazer do prazer em Deus parte da
maneira como penso e tomo decisões. Glorificar a Deus ao ter prazer
nele deve se tornar, para mim, o "fim" que tenho em mente todos os
dias. Isso deve tornar-se minha medida de sucesso.
Um livro mais recente de Stephen Covey, Primeiro o Mais Impor-
tante, escrito em parceria com A. Roger Merrill, mostra maneiras
ainda mais práticas de como podemos fazer uma missão pessoal ser o
centro de integração de nossa vida. As idéias de Covey são extrema-
mente úteis para um hedonista cristão sério.
Minha sugestão é que você leia esses três livros junto com um
amigo. Tente fazer isso ao longo de um ano. Vocês poderão incenti-
var um ao outro a colocar em ação os aspectos que forem descobrin-
do juntos. Devo muito a alguns irmãos bondosos que fizeram isso
comigo, ajudando-me a aumentar meu prazer em Deus. Devemos

124
UMA LIÇÃO DE ADORAÇÃO: AS INSTRUÇÕES DE RJCHARD BAXTER PARA TERMOS PRAZER EM DEUS

decidir internalizar essa satisfação antes de cultivá-la com eficácia


nos outros.
Uso n° 2. Faça do hedonismo cristão parte de seu ministério de
aconselhamento. As pessoas têm problemas. As pessoas que servem
em nosso ministério lutam com desavenças no casamento, com os
filhos, com o pecado, com a raiva e muitos outros. Mais de uma vez
saí confuso de conversar com cristãos, ao acreditar que parte dos
conflitos das pessoas, se encontrava no fato de elas esperarem de-
mais de um relaconamento, da igreja ou da escola. Um modo de
reduzir esse nível de frustração seria esperar mais de Deus e menos
da vida. Se Deus passasse a ser o seu maior tesouro, isso reduziria
algumas das expectativas irrealistas que elas colocaram sobre os ou-
tros relacionamentos.
O hedonismo cristão não é um remédio mágico, mas algo crucial
"para a saúde de sua alma". Quando alguém procura nossa ajuda
para vencer um pecado que o está importunando, precisamos mos-
trar que a paixão pelos prazeres de Deus é uma maneira poderosa de
vencer nossa paixão pelo pecado. Devemos ensinar as pessoas a lutar
contra os prazeres com outros prazeres (os divinos) e mudar os praze-
res menores do pecado pelo prazer maior — que vem de Deus. Quando
alguém pede conselho sobre um relacionamento desfeito, vale a pena
lembrar-lhe que os cristãos profundamente satisfeitos com Deus e
cheio de sua graça e paciência possuem mais recursos para superar
essa questão do que aqueles cheios de irritação e espírito crítico. Em
outras palavras, o hedonismo cristão é parte da solução (embora não
apenas a única parte) de cada problema que enfrentamos.
Analisar qualquer questão sem pensar em Deus, enquanto po-
demos estar armados com o poder de nos alegramos em Deus, é
abordar a questão de maneira tola. Deixar essa verdade fora de nosso
aconselhamento e ensino seria privar as pessoas de uma ferramenta
poderosa para a cura interior.
Uso n° 3. Gere o hedonismo cristão nos cultos. Os que organizam o
mito público na igreja precisam fazer do prazer em Deus um ele-
mento crucial. O mero cumprimento de uma tarefa ou um espírito

125
LIÇÕES DE MESTRE

de formalismo não é aceitável a Deus. A adoração está no centro


de nosso prazer em Deus (SI 73:25, 26). E esse prazer, para to-
mar emprestado uma frase de Jonathan Edwards, consiste prima-
riamente de sentimentos santos. Isso significa que precisamos ter
como alvo o aumento de nosso amor por Deus e o repúdio pelo
pecado em nossos cultos. Nossa preocupação não deve residir no
entretenimento das pessoas, em inspirar nelas o arrependimento
e o louvor. Precisamos encorajar ações, testemunhos, pregação, dra-
matizações, leitura das Escrituras, músicas especiais e oração, que
não surjam de um emocionalismo barato, mas do prazer profundo
em Deus.
Por causa do trabalho especial do Espírito Santo, que produz
esses sentimentos santos (Gl 5:22, 23), precisamos orar pelos nos-
sos cultos tanto quanto precisamos orar por missões. Mas, depois
de orar, também devemos agir. Uma fonte incomparável para aque-
les que procuram maneiras específicas de aumentar o prazer em
Deus na adoração é a série de livros sobre adoração escritos por
Robert Webber. 18 O volume 3, em particular, trata sobre como
fazer cultos dominicais criativos, planejados para gerar essa satis-
fação em Deus.
Quando Christopher Marlowe escreveu seu drama épico sobre o
doutor Fausto, certamente não sabia que estava escrevendo a história
da humanidade no século xx. O cerne do secularismo é uma atitude
em que os tesouros terrenos são mais reais e valiosos que os supostos
tesouros de Deus. Assim como a fumaça de um prédio em chamas,
essa atitude sutil pode sufocar a vida da Igreja antes mesmo de as
chamas da oposição declarada a tocar.
Não sei se Richard Baxter algum dia chegou a ver a peça de
Marlowe. Mas sei que ele ofereceu um remédio poderoso para o
Fausto que habita cada um de nós: "Prazer em Deus é a saúde de
sua alma".

126
UMA LIÇÃO DE ADORAÇÃO: AS INSTRUÇÕES DE RICHARD BAXTER PARA TERMOS PRAZER EM DEUS

QUESTÕES PARA DEBATE

1. Os salmos estão cheios de exortações e meditações que visam


a um prazer crescente em Deus. Um dos textos bíblicos
mais importantes para termos prazer em Deus é o Salmo
73. Veja como o salmista caminha de um espírito faustino
para a descoberta nova de que Deus é a maior fonte de
satisfação (w. 25,26). Que passagens adicionais dos salmos
apoiam o tema de nosso prazer em Deus?

2. Revise as dez meditações de Baxter. Quais parecem ser as


mais úteis para produzir a experiência do Salmo 73:25?

3. Que outros usos você consegue imaginar das instruções de


Baxter para nós termos prazer em Deus?

LEITURAS COMPLEMENTARES

Além da leitura de Christian Directory, quem se interessar em


conhecer mais sobre Richard Baxter poderá consultar Questfor
Godliness, de J.I. Packer, (Crossway) que faz um tributo à piedade
de Baxter. Além disso, um de seus livros mais famosos, O Pastor
Reformado (Publicações Evangélicas Selecionadas), continua
sendo publicado.
Para conhecer mais sobre a idéia de hedonismo cristão, leia
Teologia da Alegria, de John Piper (Shedd Publicações).

127
CAPÍTULO 6

UMA LIÇÃO DE RENOVAÇÃO:


A TEOLOGIA DO AVIVAMENTO
DE JONATHAN EDWARDS

J—jm uma região rica de Washington, duas estruturas contrastantes podem


ser vistas lado a lado. A primeira revela uma igreja completa, com sua
torre iluminada, jardins de grama bem aparada e membros ricos. A
segunda, é uma velha sede do corpo de bombeiros, recentemente
transformada em um abrigo para os sem-teto, administrada por outra
igreja da mesma cidade. A igreja é o oposto ao antigo prédio do
corpo de bombeiros, porque seus membros não queriam determina-
do tipo de pessoas se reunindo ao lado de sua igreja.
Passe pela igreja na manhã de domingo e você verá rostos sorri-
dentes, pessoas convivendo socialmente e escutando com educação
sermões bem preparados. Passe em frente à velha sede do corpo de
bombeiros e você verá homens recém-barbeados, reunidos em círcu-
lo, fazendo um estudo bíblico sério sobre a nova vida em Cristo.
Aquela igreja certamente supre uma importante necessidade so-
cial para a maioria de seus membros. Mas a espiritualidade do antigo
corpo de bombeiros transforma vidas. A igreja comunitária funciona
tomo um serviço de capelania para o corre-corre diário. Mas o prédio
do corpo de bombeiros é um posto avançado da eternidade. A
igreja comunitária oferece um cristianismo secularizado, abrigado
sob uma estrutura de aparência religiosa. O corpo de bombeiros

129
LIÇÕES DE MESTRE

oferece uma expressão do cristianismo autêntico, abrigado sob uma


estrutura de aparência secular.'

Os efeitos da secularização

O corpo de bombeiros e aquela igreja são janelas pequenas que mos-


tram um grande problema; a luta contra a secularização da Igreja no
início deste milênio. Algumas igrejas vem sendo mais resistentes à for-
ça da secularização do que outras, mas todas sentiram a sua força. A
evidência de que os ventos da secularização ficaram mais fortes pode ser
vista no crescimento estatístico daqueles que se consideram "sem reli-
gião". Em 1900, menos de 1% da população mundial estava classifica-
da como "sem religião"; nos últimos 25 anos do século xx, mais de
2 1 % da população mundial podia ser classificada assim. Os Guiness
chamou isso de "a mudança mais dramática de todo o mapa religioso
do século xx".2 Ainda segundo Guiness, "ateus e pessoas sem religião
hoje formam o segundo maior bloco do mundo, perdendo apenas para
os cristãos, mas vem se aproximando rapidamente". 3
O resultado da secularização no mundo moderno tem sido fazer
"as idéias religiosas menos significativas e as instituições religiosas
mais marginais". 4 Assim como o gato Cheshire que falava com Alice
no clássico Alice no País das Maravilhas, a Igreja está perdendo sua
substância e credibilidade, encarando o mundo com um sorriso
vazio.5 George Gallup Jr. descreveu como é esse "sorriso vazio". Com-
parando os que freqüentam e os que não freqüentam as igrejas ame-
ricanas em várias categorias (sonegando impostos, fantasiando seus
currículos e comportamentos enganosos similares), o entrevistado
encontrou "pouca diferença na percepção e no comportamento éti-
co dos membros de igreja e dos sem igreja".6 Doações para a caridade
dos membros de igreja e dos sem igreja que ganham entre 50 mil e
75 mil dólares por ano igualam-se em números (1,5% do seu salário).
Mesmo entre os cristãos conservadores, o Instituto Gallup encon-
trou algumas estatísticas surpreendentes. A maioria (53%) daqueles
que afirmam ser cristãos conservadores, que acreditam na Bíblia,
rejeitou a existência da verdade absoluta.7

130
UMA LIÇÃO DE RENOVAÇÃO: A TEOLOGIA DO AVIVAMENTO DE JONATHAN EDWARDS

A secularização da Igreja parece ser um fato. Mas o que tudo isso


tem a ver com Jonathan Edwards e o avivamento? Muito. Os ácidos
da modernidade fizeram com que a questão do avivamento se tor-
nasse urgente. Avivamentos são ocasiões em que a Igreja pode ser
restaurada à vida espiritual autêntica após um período de declínio.
Por esse motivo, as lutas de Jonathan Edwards contra a seculariza-
ção da Igreja em seus dias oferecem alguns paralelos importantes e
nos indicam uma direção.
O secularismo estava apenas começando sua longa investida contra
a Igreja moderna durante a juventude de Edwards, mas seu impacto
foi mortal. Quando Deus enviou um avivamento memorável, que
ficou conhecido como "O Grande Despertamento". Edwards não
apenas aplaudiu a misericórdia do Todo-poderoso, como também
analisou os movimentos do Espírito. O resultado foi a articulação de
uma poderosa teologia do avivamento, que pode orientar a Igreja de
hoje em sua luta contra os ventos da modernidade. Na estimativa de
J.I. Packer, a teologia do avivamento de Edwards "é, talvez, a contri-
buição mais importante que Edwards tenha a dar ao pensamento
evangélico de hoje". 8 O doutor Martyn Lloyd-Jones compartilha da
opinião de Packer:

Nenhum homem é mais relevante para a situação moderna do


cristianismo do que Jonathan Edwards [...] Ele foi, ao mesmo
tempo, um teólogo poderoso e um grande evangelista [...] Ele
foi, predominantemente, um teólogo do avivamento. Se você
deseja conhecer algo sobre o verdadeiro avivamento, deveria
consultar Edwards. 9

()s líderes ocupados podem aprender muito com Edwards para apri-
morar a capacidade de tomar decisões. John Piper, pastor da Igreja
Batista Bethlehem, em Minneapolis, comprovou isso. Quando
iornou conhecimento dos escritos de Edwards durante o seminá-
rio, beneficiou-se profundamente de sua teologia. Piper descreve os
insultados:

131
LIÇÕES DF. MESTRE

Devo-lhe mais do que poderia explicar. Nutriu minha alma


com a beleza de Deus, com a santidade e com o céu quando
todas as outras portas pareciam estar fechadas para mim. Re-
novou minha esperança e visão de ministério em tempos de
grande abatimento. Abriu, freqüentemente, a janela para o
mundo do Espírito, quando tudo o que eu podia ver eram as
cortinas do secularismo.10

Edwards afetou a minha vida de maneira semelhante. Quando minha


visão está com a bateria fraca, minha frieza espiritual em baixa ou o
desespero em relação à Igreja cresce, Edwards se torna o meu pastor.
Após a maioria de meus encontros com seus profícuos estudos, saio
mentalmente desafiado, enquanto meu espírito sai renovado. Espero
que você tenha a mesma experiência com ele neste capítulo.
Porém, é preciso ter cuidado: as idéias de Edwards estão nas "altu-
ras". Teremos de nos esforçar muito para chegarmos até o seu nível de
entendimento. Contudo, depois dessa subida "montanha acima",
voltaremos com tesouros que justificarão esses esforços.
Para os líderes de hoje, que lutam para abrir as cortinas do secu-
larismo e escancarar essa "janela para o mundo do Espírito", Edwards
ensina uma grande lição. Certamente, uma das melhores da história
da Igreja: combata o secularismo sendo um agente do autêntico aviva-
mento. Sua grande lição é uma teologia do avivamento provada por
palavras e experiências. Examinaremos essa teologia neste capítulo,
mas primeiro precisamos conhecer esse homem.

A vida de Edwards

A história da vida exterior de Jonathan Edwards pode ser contada


facilmente. Ele nasceu em 1703 em East Windsor, Connecticut, filho
do reverendo Timothy Edwards e Esther. Edwards era o único homem
em uma família com onze crianças. Quando suas dez irmãs amadu-
receram, chegaram a uma estatura que chamava a atenção das pessoas.
Mas a altura dos filhos de Timothy era menos memorável para a

132
UMA LIÇÃO DE RENOVAÇÃO: A TEOLOGIA DO AVIVAMENTO DE JONATHAN EDWARDS

família e os amigos do que a profundidade da inteligência de seu


filho. Aos 7 anos de idade, ele já conhecia bem o latim. Aos 11 ou
12, Jonathan escreveu textos precoces sobre o arco-íris e as aranhas,
mostrando um poder de observação que beirava a genialidade. Aos
13, foi para a Faculdade de Yale. Aos 20, completou o seu bacharela-
do e, depois de servir algum tempo como ministro em Nova Iorque
e professor em Yale, Edwards descobriu seu verdadeiro chamado
como pastor em Northamptom, Massachusetts. Em 1727, ele co-
meçou um ministério naquela região que duraria 23 anos, apoiado
por sua esposa Sarah e seus 11 filhos.
Dois períodos de despertamento extraordinário, 1734-1735 e
1740-1742, marcaram os anos de Edwards em Northamptom. Po-
rém, alguns problemas pastorais, combinados com sua campanha
para requerer um testemunho digno do Evangelho como algo essen-
cial para alguém ser membro da igreja e participar na Ceia do Senhor,
puseram fim ao seu ministério em Northamptom no ano de 1750.
Os integrantes da família se mudaram para a cidade fronteiriça de
Stockbridge, no oeste de Massachusetts, para serem missionários entre
os índios.
No relativo silêncio das montanhas Berkshire, Edwards escreveu
alguns dos livros que o tornariam famoso durante séculos, incluindo
sua maior obra: The Freedom ofthe Will* ' Esses sete anos de exílio
chegaram ao fim quando Edwards foi eleito presidente da Faculdade
Princeton, em Nova Jersey, em 1757. O que parecia ser um novo
começo na verdade acabou sendo o último ato da vida de Edwards.
Depois de sofrer muito devido a complicações resultantes de uma
vacina contra varíola, ele morreu aos AA anos de idade.
Esse resumo da vida de Edwards mais esconde do que revela, pois
Edwards tinha um segredo nem sempre bem entendido em nosso
século marcado pela secularização. Ele foi cativado pela aventura de
ter prazer em Deus, e todos os seus imensos poderes intelectuais
eram colocados a serviço dessa aventura. Edwards escreveu certa vez
que, mesmo depois "dos prazeres de contemplarmos a face de Deus

' A l.íberdade clã Vontade.

133
LIÇÕES DE MESTRE

por milhões de anos, isso não será algo tedioso, pois a satisfação desse
prazer será tão grande quanto sempre foi". Um de seus biógrafos
comenta: "Se ele possuía um segredo, devia estar de algum modo
ligado à sua capacidade de ter esse prazer enquanto continuava com
seus pés fincados na região da Nova Inglaterra".11 Meu pressenti-
mento é que, ao examinarmos a teologia do avivamento de Edwards,
descobriremos como ele buscou ter prazer em Deus.

Edwards e sua visão sobre o avivamento

O que é um avivamento e como podemos alcançá-lo? Considerando


que sou um cristão vivendo em uma era secularizada, essas são as
perguntas que mais me intrigam. Edwards pensava sobre essas ques-
tões e ofereceu respostas a elas. Quero examinar a visão que ele tinha
do avivamento e mostrar que a melhor maneira de lutarmos contra o
secularismo é fazer o Evangelho avançar. Depois, passar algum tem-
po investigando como os líderes poderiam usar essa visão para fazer
com que suas igrejas trilhem o caminho do avivamento.
Seis idéias úteis resumem bem a lição desse puritano da Nova Ingla-
terra para o avivamento da Igreja. Se o avivamento é um período em que
a Igreja brilha como uma estrela em uma noite escura, então o modelo
de Edwards é uma estrela de seis pontas. Vejamos cada uma delas:

• A frieza espiritual e a falta de entusiasmo em relação a Deus e


às coisas espirituais são uma doença, que o verdadeiro aviva-
mento procura curar.
• Deus e a sua glória são a fonte' e o propósito do verdadeiro aviva-
mento.
• A pregação que fala ao coração e a oração coletiva persistente
são os principais métodos de promoção do avivamento.
• A oposição e o extremismo são os inimigos crônicos do verdadei-
ro avivamento.

134
UMA LIÇÃO DE RENOVAÇÃO: ATEOLOGIA DO AVIVAMENTO DE JONATHAN EDWARDS

• Um coração iluminado pela espiritualidade é a essência do ver-


dadeiro avivamento.
• O avanço de missões por meio de uma igreja entusiasmada é o
resultado inevitável do verdadeiro avivamento.

Cada um desses seis aspectos pode nos ajudar um pouco a ser mais
parecidos com um corpo de bombeiros funcional do que com um
clube social sofisticado.

A doença: frieza espiritual

A frieza espiritual e a falta de entusiasmo em relação a Deus e às coisas


espirituais são uma doença que o verdadeiro avivamento procura curar.
Quando o Instituto Gallup revela o declínio da crença no cristianis-
mo tradicional americano ou das doações para a caridade, está apon-
tando para os sintomas de uma doença espiritual mais séria. Edwards
enxergava além das explicações tradicionais de problemas como o
secularismo, a falta de oração, os desvios teológicos, a imoralidade e
assim por diante, até a raiz desses males: a frieza espiritual.
O que ele queria dizer? Para Edwards, essa "frieza" parecia ser
um período em que as realidades de Deus e seu Evangelho ficavam
tão apagadas, a descrença e o amor pelas coisas do mundo tão for-
tes, que o coração da Igreja se perdia em busca dos luxos e triviali-
dades de uma mente secularizada. A descrição que ele faz de
Northampton no início da década de 1730 merece atenção espe-
cial; um tédio generalizado em relação ao Evangelho precedeu o
avivamento de 1734, e no solo rochoso desse tédio surgiram todos
os tipos de pecados.
Mas a frieza não é demonstrada apenas pelo pecado, sendo vista
também no formalismo da religião. Embora todos os gestos adequa-
dos possam ser feitos durante a adoração no culto, as ações podem ser
vazias. "O ato externo de adoração", declarou Edwards, "consistindo
de gestos corporais, palavras e sons, é a parte mais fácil da religião,

135
LIÇÕES DE MESTRE

e menos contrária aos nossos desejos". Nossa capacidade de auto-


engano espiritual é quase sem limites, pois mesmo quando:

[...] homens ímpios desfrutam de sua cobiça, orgulho, malí-


cia, inveja e vingança, de sua sensualidade e volúpia, em seu
comportamento entre os homens [...] eles estarão dispostos a
unir isso a Deus, e submeter a todas as formas de adoração que
desejarem, e quantas quiserem.12

"Palavras e sons são a parte mais fácil de nossa religião e a que menos
se opõe às nossas cobiças" — uma boa indicação do muito que é visto
como verdadeira religião até mesmo no meio evangélico. O coração
que perdeu seu prazer em Deus e nas coisas espirituais é um coração
com problemas. A doença que o avivamento procura curar, portanto,
é a doença da frieza espiritual vista no pecado declarado e também na
religião hipócrita.
Essa é uma colocação importante de Edwards. Podemos ver o
problema da secularização, primordialmente em sua maneira de
minimizar a importância da igreja e dos valores bíblicos. Em outras
palavras, nós, os evangélicos, podemos ver a doença ser tratada como
uma incapacidade cultural e política, ou seja, o pensamento evangéli-
co ridicularizado por pensadores importantes e os valores evangélicos
rejeitados pela cultura popular. Mas Edwards nos lembra de que a
marginalização e a impotência política, embora nos desencorajem,
não são um problema que ameaça a vida da Igreja. Afinal, a Igreja
no Livro de Atos era cultural e politicamente marginalizada, mes-
mo sendo viva e dinâmica.
Edwards nos revela que a verdadeira crise da Igreja não é o
secularismo externo, porém o tédio dentro das quatro paredes. Quan-
do a Igreja se torna fria em relação a Cristo, à verdade, à salvação, às
verdades sobrenaturais e às esperanças futuras, corremos perigo. O
mal que aflige a Igreja contemporânea é a frieza, não a impotência.
Edwards nos ajuda muito a diagnosticar qual é a doença. Mas
qual será a cura?

136
UMA LIÇÃO DE RENOVAÇÃO: A T E O I OGIA DO AVIVAMENTO DE JONATHAN EDWARDS

O remédio: Deus e sua glória

Deus e a sua glória são a fonte e o propósito do verdadeiro avivamento. A


frieza espiritual não é algo que passa despercebido diante de Deus.
Quando ele, a fonte da vida, é tratado como uma cisterna seca e vazia
pelo seu povo. Ele, o banquete da vida, é deixado de lado enquanto
seus filhos preferem "lamber a terra". O Senhor não fica satisfeito
com esse tipo de tratamento. Mesmo assim, a resposta de Deus a esse
insulto pessoal de frieza espiritual algumas vezes é surpreendente.
Ele tem todo o direito de julgar a sua Igreja por esse pecado com
uma demonstração de ira. No entanto, em momentos extraordinários,
ele derrama a sua graça em vez de julgamento e levanta adoradores
entusiasmados do seu nome dentre os que estão frios e mortos.
Segundo Edwards, o motivo primordial desse avivamento reden-
tor e cheio de graça divina é a glória do Deus Triuno:

Em tudo o que este Deus decidiu conquistar, a glória da


bendita Trindade está em destaque. Deus tinha o propósito
de glorifícar a si mesmo desde a eternidade, glorificando
assim todas as pessoas da Trindade [...] Seu propósito com
isso foi glorifícar seu Filho Unigênito, Jesus Cristo; e no seu
Filho, glorifícar o Pai (Jo 13:31, 32) [...] Foi seu plano que
o Filho fosse glorificado dessa maneira, e pudesse glorifícar
o Pai pelas obras do Espírito Santo. 13

Deus busca glorifícar a sua Família Trinitária. Então endereça o avi-


vamento para produzir um espírito de prazer santo no coração dos
pecadores secularizados e santos preguiçosos, para que eles possam
adorar a beleza divina que antes desprezavam.14
Mas o louvor centrado em Deus produzido pela obra avivadora
do Espírito não é uma obrigação religiosa que realizamos de forma
cstóica; é o ápice da satisfação humana. Edwards, assim, abraça o
hedonismo cristão (termo usado por Piper) que nos remete a Richard
Baxter. Deus é mais glorificado em nós quando estamos mais satisfeitos

137
LIÇÕES DE MESTRE

nele. A felicidade de Deus ocorre quando vemos a sua beleza ser


reconhecida, e a felicidade humana ocorre quando somos cheios
de uma sensação da beleza de Deus. Portanto, não há necessaria-
mente uma contradição entre glorificarmos a Deus e buscarmos a
nossa felicidade. 15
Como disse Agostinho, um dos pais da Igreja, nosso coração foi
feito para Deus, e não pode ficar satisfeito até que encontre satisfação
nele. Essa idéia de Agostinho pode ser vista ao longo de todos os escri-
tos de Edwards. Ele expressa isso claramente em um sermão recheado
da graça de Deus que recebeu o título de "Peregrinos Cristãos":

Deus é o maior bem de uma criatura racional, e ter prazer nele


é a única felicidade na qual a nossa alma pode ficar satisfeita [...]
Pais e mães, maridos, mulheres ou crianças, ou a companhia de
amigos terrenos, tudo isso são sombras; mas a satisfação em Deus
é a substância. Eles são apenas raios esparsos, mas Deus é o sol.
Eles são pequenas fontes, mas Deus é o oceano.16

Desse modo, o avivamento nos ajuda a cumprir o grande objetivo da


Criação: glorificar a Deus ao ter prazer nele como a grande fonte e
objetivo final de todas as coisas.
Essa revelação de que Deus é a fonte e o propósito do avivamento
é importante para nós hoje. Um dos legados do secularismo é uma
penetrante centralização no ser humano que pode, inclusive, afetar
nossa teologia e nossa adoração. Os avivamentos podem ser vistos
como momentos em que o número de pessoas na Igreja aumenta, os
filhos melhoram de comportamento, as ofertas aumentam ou todos
ficam novamente entusiasmados com a Igreja. Mas essas noções estão
centradas na maneira humana de ver o avivamento. Edwards nos
lembra de que o avivamento vem para destruir o mal da frieza espiri-
tual, que seguidamente anda de mãos dadas com a ênfase excessiva
no ser humano e em suas conquistas. Além disso, ele produz uma
maneira de ver todas as coisas que está centrada em Deus. Edwards
cuidadosamente descarta a noção de que os avivamentos são eventos

138
UMA LIÇÃO DE RENOVAÇÃO: A TEOLOGIA DO AVIVAMENTO DEJONATHAN EDWARDS

gerados pelo homem capazes de produzir entusiasmo religioso. Os


avivamentos são derramamentos do Espírito soberano, que restaura a
satisfação da Igreja em Deus e uma obsessão com a glória divina e
seus benefícios.

Métodos: pregação que mexe com o coração,


e oração persistente

A pregação que fala ao coração e a oração coletiva persistente são os prin-


cipais métodos de promoção do avivamento. O mesmo Deus que orde-
nou um propósito supremo para a redenção e o avivamento também
ordenou certos meios humanos para alcançarmos esse fim: pregação
e oração. Um dos destacados pregadores do avivamento durante o
Grande Despertamento foi George Whitefield, o "dramaturgo divino",
porém, foi algo além do teatro que lhe deu essa fama. Whitefield
buscava tocar o coração. Esse também era o alvo de Edwards:

Penso ser minha obrigação elevar as emoções de meus ouvin-


tes o mais alto possível, desde que tais sentimentos estejam
vinculados a nada mais do que a verdade [...] Nosso povo
precisa muito mais de ter o coração tocado do que de arma-
zenar conhecimento na mente, e o tipo de pregação de que
mais precisa é aquela que provoca isso.17

Ao contrário de Whitefield, Edwards foi descrito algumas vezes como


um pregador monótono e sem emoção. É verdade que ele lia os seus
sermões, todos redigidos de próprio punho e usava poucos gestos.
Mas Edwards acreditava na pregação apaixonada. Alguém que deseje
saber se Edwards era eloqüente, receberia a seguinte resposta de quem
o ouvia pregar regularmente:

Ele não tinha estudado sobre as variações da voz, e nem sobre


as fortes ênfases. Dificilmente gesticulava ou se movia atrás do
púlpito, e não tentava de nenhuma maneira agradar o gosto e

139
LIÇÕES DE MESTRE

fascinar a imaginação dos seus ouvintes, usando a eloqüência de


estilo ou ilustrações belas. Mas se, por eloqüência, você entende
o poder de apresentar uma verdade importante diante de uma
platéia com um peso enorme de argumentação, e com tamanha
intensidade emocional, que toda alma do pregador se derrama-
va em cada parte da elucidação e da aplicação, de maneira a
prender a atenção de toda a platéia, do início ao fim, e deixar
impressões que não podiam mais ser apagadas, então o senhor
Edwards foi o homem mais eloqüente que já ouvi pregar.18

A pregação do avivamento deve ser intensa, mas não precisa ser


teatral. Deve ser cheia da verdade, embora não precise ser cheia de ges-
tos. Deve ter como alvo elevar as emoções tanto quanto for possível
usando a verdade, mesmo que falemos sem gritar. Deve ser repleta
da alma exposta do pregador, mesmo que seja apenas lida. Essa é
pregação ungida, usada por Deus para eliminar a frieza e ressuscitar
os mortos.
Edwards usa a ilustração de uma casa em chamas para descrever o
tipo de pregação que Deus usa para renovar e ressuscitar:

Se você, como chefe de família, visse um de seus filhos numa


casa em chamas, sob perigo iminente de ser consumido pelo
fogo, aparentemente insensível a esse risco, despreocupado em
escapar dele, apesar de seus pedidos insistentes para fazê-lo:
você continuaria falando de maneira fria e indiferente? Não
gritaria alto, e insistiria muito, da maneira mais clara que pu-
desse, procurando mostrar o perigo que ele corria, e a loucura
dele por demorar a agir?19

Os grandes temas dessa pregação que toca o coração devem ser Cristo
e o novo nascimento. Veja os títulos de alguns dos sermões de Edwards
durante os anos do avivamento; "A justiça de Deus na condenação
dos pecadores", "A excelência de Cristo", "Apressando a vinda do
Reino", "Justificação somente pela fé", "A luz divina e sobrenatural",

140
UMA LIÇÃO DE RENOVAÇÃO: A TEOLOGIA DO AVIVAMENTO DE JONATHAN EDWARDS

"Pecadores nas mãos de um Deus irado". Esses foram os grandes temas


pregados de uma maneira "investigativa", como meio de promover o
avivamento. O foco desses sermões é a impotência humana (em lugar
da auto-suficiência) e a suficiência total de Deus como Redentor em
Cristo (em vez de fazermos algo pela nossa salvação). Na opinião de
Edwards, tanto a Lei quanto o Evangelho são fundamentais para o
tipo de pregação que pode promover o avivamento:

A principal obra dos ministros é pregar o Evangelho [...] pois


um ministro perderia muito se insistisse tanto nos terrores da
Lei e esquecesse do seu Senhor, e negligenciasse a pregação do
Evangelho; mas, ainda assim, a Lei deve ser ressaltada, e sem
ela a pregação do Evangelho seria vã.20

Esses ecos da Reforma, emitidos durante um tempo de frieza e


morte espiritual, encheram a Nova Inglaterra (e também outros
lugares) com correntes de vida nova e vigor renovados.
No entanto, a oração persistente e vigorosa deve acompanhar
essa pregação intensa e afetiva centrada na impotência humana
para salvar a si mesma e na livre graça de Deus. Edwards apresen-
tou esse meio necessário em um livro chamado A Humble Attempt
to Promote Explicit Agreement and Visible Union ofGod's People in
Extraordinary Prayer for the Revival ofReligion (1746).* Nesse li-
vro, ele pede que sejam feitas reuniões especiais de oração — de
preferência, nas noites de sábado e nos "dias sabáticos", ou seja,
aos domingos —, que peçam pela conversão do mundo. Edwards
estava convencido de que:

Se olharmos para a Bíblia como um todo e observarmos todos


os exemplos de oração que vemos registrados nela, não en-
contraremos muitas orações pedindo por alguma outra miseri-
córdia, seja livramento, restauração ou prosperidade da Igreja,

/ hna Tentativa Humilde de Promover a União visível do Povo de Deuí Um oração Extraordinária para o Avivamento
da Relinão.

141
LIÇÕES DF. MESTRI;

mas pelo avanço da glória de Deus e do Reino de sua graça


neste mundo. 21

Edwards estava convencido de que a oração persistente traria a bên-


ção redentora de Deus sobre o mundo, e que se essa oração fosse feita
em uma reunião (onde toda a Igreja orasse em uníssono por todo o
mundo em um horário determinado), o incenso dessas orações encheria
o templo celestial e liberaria os benefícios de um Deus profunda-
mente satisfeito.
Edwards pode nos ajudar nessas duas ações: pregar e orar. Primei-
ro, ele pode nos auxiliar a redescobrir a pregação de avivamento. Nos
últimos anos, vemos que a psicologia popular freqüentemente tem
substituído as verdades do Evangelho em muitas igrejas evangélicas.
A pregação terapêutica, com alto nível de entretenimento, parece ser
mais popular que a pregação expositiva, com um conteúdo extrema-
mente bíblico. O que precisamos é de uma pregação afetiva; que
toque o coração, através de uma linguagem sensível, um de vocabulá-
rio de satisfação e prazer. Ao lado disso, a pregação deve centrar-se
nas grandes verdades bíblicas da Criação, na queda e redenção, na
luz que dissipa a maldição e abre o céu e nos prazeres duráveis de
Deus. Nem os sermões com uma exegese seca nem os sermões
terapêuticos e animados irão curar os males da frieza espiritual, não
importa o quanto eles possam agitar os elementos do pensamento
centrado no homem. A pregação centrada em Deus, que exalta a
Cristo, usando a linguagem do hedonismo cristão, é a sugestão de
Edwards para promovermos um grande avivamento de prazer santo.
Depois precisamos ouvir o chamado de Edwards para a oração.
O movimento de reuniões de oração está começando a ganhar força
ao redor do mundo. Contudo, está encontrando um grande obstá-
culo dentro da própria Igreja: um número excessivo de cristãos acre-
dita de coração que somos capazes de promover a evangelização
mundial e gerar um avivamento mundial se usarmos determinadas
técnicas ou dermos os passos certos. Esse é o espírito da igreja de
Laodicéia, condenado com tanta veemência em Apocalipse 3:17.

142
UMA LIÇÃO DE RENOVAÇÃO: A TEOLOGIA DO AVIVAMENTO DE JONATHAN EDWARDS

Edwards nos desafia a abandonar esse espírito de auto-suficiência e


reconhecer as nossas alergias espirituais à cruz, que são tão prejudi-
ciais. Ele nos alerta para clamarmos a Deus, pedindo um espírito
de oração, bem como um espírito de proclamação destemida, a fim de
que os meios divinos para promoção do avivamento possam ser exer-
cidos por sua Igreja.

Os inimigos do avivamento: oposição e extremismo

A oposição é o extremismo são os inimigos crônicos do verdadeiro avi-


vamento. Edwards apresenta um quadro tão brilhante do poder do
avivamento para curar os males da Igreja que podemos concluir que
os avivamentos são ocasiões de bênçãos especiais e de glorioso sucesso
espiritual. J.I. Packer chama esse tipo de pensamento de falácia
romântica. "Caímos nele", escreveu ele:

[...] quando passamos a imaginar que o avivamento, quando


vier, será como o último capítulo de uma história de detetive
— resolvendo todos os nosso problemas, limpando todas difi-
culdades que surgem dentro da Igreja, e nos deixando em um
estado de paz e contentamento idílicos, sem problemas para
nos deixar mais perplexos.22

Edwards não tinha visões românticas sobre o avivamento. Ele


vislumbrava muito do lado obscuro do Grande Despertamento para
algum dia esperar algo diferente. Muitas páginas de seus principais
escritos sobre o avivamento — com exceção de sua primeira obra, A
FaithfulNarrative ofSurprising Conversions* — são dedicadas a ana-
lisar corrupções. Packer resume o catálogo de horrores do avivamento
conforme vemos abaixo:

Eles caem em orgulho, desilusões, desequilíbrio, modelos


consensuais de discurso, formas extravagantes de ação. Pessoas
" Uma Narrativa Fielde Conversões Surpeencüntes.

143
LIÇÕES DE MESTRE

não convertidas são levadas pelo que está acontecendo; elas


sentem o poder da verdade, embora seu coração não tenha
sido renovado; elas se tornam entusiastas, desiludidas e con-
fiantes em si mesmas, duras e amargas, ferozes e cheias de
vangloria, rabugentas e fanáticas, briguentas e perturbadoras.
Então, talvez alguns possam cair em um grande pecado e
apostasia ao mesmo tempo, ou apenas continuam na Igreja
para escandalizar o resto [...] ao afirmar, em terreno dogmati-
camente perfeito, que, embora o que fazem seja considerado
pecado nos outros, não é pecado para elas. Satanás [...] procu-
ra acompanhar a Deus, pervertendo ativamente e distorcendo
tudo o que o Criador faz.23

Para explicar que o avivamento pode resultar em problemas e tumul-


to, Edwards usou a analogia da primavera, que renova a terra morta
com chuva e tempestade:

Depois que a natureza ficou fechada durante muito tempo em


um estado frio de morte, quando o sol volta durante a prima-
vera, juntamente com o aumento da luz e do calor do sol,
surge um clima de tempestade antes que toda a natureza se
alegre em seu florescimento e beleza.24

Por isso deveríamos esperar que a poderosa obra do Espírito levantará


enorme oposição de Satanás e do mundo. No entanto, depois da
tempestade haverá um tempo de "florescimento e beleza".
Por esse motivo, Edwards dedica tempo e espaço consideráveis
para combater os extremos. Ele combate os extremistas que dese-
jam rejeitar o avivamento por causa do excesso. Depois, combate o
grupo oposto de extremistas, que deseja ver os excessos como o verda-
deiro avivamento. Ambos estão equivocados, e ambos devem ser
esperados em qualquer verdadeiro avivamento de Deus. As "velhas
luzes" (que se opõem ao avivamento) e "novas luzes" extremistas (cujo
zelo exagerado pelo avivamento levam ao extremismo) surgiram por

144
UMA LIÇÃO DE RENOVAÇÃO: A TEOLOGIA DO AVIVAMENTO DE JONATHAN EDWARDS

toda parte durante o Grande Despertamento (e, podemos acres-


centar, todos os avivamentos posteriores). Repetidas vezes Edwards
volta à necessidade de testar os movimentos religiosos conforme as
Escrituras. Ele aponta para a exaltação de Cristo e as evidências do
fruto do Espírito como o principal sinal visível do Espírito de Deus. 25
Precisamos ouvir as conclusões de Edwards. Quando oramos pelo
avivamento, estamos orando por problemas.
É possível ver o movimento de crescimento da Igreja ao redor do
mundo — que possui um caráter amplamente carismático — como
se fosse outro grande despertamento. Alguns rejeitam essa interpre-
tação, porque não gostam da anemia teológica ou do comportamento
extremista envolvidos nesse movimento global. Contudo, Edwards
nos alerta sobre a reação temerosa aos excessos e problemas. Podemos
criticar esse tipo de derramamento por estar cheio de carnalidade e
corrupção. Nossa tarefa é aperfeiçoar e reformar as imperfeições do
avivamento de modo similar ao que Edwards procurou fazer (usando
o ensino, os escritos e a oração) e encontrar o ponto de equilíbrio
entre os cínicos da "velha luz" e os fanáticos da "nova luz".

A essência do avivamento: o coração iluminado

Um coração iluminado pela espiritualidade éa essência do verdadeiro aviva-


mento. Segundo Joseph Tracy, que escreveu um século depois do even-
to, a grande lição do Grande Despertamento foi o novo nascimento:

Essa doutrina do "novo nascimento" como uma mudança


verificável não foi prevalente em qualquer comunhão específi-
ca quando o avivamento começou. Ela foi considerada pelos
principais promotores do avivamento algo de importância fun-
damental, tomando conta daqueles que foram afetados pelo
avivamento. 26

Edwards concordaria com Tracy. A essência do avivamento é a ilumi-


nação espiritual no coração dos pecadores mortos ou dos santos frios,

145
LIÇÕES DE MESTRE

quando "uma luz divina e sobrenatural" os leva a desejar Cristo e sua


beleza moral. O que faz esse tipo de compreensão das coisas espirituais
ser algo capaz de mudar tantas vidas? A experiência do coração. Ela é
tão diferente de uma compreensão puramente intelectual da graça
quanto "um julgamento racional de que o mel é doce" é da "percep-
ção de sua doçura".27
Para os que estão mortos espiritualmente, essa iluminação espiri-
tual se revela em uma conversão visível que, embora tenha variações
em cada caso, envolve (1) humilhação pelo pecado, (2) confiança
total em Cristo e (3) uma vida de santidade crescente.28 A compreensão
de conversão segue, com pequenas modificações, o modelo de William
Perkins —visto no capítulo quatro. Para os santos frios, a experiência
de iluminação espiritual é revelada em um prazer renovado das reali-
dades da salvação e do mundo eterno.
Assim, para Edwards a essência do avivamento é a obra do Espí-
rito que produz e renova a fé. Essa fé está enraizada no Evangelho,
é um dom do Espírito, centrada nas excelências morais de Cristo e
sua misericórdia, que vai além da convicção racional baseada em sua
probabilidade. A razão, conforme foi idolatrada na Europa do sé-
culo XVIII e na América do Norte, se revela como algo impotente
diante da fé que pode chegar à essência de Deus em Cristo e à
certeza da libertação que foi conquistada. J.I. Packer estava certo ao
dizer que, para Edwards:

A verdadeira piedade era [...] um dom sobrenatural, de caráter


humano e intensamente experimental em seu resultado. Era,
de fato, uma comunicação realizada com Deus por meio de
Cristo, e concretizada pelo Espírito Santo e expressada em sen-
timentos e atividades responsivas.29

Que melhor defesa contra o espírito de iluminação secular pode ser


encontrada do que a obra soberana de iluminação espiritual do Espírito
Santo? Que notáveis mudanças ocorreriam em nossas cidades grandes
e pequenas, em nossa política e na mídia, em nossas universidades e

146
UMA LIÇÃO DE RENOVAÇÃO: A TEOLOGIA DO AVIVAMENTO DE JONATHAN EDWARDS

escolas, igrejas e organizações paraeclesiásticas, se a realidade vivida e


impulsionadora das coisas divinas pudesse varrer os frios e mortos e
trazer esse "sentido do coração" a milhões de pessoas! Edwards mos-
trou o que deve ser nosso impulso principal de busca e desejo — um
grande derramamento do Espírito que gera a verdadeira fé e seus
diferentes frutos. Esse é o cerne da questão.

Resultado: missões

O avanço de missões por meio de uma Igreja entusiasmada é o resultado


inevitável do verdadeiro avivamento. Edwards sentia que o maior sinal
visível do avivamento é uma explosão de amor e serviço para o mun-
do. As expressões desse serviço podem variar, mas nenhum poderá ser
maior do que espalhar o Evangelho da vida, a fonte dos maiores pra-
zeres e satisfações.30 Um século antes do movimento missionário
moderno ter chegado à África, Edwards anteviu o dia em que o véu
seria retirado dos olhos das nações:

Então todos os países e nações, até mesmo os que agora são os


mais ignorantes, serão cheios de luz e de conhecimento. O
grande conhecimento deverá prevalecer em toda parte. Pode-
mos esperar que nesse momento muitos dos negros e índios se
converterão e livros excelentes serão publicados na África, na
Etiópia, no Tártaro, em outros lugares que hoje são os países
mais bárbaros, e não apenas os homens letrados, mas outros de
educação mais básica naquele momento deverão ser instruídos
na religião.31

Qual será o grande meio para promover essa propagação mundial do


Evangelho? Avivamentos:

Deus, ao derramar o seu Espírito Santo, capacitará os homens a


ser instrumentos gloriosos para realizar a sua obra; os encherá de
conhecimento e sabedoria, e zelo fervoroso para promover o

147
LIÇÕES DE MESTRE

Reino de Cristo, a salvação das almas e a propagação do Evange-


lho no mundo. O Evangelho deve começar a ser pregado com
maior clareza e poder do que foi até este momento.32

Edwards ansiava pelo dia quando "uma igreja americana reavivada


serviria como base da expansão do Evangelho até que toda terra esteja
cheia do conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar" ,33
Essa visão chegou a se concretizar? O Grande Despertamento
realmente produziu ação missionária? Uma explosão de missões e
evangelização em solo americano ocorreu imediatamente como con-
seqüência do avivamento, mas o zelo espiritual parece ter esfriado nas
décadas de 1770 e 1780. No entanto, na década de 1790, "ocorre-
ram os projetos missionários de William Carey, a formação da Socie-
dade Missionária de Londres, a Sociedade Missionária da Igreja e,
posteriormente, a Sociedade Missionária Metodista". 34 Existiria uma
ligação entre o avivamento e o despontamento do movimento mo-
derno de missões? Edwards teria dito "sim" sem hesitação. Muitos
missionários do século XIX, incluindo o próprio Carey, admitiam a
existência de uma ligação inegável.
Seja qual for a verdadeira ligação entre o Grande Despertamento e o
movimento missionário do século xix, o comentário de Edwards con-
tinua válido: o avivamento deveria produzir missões. Nossa preocupação
com o crescimento da Igreja e a evangelização do mundo (expresso em
grandes encontros para promover missões, como as consultas de
Lausanne, o movimento AD 2000 e Além, e a Co-mission, voltada
para a região da antiga União Soviética) não deveria negligenciar a liga-
ção entre avivamento e alcance global. Ser um cristão global e buscar o
avivamento são resultados necessários, não uma opção a mais. A "glória
dos últimos dias da Igreja", que Edwards tão seguidamente escreveu a
respeito, somente acontecerá por meio de avivamentos.

Colocando em prática a lição de Edwards

Em um século em que a Igreja luta pela sua sobrevivência, a teologia


do avivamento de Edwards traz uma palavra relevante. Já observamos

148
UMA LIÇÃO DE RENOVAÇÃO: A TEOLOGIA DO AVIVAMENTO DE JONATHAN EDWARDS

os ensinamentos de Edwards sobre o verdadeiro avivamento; a doença


que precisa de cura é a frieza e morte espiritual; a fonte do avivamen-
to e seu objetivo final são Deus e sua glória; seus principais métodos
são a pregação que fala ao coração e a oração persistente; seus inimi-
gos crônicos são a oposição e o extremismo; sua essência são os cora-
ções iluminados pela espiritualidade; e o avanço de missões por meio
de uma Igreja entusiasmada é o resultado.
Mas o que Edwards tem a dizer para os líderes? Você, pastor,
missionário, professor, membro do conselho, administrador ou obreiro,
pode sentir que a realidade o está empurrando para cair na "tirania
do urgente" e militar contra o "luxo" de uma visão de longo alcance.
Mesmo assim, George Barna nos lembra que o líder visionário pode
ser uma das grandes vantagens de um ministério:

Os pastores que buscam ativamente cumprir a visão de Deus


quanto ao seu ministério são tesouros para a Igreja. São pasto-
res não impulsionados pela necessidade de auto-engrandeci-
mento ou gratificação do próprio eu, mas por um requeimante
desejo de ver a vontade de Deus ser cumprida de modo pleno.
Esses são pastores que têm mesclado a sua visão pessoal com a
visão divina acerca das igrejas que lideram. Suas igrejas con-
seguem realizar algo singular, significativo e especial, pois o
Espírito Santo os tem capacitado a compreender uma imagem
do futuro, mapeando-o e traçando um curso de ação que leve
àquele alvo. 3 '

Edwards pode nos ajudar a ser o tipo de líder que "captura uma
imagem do futuro e [...] estabelece o plano de ação para alcançar esse
objetivo". A teologia de Edwards nos mostra que podemos ajudar
nosso povo a resistir melhor aos desafios seculares, quando ele experi-
menta o ministério de iluminação do Espírito Santo.
A principal implicação para os líderes dessa teologia do avivamento
de Edwards parece ser nossa resistência à secularização quando nos
tornamos agentes do avivamento. O que é um agente do avivamento?

149
LIÇÕES DE MESTRE

Duas palavras o caracterizam: preparação e promoção. Um agente do


avivamento prepara a vinda do avivamento no ministério e na família
e depois estabelece o plano que promoverá o avivamento.
Uso n° 1: Rejeite a situação espiritual rotineira. Decidir pela prepa-
ração do avivamento significa, primeiro de tudo, rejeitar a situação
espiritual rotineira. A sua família, o ministério ou a igreja parecem
estar pesados por causa da frieza em relação a Deus e às coisas espiri-
tuais? Você sente falta de um desejo forte e crescente pelos prazeres
permanentes de Deus? John Piper descreve as condições que vivem
muitas de nossas igrejas:

O inimigo da adoração não é que nosso desejo por prazer é


muito forte, mas muito fraco! Nós nos acomodamos com um
lar, uma família, alguns amigos, um emprego, um televisor,
um forno de microondas, às vezes um computador novo. Acos-
tumamos-nos demais a esses prazeres pobres e passageiros, de
modo que nossa capacidade de se alegrar encolheu. E nossa
adoração também. 36

Aumentar nossa capacidade atrofiada de se alegrar é um pré-requisi-


to para buscar o avivamento. O avivamento não é um período de
experiências espirituais supérfluas, mas uma restauração daquilo que
deveria ser a experiência espiritual normal. Na maior parte do tem-
po, a Igreja vive em um estado espiritual abaixo do normal. Jamais
devemos nos acostumar a esse estado de frieza espiritual. Devemos
lutar contra isso como líderes, chefes de família e como indivíduos.
Uso n" 2: Faça algo para restaurar a sua paixão. Recentemente,
minha família percebeu que atravessávamos um período de frieza
espiritual. Alguns meses se passaram até que percebêssemos que vi-
víamos um estado espiritual de fraqueza. Após algumas conversas em
particular com minha esposa, filha e filho, fizemos uma reunião para
discutir o problema. Admitimos nossa doença e decidimos "restaurar
nossa paixão espiritual"; para tanto lutamos contra aquela situação
espiritual rotineira e oramos, pedindo por uma experiência maior

150
UMA LIÇÃO DE RENOVAÇÃO: ATF.OI.OGIA DO AVIVAMENTO DEJONATHAN EDWARDS

com as satisfações de Deus. Encontramos alguma ajuda no artigo


de Marlene LeFever, "100 Ways to take the yawn out of your
relationship with God".* 37 Cada um de nós estabeleceu um plano
de quatro ou cinco itens que deveríamos fazer para mudar aquela
situação espiritual. Em todas as noites de domingo subseqüentes,
fizemos reuniões para avaliar o nosso progresso. No período de um
mês, sentimos algumas atitudes mudarem e certos apetites atrofiados
serem restaurados.
Sua igreja ou organização cristã fará bem se decidir convocar
seus membros para um "mês de restauração da paixão espiritual",
quando poderão lutar contra a frieza e dar alguns passos úteis para
a mudança. Um líder espiritual se prepara para o avivamento quan-
do se recusa a aceitar uma situação espiritual rotineira.
Uso n°3: Oponha-se a modelos questionáveis de avivamento. Edwards
não foi o único líder ocidental com uma visão renovada de avivamen-
to. Muitas teologias de avivamento surgiram durante o século XIX.
Provavelmente, o mais famoso desses modelos foi o proposto pelo
evangelista Charles G. Finney (1792-1875), um avivalista famoso
do século XIX. Alguns dos principais elementos desse modelo estão
em contraste direto com a teologia do avivamento de Edwards. Finney
ensinava uma percepção bastante humanista do livre-arbítrio e da
graça, enfatizando a nossa parte no plano de salvação e minimizando
a graça de Deus. Ele discordava de Edwards no tocante à origem
divina dos avivamentos e insistia que eles eram situações criadas pelo
homem, resultados do uso dos métodos corretos, após uma ação
calculada e planejada. Ele acreditava que o avivamento ocorria quan-
do alguém utilizava certas técnicas para gerar um nível de entusias-
mo religioso alto o suficiente para que pecadores tomassem decisões
instantâneas, baseadas na emoção. Finney ensinou também que os
pecadores tocados emocionalmente deveriam vir a Cristo após um
convite público e que a santidade (compreendida como uma perfei-
ção isenta de pecado) é uma experiência pós-conversão que não podia
ser esperada de um novo convertido.
/ 00 maneiras de tirar a monotonia do seu relacionamento com Deus.

151
LIÇÕES DE MESTRE

Esse modelo causou um grande impacto na América do Norte e


— pela influência dos missionários e evangelistas itinerantes — por
todo mundo, inclusive na África. Admito que esse modelo é deficien-
te em sua visão da graça, soberania de Deus, em sua tendência de
manipular as pessoas para tomar decisões e em sua ênfase incorreta
na santidade como um segundo estágio da vida cristã. Finney fez
grandes conquistas para o Reino de Deus, mas suas experiências de
avivamento eram melhores que a sua teologia do avivamento.38
A sombra da grande influência de Finney algumas vezes esconde o
modelo de Edwards, que era melhor. O índice de desistência de tan-
tos convertidos pelo método de Finney (junto ao efeito "desgastante"
de endurecimento espiritual que ele produz) deveria nos fazer ques-
tionar os métodos e teologias de avivamento que minimizam o papel
divino e maximizam o papel dos seres humanos.
Edwards continua sendo uma ajuda para o agente de avivamento
hoje em dia, porque ele é forte precisamente nas áreas em que tende-
mos a ser fracos. Seu modelo está em todo momento centrado em
Deus, impulsionando biblicamente e com a capacidade de resistir à
corrosão da modernidade. Que tipo de modelo você está apresentando
em suas pregações e aulas? Que definições de avivamento surgem em
sua congregação por meio de suas orações e ações? Tome a decisão de se
preparar para o avivamento, resistindo aversões de renovação centradas
no homem e adotando os modelos que estejam centrados em Deus.
Uso n° 4: Pregue e ensine com o coração. Além de se preparar para o
avivamento da igreja das três maneiras anteriores — resistir ao estado
atual das coisas, agir de maneira prática e evitar os modelos falhos de
avivamento —, um líder visionário precisa tomar algumas decisões
em relação a duas maneiras práticas de promover o avivamento: pre-
gação e oração. Edwards acreditava que Deus normalmente derrama
seu Espírito em resposta à pregação afetuosa do Evangelho e à oração
comunitária persistente.
Que decisões precisam ser tomadas na área da oração e do ensino?
Uma decisão importante é evitar um espírito reacionário em nossa
pregação. Estamos cientes de que a visão de mundo secular e

152
UMA LIÇÃO DE RENOVAÇÃO: ATEOLOGÍA DO AVIVAMENTO DE JONATHAN EDWARDS

humanista opõe-se de várias maneiras à visão de mundo cristã. O


secularismo exalta o relativismo moral; o cristianismo exalta os abso-
lutos bíblicos. O secularismo está preocupado apenas com as coisas
terrenas e temporais; os cristãos estão preocupados com o eterno e o
transcendente. O secularismo despreza os fatos históricos como base
para a verdade; o cristianismo depende dos fatos históricos para provar
sua veracidade. O secularismo é naturalista e pragmático; o cristia-
nismo é sobrenatural e idealista.39 Por isso, o pregador ou o professor
desejoso de fortalecer os cristãos que se deparam com o secularismo
pode ser tentado a se tornar reacionário. Esse tipo de pregação e
ensino pode reduzir o cristianismo a uma polêmica lista de fatos que
combatemos, em vez de oferecer uma visão das realidades da vida que
somos a favor. Precisamos pregar ao coração, exaltando as grandes
verdades da criação, queda e redenção, e construir uma visão de mundo
cristã positiva, capaz de apoiar a verdade bíblica e levar ao prazer no
Deus triuno. 40
Se desejamos evitar a pregação e o ensino reacionário, seria bom se-
guirmos o modelo de Edwards — não lendo os manuscritos, palavra por
palavra, como ele aparentemente fazia, mas nos submetendo à dinâmica
que deu tanto poder à sua pregação. Piper ressaltou dez dessas dinâmicas
capazes de promover a pregação e o ensino eficazes hoje em dia:

• Desperte sentimentos santos e desejos por Deus.


• Ilumine a mente com a verdade.
• Sature seu povo com as Escrituras.
• Empregue analogias e imagens que façam "com que as glórias do
céu pareçam irresistivelmente belas e os tormentos do inferno,
horrivelmente intoleráveis".
• Use ameaças e advertências para alertar as pessoas dos perigos
da frieza e da morte espiritual.
• Peça uma resposta de amor a Cristo e arrependimento do
pecado e da incredulidade.

153
LIÇÕES DE MESTRE

• Sonde as operações do coração para expor as necessidades e o


auto-engano dos ouvintes.
• Submeta-se ao Espírito Santo em oração antes de pregar.
• Tenha um coração quebrantado e compassivo.
• Seja intenso ao apresentar as realidades e urgências inerentes
ao Evangelho. 41

Avaliar a pregação de uma pessoa com essa lista de dez pontos possi-
velmente é o primeiro passo para promover o tipo de pregação que
Deus seguidamente abençoou com o avivamento.
Uso n° 5: Promova a oração de avivamento. O que podemos fazer
para promover o tipo de oração que resulta em avivamento? Se dese-
jamos o avivamento, na verdade é preciso orar menos por avivamento
e mais por missões. O propósito de Deus em reavivar a sua Igreja é
promover seu grandioso nome em toda a Terra. Richard Lovelace
comentou sobre a necessidade de uma nova agenda para a nossa ora-
ção comunitária:

Um aumento da quantidade de oração pode não ser tão im-


portante quanto o estabelecimento dessa agenda. Deus, assim
como Jesus nos disse, não está impressionado com a quantidade
de nossas palavras (Mt 6:7, 8). Ele responde, no entanto, quan-
do pedimos aquelas coisas que estão intimamente relacionadas
com os interesses do Reino do seu Filho.42

Que tipos de pedido de oração seriam interessantes para o Reino do


Filho de Deus? As orações em favor do avanço do Reino de Cristo a
todos os povos e pessoas do mundo retirará a Igreja do complexo de
inferioridade imposto por uma era secular. Além disso, gerará uma
adoração ao Filho repleta de esperança, que encherá o mundo do
conhecimento do seu nome. É por isso que gosto tanto do movi-
mento dos "Encontros de Oração". Um encontro de oração enfatiza
a adoração, desperta a Igreja e promove o avanço do Evangelho.

154
UMA LIÇÃO DE RENOVAÇÃO: A TEOLOGIA DO AVIVAMENTO DE J ONATHAN EDWARDS

Lissa é a agenda certa. Queremos glorificar a Deus, e por isso oramos.


Queremos espalhar a chama de seu grande nome em todo o mundo,
por isso pedimos que ele nos desperte ou reavive para realizarmos
essa grande tarefa. Tais orações são claramente da vontade de Deus e
trarão a sua benção sobre nós.
Em 1993, somente na América do Norte, ocorreram milhares
de encontros de oração. Os jovens, em especial, parecem gostar de
orações voltadas para missões, porque eles "se entusiasmam com a
grandeza de um Deus global, e com o propósito de um Rei sobera-
no, impossível de ser detido". 43 Por que não trabalhar com algumas
outras igrejas ou grupos de jovens em sua área para promover um
"encontro de oração?"
A publicação de uma nova edição do livro Intercessão Mundial, de
Patrick Johnstone, deu à Igreja uma ferramenta melhorada para pro-
mover a intercessão global.44 Intercessão Mundial apresenta mais de
quinhentas páginas de informações para a oração pelos povos deste
mundo. Utilize esse guia para sua oração pessoal, intercessão em gru-
pos pequenos e tempo devocional em família. Qualquer atitude que
venha a encorajar um movimento de oração para a glória de Deus
deveria ser defendida pelos líderes. Missões são os temas de oração
que causarão um avivamento, pois "fluem do amor pela glória de
Deus e pela honra de sua reputação".45
Os líderes perspicazes encontrarão muitas outras aplicações para
as idéias de Edwards além das que sugeri aqui. Creio, porém, que já
disse o suficiente para convencê-lo de que a teologia de avivamento
de Edwards é a contribuição individual mais importante que ele tem
a oferecer ao pensamento evangélico moderno.

155
LIÇÕES DE MESTRE

QUESTÕES PARA DEBATE

1. Revise as seis sugestões de Edwards. Um denominador co-


mum de todas essas sugestões é a necessidade de uma nova
visão de Deus e seu amor por nós em Jesus Cristo. Leia
Efésios 3:14-19. Até que ponto o modelo de Edwards para
o avivamento é um comentário desses versos?

2. Escolha um dos usos apresentados neste capítulo e faça


planos para colocá-lo em prática. O que parece ser mais
relevante para a nossa situação? Que ações precisam ser
tomadas para implementar essa idéia?

LEITURAS COMPLEMENTARES

Uma breve biografia de Jonathan Edwards pode ser encontrada


em Jonathan Edwards e a Crucial Importância de Avivamento,
de D. M. Lloyd-Jones (Publicações Evangélicas Selecionadas).
O livro de Piper, Supremacia de Deus na Pregação (Shedd Pu-
blicações) também traz relatos sobre a vida e a teologia de
Edwards.
Para conhecer um pouco da obra de Jonathan Edwards em
primeira mão, leia A Genuína Experiência Espiritual (Publica-
ções Evangélicas Selecionadas), O Dom Maior (Editora Fiel)
ouy4 Verdadeira Obra do Espírito (Edições Vida Nova).

156
CAPíTULO7

UMA LIÇÃO DE CRESCIMENTO:


O CONCEITO DE DISCIPULADO
DE JOHN WESLEY

Mcredito que a Igreja evangélica éfraca, preocupada demais consigo


mesma e superficial". Essas foram as palavras de Bill Hull em The
Disciple Making Pastor) São palavras fortes. O que provocou essa ira
em Hull? Parece que o aspecto mais irritante é o crescimento da Igre-
ja. Mas qual o problema com o crescimento da Igreja? Enquanto as
igrejas evangélicas vão se enchendo de espectadores, estão ficando
vazias de discípulos. Hull prossegue, "Acredito que a crise da Igreja
está relacionada com sua produção, o tipo de pessoa que é produ-
zida". O que podemos fazer para melhorar a qualidade de um produ-
to? "Proponho como solução que sejamos obedientes à comissão de
Cristo, para 'fazer discípulos' e ensinar os cristãos a obedecerem tudo
o que Cristo mandou". 2
Hull não está sozinho em sua preocupação com a falta de
discipulado na Igreja Evangélica moderna. Elton Trueblood descreve
o problema usando termos militares:

Talvez a maior fraqueza da Igreja Cristã contemporânea seja a


de que milhões de supostos membros não estão realmente en-
volvidos e, o que é pior, não acham estranho esse fato. Assim
que reconhecermos as intenções de Cristo para fazer de sua

157
LIÇÕES DE MESTRE

Igreja uma companhia militante, entenderemos de uma vez


por todas que os arranjos convencionais não são suficientes.
Inexiste chance real de vitória em uma campanha se 90% dos
soldados não possuem treinamento e não se dedicam, mas é
exatamente isso o que está ocorrendo hoje em dia.3

O capítulo anterior descreveu o avivamento que Deus enviou duran-


te o século xvill. George Whitefield, John Wesley e Jonathan Edwards
foram os principais agentes usados por Deus durante esse avivamento,
que foi uma força poderosa na restauração da Igreja e da sociedade.
Whitefield é lembrado pela evangelização na Europa e na América
do Norte. Edwards é lembrado por ter oferecido a teologia que pode-
ria aumentar a qualidade do avivamento. E John Wesley ofereceu
uma nova estrutura do ministério, que estenderia o impacto do Desper-
tamento por meio da disciplina dos novos convertidos.
A grande lição oferecida por Wesley era bastante simples; a Igreja
não muda o mundo quando gera convertidos, mas quando gera discípu-
los. Para preservar o fruto do avivamento e transformar a sociedade, a
Igreja precisa ir além de fazer convertidos e dedicar-se a fazer com
que esses convertidos cheguem à maturidade.
O conceito de discipulado de Wesley renovou o ministério da Igre-
ja, preservou os frutos do avivamento e foi o exercício prático de muitos
princípios da Reforma, dos anabatistas e dos pietistas. Foi uma das
grandes lições da história da Igreja. Os líderes que estão preocupados
com o fato da Igreja de hoje ser "fraca, egoísta e superficial" deveriam
prestar atenção especial para a poderosa ênfase de Wesley.
Como Wesley desenvolveu esse conceito de discipulado? Que
impacto suas idéias tiveram sobre os seus dias? Antes de responder a
essas questões, precisamos conhecer o homem por trás dessa idéia.

A vida de Wesley

Um menino de seis anos de idade aterrorizado olhava para sua famí-


lia, que reunida também o olhava em meio à escuridão, abaixo dele.

158
UMA LIÇÃO DE CRESCIMENTO: O CONCEITO DE DISCIPULADO DE JOHN WESLEY

O garoto estava preso um quarto, no andar superior de sua casa, que


se consumia em chamas. Segundos antes que o teto desabasse, dois
vizinhos conseguiram resgatar aquele menino assustado do quarto
cheio de fumaça. Aquela criança jamais se esqueceria daquele dia.
Mesmo quando adulto, John Wesley lembraria daquela noite e da
mão de Deus sobre a sua vida. Posteriormente, Wesley se referiria a si
mesmo usando as palavras de Zacarias 3:2: "Um tição tirado do fogo".
Por que ele foi poupado? O que Deus tinha para ele? Olhando
em retrospecto, podemos dizer que Deus o poupou para poder salvar
a Inglaterra — tanto sua Igreja ali quanto o país. Ambos precisa-
vam dessa ajuda. Pensemos sobre a situação que a Inglaterra vivia
no século XVIII.
Os analistas contemporâneos descrevem uma Inglaterra que esta-
va em rebelião moral e intelectual contra o cristianismo. O deísmo
[crença que Deus estava longe] estava cobrando seu preço, embora as
defesas públicas da fé feitas por cristãos como Joseph Butler tenham
retardado um pouco esse processo. Butler descreveu assim os outros
desafios que a Igreja encarava no início do século xviii:

Chegou, não sei como, a ser dado como certo por muitas pes-
soas que o cristianismo não é mais um objeto de investigação,
mas que agora se descobriu que é uma ficção. Eles o tratam
dessa maneira no presente, como se fosse uma questão com
que concordam todas as pessoas de discernimento. Parece que
nada permaneceu, pois passou a ser a questão principal de sua
zombaria e ridicularização, como se fosse uma maneira de re-
taliá-lo por ter interrompido os prazeres deste mundo durante
tanto tempo. 4

George Berkley, o bispo de Cloyne, acrescentou que a iniqüidade


dominava a sociedade inglesa a ponto de "ameaçar uma inundação
geral e a destruição desses domínios". 5
Escrevendo sobre o Despertamento Inglês do século XVIII, A.
Skevington Wood documenta a esterilidade moral, espiritual e teológica

159
LIÇÕES DE MESTRE

da Igreja da Inglaterra e das igrejas que surgiram a partir dela. Em-


bora seja inegável que existissem pontos de luz, a teologia humanista,
em conjunto com o moralismo e o racionalismo do clero, conforme
propostos pelo arcebispo Tillotson, deram à Igreja da Inglaterra a
tarefa incomparável de conter essa onda anti-religiosa. Enquanto isso, j
os não conformistas estavam tão afetados pelo arianismo e a frieza \
espiritual, com exceção de homens piedosos como Isaac Watts, que !
não se podia esperar uma renovação vinda deles.
O início da vida de John Wesley e sua educação formal o prepa-
ram para seu chamado de evangelista, reformador e díscipulador. Temas <
marcantes de sua criação foram a disciplina e a ordem. Ele nasceu em 1
1703, na cidade de Epworth, sendo o 15 o filho do reverendo anglicano '
Samuel Wesley. Desse modo, John Wesley cresceu em uma casa em
que cada criança precisava cuidar de si mesma. Sua mãe, Susannah, j
ensinou seu filho que o segredo do sucesso era "ter um lugar para
cada coisa e pôr cada coisa em seu lugar". Essa paixão por ordem e j
disciplina vinha de longe. Os avós de John Wesley foram puritanos 1
não conformistas e, na época que foi enviado para Oxford, ele estava
convencido de que a preguiça e a superficialidade eram os dois grandes
inimigos da alma, enquanto o sucesso espiritual podia ser alcançado
pela disciplina. Wesley acreditava que poderia evitar o relaxamento
moral e espiritual se seguisse os passos de seu pai. Ele se tornou
diácono em 1725 e foi ordenado ao ministério em 1728.
Enquanto esperava a sua ordenação, Wesley foi professor na Fa-
culdade Lincoln, em Oxford, em 1726, e concluiu seu mestrado em
1727. Porém, sua vida era consumida por algo maior do que o
academicismo. Foi durante esses anos como professor que Wesley leu
o livro A Serious Call to a Devout andHoly Life* de William Law. O
impacto desse livro em sua vida foi profundo. Wesley se sentiu atraí-
do a uma vida ascética para encontrar a Deus, trilhando o caminho
da negação do eu e da autodisciplina. Ele provou a força de suas
convicções quando assumiu a liderança de uma sociedade religiosa
fundada por Charles, seu irmão mais novo, e que recebeu o apelido I

* Um Chamado Sério para uma Vida Santa e Devotada. fl

160 I
UMA LIÇÃO DE CRESCIMENTO: O CONCEITO DE DISCIPUIADO DE JOHN WESLEY

jocoso de "Clube Santo". As regras do clube exigiam uma disciplina


pessoal rígida, uma vida devocional rigorosa e um trabalho de carida-
de considerável entre os pobres. 6
O Clube Santo não era algo único. Sociedades religiosas como
esta estavam se multiplicando por toda a Inglaterra. As raízes desse
movimento de grupos pequenos estavam na collegia pietatas do
pietismo alemão. Um pastor luterano chamado Philip Spener en-
corajara a formação dessas sociedades de oração e piedade em seu
livro Pia Desideria (1675). Na Inglaterra, Anthony Horneck ten-
tou colocar a idéia de Spener em prática em 1678, quando fundou
uma sociedade para jovens anglicanos. No início do século xvo,
havia centenas desses grupos pequenos.
Wesley se submeteu às regras rígidas do Clube Santo por um
motivo simples; ele queria salvar a sua alma ao ficar livre de todo o
pecado. Em uma carta dirigida ao seu pai em 1734, chegou a es-
crever: "Meu único objetivo na vida é assegurar minha santidade
pessoal".7 Wesley acreditava que encontraria a salvação se pudesse
alcançar um estado de completa santidade e pureza. Ele procurava
outras oportunidades para limpar a sua alma.
Uma dessas oportunidades surgiu em 1735- Wesley teve a chance
de se tornar missionário na colônia recém-fundada no Estado ameri-
cano da Geórgia. John e seu irmão Charles conheceram o coronel
James Oglethorpe, o proprietário da colônia, que os recrutou para
trabalhar na Geórgia. John trabalharia como missionário entre os
índios, e Charles seria o secretário pessoal do coronel.
Eles logo partiram para a América do Norte. Durante a difícil tra-
vessia do oceano, Wesley ficou impressionado com a piedade de um
grupo de morávios que estavam a bordo do mesmo navio. Sob a li-
derança do piedoso David Nitschumann, aqueles pietistas alemães
demonstraram humildade, serviço amoroso aos outros e coragem mes-
mo diante da morte. Wesley sentia que eles manifestavam um nível de
fé em Deus e semelhança com Cristo que ele próprio não possuía.
Wesley estava certo em relação a essas duas questões. Geórgia,
como um lugar para encontrar a salvação pelas obras, fora um fracasso

161
LIÇÕES DE MESTRE

total. Ele nunca chegou a ter contato com os índios americanos.


Na verdade, acabou servindo como sacerdote em uma igreja local e
logo entrou em conflito com seus membros. Wesley se apaixonou
por uma mulher atraente chamada Sophy Williamson e sonhava
com o casamento. Ele ficou assustado quando ela repentinamente
decidiu casar-se com um homem que estava pouco interessado pela
religião e, na opinião de Wesley, pouco valia. Wesley retaliou,
impedindo que ela participasse da Ceia do Senhor. Quando foi
processado, fugiu de volta para a Inglaterra, tomado por um senti-
mento de derrota. Em seu diário, ele lamentou: "Fui para a América
para converter os índios, mas, oh, quem me salvará"?
De volta à Inglaterra, o desespero de Wesley parecia ter crescido
ainda mais. Ele encontrou certo alívio conversando com Peter Bõhler
(1712-1775), que liderava um grupo de morávios na Inglaterra.
Bõhler falou com Wesley sobre uma experiência de conversão instan-
tânea, baseada na fé somente em Cristo. A obsessão pela salvação que
acompanhara Wesley por toda sua vida estava em contraste direto
com a visão de Bõhler, para quem a salvação era uma obra de graça
radical e imediata que produz uma fé justificadora. Aquilo era de-
mais para Wesley aceitar.
Algumas semanas depois, em 24 de maio de 1738, passando
por uma rua de Londres chamada Aldersgate, Wesley teve sua fa-
mosa experiência. "Senti meu coração estranhamente aquecido",
escreveu em seu diário. "Reconheci que eu agora confiava somente
em Cristo para a salvação e que uma certeza me foi dada de que ele
havia tirado meus pecados, sim, os meus, e que eu estava salvo da
lei do pecado e da morte". Wesley havia experimentado o que Bõhler
tentara descrever.
A compreensão doutrinária de Wesley ainda era fraca, e por isso
suas emoções eram inconstantes. Oito meses após a experiência em
Aldersgate, ele escreveu:

Afirmo que não sou um cristão agora [...] recebi essa sensação
de perdão dos pecados como eu jamais conhecera. Mas tenho

162
UMA LIÇÃO DE CRESCIMENI O: O CONCEITO DE DISCIPULADO DE JOHN WESLEY

tanta certeza de que não sou um cristão hoje quanto sei que
certamente Jesus é o Cristo.

No entanto, uma obra de graça já havia começado e ela transformaria


aquele perfeccionista derrotado em um pregador da graça.
Parte daquela transformação ocorreu com ajuda de George
Withefield. Withefield era um dos membros do Clube Santo, mas se
convertera antes de Wesley. Sua evangelização poderosa, feita a céu
aberto, criou uma grande agitação em Londres e também em Bristol.
Whitefield estava prestes a sair da Inglaterra para fazer uma viagem
pelas colônias americanas, e precisava de alguém que assumisse o seu
ministério de pregação ao ar livre. Em março de 1739, Whitefield
recrutou um relutante John Wesley para pregar ao ar livre diante dos
operários das minas de carvão de Kingswood, em Bristol.
No início, Wesley ficou chocado, pois pensava que "a salvação de
almas fosse pecado se realizada fora da igreja". Ele acabou vencendo
sua rejeição pelo "método vil" e pregou aos mineiros atenciosos sobre
0 texto "O Espírito do Senhor Deus está sobre mim" (Is 61). Sua
mensagem teve uma boa resposta dos ouvintes. Surpreendentemente,
Wesley também percebeu que suas convicções evangélicas cresciam
quando as anunciava a outros. Bõhler o encorajara a "pregar Cristo
até que tivesse fé". A conversão de Wesley agora estava completa. Ele
não apenas nascera de novo, mas também encontrara o propósito de
sua vida: "Reformar a nação, e particularmente a Igreja, e espalhar a
santidade segundo as Escrituras por essa terra".
Wesley foi um evangelista extraordinário. Ele desenvolveu um
[ladrão que seguiu durante toda sua vida, centrado nas cidades de
1 -ondres, Newcastle e Bristol. Embora ocasionalmente pregasse tam-
bém na Irlanda e na Escócia, nunca mais voltou para a América. O
metodismo, como seu movimento era denominado por seus críticos,
se espalharia pelo novo mundo por meio da vida de outras pessoas.
Wesley ordenou pessoalmente Thomas Coke em 1784, para que ele
supervisionasse o trabalho além do Atlântico. Após sua morte, em
1791, aos 87 anos, chegou-se a estimativa de que, ao longo de sua

163
LIÇÕES DE MESTRE

vida como pregador naquela nação, tenha viajado mais de 400


mil quilômetros, na maior parte sobre o lombo de um cavalo, e
pregado 40 mil mensagens. 8

As convicções de Wesley sobre o discipulado

Ignora-se algumas vezes um dos segredos para o sucesso de Wesley.


Além de seu trabalho de evangelização, Wesley foi um abnegado
defensor do discipulado radical. Ele possuía fortes convicções sobre a
necessidade de firmar os novos convertidos na fé, por isso estabeleceu
suas comunidades metodistas em classes, grupos e sociedades espe-
ciais para preservar os frutos da evangelização. Embora seus métodos
de formação de discípulos não fossem novos, eram tremendamente
eficazes.
O conceito de discipulado defendido por Wesley pode ser dividi-
do em quatro convicções auxiliares: 1) a necessidade do discipulado;
2) a necessidade de grupos pequenos para discipulado; 3) a necessi-
dade de liderança leiga para o discipulado; e 4) a necessidade de fazer
da santidade e do serviço o alvo duplo desse discipulado. Cada uma
dessas convicções merece ser analisada com cuidado.

1. A necessidade do discipulado

Logo no início de sua carreira evangelística, Wesley sentiu a neces-


sidade de acompanhar os que anunciavam a sua decisão por Cristo.
Muitos saíam desses encontros apenas "meio acordados". Algum
tipo de cuidado posterior era necessário para levar os cristãos novos
à maturidade. Quanto mais ele viajava como evangelista, mais con-
vencido ficava da necessidade do discipulado. Veja o que ele escre-
veu em seu diário, no dia 13 de março de 1743, em Tanfield:

Pelas terríveis condições que testemunhei aqui (e deveras em


todas as partes da Inglaterra), estou cada vez mais convencido
de que o diabo não deseja outra coisa senão isto: que o povo

164
UMA LIÇÃO DE CRESCIMENTO: O CONCEITO DE DISCIPULADO DE JOHN WESLEY

em qualquer parte seja meio acordado, e depois deixado para


cair no sono novamente. Portanto, estou resolvido, pela graça
de Deus, a não iniciar o trabalho em qualquer lugar sem a
probabilidade de conservá-lo.9

A teologia de Wesley teve um papel importante ao gerar esse desejo


por discípulos, em vez de convertidos. Não que sua teologia fosse
muito diferente dos outros avivalistas. Embora Wesley rejeitasse o
calvinismo, ele continuava ressaltando muitas das mesmas coisas que
Whitefield e Edwards pregavam: a necessidade de novo nascimento,
justificação pela fé e a graça imerecida de Deus. O que fez Wesley ter
essa preocupação especial com o discipulado foi sua teologia de santi-
dade. Sua singularidade está em ressaltar a perfeição cristã e desen-
volver métodos para alcançar esse objetivo. Convertidos parciais ou
nominais não buscam a santidade radical. Wesley jamais poderia
descansar com as coisas nesse estado.
Mais tarde ele reafirmaria em seu ministério a centralidade do
discipulado para o avivamento metodista, quando viu que o disci-
pulado fora negligenciado em uma cidade e calculou que "nove de
cada dez que antes estavam meio acordados agora estão em sono mais
profundo do que nunca".10 Wesley se comprometeu a evitar esse mal,
dedicando-se tanto ao trabalho de discipulado quanto à evangelização.
O discipulado era fundamental.

2. A necessidade de grupos pequenos para discipulado

A partir de 1739, Wesley começou a organizar seus convertidos para


serem discipulados. A Fundição, como era chamado o quartel-gene-
ral de Wesley em Londres, se tornou o centro de seu programa para
discipulado. Quando viu o grande número de convertidos em Lon-
dres e a incapacidade de seus pregadores itinerantes de providenciar
cuidado espiritual, resolveu fazer algo. Foi então que organizou uma
sociedade "Metodista". Em 1743, Wesley definiu o que essas socie-
dades deveriam fazer:

165
LIÇÕES DE MESTRE

Essa sociedade nada mais é que um grupo de homens reuni-


dos que buscam o poder da piedade, unidos para orarem juntos,
receberem uma palavra de exortação e cuidar um do outro em
amor, para que possam, ajudar uns aos outros a desenvolver a
sua salvação.11

As sociedades não eram substitutas para a igreja local. Membros de


uma sociedade metodista poderiam ser expulsos se deixassem de fre-
qüentar assiduamente a sua igreja local.
Não havia requerimento teológico ou denominacional para al-
guém ser membro de uma sociedade. A única qualificação era "um
desejo de fugir da ira vindoura e ser salvo de seus pecados".12 Wesley
estava convencido de que todo desejo verdadeiro por salvação seria
revelado pelo desejo constante de ser liberto de todo pecado.
Como essa santidade poderia ser obtida? A chave era a disciplina.
Para ajudar no avanço da causa da santidade, ele acrescentou às suas
sociedades três tipos de grupos pequenos: classes, grupos e socieda-
des seletas. Wesley estava longe de ser original. Os morávios,
Whitefield e muitos outros foram os pioneiros no uso de algumas
dessas técnicas. O aspecto que o diferenciava era a intensidade com
que Wesley aperfeiçoava a estrutura de grupos pequenos para a cria-
ção do discipulado radical.
As classes eram o grupo mais básico dentro da estrutura de uma
sociedade metodista. Quando Wesley observava que alguns de seus
convertidos estavam voltando para o pecado, utilizava as classes como
uma maneira de reabilitar os novos convertidos dos hábitos de peca-
do formados durante toda a vida. Aquelas não eram reuniões para o
aprendizado acadêmico. A classe era um grupo pequeno composto
de doze a vinte membros, sob a direção de um líder leigo. A classe
fazia encontros semanais, à noite, para evitar o conflito com os horá-
rios de trabalho ou freqüência à igreja. O propósito dessas classes
envolvia a confissão mútua de pecados e a prestação de contas, visan-
do ao crescimento da santidade. O dinheiro também era coletado
para ser distribuído aos pobres. Ingressos eram repartidos para a

166
UMA LIÇÃO DE CRESCIMENTO: O CONCEITO DE DISCIPUI-ADO DE JOHN WF.SI.EY

admissão das pessoas nas "festas de amor" (ceias) e também para a


reunião seguinte. Se os membros demonstravam repetidas fraquezas
morais e espirituais, não recebiam os ingressos. Contudo, caso se
arrependessem, poderiam voltar a participar da reunião. 13
Os transgressores crônicos recebiam uma disciplina ainda mais
severa. Em 1748, Wesley purgou as sociedades de Bristol e as classes,
expulsando 170 pessoas do movimento por pecados como violação
do dia de descanso, venda de bebidas alcoólicas, mentira habitual,
difamação, preguiça, contrabando e desleixo. Ele examinou as classes
de Gateshead em 1747 e também insistiu na disciplina geral. "A
sociedade", escreveu Wesley:

[...] que no primeiro ano era constituída de oitocentos mem-


bros, agora está reduzida a quatrocentos, mas segundo o velho
provérbio, metade é mais do que o todo. Não devemos nos
envergonhar de nada disso quando falamos com nossos ini-
migos no portão. 14

Além das classes, às quais se esperava que todos os membros da socie-


dade metodista freqüentassem, Wesley iniciou um segundo tipo: o
grupo. Essa estrutura na verdade era uma versão de duas experiências
de grupos pequenos que Wesley tivera antes de sua conversão: o Clu-
be Santo, com suas regras rígidas e a necessidade de prestação de
contas, e a sociedade da rua Fetter Lane, que Wesley ingressou logo
após a sua conversão. O que Wesley aprendera em primeira mão do
grupo pequeno que ele próprio participava aplicava a esse grupo. Um
grupo normalmente era composto de cinco a dez membros (somente
mulheres ou somente homens) que se reuniam para cuidado pastoral
e prestação de contas uns aos outros. Os grupos eram mais exigentes
do que as classes. Howard Snyder calcula que talvez 20% dos mem-
bros de uma sociedade metodista pertenciam aos grupos. 15
O grupo tinha seis regras: (1) fazer encontros semanais; (2) ser
pontual; (3) começar com louvor e oração; (4) "falar um de cada
vez, em ordem, livre e diretamente o verdadeiro estado de nossa

167
LIÇÕES DE MESTRE

alma, com as falhas que cometemos em pensamentos, palavras ou


ações, e as tentações que sentimos desde o nosso último encontro";
(5) terminar os encontros orando individualmente pelos membros;
e (6) "desejar que uma das pessoas entre nós fale sobre seu estado
primeiro, depois pedir que os outros façam, em ordem, perguntas
tão variadas e profundas quanto desejarem, sobre seu estado, peca-
dos e tentações". 16 Esperava-se que os membros fizessem perguntas
inquiridoras: algum pecado conhecido desde a semana passada?
Alguma tentação? Como você se livrou delas? Algum pensamento,
palavra ou obra duvidosa? 17
Depois dos grupos vinham as sociedades seletas. Esses eram os
grupos pequenos mais especializados, uma espécie de maternidade
para futuros líderes. As sociedades seletas deviam (1) manter extrema
confidencialidade; (2) ter absoluta submissão ao líder em todas as
coisas; e (3) contribuir para um fundo comum com dinheiro que
tinham sobrando, visando suprir as necessidades. A vida comunitária
nesse terceiro nível era intensa, e por causa da prestação de contas
mais profunda, dali saíram muitos dos discípulos que ajudaram a
reformar a Igreja e a nação.

3. A necessidade de liderança leiga para o discipulado

Wesley logo descobriu que precisaria de um pequeno exército de


líderes para manter o sistema de discipulado usando grupos peque-
nos. Snyder estima que, por volta de 1800, os pequenos grupos
metodistas contavam com 100 mil membros e 10 mil líderes. A
seleção e treinamento desse número tão grande de líderes requeria
um esforço sobre-humano.
Os metodistas se preocupavam pouco com o nível de estudo de
seus líderes. Para grande surpresa dos críticos do metodismo, bar-
beiros, ferreiros e padeiros eram escolhidos para pastorear o cres-
cente movimento de grupos pequenos. Pregadores leigos itinerantes
cuidavam das sociedades e das classes, impondo disciplina e treinan-
do líderes. A descrição de trabalho dos itinerantes comuns incluía

168
UMA LIÇÃO DE CRESCIMENTO: O CONCEITO DE DISCIPULADO DE JOHN WESLEY

pregar, ensinar, estudar, viajar, reunir-se com os grupos e classes,


"exercitar-se diariamente e comer com moderação". 18 As mulheres
podiam pregar, e muitas estavam envolvidas nos grupos e classes. A
importância dessa mobilização maciça de líderes leigos não deve
passar despercebida:

Hoje em dia escutamos que é difícil encontrar um número


suficiente de líderes para grupos pequenos ou para assumir
outras responsabilidades da igreja. Wesley selecionava um em
cada dez, talvez um em cada cinco, para trabalhar em ministé-
rios significativos e em liderança. E quem eram essas pessoas?
Não eram os de boa educação ou ricos com tempo de sobra nas
mãos, porém trabalhadores com pouco ou nenhum treinamen-
to, mas com dons espirituais e disposição para servir.19

O discipulado em grupos pequenos seria impossível nessa mobilização


maciça de leigos. Wesley estava convencido de que era necessário e
mostrou que dava certo. Esta era um aplicação do Princípio de refor-
ma "o sacerdócio de todos os cristãos".

4. A necessidade de fazer da santidade e do serviço o alvo


duplo do discipulado

Qual foi o resultado desse discipulado tão intenso? Qual foi o impac-
to disso na igreja e no país? O movimento de grupos pequenos de
Wesley gerou um novo tipo de cidadão. Em 1777, ele descreveu
como eram esses novos cidadãos:

Esse avivamento religioso se espalhou a tal ponto que nós e


nem nossos pais conheceram [...] Multidões são convencidas
de seu pecado e, pouco tempo depois, ficam tão cheias de alegria
e amor que, se estão no corpo ou fora do corpo, não saberiam
dizer. E no poder deste amor, colocaram debaixo dos seus pés
tudo o que o mundo oferecia, seja algo terrível ou desejável,

169
LIÇÕES DE MESTRE

mostrando evidências, durante as provas mais duras, uma boa


vontade invariável e branda para com a humanidade, e todos
os frutos da santidade.20

Piedade e boa vontade, espiritualidade e serviço aos outros: esses eram


os alvos da evangelização e do discipulado de Wesley; alvos que ele
viu sendo cumpridos diante de seus olhos.
Wesley acreditava na perfeição cristã. Ele foi criticado e, creio eu,
com razão, pela base teológica questionável desse ensinamento. O
que não deve ser ignorado, contudo, é que a busca pela santidade é um
objetivo proposto pela Bíblia. Os efeitos positivos dessa busca eram
numerosos: ação social cristã, renovação da família, redução nas taxas
de crimes e imoralidade e assim por diante. A ênfase na santidade
pessoal e social evitou que o movimento de grupos pequenos de Wesley
se tornasse restritivo e acomodado. Quando a santidade e a justiça
são os alvos do discipulado, um cristão decidido pode ser formado,
alguém que realmente poderá transformar tanto a Igreja quanto a
sociedade.

Como usar a idéia de Wesley para tomar decisões

Examinamos a crença de Wesley de que a Igreja não muda o mun-


do quando gera convertidos, mas quando faz discípulos. Quatro
convicções fornecem a base para essa grande lição: a necessidade de
discipulado; a necessidade de grupos pequenos para discipulado; a
necessidade de liderança leiga no discipulado; santidade e serviço
como os alvos do discipulado. A questão com que nos deparamos
agora é como colocar essas convicções em prática.
Uso n° 1: Faça dos grupos pequenos uma prioridade em sua igreja,
organização e família. Hoje, existem grupos pequenos em todos os
lugares. Os estudos bíblicos proliferam nos refeitórios das universi-
dades e das empresas. Não importa o nome, seja grupo de aliança,
grupo de comunhão, grupo de afinidade, grupo de apoio, grupo de
recuperação, grupo jovem e grupo missionário, todos eles são parte

170
UMA LIÇÃO DE CRESCIMENTO: O CONCEITO DE DISCIPULADO DE JOHN WESLEY

importante das grandes igrejas. Algum tempo atrás, visitei a maior


igreja dos Estados Unidos, com mais de 18 mil membros: a Comu-
nidade Willow Creek de Barrington, Illinois. Casualmente era o
domingo em que eles se concentravam no ministério de grupos pe-
quenos da igreja. Muitas vezes pensei como uma igreja de 18 mil
pessoas pode formar uma comunidade e treinar discípulos. Descobri
isso naquele domingo. Mais de 2500 grupos pequenos formam uma
parte significativa da vida eclesiástica da Willow Creek. Os cultos
evangelísticos podem atrair pessoas, mas são os grupos pequenos que
as mantêm firmes.
O princípio que se aplica às igrejas, de qualquer tamanho, é que
os grupos pequenos são a melhor maneira de aumentar o número de
discípulos.
Uso n° 2: Treine outros para fazerem o trabalho de discipulado. Iro-
nicamente, enquanto as grandes igrejas em geral valorizam os grupos
pequenos, muitas outras ainda têm restrições. Algumas igrejas que
antes se concentravam em grupos pequenos acabaram se afastando
desse modelo. Um dos motivos para isso foi a falta de liderança. Os
grupos pequenos requerem esforço, exigem treinamento e acompa-
nhamento constante. Wesley sabia bem disso, mas estava disposto a
pagar o preço. A grande tarefa de recrutar, treinar e guiar líderes de
grupos pequenos compensava o esforço.
Embora existam vários modelos de grupos pequenos, um dos minis-
térios mais antigos é o da Igreja em Células, que oferece cursos re-
gionais sobre a formação de grupos pequenos e de liderança para os
grupos. Você poderá obter maiores informações em www.celulas.com.br.
O ministério produziu e distribui seu próprio material. Além disso,
os livros Edificando uma Igreja de Grupos Pequenos, de Bill Donahue e
Russ Robinson (Editora Vida), A Igreja Em Células, de Larry Stockstill
(Editora Betânia) e o material de David Kornfield sobre a implanta-
ção de grupos pequenos (Editora Sepal) podem ser um bom ponto
de partida.
Uso n° 3: Adote a estratégia dos três "C"s: Celebração + Congregação
+ Células = Igreja. Algumas igrejas não valorizam o discipulado,

171
LIÇÕES DE MESTRE

alegando que seu foco é o louvor, a escola bíblica dominical, missões


ou algum outro aspecto importante da vida da igreja. O discipulado
parece ser visto como uma ênfase rival. Minha resposta é que as igre-
jas saudáveis não isolam apenas um elemento e negligenciam o
discipulado. Pelo contrário, integram o discipulado na vida cristã em
geral e qualquer ênfase adicional que a igreja possa ter. Uma igreja
que se concentra no louvor, deveria conduzir essa ênfase ao âmbito
do grupo pequeno e disciplinar as pessoas para a adoração. Igrejas
com uma forte ênfase na doutrina deveriam ir além do púlpito e levar
o discipulado ao âmbito do grupo pequeno.
Gosto da fórmula proposta por Peter Wagner para o crescimento
saudável da igreja: Celebração + Congregação + Células = Igreja.21 As
celebrações são os cultos públicos da igreja. As congregações são os
encontros de porte médio, como a escola bíblica dominical. As células
são grupos pequenos, de seis a vinte pessoas, onde um relacionamento
significativo pode ser desenvolvido e as pessoas podem ser verdadei-
ramente conhecidas e discipuladas.
Um bom exemplo da integração de celebrações, congregações e
células é a igreja Península Comunnity Chapei, em Newport News,
Virginia. Sob a liderança do pastor Tom Kenney, que plantou essa
igreja no início da década de 1980, cultos criativos e preocupados
com as necessidades das pessoas são apenas os aspectos mais visíveis
da igreja. Os programas para crianças e a escola bíblica para adultos
oferecem um outro tipo de ministério cristão, no âmbito da congre-
gação. Cerca de 80% dos membros e freqüentadores regulares dessa
igreja participam dos "grupos satélites", onde o estudo bíblico sério,
a adoração criativa, a comunhão profunda e uma forte ênfase em
missões ajudam a gerar cristãos equilibrados. Kenney e seu grupo de
líderes se reúnem com membros de seus grupos regularmente para
um discipulado mais intensivo. Kenney também reúne os líderes
desses "grupos satélites" algumas vezes por ano para avaliação e trei-
namento. Todos os presbíteros da igreja também são líderes de um
grupo pequeno. Juntamente com o ensino e missões, o discipulado é
uma grande ênfase da Peninsula Comunnity Chapei, e está integrado
com tudo o que a igreja faz.

172
UMA LIÇÃO DE CRESCIMENTO: O CONCEITO DE DISCIPULADO DE JOHN WESLEY

Uso n° 4: Renove a evangelizaçao em sua igreja, acrescentando o


aspecto do discipulado. Uma das peças que faltam na evangelizaçao
contemporânea é o discipulado. Wagner ressaltou a necessidade de
uma evangelizaçao que vai além das profissões de fé, chegando ao
discipulado:

Nosso objetivo na evangelizaçao e na igreja é, insisto, fazer


discípulos. Levarmos uma pessoa a tomar a decisão de aceitar
Cristo, aconselharmos e orarmos com essa pessoa é uma ma-
neira importante de se fazer discípulos. Mas se a pessoa acaba
não estabelecendo um compromisso com o corpo de Cristo,
normalmente validado pelo batismo e freqüência a uma igreja, é
pouco provável que possamos considerá-la um discípulo.22

Durante anos estive envolvido em minha igreja local com um pro-


grama conhecido como "evangelismo explosivo". Os resultados fo-
ram animadores. Varias decisões por Cristo foram tomadas. Porém,
quando olho para aquela experiência, vejo que não acompanhei os
decididos o suficiente. Embora alguns tenham alcançado a maturi-
dade em sua vida cristã, outros ficaram perdidos. Se eu fosse come-
çar tudo de novo, daria os seguintes passos: formar grupo de apoio
para os novos convertidos; desenvolver relacionamentos pessoais de
oração e prestação de contas para eles; integrar cada um em um
grupo de comunhão onde seriam cuidados e alimentados espiritual-
mente. Gostaria de encorajá-lo, como líder, a pensar em maneiras
de dar maior ênfase ao discipulado em seus esforços atuais para
evangelizaçao.
As práticas que apresentei para a lição de Wesley podem ser muito
proveitosas para ajudar os membros de sua igreja a trilhar o caminho
da maturidade cristã. "Essa é a grande obra", escreveu Wesley, "não
apenas levar almas a Cristo, mas também edificá-las em nossa sagra-
da fé".23
Wesley convoca a Igreja para declarar guerra contra a graça barata.
I )ietrich Bonhoeffer explica por que essa guerra deve ser travada:

173
LIC;ÕES DE MESTRE

A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, é


o batismo sem a disciplina de uma congregação, é a Ceia do
Senhor sem a confissão dos pecados, é a absolvição sem confis-
são pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça
sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado [...] A
graça preciosa é o Evangelho que há de se procurar sempre de
novo [...] Essa graça é preciosa porque chama ao discipulado, e
é graça por chamar ao discipulado de Jesus Cristo; é preciosa
por custar a vida ao homem; e é graça por, assim, lhe dar a vida
verdadeira. 24

Para um movimento evangélico que cresceu "fraco, egoísta e super-


ficial", a graça preciosa do discipulado é o verdadeiro caminho a ser
seguido.

íf Q U E S T Õ E S PARA DEBATE

1. Romanos 12 é um texto importante sobre a anatomia de


um discípulo. Veja especialmente a referência na frase "uns
aos outros", presente nos versos 10-16. Como o conceito
de Wesley sobre o discipulado em grupos pequenos pode
ajudar a Igreja a obedecer a esses mandamentos?

2. Como algumas das idéias de Wesley podem ajudar o movi-


mento de grupos pequenos em sua igreja ou ministério?

3. Quais dos usos sugeridos parecem úteis em sua opinião?


Quais deles você pensaria seriamente em colocar em práti-
ca? Por quê?

174
UMA LIÇÃO DE CRESCIMENTO: O CONCEITO DE DISCIPULADO DE JOHN WESLEY

LEITURAS COMPLEMENTARES

Uma boa obra para conhecer a vida desse homem importante é


João Wesley, Sua Vida e Obra, de Mateo Lelievile (Editora Vida).
Para conhecer um pouco das idéias de John Wesley, consulte A
Perfeição Cristã (Casa Nazarena de Publicações), escrita pelo
próprio Wesley. Outras opções são A Nova Criação: A Teologia
de João Wesley Hoje, de Theodore Runyon (Editeo) ou ainda
Wesley e sua Bíblia, de Duncan A. Reily (Editora Cedro).

175
CAPÍTULO 8

UMA LIÇÃO SOBRE OS PERDIDOS:


O MODELO DE MISSÕES
DE WlLLIAM CAREY

A ntes eu achava que o mundo estava ficando cada vez menor, mas
hoje já não tenho tanta certeza. Em uma era em que temos televi-
são a cabo, internet e aviões a jato, o mundo parece realmente
cada vez menor. Porém, levando em conta o mandamento de Jesus
Cristo para discipularmos as nações, sinto que o mundo de hoje
está ficando maior.
Paul Borthwick menciona 11 desses "mundos" diferentes que
convivem neste nosso pequeno planeta. Pense sobre essa lista de
"mundos" que constituem o nosso globo:

• O mundo chinês, que perfaz um quinto da população da


Terra.
• O mundo hindu, concentrado na índia, mas que também
inclui muitos movimentos esotéricos da Nova Era em vários
continentes.

• O mundo budista, que ocupa a maior parte do Sul da Ásia.


• O mundo muçulmano, ocupando principalmente o Oriente
Médio e o Norte da África.

177
LIÇÕES DF. MESTRE

• O mundo comunista, que ainda persiste, embora venha dimi-


nuindo consideravelmente desde 1989.
• O mundo dos analfabetos, já que mais de 3 mil línguas ainda
não dispõem da Bíblia.
• O mundo do cristianismo nominal (no Ocidente), onde o cris-
tianismo hoje é meramente uma tradição e deixou de ser algo
real na vida das pessoas.
• O mundo dos pobres, com 1 bilhão de pessoas famintas, amon-
toadas nas favelas do planeta.
• O mundo das crianças com menos de 15 anos, totalizando
quase um terço da população mundial.
• O mundo urbano, composto de mais de 300 cidades cuja
população ultrapassa 1 milhão de habitantes.
• O mundo tribal, onde muitos dos 12 mil povos "ocultos" ain-
da não possuem testemunho evangélico em sua cultura. 1

Esses múltiplos mundos representam um grande desafio para a


Igreja contemporânea. As vezes, penso no quanto as igrejas do Oci-
dente realmente se importam com esses 11 mundos e o manda-
mento de Cristo para discípula-los. No início da década de 1990,
o número de missionários enviados da América do Norte diminuiu
drasticamente. 2 Os 75 mil missionários evangélicos americanos de
1988 foram reduzidos para cerca de 45 mil em 1992. Como pude-
mos perder 30 mil missionários em um período de 6 anos? Vendo
esses números, fico me perguntando se teremos a disposição e a
sabedoria para causar um impacto para Cristo nesses 11 mundos.
Embora o número de missionários vindos do "mundo dos dois
terços" (antigamente chamado de Terceiro Mundo) ajude a compen-
sar o declínio dos números americanos, estou convencido de que a
Igreja Ocidental precisa recuperar a visão para alcançarmos o mun-
do. Também estou convencido de que o crescimento do movimento
missionário do "mundo dos dois terços" precisa seguir modelos

178
UMA LIÇÃO SOBRE OS PERDIDOS: O MODELO DE MISSÕES DE WILLIAM CAREY

melhores para missões, enquanto seus líderes estabelecem suas estra-


tégias e táticas.

William Carey, um homem de visão

Quem pode nos ajudar hoje nessas duas frentes é o homem que
iniciou uma revolução nas missões há mais de duzentos anos.
William Carey era um visionário prático. Seu papel em promover
missões modernas vem sendo exagerado por evangélicos entusias-
mados. No entanto, é verdade que antes de Carey o evangelicalismo
estava indiferente em relação a missões, depois de Carey se tor-
nou, de certa maneira, obcecado por missões. William Carey não
foi o único agente dessa mudança, mas provavelmente foi o mais
importante.
Há muito o que criticar na vida e obra de Carey. Ele foi acusado
de ser autoritário e frustrar os colegas mais jovens. A Sociedade
Missionária Batista da Inglaterra reclamou que ele não prestava con-
tas de suas atividades e finanças. Outros também o criticaram por ser
insensível e negligente como pai e marido. Seu método de evangelizar
c plantar igrejas algumas vezes mostrou ser ineficaz. Suas traduções
foram criticadas por outros eruditos. Apesar de todas essas questões,
< > conceito de missões proposto por Carey foi uma das grandes revo-
I uções da história da Igreja.
William Carey mudou a maneira como a Igreja fazia missões
quando propôs um modelo poderoso que inspirou o "grande sé-
culo das missões protestantes", como Kenneth Scott Latourette
i .iracterizou o século xix. Existe uma grande lição no centro do
modelo de Carey. Nas palavras de Ian Murray, a vida e a obra
missionária de Carey incorporavam a verdade que "fé em Deus é a
grande maneira pela qual Cristo avança seu Reino usando a
mstrumentalidade humana". 3 Segundo Carey, a grande tarefa das
missões era enraizar a Palavra de Deus nas culturas humanas, dis-
pondo para isso sete princípios:

179
LIÇÕES DE MESTRE

1. A missão efetiva está baseada em uma teologia bíblica que


produz oração e ação.
2. A missão efetiva é facilitada por grupos paraeclesiásticos com-
prometidos com a Palavra de Deus.
3. A missão efetiva deve estar focada na tradução e na disseminação
da Palavra de Deus.
4. A missão efetiva é impulsionada por uma unidade visível entre
os cristãos e a Palavra de Deus.
5. A missão efetiva depende das igrejas locais e de líderes autóc-
tones disciplinados pela Palavra de Deus.
6. A missão efetiva deve exibir uma sensibilidade cultural que
esteja de acordo com a Palavra de Deus.
7. A missão efetiva resulta de um estilo de vida modelado e
encarnado pela Palavra de Deus.

Carey e seus colegas estavam tão convencidos de que esses princípios


eram cruciais para o sucesso da empreitada missionária que incorpo-
raram muitos deles em uma aliança que revisaram repetidas vezes ao
longo de sua vida. Carey deu sua vida pelo avanço desses princípios.
Seu sucesso na índia e o sucesso dos missionários, toda vez que esses
princípios foram seguidos, em todo o mundo, contribuem para mos-
trar sua relevância hoje.

A vida de Carey

Estima-se que em 1790 o número de pessoas que afirmavam ser


cristãos era de 174 milhões. A população total do mundo na época
era 734 milhões. A grande maioria do mundo estava alheia à fé
cristã. Os dois grandes blocos de não cristãos eram formados pelos
430 milhões de pagãos e 130 milhões de muçulmanos. 4 Apesar
dessas estatísticas, a igreja evangélica parecia alheia a essa realidade.
Pouco estava sendo feito além dos esforços de católicos e morávios.

180
UMA LIÇÃO SOBRE OS PERDIDOS-. O MODELO DE MISSÕES DE WILLIAM CAREY

William Carey, um sapateiro e pastor, ficou indignado com a indife-


rença cristã pelos perdidos ao redor do mundo. Carey parecia um impro-
vável líder para as missões mundiais. Ele fora criado em um ambiente
simples e provincial. Carey nasceu em 1761, nas cercanias de
Northampton, Inglaterra. Sua família era religiosa em um sentido
formal, mas a idéia de um relacionamento pessoal com Deus como
Wesley estava pregando na Inglaterra nunca pareceu penetrar em sua
casa. Seu pai era tecelão e professor, e deve ter ficado decepcionado
quando seu filho de 14 anos saiu de casa para se tornar um aprendiz
de sapateiro. Na pequena vila de Hackleton, Carey escutou o Evan-
gelho pela primeira vez, pregado a ele por outro aprendiz. 5 Após
mais de um ano de resistência, Carey entregou sua vida a Jesus Cristo
como seu Senhor e Salvador.
Carey se afiliou à Igreja Batista Particular (de linha calvinista),
de onde vinha também John Bunyan. As controvérsias teológicas
eram comuns entre os batistas particulares. Um dos motivos de
discórdia era a pregação do Evangelho aos não eleitos. Se Cristo
morreu apenas pelos eleitos, que direito a Igreja tinha de oferecer o
Evangelho indiscriminadamente a todos? Alguns chegaram a con-
cluir que a evangelização era algo questionável e as missões, suspei-
tas. Incapaz de concordar com essa posição, Carey assimilou os
ensinamentos de Robert Hall Sr., que passou a ser seu mentor inte-
lectual e teológico.
Carey descobriu seu "sistema de divindade" na obra de Hall,
Helps to Ziorís Travelers.*6 Esse sistema pode ser chamado de
calvinismo evangélico. Inspirado pelos escritos de Jonathan Edwards,
o sistema de divindade de Hall afirmava que Deus é soberano na
salvação, mas ao mesmo tempo insistia que o Evangelho devia ser
apresentado a toda a humanidade caída, que deveria ser encorajada
a buscar a salvação oferecida em Cristo. Deus é soberano para sal-
var, a Igreja é obrigada a pregar e a humanidade caída é responsável
por dar uma resposta. Falando sobre o livro de Hall, Carey escreve-
ria mais tarde:

' Ajudãpara os Viajantes de Sião.

181
LIÇÕES DE MESTRE

Não lembro de ter lido algum livro com mais entusiasmo do


que este. Se fosse veneno, como alguns disseram, me pareceu
tão doce que sorvi até a última gota do copo. Alegro-me em
dizer que aquelas doutrinas são a escolha do meu coração até o
dia de hoje.7

Esse calvinismo evangélico de Hall e Andrew Fuller, amigo de Carey,


deram àquele jovem cristão um embasamento teológico poderoso para
seu interesse crescente pelas missões mundiais.
Pouco tempo depois do seu batismo, em 1783, Carey passou a
ser um pregador de meio período. Ele foi consagrado pastor da
Capela Batista de Moulton em 1786. Carey abandonou definitiva-
mente os sapatos em 1789, quando se tornou pastor da Igreja Batista
de Harvey Lane, em Leicester. Durante grande parte da década de
1780, seu amor pela missão global da Igreja foi nutrido por um
novo movimento de oração do grupo de pastores que ele participa-
va regularmente. O livro de Jonathan Edwards, A Humble Attempt
to Promote Explicit Agreement* causou grande impacto na Associa-
ção Batista de Northamptonshire, da qual Carey era membro.
Edwards convocava as igrejas de todo o mundo a orar regular-
mente pelo cumprimento da Grande Comissão, e previu que estava
próximo o dia em que "a Terra estará cheia do conhecimento da
glória de Deus":

Se o Espírito de Deus deve ser derramado imediatamente, e o


poder da obra e a graça de Deus devem começar agora, aquilo
que já está em progresso deve completar esse efeito glorioso;
mas para isso deve haver um progresso surpreendente e sem
paralelos da obra e da manifestação do divino poder para que
se cumpra no máximo até o ano 2000 [...] E não seria mara-
vilhoso se, no próximo século, todos os pagãos do mundo
fossem iluminados e convertidos à fé cristã, em todas as partes
da África, Ásia, América e Terra Australiana?8

* Uma Tentativa Humilde de Promover a Concordância Explícita.

182
UMA LIÇÃO SOBRE OS PERDIDOS: O MODELO DE MISSÕES DE WILLIAM CAREY

Enquanto Carey meditava e orava sobre a lição de Edwards para o


cristianismo global, começou a dar passos específicos. Mapas e gráficos
cheios de estatísticas decoravam as paredes de sua casa. Ele começou
a reunir material para um livreto que desafiaria a Igreja a colocar suas
orações em prática e realmente mandar missionários para terras es-
trangeiras. Na primavera de 1792, ele publicou esse livreto sob o
título de Uma Averiguação da Obrigação dos Cristãos de Usar Meios
para a Conversão dos Pagãos. Essa obra acabou sendo um catalisador
para missões muito além dos sonhos mais ousados de Carey.
Naquele mesmo ano, Carey pregou, numa reunião de ministros
da Associação Batista em Nottingham, o famoso sermão de Isaías
54:2: "Alargue o espaço da tua tenda". Carey acusava a Igreja de seu
tempo de ser indiferente a missões. A Igreja permitiu que a tenda do
Evangelho encolhesse e ficasse pequena demais. As estacas da Igreja
precisavam ser levadas além da Inglaterra e da Europa. As cordas da
graça precisavam ser esticadas por todo o globo. A Igreja precisava
"esperar grandes coisas de Deus e tentar grandes coisas para Deus".
Aqueles que ouviram essa mensagem se convenceram do "crime que
cometiam pela sua indiferença em relação à causa de Deus". 9
Em 2 de outubro de 1792 foi fundada a Sociedade Missionária
Batista, "a primeira sociedade missionária estrangeira criada pelo avi-
vamento evangélico".'0 Carey partiu para a índia com sua esposa,
Dorothy, e um colega de trabalho, John Thomas, em 1793. Ele nunca
mais voltaria para a Inglaterra.
Seu primeiro ano na índia foi muito difícil. Carey e Thomas fica-
ram sem dinheiro dentro de pouco tempo e se viram sozinhos em
Calcutá. A Companhia Britânica das índias Orientais se opunha ao
trabalho missionário e atrapalhou Carey de todas as maneiras que
pôde. Essas dificuldades deixaram Thomas com um sentimento de
inadequação, e ele logo abandonou o trabalho missionário. Contu-
do, Carey perseverou. Desesperado, ele começou a trabalhar como
gerente de uma fábrica de tecidos perto de Madras, cargo que
desempenhou de 1794 a 1798. Depois de algum tempo, aquele
emprego provou ser uma providência de Deus. Carey precisava

183
LIÇÕES DE MESTRE

trabalhar apenas três meses por ano, e podia dedicar o restante de seu
tempo ao estudo das línguas indianas.
Carey completou uma tradução parcial da Bíblia para o bengali
em 1798. Para poder distribuí-la, ele fundou uma editora. Tam-
bém fundou uma escola para alfabetização de adultos. Mas ele não
rendia tão bem sozinho quanto em equipe. Thomas havia partido,
e a esposa de Carey vagarosamente se aproximava da insanidade
total. Membros para formar uma equipe missionária eram um
artigo raro.
Quando surgiu a oportunidade para sair da região controlada
pela Inglaterra e mudar-se para a região costeira de Serampore, em
que a coroa dinamarquesa dominava, Carey não a desperdiçou. A
colônia dinamarquesa oferecia mais liberdade para o seu trabalho.
Em 1800, companheiros muito capazes se juntaram a ele: Joshua
Marshman e William e Hanna Ward. Mais tarde, Carey, Marshman
e Ward ficariam conhecidos como o "trio de Serampore". Uma das
expressões mais famosas de sua parceira foi a aliança que eles forma-
lizaram em 1800 (posteriormente expandida em 1805). Essa
aliança, o Formulário de Acordo, como era chamado, trazia 11 pro-
messas sobre a maneira como o trio conduziria os seus trabalhos
missionários:

1. Conferir valor infinito às almas das pessoas.


2. Tomar conhecimento dos ardis que prendem as mentes das
pessoas.
3. Abster-se de tudo que possa aumentar o preconceito contra o
Evangelho na índia.
4. Estar atento a todas as oportunidades para fazer o bem às pessoas.
5. Pregar o "Cristo crucificado" como o grande meio de salvação.
6. Ter estima pelos indianos e tratá-los sempre como iguais.
7. Receber e edificar "as multidões que se reunirem".

184
UMA LIÇÃO SOBRE OS PERDIDOS: O MODELO DE MISSÕES DE WJLLIAM CAREY

8. Cultivar os dons espirituais deles, mostrando-lhes suas obri-


gações missionárias, pois só os indianos podem conquistar a
índia para Cristo.
9. Trabalhar sem descanso na tradução da Bíblia.
10. Insistir no aprofundamento da vida cristã pessoal.
11. Entregar-se sem reservas à causa, "não considerando suas nem
as roupas do corpo". 11

Esse documento memorável devia ser lido publicamente três vezes


por ano, e cada missionário se comprometia novamente com essas
decisões.
Após estabeleceram essa aliança, Carey, Ward e Marshman come-
çaram o trabalho. Eles se entregaram a novos projetos de tradução e
plantaram vários pontos da missão na região de Bengala e além dela.
Deus abençoou grandemente essa nova parceria quando, no último
domingo de 1800, o cristianismo na índia teve seu primeiro conver-
tido; Krishna Pai, que seguiu a Cristo fielmente até ser martirizado
por sua fé em 1821.
Mesmo com a conversão de Krishna Pai, Carey logo percebeu que
era um evangelista e um plantador de igrejas medíocre. Seus colegas
eram muito melhores do que ele nessas tarefas. Ele então decidiu se
concentrar nas áreas onde se saía melhor, ou seja, na lingüística e
tradução. Carey terminou o Novo Testamento em bengali em 1801.
A Bíblia toda só foi terminada em 1809.
Em 1819, Carey ajudou a fundar a Faculdade Serampore, na qual
passou a ser o professor de línguas orientais. Ele se convenceu de que
"somente com pregadores nativos podemos esperar pela proliferação
universal do Evangelho nesse continente imenso". 12 Em 1824, Carey
(com a ajuda de Mashman) havia traduzido e imprimido porções da
Bíblia em 37 outras línguas, incluindo seis traduções completas
da Bíblia em línguas distintas. 13 Além do trabalho de tradução, Carey
escreveu e publicou várias gramáticas e dicionários, e seu maior feito
loi o primeiro dicionário do bengali, em 1815.

185
LIÇÕES DE MESTRE

No período de 1828-1829, Carey desempenhou um papel


importante na aprovação de uma lei que abolia o suttee — prática
de queimar as viúvas vivas juntamente com seus maridos falecidos.
E, ainda iniciou um movimento contra a prática hindu de sacrifi-
car crianças. Ele trabalhou para construir um hospital de leprosos,
visando com isso pôr um fim à queima de leprosos. Em palavras e
obras, Carey estava mudando a índia.
Carey precisou enfrentar muitas dificuldades em sua vida e
trabalho. Algumas vezes, se sentia como "se tivesse descido a uma
mina e perdido total contato com todos aqueles que deveriam
estar segurando as cordas". 14 Ele perdeu sua esposa, Dorothy, em
1807. Seus últimos anos juntos foram especialmente difíceis por
causa da doença mental que ela sofria. Um segundo casamento,
mais feliz, acabou com a morte de sua segunda esposa 12 anos
depois. Conflitos com a Sociedade Missionária Batista eram
freqüentemente amargos e desanimadores. Os colegas mais jovens
algumas vezes reclamavam sobre as dificuldades de trabalhar com
os três pioneiros.
Apesar de suas limitações e fracassos, Carey e seus colegas estavam
convencidos de que o Evangelho não poderia falhar. Apesar de sua
fraqueza, a graça de Deus lhes daria poder para plantar a Palavra de
Deus no solo da índia. Até mesmo na morte, Carey proclamou sua
crença na suficiência da graça de Deus para vencer as fragilidades
humanas. Ele morreu em 1834 na índia, aos 73 anos de idade, e na
sua sepultura foram gravadas as palavras: "William Carey, nascido
em 17 de agosto de 1761, morto em 9 de junho de 1834. 'Eu,
verme miserável, pobre e incapaz. Caio em teus braços carinhosos'".
O sucesso de William Carey como missionário não foi por acaso.
Ele estava convencido de que a Palavra de Deus continha os princí-
pios para o sucesso das missões. Tanto em seus primeiros escritos e
pregações na década de 1790 quanto em seu histórico Formulário de
Acordo, Carey estabeleceu princípios capazes de levar a uma prática
missionária eficaz. Sete desses princípios, mencionados anteriormen-
te neste capítulo, são resumidos na figura a seguir.

186
UMA IJÇÃO SOBRE OS PERDIDOS: O MODELO DE MISSÕES DE WILUAM CAREY

j - sy-^-y-/
!\

Teologia Novas Tradução


Bíblica Agências da Bíblia

Unidade Igrejas Sensibilidade Estilo


Visível Autóctones Cultural de Vida

Figura 5: O modelo de missões de William Carey

1. Uma teologia bíblica para oração e ação

Talvez você conheça a famosa história quando o jovem Carey foi


criticado pelo seu interesse por missões pelo hipercalvinista que dis-
se: "Quando Deus quiser converter os pagãos, ele o fará sem a sua
ajuda ou a minha". Carey era um calvinista ferrenho, mas pensava de
maneira prática, e acreditava que o Deus que ordenara que o Reino
tio amado Filho fosse espalhado pelo mundo também havia ordena-
do os meios para essa grande tarefa. Carey também acreditava que a
;.;rande comissão ressalta alguns dos meios pelo qual o governo redentor
de Cristo seria estabelecido: pregação, discipulado e batismo. Ele
não era um teólogo sistemático, mas sua vida e seu trabalho como
missionário tinham como base certos fundamentos teológicos sobre
.1 necessidade humana, a suficiência de Cristo e a soberania de Deus.

187
LIÇÕES DE MESTRE

Carey acreditava no "valor infinito" das almas humanas e na puni-


ção eterna que aguarda aqueles que morrem em seus pecados. Sem
esse "sentimento incômodo sobre o valor das almas, é impossível que
nos sintamos bem fazendo qualquer outra coisa, e nesse caso seria
melhor que estivéssemos em qualquer outra situação do que traba-
lhando como missionários". Carey queria ser motivado pela "perda
lamentável que ocorre toda vez que uma alma não convertida é lançada
na eternidade". 15
Se a necessidade humana sobrecarregava Carey, a suficiência de
Cristo para a salvação o enchia de esperança.

Aquele que levantou os ingleses bêbados e brutos a sentarem-se


nos lugares celestiais, em Cristo Jesus, também pode levantar
esses escravos da superstição, purificar o seu coração pela fé, e
fazer deles adoradores do Deus verdadeiro em espírito e em
verdade. 16

O milagre da transformação viria, contudo, pela pregação de Cristo.

Seria muito fácil para um missionário pregar apenas as verda-


des, durante muitos anos seguidos, sem nenhuma esperança
de voltar a ser útil para uma alma. A doutrina da morte
expiatória e seus méritos completamente suficientes têm sido,
e devem continuar sendo para sempre, os grandes meios de
conversão.

Carey lembra a prática de Paulo em pregar a "Cristo crucificado"


como solução. Ele também lembrou dos morávios. "É um fato bem
conhecido que os missionários mais bem-sucedidos do mundo, nos
dias de hoje, fazem do sacrifício de Cristo o tema constante de sua
pregação." 1
Além disso, Carey baseou sua missão em uma terceira verdade
poderosa: a soberania de Deus. "Somos firmemente persuadidos",

188
UMA LIÇÃO SOBRE OS PERDIDOS: O MODELO DE MISSÕES DE WH LIAM CAREY

escreveu Carey e seus irmãos, "de que Paulo podia plantar e Apoio
podia regar em qualquer parte do mundo, mas seria em vão se Deus
não desse o crescimento". Contudo:

Não podemos deixar de observar com admiração que Paulo,


o grande defensor das doutrinas gloriosas da graça livre e
soberana, ficou mais conhecido por seu zelo pessoal na ta-
refa de persuadir os homens a serem reconciliados com
Deus. 1 8

Essas verdades da Palavra de Deus levaram Carey a ter uma pode-


rosa vida de oração. Na década que antecedeu sua ida à índia,
Carey participou dos encontros de oração semanais da associação
de pastores a que pertencia, que eram voltados para missões. Carey
lera o livro escrito por Edwards, A Humble Attempt, com seu cha-
mado para encontros globais de oração em favor da evangelização
e do discipulado do mundo. Como missionário na índia, Carey e
seus colegas continuaram a fazer da oração o centro de sua vida e
trabalho.
A teologia de Carey não gerou apenas oração, mas também pro-
duziu ação. O elemento fantástico nesse pensamento é o equilíbrio
entre a capacitação divina e a ação prática. Ele acreditava na sobera-
nia de Deus em estender sem falhas o Reino do seu Filho ao redor de
rodo o mundo. Ao mesmo tempo, acreditava que a Igreja deveria agir
de maneira prática para alcançar esse objetivo da história. Essa teolo-
gia equilibrada de missão foi resumida apropriadamente por Carey
em seu sermão sobre Isaías 54:2: "Espere grandes coisas de Deus; \/
(ente grandes coisas para Deus". Uma ênfase sem a outra resultaria
em uma missão sem equilíbrio e, possivelmente, o fim das missões.
Deus é a fonte de toda a missão pela sua Palavra, obra e Espírito.
1 devemos responder à graça do perdão e do poder que ele coloca em
nós aos dedicarmos nossa vida completamente ao seu serviço e mis-
são. Esse é o tipo necessário de teologia de missão que cada geração
da Igreja necessita.

189
LIÇÕES DE MESTRE

2. Organizações paraeclesiásticas comprometidas com a


palavra de Deus

Carey trabalhou algumas das considerações práticas de sua teologia


de missão em um livro que ele denominou "o primeiro e ainda hoje
maior tratado missionário em língua inglesa". Em 1792, Carey pu-
blicou as 87 páginas de Uma Averiguação da Obrigação dos Cristãos de
Usar Meios para a Conversão dos Pagãos.19 Esse livreto, junto com a
crença de Carey de que a soberania divina era compatível com a res-
ponsabilidade humana, resultou na criação, naquele mesmo ano, da
Sociedade Missionária Batista, a primeira agência missionária moderna.

Foi Carey quem, pela primeira vez, dispôs uma abordagem


de livre mercado para missões, que propunha a formação de
uma companhia para cristãos sérios, leigos e ministros, com o
compromisso de coletar e selecionar informações, além de conse-
guir as verbas e os homens necessários para o trabalho?®

Essa agência missionária tinha por base o modelo capitalista de


empresas de negócios com acionistas:

Quando uma empresa de comércio obtém seu alvará, geral-


mente ela usa toda a sua capacidade: seus estoques, navios,
gerentes e funcionários são escolhidos e coordenados de um
modo que alcance seus objetivos. Mas não param nisso, pois,
incentivados pelas perspectivas de sucesso, usam cada poten-
cial, lançam seu pão sobre as águas, cultivam amizade com
todos de cuja informação esperem a mínima vantagem.21

Carey esboçou para seus leitores as implicações desse modelo de


missões:

Quero propor que um grupo sério de cristãos, obreiros e ou-


tras pessoas, se organize em sociedade, fazendo algumas regras

190
UMA LIÇÃO SOBRE OS PERDIDOS: O MODELO DE MISSÕES DE WILLIAM C '.MU \

para a elaboração do plano, para escolher as pessoas a serem


enviadas como missionários, os meios de cobrir as despesas
etc. Essa sociedade deve consistir de pessoas cujo coração está
na obra, homens de religião séria, com espírito de perseverança.
Deve haver determinação de não admitir nenhuma pessoa que
não se encaixe nessa descrição, ou de não mantê-la mais tempo
do que lhe corresponda.

Muito imitada, essa nova estrutura ajudou a criar o movimento


moderno de missões. Andrew Walls escreveu:

A sociedade voluntária, da qual a sociedade missionária foi uma


forma mais rudimentar, deveria ter transformado a Igreja do
século xix. Ela não foi criada por motivos teológicos, mas para
suprir uma necessidade, tendo afetado todas as formas
estabelecidas de governo da Igreja. Em primeiro lugar, fez com
que a atividade ecumênica fosse possível. Membros de igrejas e
dissidentes alheios afastados da Igreja poderiam trabalhar jun-
tos para um propósito definido. Ela também alterou a base de
poder na Igreja ao encorajar a liderança leiga. Os homens cristãos
comuns, e mais tarde também as mulheres, vieram a ocupar
posições estratégicas nas sociedades importantes. Novamente
as melhores sociedades fizeram com que fosse possível a parti-
cipação de muitas pessoas [...] Os missionários do século XIX e
as sociedades que os chamavam e direcionavam eram um fator
primordial para transformar o cristianismo em uma Igreja de
alcance mundial — talvez seja o fator mais importante ocorri-
do no século passado [xix].22

3. Tradução e disseminação da palavra de Deus

O trio de Serampore, no artigo 9 o de seu Acordo, estava determi-


nado "a trabalhar com toda a força para acelerar as traduções das
Escrituras Sagradas na língua dos hindus". 23 Por que essa ênfase na
i radução da Bíblia? "Precisamos usar de toda assiduidade para explicar

191
LIÇÕES DE MESTRE

e distribuir a Palavra Divina em todas as ocasiões, e por todos os


meios que dispormos chamar a atenção e a reverência dos nativos para
ela, a fonte da vida eterna e a mensagem de salvação para os homens."24
Carey estava convencido de que a Bíblia era a única fonte do Evangelho.
Carey não foi o primeiro a enfatizar a importância do trabalho de
tradução, mas foi o maior dos pioneiros a se dedicar a essa atividade.
O escopo de sua conquista era memorável: aprendendo, traduzindo
e imprimindo a Bíblia em mais de 37 línguas e dialetos. O trabalho
de alfabetização foi o ápice necessário dessa tarefa de tradução e dis-
tribuição. "O estabelecimento de escolas gratuitas para os nativos",
escreveu Carey, "também é um objetivo extremamente importante
para as conquistas futuras do Evangelho." 25
A tradução das Escrituras para o bengali e línguas similares provou
ser uma força decisiva na edificação de um cristianismo indígena, que
também afetasse a cultura de maneira mais ampla. O impacto espiri-
tual das traduções foi seu fruto mais direto e importante. No entanto,
também ocorreu um impacto secundário. John Watts explica:

Os escritos de Carey e a impressão da Bíblia e outros livros em


bengali, bem como seu ensino dedicado dessa língua na Facul-
dade Fort William, valorizaram a língua e a cultura aos olhos
dos ingleses, e os próprios bengalis tiveram o reconhecimento
que jamais haviam recebido de seus patrões hindus.2''

O impacto desse trabalho de tradução para a edificação de uma igreja


nativa e a transformação da cultura bengali foi enorme. O princípio
de Carey continua relevante para a Igreja de hoje, considerando as
cerca de 3 mil línguas que ainda não dispõem da Bíblia traduzida.

4. Unidade visível entre os cristãos

Para Carey, as missões se beneficiavam do verdadeiro ecumenismo


evangélico. Em uma carta escrita a Andrew Fuller, da Sociedade
Missionária Batista, ele pediu que fosse realizada uma conferência
mundial com a presença de todas as organizações missionárias em

192
UMA LIÇÃO SOBRE OS PERDIDOS: O MODLLO DE MISSÕES DE WILLIAM CAREY

1810. Tal evento deveria ocorrer na Cidade do Cabo, África do Sul,


uma encruzilhada entre o Ocidente e o Oriente. Ele estava convenci-
do de que isso traria benefício para a estratégia missionária e o cres-
cente aumento e motivação nas igrejas. Ele escreveu: "Poderemos
compreender melhor uns aos outros e entender melhor os pontos de
vista uns dos outros com duas horas de conversa do que com dois ou
três anos de correspondência por carta". Fuller classificou a idéia de
Carey como um "sonho bom", mas nada de concreto resultou desse
sonho de Carey até muito tempo depois de sua morte. Em 1910,
uma conferência internacional de missões foi realizada em Edinburgo
— um encontro que deu origem ao movimento ecumênico.
A visão de Carey para uma multiformidade por meio de organiza-
ções paraeclesiásticas se tornou um dos grandes fatores de nosso tempo
e uma das maiores expressões de esperança para a unidade cristã. O
grande movimento conciliar evangélico do final do século xx, visto
em encontros como Lausanne (1974) e Manila (1989), a emergên-
cia defendida por movimentos como AD 2000 e Além, e o Co-mission
são manifestações de uma visão que foi primeiramente promovida
por William Carey. As missões podem avançar pela unidade visível
entre os cristãos ao redor dos que acreditam na Palavra de Deus.

5. Igrejas nacionais e líderes nacionais

Antes da famosa estratégia proposta por Henry Venn para a formação


de igrejas autogovernadas, auto-sustentadas e autopropagadas, Carey e
seus colegas defenderam corajosamente o princípio de autoctonia. Em
seu Formulário de Acordo, o trio declarou:

Pensamos ser nossa tarefa, assim que possível, orientar os


irmãos nativos que podem formar igrejas separadas sobre a
escolha de seus pastores e diáconos entre cristãos nacionais.
Assim a Palavra poderá ser pregada continuamente e as orde-
nanças de Cristo administradas, em cada igreja, pelo líder nativo,
tanto quanto possível, sem a interferência do missionário.27

193
LIÇÕES DE MESTRE

Por que essa forte ênfase na liderança nacional? Carey e sua equipe
estavam convencidos de que "somente por intermédio dos pregado-
res nativos podemos esperar o anúncio universal do Evangelho nesse
continente imenso". 28 A Faculdade de Serampore foi fundada para
treinar esses "pregadores nativos". Ela foi um grande sucesso. Muito
do paternalismo e da dominação ocidental sobre as igrejas, que atra-
palhou o trabalho missionário no final do século XIX e início do XX,
poderia ser evitado se o princípio de Carey da valorização dos nativos
fosse seguido mais intensamente.

6. Sensibilidade cultural

No Formulário de Acordo, Carey, Marshman e Ward mencionam vá-


rias maneiras como poderiam ganhar um ouvinte para o Evangelho.
Três expressões de sensibilidade cultural se destacam. Primeiro, eles
decidiram aprender tudo que pudessem sobre o povo indiano, "para
conhecer sua maneira de pensar, seus hábitos, suas tendências, suas
antipatias, a maneira como eles viam a Deus, o pecado, a santidade, o
caminho da salvação e nosso estado futuro". Essa sensibilidade, porém,
não se baseava no pluralismo religioso. O hinduísmo era claramente
chamado de "adoração de ídolos". Mas o próprio Evangelho gerou um
espírito de serviço cultural. Carey percebeu que sem uma percepção
séria da cultura hindu, ele e seus companheiros pareceriam "bárbaros"
aos olhos daquela gente. 29 Como expressão desse princípio, Carey e
Marshman reuniram e publicaram uma coleção de histórias hindus
que descreviam aspectos da cultura e história indiana: o Itihasmala
{Reunião de Histórias]. Os dois amigos também colaboraram na tradu-
ção de grandes porções do épico indiano Ramayana.
Segundo, os cristãos de Serampore foram encorajados a manter
seus nomes e vestimentas. Carey se recusou a dar nomes "cristãos"
aos convertidos, mesmo que esse nome fosse em homenagem a al-
gum deus hindu. O primeiro convertido, Krishna Pai, foi animado
a manter seu nome tradicional. Por causa dessa atitude, Carey foi
criticado por outros missionários, mas ele se recusou a mudar de

194
UMA LIÇÃO SOBRE OS PERDIDOS: O MODELO DE MISSÕES DE WII.UAM CAREY

idéia. As vestes típicas também foram preservadas. Em contraste


radical com a atitude colonial da Inglaterra em relação à índia,
Carey "acreditava que a cultura deveria ser batizada, não destruída". 30
Terceiro, Carey e seus companheiros demonstravam essa sensi-
bilidade cultural em seu compromisso de "se abster das coisas que
poderiam aumentar o preconceito deles [indianos] contra o Evan-
gelho". Isso incluía abrir mão "dos costumes ingleses que são mais
ofensivos para eles", incluindo também evitar a "crueldade com os
animais". O mais importante é que esse compromisso de evitar ofen-
der significava que o hinduísmo não deveria ser atacado. "Nem é
aconselhável ", escreveu Carey:

[...] atacar ao mesmo tempo todos os seus preconceitos ao


exibir com aspereza os pecados dos seus deuses; nem deve-
ríamos nos lançar com qualquer forma de violência contra
suas imagens, nem interromper a sua adoração.

Por que essa abordagem cautelosa? "As conquistas reais do Evangelho


são as que resultam de amor". 31 A sensibilidade cultural era um ato
de amor que faria com que os indianos dessem ouvido ao Evangelho.

7. Um estilo de vida seguindo o modelo da Palavra de Deus


encarnada

Carey, Marshman e Ward defendiam o que posteriormente seria


chamado de "missão integral". Bruce Nicholls a define como "jus-
tiça social e a renovação da sociedade integradas ao serviço compas-
sivo, a educação universal, a evangelização ousada e a plantação de
igrejas .
Em sua abrangência, o modelo integral é impressionante; tradu-
ção da Bíblia, evangelização, plantação de igrejas, serviço médico,
justiça social (oposição ao suttee), educação e treinamento de lideran-
ça. Diferentes dons eram necessários para fazer esse trabalho em toda
a sua extensão. Carey não era bom na evangelização e na plantação de

195
LIÇÕES DF MESTRE

igrejas, m a s esses eram os pontos fortes de Ward e Marshman. Carey


se destoava nas questões de justiça social e na tradução. O modelo
de missão integral produziu uma abordagem de equipe para missões.
Essa abordagem integral requeria um encontro mais amplo com a
cultura. O trio de Serampore algumas vezes foi criticado por sua falta
de crescimento estatístico e penetração geográfica (ainda assim, estima-
se que ^n 1813 havia 11 igrejas bengali, 20 evangelistas nativos e
500 cristãos batizados). Porém, não podemos ignorar que:

Foi e s s e zelo evangelístico que levou Carey a explorar o mun-


do d# índia em sua diversidade religiosa, lingüística, botâni-
ca e .social. Nenhuma barreira de desconhecimento, nenhum
obstá c u lo de ignorância ou suspeita era grande o suficiente
para restringir o que ele considerava o alcance universal do
Evangelho. 33

A tarefa da grande comissão, para Carey, era levantar uma igreja que se
apossaria da cultura para Cristo. Esse alvo supremo total e integral
para misS oe s requeria maneiras multifacetadas de fazer missões. Carey
oferece uf 1 corretivo para a estratégia liberal e unidimensional de mis-
sões, que enfatiza a abordagem cultural e material à maneira igualmente
pietista e unidimensional de evangelização e plantação de igrejas.
O modelo integral de missões, contudo, envolvia mais do que
apenas fi£ ar ocupado em muitas frentes. Também incluía o caráter
do missionário e sua busca para ser igual a Cristo. A perspectiva inte-
gral de mí ss ões não apenas aproximava a evangelização da ação social,
mas t a m b ^ n o "ser" do "fazer". No seu Formulário de Acordo, o trio
de Serampore resolveu ser "constante em oração e cultivar a devoção
pessoal". O que eles tinham em mente em particular era "oração
secreta, feí' v °rosa e crença no que se pede", que "esteja na raiz de toda
a piedade pessoal".34
Junto 0-° fervor na oração veio o comprometimento total com a
causa. " D e v e m o s estar constantemente atentos ao espírito mun-
dano e ao cultivo da indiferença cristã contra toda a tolerância",

196
UMA LIÇÃO SOBRE OS PERDIDOS: O MODELO DE MISSÕES DE WII.LIAM CAREY

escreveu Carey. "Pelo contrário, vamos suportar as dificuldades como


bons soldados de Jesus Cristo e aprender a estar contente em todas as
situações".35 Carey e seus cooperadores admitem que:

Estamos aptos a relaxar nesses esforços, especialmente em um


clima quente, mas devemos sempre guardar em nossa mente
que a vida é curta, que todos ao nosso redor estão perecendo e
que cairemos em desgraça se não proclamarmos as boas notícias
da salvação".36

Esse era o seu modelo integral de missões. Ele combinava um grande


espectro de ministérios com profunda devoção e compromisso espi-
ritual. As missões efetivas surgem de um estilo de vida que imita a
Cristo.

Colocando o modelo de Carey em ação

A vida e o trabalho missionário de Wiiliam Carey incorporavam a


verdade de que a "fé na Palavra de Deus é o grande meio pelo qual
Cristo faz seu Reino avançar, usando a instrumentalidade humana".
Como essa grande lição e seus princípios promovem uma visão reno-
vada de missões? Que tipo de decisões podemos aprender a tomar
com o modelo de Carey?
Uso n° 1: Revise periodicamente os princípios de Carey. Se você é um
executivo de missões, um pastor de missões ou um missionário no
campo, procure revisar periodicamente os princípios de Carey e avalie
seu próprio ministério ou programa missionário segundo esse mode-
lo. Nós demonstramos a mesma sensibilidade cultural que ele?
Estamos enfatizando a tradução da Bíblia? Prestamos bastante aten-
ção às questões da vida cotidiana das pessoas que desejamos alcançar?
Temos uma base teológica para nossa missão? Talvez o melhor
momento para essa revisão seja o de um retiro anual com o conse-
lho missionário de sua igreja, a equipe de liderança ou apenas você
e alguns colegas de confiança.

197
LIÇÕES DE MESTRE

Uso n° 2: Desenvolva cristãos globais em sua casa, igreja ou organiza-


ção. Tom Sine colocou o dedo em uma ferida que afeta muitas pessoas
hoje em dia:

Todos nós parecemos estar vivendo o sonho americano com


uma pequena dose de Jesus. Falamos sobre o senhorio de Cris-
to, mas nossas carreiras vêm antes. Nossas casas confortáveis
vêm antes. Melhorar nosso nível de vida vem antes. Então,
pegamos o que restou e tentamos seguir a Cristo.3'

Nossas famílias, agências ou igrejas precisam ter um foco que trans-


cenda a nós mesmos e nossos pequenos compromissos. Eles precisam
se tornar cristãos globais, com uma fé voltada para o que Jesus está
fazendo ao redor de todo o mundo, e não apenas na região onde
vivemos.
Existe uma grande quantidade de conferências, revistas, seminários,
fitas, CDs e livros que contribuem para o cultivo de uma mentalida-
de de cristão global. Dois livros escritos por Patrick Johnstone podem
ser um bom começo. A Igreja é Maior do que Você Pensa e Intercessão
Mundial estão repletos de informações e sugestões práticas para
qualquer cristão tomar parte na ação global de Deus. 38 Estimule as
pessoas a ler esses livros, juntamente com um amigo ou colega de
trabalho. Use-os em seu tempo devocional em família, se os seus
filhos já têm idade para isso. Ensine-os nas suas aulas de escola bíblica
dominical. Vale lembrar que alguns seminários teológicos oferecem
cursos rápidos sobre missões mundiais. Eles podem ajudá-lo a ser
um formador de consciência missionária mais eficaz.
Os cristãos globais são feitos, não nascem prontos. Use sua au-
toridade como líder para formar pessoas com essa mentalidade em
sua igreja.
Uso n° 3: Reestruture os fundamentos teológicos das missões. Pouco
tempo atrás, fui convidado para falar na conferência missionária de
uma igreja. Era uma igreja evangélica forte, com excelentes líderes e
um compromisso exemplar com missões. No entanto, fiquei surpreso

198
UMA LIÇÃO SOBRE OS PERDIDOS: O MODELO DE MISSÕES DE WILLIAM CAREY

com o tema que me pediram para abordar: "Você poderia falar sobre
a necessidade da fé em Cristo para a salvação? Para ser franco, nem
todos os nossos membros continuam acreditando nisso". Fiquei aba-
lado com essa confissão. Concordei em pregar, e acabei falando sobre
a necessidade de colocarmos nossa fé somente em Cristo para obter a
salvação.
A forte ênfase de Carey sobre a perdição da humanidade, a singu-
laridade e a suficiência de Cristo e a soberania de Deus tornou possível
sua carreira missionária pioneira. Não podemos sustentar um fundo
missionário em nossas igrejas se esses três temas acabarem atrofiados.
Para conter a crescente confusão no meio evangélico, sobre Cristo ser
o único caminho, são necessários estudos bíblicos sobre a exclusivi-
dade de Cristo e uma pregação estratégica sobre essa questão.
Uma forte apresentação da necessidade da fé somente em Cristo
está registrada no livro Alegrem-se os Povos: a Supremacia de Deus em
Missões, de John Piper. 39 A questão discutida nesse livro, e particu-
larmente no capítulo sobre Cristo como foco consciente da fé salvadora,
pode ser um bom começo para uma renovação da teologia de missão
de sua família, igreja ou organização.
Uso n° 4: Formule uma visão e uma estratégia missionária para a
sua igreja. Tom Telford trabalha como consultor de missões para
centenas de igrejas na América do Norte. Ele afirma que a maioria
das igrejas que visita "tem uma percepção bastante distorcida de
missões. Eles são como alguém que atira uma flecha e depois dese-
nha o centro do alvo ao redor da ponta da flecha. Depois, sustenta
que atingiu o alvo em cheio". 40 Uma das coisas que mais me im-
pressionam em Carey e seus companheiros é a maneira cuidadosa
que eles trabalharam segundo seu planejamento, e planejaram
seguindo seu trabalho. Seu Formulário de Acordo estabeleceu a visão
e a estratégia básicas que o trio de Serampore seguiu pelo resto de
sua vida. O Formulário dava a cada um deles um foco que os ajuda-
va a fazer mais coisas para Deus.
A ACMI (Associação dos Conselhos Missionários de Igrejas) é
uma maneira que vários pastores e líderes encontraram para ajudar as

199
LIÇÕES DF MESTRE

igrejas que desejam formular visão e estratégia para missões. Essa


organização pode ser contatada pela sua página na internet:
www.acmi.org.br.
Uso n° 5: Envie seu pessoal para missões em diferentes lugares.
Algumas vezes é melhor "ver para crer". Eu náo recomendaria essa
idéia quando se trata da verdade bíblica, mas parece existir um
valor maior quando essa percepção envolve a geografia. Os hori-
zontes de minha família cresceram tremendamente após termos
viajado a diferentes partes do mundo. Fica difícil imaginar que
meus filhos, Anne e Jonathan, pensarão igual a todo mundo quan-
do chegarem à idade adulta. Durante a maior parte de sua vida
eles viveram em outro país. Além disso, recebemos jovens em nos-
sa casa, por meio de um programa de intercâmbio estudantil.
Meus filhos participaram de viagens missionárias. Visitamos mui-
tos países diferentes.
A visão de alcançar o mundo defendida por Carey começava com
a geografia. Ele estudou sobre as novas terras que o capitão Cooke
descobrira em suas viagens épicas. Estudou também as característi-
cas religiosas e culturais da índia. Quando você encoraja as pessoas
de sua família, igreja ou organização a fazer viagens missionárias,
especialmente para fora do país, estará promovendo a mentalidade
de cristãos globais.
Uso n° 6: Incentive a oração voltada para missões.

Uma igreja local pode desenvolver programas fantásticos e ca-


nalizar muito dinheiro para missões mundiais. No entanto, se
ela não for uma igreja comprometida em orar por missões,
todo esse dinheiro poderá ter um efeito muito pequeno.

Copiei essa frase de um manual de missões que li recentemente. Por


que a falta de oração comprometerá a nossa eficácia em missões?

Deus não dividirá sua glória com ninguém [...] esforços da igre-
ja local isentos de oração indicam um espírito independente,

200
UMA LIÇÃO SOBRE OS PFRDIDOS: O MODLLO DF MISSÓHS DE WII.UAM CARF.Y

incapaz de reconhecer que somente Deus gera mudança espi-


ritual nas vidas das pessoas.41

Revitalize a oração por missões, dedicando um momento para isso


durante os cultos de domingo, nas aulas da escola bíblica e nas
reuniões de oração no meio da semana, ou estimule que isso acon-
teça nos grupos pequenos de sua igreja. Organize um encontro de
oração por missões com a participação de outras igrejas. Utilize o
livro Intercessão Mundial, de Patrick Johnstone, em seu tempo
devocional sozinho ou com a família. Descubra maneiras de fazer
com que as pessoas orem mais por missões. Conforme disse Andrew
Murray dezenas de anos atrás:

Oração, mais oração, oração muito específica, deveria, antes de


tudo, ser feita em favor do trabalho a ser realizado em nossa
igreja local para a promoção de missões mundiais.42

Carey certamente concordaria com isso.


Talvez o mundo esteja ficando menor, porém ainda não tenho
certeza disso. Minha impressão é que me parece maior e mais com-
plexo. Como alcançar os 11 mundos que nos cercam? Esse desafio
será vencido pelos cristãos da nova geração? O que precisamos é de
uma renovação na maneira de olharmos o mundo. A visão de Carey
estimulou toda a sua geração para um envolvimento em missões.
Se nos dermos uma chance, certamente essa lição nos ajudará a
fazer isso de novo.

201
LIÇÕES DE MESTRE

QUESTÕES PARA DEBATE

1. Em João 20:21, Cristo diz aos seus discípulos: "Assim como


o Pai me enviou, eu também vos envio". Enquanto você
revisa os sete princípios de Carey, percebe que alguns deles
refletem o estilo de ministério de Cristo durante sua vida
aqui na terra? Quais são as semelhanças e as diferenças?

2. Imagine estar participando da reunião do conselho missio-


nário de sua igreja local. Quais dos usos mencionados você
recomendaria que fosse colocado em prática? Por quê?

LEITURAS COMPLEMENTARES

Uma boa biografia de William Carey foi escrita por Timothy


George com o título de Fiel Testemunha — Vida e Obra de
William Carey (Edições Vida Nova). As referências comple-
tas sobre [Uma] Averiguação se encontram em notas no final
do livro.
Vários livros sobre a história de missões também trazem
detalhes sobre a vida e o ministério de Carey, como História
das Missões e ...Até os Confins da Terra (ambos da Edições
Vida Nova).

202
CAPÍTULO 9

UMA LIÇÃO DE JUSTIÇA:


O MODELO DE AÇÃO SOCIAL
CRISTÃ DE WILLIAM WILBERFORCE

D e muitas maneiras diferentes, o ano de 1994foi triste para a humani-


dade. Ocorreu uma grande quantidade de estupros e assassinatos
na Bósnia, matança e genocídio em Ruanda. Aquele ano parecia
produzir uma safra extra de violência. De acordo com uma revista,
o lema do ano parecia ser "odeie o seu próximo".
Apesar de a violência na região dos Bálcãs e da mortalidade no
centro da África, naquele ano surgiu um importante raio de esperan-
ça, vindo de um lugar inesperado. Em abril de 1994, após cinqüenta
anos de apartheid, eleições multipartidárias e multiétnicas foram
realizadas na África do Sul. Depois de 26 anos na prisão, Nelson
Mandela, libertado em 1990, levou seu partido, o Congresso Nacio-
nal Africano, à vitória. Ele se tornou o primeiro presidente negro na
história daquela nação.
O colapso do apartheid z a transição bem-sucedida para um go-
verno mais justo e representativo compõem um grande momento
na história da África do Sul. Para o evangelicalismo, também foi um
grande momento. Após décadas de relativo silêncio sobre a questão
tia injustiça étnica, os evangélicos daquele país apoiaram o fim do
dpartheid e o início de uma nova era de democracia em sua nação.
O momento de mudança para os evangélicos ocorrera em 1986,

203
LIÇÕES DF. MESTRE

com a publicação de Evangelical Witness in South África: A Critique of


Evangelical Theology by Evangelicals Themselves) Um grupo que usava
o nome de Evangélicos Preocupados foi responsável por esse docu-
mento. Eles se arrependiam da indiferença dos evangélicos em relação
às questões de justiça social, se comprometiam a seguir o exemplo do
seu Senhor e trabalhar ao lado dos pobres e dos oprimidos. Os
pentecostais logo seguiram esse exemplo, fazendo uma declaração
similar contra a injustiça. Em parte foi por causa dessa mudança
dentro do evangelicalismo que, em 1990, o apoio popular ao apartheid
já havia enfraquecido muito entre os brancos da África do Sul. O
presidente F.W. de Klerk, sentindo que o governo de minoria branca
estava condenado, desmontou as estruturas do apartheid e libertou
Mandela da prisão. Assim, ele deu início a uma série de eventos que
culminaram nas eleições de abril de 1994. 2
A redescoberta evangélica da consciência social na África do Sul me
faz lembrar outro momento de similar importância na história do
evangelicalismo. No início do século xix, um grupo de evangélicos
ingleses concluiu que a escravidão não estava em consonância com o
Evangelho. O comércio de escravos que eles decidiram atacar era um
grande negócio. O tráfico transatlântico envolvia mais de 100 mil es-
cravos por ano no final do século xviil. Também se pensava que a escra-
vatura "estava inseparavelmente associada ao comércio e ao bem-estar,
e até mesmo a segurança nacional da Grã-Bretanha".3 A escravidão:

Fora legalizada por decretos (1631, 1633 e 1672), por um ato


do Parlamento (1698) e por um tratado (1713, 1725 e 1748).
E o que é ainda mais importante, ela estendia seus tentáculos
ao redor dos interesses e ambições das multidões de pessoas

William Wilberforce e seus amigos influentes que formavam o


Grupo de Clapham nadavam contra a corrente da opinião públi-
ca, fazendo oposição à escravidão. Por trás de seus protestos estava
"a ênfase evangélica sobre o valor da alma humana e, portanto,

204
UMA LIÇÃO DE JUSTIÇA: O MODELO DE AÇÃO SOCIAL CRISTÃ DE WILLIAM WILBERFORCE

do indivíduo". 3 Durante grande parte de sua vida, Wilberforce


trabalhou para mostrar que Cristo estava ao lado da libertação.
Ele e seus amigos foram capazes de mudar a história da Inglaterra
e por um fim aos males da escravidão.
Os evangélicos de hoje se debatem com a luta pela justiça social.
Os críticos acusam o movimento evangélico de pregar uma espiritua-
lidade escapista, que se importa pouco com as necessidades dos po-
bres e oprimidos. Aos olhos de seus críticos, ele é simplesmente uma
expressão religiosa da "geração do eu", típica dos anos de 1970. Em-
bora as raízes do evangelicalismo estejam firmemente plantadas em
movimentos que se recusavam a separar a transformação pessoal da
social, podemos lembrar do equilíbrio entre o Evangelho e a ação social
na Genebra de Calvino, na Inglaterra dos puritanos, no metodismo de
Wesley, na teologia de Edwards e no avivamento de Finney.6
Em nossos dias, os evangélicos mais jovens das Américas do Norte
e do Sul, da África do Sul e da Europa buscam resgatar essa herança.
Apesar desses sinais de esperança, "a grande maioria do movimento
evangélico" continua silenciosa em relação a muitas questões de in-
justiça social.7 O que pode nos motivar a fazer algo nessa área? Como
podemos nos opor à injustiça de uma maneira que honre a Cristo e o
avanço de sua causa? Como encontramos o equilíbrio entre os extre-
mos da falta de ação social, por um lado, e o Evangelho social
secularizado, do outro? Minha convicção é que William Wilberforce
encontrou esse equilíbrio e pode nos ajudar a fazer o mesmo.
O modelo de ação social cristã proposto por Wilberforce repre-
senta uma das maiores lições da história da Igreja. Iremos explorar
seu conceito de que o cristianismo vital luta pela liberdade pessoal e a
melhoria de vida daqueles que sofrem, usando para isso as armas da
persuasão, educação e legislação.

A vida de Wilberforce

William Wilberforce nasceu em uma família rica de comerciantes na


cidade portuária de Hull, Inglaterra, em 1759. A morte de seu pai,

205
LIÇÕES DE MESTRE

quando o jovem William ainda estava na escola primária, o deixou sob


a influência temporária de sua tia metodista, para desgosto de sua mãe.
Sua baixa estatura era um problema na escola, porém o pequeno
Wilberforce sobreviveu graças à sua eloqüência. James Boswell poste-
riormente o descreveu como um "camarão" que, quando falava, "se
transformava em uma baleia".8
Wilberforce entrou para a Universidade de Cambridge em 1776.
Durante os anos que permaneceu ali, parecia mais interessado em
jogos do que em seu aprendizado. Wilberforce mais tarde resumiu
ao seu filho Samuel sua experiência em Cambridge da seguinte
maneira:

A primeira noite que cheguei em Cambridge jantei com meu


tutor e fui apresentado a dois homens, que provavelmente eram
os maiores viciados em jogo da Inglaterra. Também conheci
um grupo de irlandeses desse tipo. Eu costumava jogar cartas
durante boa parte do tempo e nada mais. Meu tutor, que deveria
ter repreendido essa disposição, se não pela sua autoridade,
pelo menos por conselhos, acabava me encorajando.9

Apesar disso, o tempo que ficou na universidade não foi um desper-


dício total. Wilberforce pôde conhecer um pouco sobre os clássicos
antes de sair de Cambridge.
Em algum momento, Wilberforce também desenvolveu uma cons-
ciência social. Existe uma história peculiar sobre Wilberforce, escre-
vendo aos 14 anos de idade uma carta contra a escravidão para um
jornal de Yorkshire. Infelizmente, parece que tal ato pertence mais ao
mito do que à história.10 Contudo, existem evidências de que antes
de sua eleição para o Parlamento, em 1780, Wilberforce havia
confidenciado a um amigo que esperava fazer "algo em favor dos es-
cravos".11 No Parlamento inglês, Wilberforce logo ficou famoso pela
sua eloqüência, e foi apelidado de "o rouxinol da Câmara dos Comuns"
[Parlamento inglês].12 Em 1784, eleito por Yarkshire, assumiu um
cargo político, o qual exerceu até 1812. Depois, passou a ocupar

206
UMA LIÇÀO DE JUSTIÇA: O MODELO DE AÇÃO SOCIAL CRISTA DE WILLIAM WILBERFORCE

uma posição mais segura como legislador, onde permaneceu até a sua
aposentadoria, em 1825.
A mudança espiritual na vida de Wilberforce ocorreu em 1784. Na-
quele ano, ele fez uma viagem pelo continente europeu acompanhado
por Isaac Milner, um velho colega de escola de Huíl. Milner era
evangélico e começou a conversar com Wilberforce sobre o cristianis-
mo. Durante sua viagem, eles leram juntos a obra de Philip Dodriges,
Rise and Progress ofReligion in the SouL* Wilberforce foi profunda-
mente tocado por esse livro e acabou confessando sua fé em Jesus
Cristo. Durante o restante de sua vida, procurou ser um seguidor
disciplinado de Jesus Cristo, embora comida, bebida e preguiça fos-
sem tentações constantes para ele. Wilberforce lutou contra o vício
do ópio, adquirido após prescrição médica para tratamento de uma
doença. 13 O fardo da causa abolicionista quase acabou com a sua
saúde repetidas vezes, mas a fé o sustentou.
O que lhe dava poder para perseverar era o prazer que sentia em
Deus, o tipo de satisfação descrita por Richard Baxter (veja o capítu-
lo 5). Wilberforce sentia que a alegria em Cristo era uma poderosa
maneira de defender a fé cristã. Ele escreveu: "Minha grande objeção
ao sistema religioso defendido por muitos que declaravam ser cris-
tãos ortodoxos", confessou, é que "a religião parece ter sido feita para
ser revestida de proibição e perigo, e não de paz, esperança e ale-
gria".14 Alegria em Deus se tornou uma das características da fé de
Wilberforce. Essa tendência para a alegria podia ser vista no amor
que demonstrava pelas crianças. Seus amigos adultos algumas vezes
reclamavam quando Wilberforce, entediado com a conversa dos adul-
tos, pedia licença, apanhava uma bola e ia brincar com as crianças no
jardim.15 Hannah More, contudo, viu esse atributo da alegria como
um dom de Deus que o capacitava a atrair para o Evangelho as pes-
soas com quem convivia, mas não eram cristãs. Ela o encorajou a ver
"a alegria como um dos mais desejáveis frutos do Espírito".16 Outro
amigo escreveu sobre Wilberforce, dizendo que "os tons de sua voz e
as expressões de seu rosto mostravam que a alegria era sua principal

' Surgimento e Progresso da Religião na Alma.

207
LIÇÕES DE MESTRE

característica; alegria que brotava inteiramente de sua confiança nos


méritos do seu Senhor". 17
Não sabemos ao certo se o hedonismo cristão de Wilberforce foi in-
fluenciado pelos escritos de Baxter. Sabemos, no entanto, que ele tinha
grande consideração por Baxter (que condenara a escravidão em 1680),
e elogiou os seus escritos sobre a vida espiritual: "Poucos escritos sem
inspiração, se é que algum, têm sido instrumentos de benefício tão gran-
de para a humanidade como os do senhor Baxter".18 Não importa quem
tenha influenciado seu hedonismo cristão, uma coisa é certa: a conversão
de Wilberforce lhe deu uma nova energia com a qual poderia lutar con-
tra a escravidão e a injustiça. A alegria do Senhor seria a sua força.
Quando aquele século se aproximava do fim, Wilberforce intensi-
ficou seus ataques sobre os dois problemas mais sérios da Inglaterra:
o cristianismo nominal e a injustiça social. Em 1797, ele publicou os
fundamentos teológicos para seu ativismo social em um livro chama-
do A Practical View of the Prevailing Religious System of Professed
Christians. * Seu editor, um certo senhor Caddell, estava nervoso
com esse projeto. A literatura religiosa não vendia bem na Inglaterra
durante o Iluminismo. Ele pensou que poderia vender 500 cópias.
Dentro de seis meses, contudo, havia vendido 75 mil exemplares.19
Wilberforce tocara em um ponto sensível. Embora seu livro fosse
primariamente um ataque contra o cristianismo nominal, Wilberforce
também procurou mostrar que o cristianismo era a chave para a jus-
tiça e a prosperidade de uma nação:

Tudo seria dinâmico e harmonioso na sociedade humana se


qualquer país estivesse cheio de homens que procurassem aliviar
diligentemente as cargas de sua própria condição sem violar os
direitos dos outros, mas, pelo contrário, tentassem o mais que
pudessem realizar sua visão e promover a felicidade. Assim não
haveria discussões, nem discordância. Todas as engrenagens da
vida civil poderiam rodar sem obstrução ou desordem, e o curso
de seus movimentos seria harmonioso. 20

* Uma Visão Prática do Sistema religioso dos Cristãos Professos.

208
UMA LIÇÃO DE JUSTIÇA: O MODELO DE AÇÃO SOCIAL CRISTÃ DE WILLIAM WILBERFORCE

Essa nova ordem mundial de paz e justiça não seria alcançada


apenas pelo esforço humano. Tanto a verdade cristã quanto uma
experiência vital de união com Cristo eram necessárias para gerar o
tipo de pessoa capaz de se dedicar a essa nova visão política.
Wilberforce alertou contra o "hábito fatal" de separar a "moral cristã"
da "doutrina cristã".21 Somente poderíamos contar com as pessoas
verdadeiramente convertidas para um trabalho em prol da "paz e
prosperidade geral". 22
Embora Wilberforce tenha exagerado, os benefícios políticos do
"cristianismo vital" e suas opiniões foram muito influentes. A Practical
View foi um sucesso de vendas e teve numerosas edições durante a vida
de Wilberforce. Essa obra continua disponível em inglês até hoje.23
Armado com o coração mudado, o espírito alegre, teologia prática
e padrinhos importantes como William Pitt (primeiro-ministro in-
glês de 1783-1801, morto em 1806), Wilberforce tinha quase todos
os elementos de que precisava para iniciar um ataque bem-sucedido
à escravidão. No entanto, faltava uma coisa; ele precisava de pessoas
que pensassem de maneira semelhante para apoiá-lo. Essa última
necessidade em breve foi suprida. Wilberforce se tornou a figura cen-
tral de um grupo de evangélicos de pensamento semelhante e que
ocupavam posições de destaque. A história mais tarde os denominou
Grupo de Clapham, embora não fossem uma seita, nem todos vives-
sem no subúrbio londrino de Clapham. 24 Ligado a pessoas como
HenryThornton, John Venn, John Newton, Hannah More, Thomas
Clarkson, Zachary Macaulay, James Stephens, Granville Sharp e
Charles Simeon, o Grupo de Clapham defendeu muitas causas hu-
manitárias e religiosas. Eles fundaram muitas sociedades voluntárias
para fazer suas reformas avançar: a Sociedade Missão da Igreja (1799),
a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (1904) e uma colônia
para escravos libertos em Serra Leoa (1787). Mesmo em companhia
de pessoas tão ilustres, Wilberforce era sua estrela maior, "o verdadei-
ro sol do sistema Claphamico", como posteriormente declarou um
deles. Não foi surpresa que a maior causa defendida pelos membros
de Clapham acabou se tornando a mesma de Wilberforce: a abolição
da escravatura.

209
LIÇÕES DE MESTRE

Apesar dos impressionantes recursos espirituais e humanos que


Wilberforce levou consigo para a batalha, a primeira vitória contra a
escravidão demorou muito tempo. A proposta de Wilberforce para a
abolição da escravatura se tornou lei somente em 25 de março de
1807 — vinte anos após a sua primeira tentativa de aprovação.
A emancipação não tardaria. Entretanto, Wilberforce surpreendia
as pessoas, confessando-lhes ser útil que a demora se prolongasse mais
um pouco. Ele acreditava no perigo de uma pressão e nos resultados
negativos se rapidamente ocorresse a liberação total. Era preciso tempo
para preparar todos os partidos a todas as implicações da emancipa-
ção. Em 1833, esse tempo havia chegado. Mesmo tendo deixado sua
cadeira em 1825, seu lugar foi tomado por um jovem muito capaz
chamado Thomas Buxton, que deu continuidade ao seu trabalho.
Wilberforce continuou ativo nos bastidores, sempre encorajando Buxton
a continuar em frente.
Uma proposta de emancipação dos escravos nas colônias britâni-
cas foi aprovada na Câmara dos Comuns em 26 de julho de 1833. O
que mais surpreendeu a maioria dos observadores foi que "o povo
inglês, em um período de aperto financeiro nacional, tomou sobre si
uma taxa de 20 milhões de libras para dar liberdade aos negros".25
Até mesmo Wilberforce ficou impressionado. Ele se alegrou por estar
"vivo para testemunhar o dia em que a Inglaterra está disposta a dar
20 milhões de libras para a abolição da escravatura no país".26 E ficou
ainda mais agradecido por ter vivido para ver o dia em que "a verda-
deira religião está se propagando, e, estou convencido, se espalhará
muito, até que a Terra fique cheia do conhecimento do Senhor, como
as águas cobrem o mar".27 O seu biógrafo afirma que isso "prova que
um homem pode mudar o seu tempo, embora não consiga fazê-lo
sozinho". 28

O modelo de ação social cristã de Wilberforce

Como Wilberforce conseguiu mudar o seu tempo? Para responder a


essa questão, gostaria de relatar sete características atrativas do mode-
lo de ação social cristã apresentado por Wilberforce.

210
UMA LIÇÃO DE J ÜSTIÇA: O MODELO DE AÇÃO SOCIAL CRISTÃ DE WILLIAM WILBERFORCE

Característica n° 1: Rejeição ao radicalismo. No Parlamento, ao


lado de Wilberforce estavam políticos radicais como Cobbett, que se
opunha a quase tudo o que Wilberforce defendia. Em 1789, Wilber-
force testemunhou o radicalismo expresso do outro lado do Canal da
Mancha, na França. A Revolução Francesa defendeu o deísmo centrado
no homem, que era a antítese de tudo o que Wilberforce acreditava.
Ele viu como a revolucionária Declaração dos Direitos Humanos gerou
genocídios, anarquia e um reino de terror. Ele rejeitou todas as solu-
ções utópicas em grande parte por acreditar que a pecaminosidade
do ser humano impossibilita essas idéias de se tornarem realidade.
Para Wilberforce, a única esperança verdadeira de melhora das
nações se encontrava no cristianismo, ou seja, ele discordava de qual-
quer ideologia que rejeitasse a fé cristã. Quando The Age ofReason*
de Tom Paine, foi publicada na Inglaterra, defendendo as idéias que
perturbaram tanto a França, Wilberforce se opôs ao livro e à sua men-
sagem. Para ele, estar em guerra contra o cristianismo era "estar em
guerra com a moralidade e a felicidade da humanidade". 29 Ele tinha
certeza de que "se o progresso material e mental se tornassem os úni-
cos critérios, a nação perderia o seu espírito".30 Essa política radical
era um caminho para o sofrimento.
Característica n° 2: Rejeição ao conservadorismo reacionário.
Wilberforce foi mais do que um crítico do radicalismo. Ele também
rejeitou os erros dos políticos de direita. Na década que sucedeu os
eventos de 1789, a classe dominante da Inglaterra estava tão apa-
vorada com o "terror do outro lado do Canal" que se opunha até
mesmo ao menor movimento em direção à mudança democrática ou
social. Um historiador escreveu:

Paris demonstrou claramente que a reforma, mesmo que bem-


intencionada, era maligna por sua própria força e conduzia
irresistivelmente ao caos. Mostrou também que a única segu-
rança estava na submissão agradecida à ordem vigente, e nas
medidas rápidas e cruéis de todo o pretenso reformador.31
" A Era da Razão.

211
LIÇÕES DE MESTRE

A direita se tornou tão extremista que "as liberdades duramente


conquistadas no passado foram descartadas [...] a tirania foi disfarçada
de juiz e, de precedente em precedente, a opressão crescia".32
Alguns eruditos argumentam que as reformas de Wilberforce foram
expressões de um pânico conservador com o objetivo de "amenizar o
tipo de abusos que causaram a Revolução Francesa e até mesmo sub-
jugar as classes mais baixas".33 Essa perspectiva ignora o fato de que,
dois anos antes da Revolução Francesa, quando sua experiência de
conversão ainda era recente, Wilberforce já havia começado uma
campanha contra a escravidão. Também ignora o fato de que os
conservadores contrários à revolução não apoiavam Wilberforce e o
Grupo de Clapham, mas, ao contrário, bloqueavam e atacavam as
suas iniciativas.34
Wilberforce rejeitou o extremismo direitista que conquistou muitos
líderes da Inglaterra durante o governo do rei George. Sua fé em Deus e
seu governo por meio de Jesus Cristo impediram que ele entrasse em
pânico. As promessas da Palavra de Deus o convenceram de que a luta
por justiça honrada a Deus, feitas do lado de dentro do sistema, não iria
se degenerar em anarquia. A história provou que ele estava certo.
Característica n° 3: Ênfase na natureza prática do verdadeiro cristia-
nismo. Muitas pessoas na Inglaterra de Wilberforce se opuseram ao
cristianismo evangélico, alegando que era apenas "entusiasmo", ou
seja, um emocionalismo sem qualquer suporte moral ou social.
Wilberforce era mais inteligente que isso. Sua própria experiência era
um testemunho de que o novo nascimento dava nova vida a uma
pessoa, com um poderoso amor por Deus e pelos outros. Nas pala-
vras do próprio Wilberforce, a pessoa regenerada é tomada por um
sentimento de serviço e obrigação:

Deixe-me lembrá-lo de que sua principal preocupação aqui na


Terra não é meditar, mas agir [...] que ele é diligente em culti-
var os talentos que Deus lhe deu, e empregá-los assiduamente
para fazer a justiça e espalhar a misericórdia, enquanto se de-
fende contra os ataques de qualquer inimigo interno. 35
UMA LIÇÃO DE JUSTIÇA: O MODELO DE AÇÃO SOCIAL CRISTÃ DE WILIJAM WILBERFORCE

A vida do próprio Wilberforce foi um testemunho de que:

[...] os servos de Cristo, animados por um princípio de afeição


filial que dá ao seu trabalho um sentimento de liberdade per-
feita, são capazes de práticas ativas e perseverantes, como os
devotos da fama, ou os escravos da ambição, ou os servidores
da avareza".36

O aspecto genial da conversão evangélica é que ela produz "uma


vida que é útil e feliz ao mesmo tempo". 37 Wilberforce sem dúvida
criticaria os evangélicos de hoje em dia por restringirem o poder do
Evangelho ao privatizar a fé em um grau perigoso. Uma experiência
plena de novo nascimento, como a que William Perkins defendia, e
Wilberforce descreveu em seu livro A Practical View, inevitavelmente
produz uma nova criatura que considera "fazer justiça e demonstrar
misericórdia" sua alegria e coroa.
Característica n° 4: Uso de persuasão, educação e legislação.
Wilberforce não foi um defensor da conversão que acreditava existir
como única resposta para os problemas sociais a salvação das pessoas.
Ele certamente acreditava que um despertamento religioso que
produzisse grandes números de homens e mulheres transformados
mudaria a face da Inglaterra. Ele afirmou isso em A Practical View.
Mas Wilberforce foi além do modelo de conversão das pessoas para
efetivar a mudança social. Ele cria que a ação política e de caridade
poderiam resultar em muitos benefícios para toda a sociedade. Du-
rante seus 35 anos no Parlamento, trabalhou incansavelmente para
aprovar uma legislação de melhoraria para a vida dos pobres e opri-
midos. Considerava rambém que a maneira de aprovar essa lei era
usar "todos os métodos conhecidos de mover as massas, todos os ex-
pedientes políticos e todos os truques das campanhas políticas".38
Ele fundou grupos voluntários, como a Sociedade para o Alívio
dos Trabalhadores Pobres. Estimulou More em seus escritos sobre
causas sociais, particularmente os folhetos simples que escrevia para
o povo. Defendeu projetos para vacinar os cidadãos contra a varíola e

213
LIÇÕES DE MESTRE

aumentar o cultivo de batatas. Fez tudo isso em uma tentativa de


aliviar o sofrimento das classes mais baixas. Ele afirmava que "deve-
mos educar desde o nosso povo até os nossos jornais, se me permitem
que use essa frase, para que eles dificilmente possam ser manipulados
por homens ardilosos e facciosos".39
Muitos dos planos de Wilberforce não deram certo. Ele apoiou as
desastrosas leis do milho de 1815- E nem sempre foi fiel aos seus
princípios. Faltou-lhe sabedoria quando apoiou as leis de habeas corpus
durante a guerra com a França.40 Apesar de passos mal calculados e
inconsistências, Wilberforce continuou com sua crença no grande
triunvirato: persuasão, educação e legislação. Esses eram meios van-
tajosos para fazer a vontade de Deus na sociedade.
Wilberforce teria grandes problemas para entender a tendência
antigoverno, que hoje em dia tomou conta de muitos cristãos nos
Estados Unidos. Ele provavelmente os encorajaria a voltar para a ação
social construtiva, usando persuasão, educação e legislação como as
melhores maneiras de testemunhar a justiça do Reino de Deus.
Característica n° 5: Demonstração de paciência e persistência na pro-
moção a justiça. Ao mesmo tempo que Wilberforce rejeitava a idéia de
que a escravidão deveria ser eliminada gradualmente, também desa-
provava a impaciência de alguns abolicionistas que queriam forçá-la a
qualquer preço. Ele acreditava não somente na emancipação, como
também no processo necessário para isso. Wilberforce passou toda a
vida se opondo à escravidão, e, embora muitas vezes ficasse cansado,
jamais desanimou. Ele sabia que a opinião pública demora décadas
para mudar.
Quando Wilberforce começou a sua campanha, a visão predo-
minante no Parlamento era de que nada poderia retirar o apoio
público ao tráfico de escravos. Edmund Burke estava "temeroso de
tratar desse tipo de comércio, pois poderia arruinar o seu parti-
do". 41 Até mesmo John Wesley, em sua obra Thoughts upon Slavery*
declarou sua crença de que o tráfico não poderia ser exterminado

* Pensamentos sabre Escravidão.

214
UMA LIÇÃO DE JUSTIÇA: O MODELO DE AÇÃO SOCIAL CRISTÃ DF WILI IAM WILBERFORCE

pela lei. Quando Wilberforce apresentou seus primeiros projetos de


lei contra o comércio de escravos, no final da década de 1780, esses
foram derrotados. O lorde Penrhyn falou em nome da maioria do Par-
lamento, declarando que seria absurdo "abolir a comercialização [...]
[da qual] dependiam dois terços do comércio deste país".42 Contra
todas as expectativas, Wilberforce continuou se opondo paciente-
mente à escravidão, minando com vagar a lógica de seus apoiadores,
expondo de maneira gradual os horrores causados contra as suas víti-
mas, apelando com persistência para as mentes iluminadas. A vitória
finalmente foi alcançada. De maneira lenta e contínua, ele acabou
vencendo a disputa.
Enquanto os evangélicos falam sobre os muitos males sociais e
econômicos de nossa era, é fundamental lembrarmos do exemplo de
paciência dado por Wilberforce. Atos violentos, como o assassinato
de médicos americanos favoráveis ao aborto, podem vencer uma ba-
talha, mas perdem a guerra quando fazem nosso movimento cair em
descrédito. Paciência e persistência na defesa da causa da reforma são
o caminho para a mudança permanente e a vitória final.
Característica n° 6: Confiança na sociedade cristã e nas sociedades
voluntárias. Como podemos conseguir disposição para insistir pacien-
temente na promoção da justiça, em especial frente à dura oposição?
A resposta de Wilberforce é a comunidade crista. O grupo de amigos
que se reuniram em Clapham, na propriedade de Henry Thornton,
deu a Wilberforce o estímulo e o apoio necessários para levar tudo
adiante durante os tempos mais sombrios.
Mesmo que tenha ressaltado apenas o papel de Wilberforce na
abolição da escravatura, ele não estava sozinho. O Grupo de Clapham
esteve com ele o tempo todo. Wilberforce usou o talento legal de
James Stephens e a capacidade de escrever de Thomas Clarkson. Be-
neficiou-se dos recursos financeiros de Henry Thornton. Dependeu
dos conselhos espirituais de John Newton. Procurou o encorajamento
de Hannah More. Juntos, esses amigos iniciaram sociedades para a
promoção de missões, o assentamento dos escravos livres, a aboli-
ção da escravatura, a publicação de bíblias e reformas em prisões e

215
LIÇÕES DE MESTRE

fábricas. A vida de Wilberforce ilustra o princípio que uma grande


mudança pode ocorrer quando os recursos da comunidade cristã
são canalizados por sociedades voluntárias eficientes para as áreas
de necessidade.
Característica n ° 7: Identificação de práticas que obscurecem a digni-
dade dada por Deus e contradizem o Evangelho, e depois lutar com elas
com toda a força. A principal ferramenta de diagnóstico que Wilberforce
usou para determinar os males sociais que mais precisavam ser trata-
dos era a teologia. Conforme escreveu E. M. Howse, o movimento
abolicionista na Inglaterra "surgiu de uma nova doutrina que rece-
beu seu maior impulso da ênfase evangélica sobre o valor da alma
humana e, por conseqüência, do indivíduo". 43 Wilberforce e seus
amigos não se opuseram à pobreza, escravidão, ignorância e injustiça
motivados por algum idealismo vago. O que os impulsionava era
uma determinada visão dos seres humanos, uma visão vinda dos
primeiros capítulos de Gênesis, o qual mostra que a humanidade foi
criada à imagem de Deus. Apenas as consciências treinadas para
reconhecer a dignidade conferida por Deus aos seres humanos podem
ser suficientemente movidas à ação diante dos horrores da injustiça.
O próprio conceito de injustiça está ligado a uma determinada visão
do valor de ser humano.

Wilberforce não era um teólogo sistemático, e detestava as dis-


cussões que associava aos pensadores de maneira teológica. Mesmo
assim, todo o seu programa social tinha como base uma questão
teológica. Toda e qualquer prática que obscurecesse a dignidade
conferida por Deus à humanidade e contrariasse o Evangelho deve-
ria ser combatida com todas as forças.

Colocando em prática o modelo de Wilberforce

Já analisamos a visão de justiça defendida por Wilberforce, um modelo


de ação social cristã com muitos aspectos atrativos para os evangéli-
cos de hoje. O modelo de Wilberforce estava construído sobre uma
grande lição: o cristianismo vital, que resulta de uma experiência de novo

216
UMA LIÇÃO DE JUSTIÇA: O MODELO DE AÇÃO SOCIAL CRISTA DE WILLIAM WILBERTORCE

nascimento, impulsiona o cristão a lutar pela liberdade pessoal e melhoria


da vida daqueles que sofrem, usando primariamente as armas da persuasão,
educação e legislação. Mas como podemos tomar decisões significati-
vas baseadas nessa idéia?
Uso n ° 1: Lute pela justiça do lado de dentro. Charles Colson defen-
de que, "como estratégia geral, seremos mais eficazes" em promover a
justiça na sociedade "quando penetrarmos nos bastidores, influen-
ciando a cultura pelo lado de dentro". 44 Isso está de acordo com a
comissão de Cristo em Mateus 5:13, para sermos o "sal da terra". Isso
significa que "os cristãos devem ser 'esfregados' em uma cultura,
penetrando em todos os aspectos da vida, preservando e temperando
a sociedade em que vivemos".45
Lutar por justiça do lado de dentro significa infiltrar-se nas áreas
em que há mais necessidade. Aaron Johnson não foi apenas o primei-
ro negro a ser secretário de correções penais da Carolina do Norte.
Quando ele foi indicado, em 1984, também era o único pastor orde-
nado dos Estados Unidos a ocupar essa posição. Johnson usou sua
posição para excluir a pornografia e a conduta imoral do sistema
carcerário.46 Quando Tom Phillips era o CEO da Raytheon Corporation,
ele estabeleceu um departamento de ética que "revisava as políticas
da companhia e apresentava orientações a gerentes e empregados de
maneira confidencial, analisando cada caso individualmente". A men-
sagem de Phillips aos seus empregados mostrava que ele não fazia
concessões: "Mesmo que você pense que está servindo à sua compa-
nhia ao torcer as regras, quero ser totalmente claro: não faça isso.
Nem pense em fazer isso".47
Lutar do lado de dentro também pode significar uma mudança
para uma área necessitada. Raleigh Washington e Glen Kehrein vivem
nos subúrbios de Chicago. A igreja Rocha da Nossa Salvação e o
ministério Perímetro Urbano surgiram a partir do relacionamento de
diferentes etnias. O que significa ser sal e luz em uma região deca-
dente de Chicago, onde convivem pessoas de etnias diferentes? Por
meio do trabalho desses homens e seus ministérios, antigas "bocas de
lumo", cortiços velhos e terrenos baldios foram transformados em

217
LIÇÕES DE MESTRE

asilos para idosos, apartamentos de aluguel baixo e abrigos para os


sem-teto. 48 Depois que eles se mudaram para uma área necessitada,
puderam começar a trabalhar do lado de dentro.
Wilberforce usou seu chamado para ser um político cristão e lutar
do lado de dentro em nome de Deus, sendo sal e luz. Os presidentes
de empresas, advogados, professores, jornalistas, empreiteiros e fun-
cionários públicos, cristãos de hoje, deveriam seguir esse exemplo e
trabalhar do lado de dentro para minimizar todas as contradições ao
Evangelho que obscurecem a imagem de Deus nos seres humanos.
Uso n ° 2: Trabalhe em prol da reforma, não da revolução. Todos
parecem amar a palavra "revolução." Mas um número bem menor de
pessoas gosta da palavra "reforma." Newt Gingrich foi o "homem do
ano" escolhido pela revista Time em 1995. Na ocasião, ele ainda era o
presidente da Câmara dos Deputados. Ele foi escolhido graças ao seu
papel na "Revolução Republicana" de 1994-1995, quando o partido
Republicano conquistou a maioria na Câmara e no Senado, insti-
tuindo um "Contrato com a América". O prêmio da Time me lembra
como usamos a palavra "revolução" em demasia. Uma razão para isso
é que os americanos consumistas querem "tudo" e têm pressa de con-
seguir isso. As revoluções são "rápidas e sujas".
"Reforma" é uma palavra (ou conceito) que não é nem de perto
tão popular quanto "revolução." Apesar de o trabalho lento e pa-
ciente de reforma ao longo do tempo ser muito mais eficiente que a
revolução, ela também está mais de acordo com a perspectiva cristã.
Desde a Revolução Francesa, em 1789, "revolução" significa mudan-
ça radical e violenta. Esse conceito de mudança é profundamente
anticristão. Albert Wolters nos explica por que:

A "revolução", nesse sentido, é caracterizada pelos seguintes


aspectos, entre outros: (1) violência necessária; (2) a remoção
completa de todos os aspectos do sistema estabelecido; e (3)
a construção de uma ordem social completamente diferente,
segundo um ideal teórico. O princípio bíblico de "reforma"
se opõe a cada um desses três pontos. Em primeiro lugar,

218
UMA LIÇÃO DE JUSTIÇA: O MODELO DE AÇÃO SOCIAL CRISTÃ DE WILLIAM WILBERFORCE

a "reforma" ressalta a necessidade de evitar a violência tanto no


sentido comum — usando forças física e psicológica para ma-
chucar os indivíduos — quanto em seu sentido histórico de
retirar e alterar o tecido social. Não importa o quão dramática
possa ser uma nova vida em Jesus, ela não procura rasgar o
tecido de uma determinada situação histórica. Em segundo
lugar [•••] ela reconhece que nenhuma ordem social é absoluta-
mente corrupta; então, nenhuma ordem social precisa ser
totalmente condenada. Em terceiro lugar, não coloca sua con-
fiança em planos e conceitos de uma sociedade ideal, que seria
alcançada por especulação científica ou pseudocientífica. Pelo
contrário, usa a ordem histórica de "julgai todas as cousas,
retende o que é bom" (1 Ts 5:21).49

Wilberforce rejeitou o modelo revolucionário porque acreditava na


bondade da Criação e na cultura conforme foram criadas por Deus.
Em um mundo caído, criação e cultura são direcionadas incorreta-
mente para ídolos e ideologias, em lugar da glória de Deus. Contudo,
elas também podem ser redirecionadas para a graça e o poder de
Deus. O cristão nunca desiste das pessoas, ou do mundo dos negó-
cios, ou de Hollywood, ou do Estado. Não importa o quanto essas
áreas da Criação tenham sido distorcidas pelo mal, elas jamais esta-
rão além da reforma e da redenção. Portanto, para que a ação social
cristã seja eficaz, é fundamental que exista um compromisso de tra-
balho pela reforma, e não pela revolução.
Uso n ° 3: Trabalhe usando a cooperação das sociedades voluntárias.
Em vez de tentar fazer tudo sozinho, as igrejas cristãs locais e famílias
cristãs deveriam abraçar o exemplo de Wilberforce e usar sociedades
voluntárias estabelecidas para promover a justiça. Hoje em dia, mui-
tas dessas sociedades existem em forma de ministérios ou de O N G s
(Organizações Não Governamentais). Precisamos deixar que o Senhor
oriente indivíduos e grupos dentro da Igreja para estabelecerem
sociedades voluntárias que canalizem as pessoas e os recursos de ma-
neiras construtivas, além de desenvolverem parcerias com agências
missionárias para promover a evangelização global.

219
LIÇÕES DE MESTRE

Um forte exemplo de uma organização paraeclesiástica centrada


em uma área crucial da justiça social é a Prision Fellowship, que se
preocupa com os presidiários e a sua recuperação. Esse ministério
vem produzindo resultados mensuráveis, comprovando que Cristo
pode mudar pessoas consideradas incorrigíveis pelos tribunais. A
Prision Fellowship possui excelentes programas de treinamento que
capacitam membros de igrejas locais para ministrar de maneira eficaz
a presidiários, ex-criminosos e suas famílias.50
Outro bom exemplo é o Centro Evangélico Emmanuel, em Boston,
fundado em 1938 para ajudar os pobres em nome de Cristo. Doug e
Judy Hall vêm dirigindo esse trabalho durante mais de trinta anos.
O Centro Emmanuel oferece serviços de ajuda legal aos pobres. Um
de seus ministérios, o Starlight Homeless, leva o amor de Cristo aos
moradores de rua. Seu departamento de pesquisa urbana defende
uma ação evangélica unida para a evangelização, plantação de igrejas
e desenvolvimento urbano. Suponho que eu poderia andar pelas ruas
de Boston, tentando fazer esses serviços sozinho; no entanto, faria
mais sentido se a realização desse meu trabalho contasse com o res-
paldo do Centro Emmanuel.
Lembro ainda de um amigo, o pastor aposentado David Madeira,
que passa muitos dos seus sábados em Providence, Rhode Island,
ajudando a construir casas para os sem-teto junto com o ministério
Habitat for Humanity. Existem centenas de ministérios paraecle-
siásticos especializados em direcionar dinheiro e ajuda de voluntários
para necessidades existentes.
Wilberforce também possuía uma ampla agenda de justiça. Ele
trabalhava em prol de reformas no sistema carcerário, nas fábricas, a
favor de missões e da reforma econômica. Mesmo assim, Wilberforce
jamais perdia de vista a sua missão central: libertar os escravos em
nome de Cristo. As sociedades cristãs voluntárias são mais eficazes quan-
do se concentram em uma única questão: a família, os presidiários ou
os pobres. Sua igreja ou família pode lutar pela promoção da justiça
usando alguma sociedade voluntária. Contudo, de, maneira geral, é me-
lhor escolher sociedades voluntárias que defendem uma única causa.

220
UMA LIÇÃO DE JUSTIÇA: O MODELO DE AÇÃO SOCIAL CRISTÃ DE WILLIAM "WILBERFORCE

Uso n ° 4: Lembre-se do padrão da cruz: vença perdendo. Wilberforce


perdeu mais batalhas do que venceu, todavia a maneira como as
perdeu fez com que fosse possível alcançar suas vitórias finais. O
padrão da cruz é relevante aqui. Não precisamos de um novo cristia-
nismo como na época de Constantino, em que o Estado promovia a
teologia e a freqüência à Igreja. A longo prazo, esse cristianismo
repressivo trai a essência da fé — confiança pessoal no Cristo cruci-
ficado dos Evangelhos, não no Cristo imposto politicamente pelo
Estado. As revoluções prometidas por um partido, as vitórias
alcançadas por outro partido e parcerias com grandes empresas não
trarão o que desejamos. Amar os inimigos, abençoar aqueles que
nos usam de forma desrespeitosa, agindo persistentemente como
sal e luz, insistindo na utilização das armas espirituais, e não das
carnais. Essas são as táticas que produzirão resultados duradouros.
As sextas-feiras de oposição e mesmo a derrota aparente, se forem
resultantes da fé, levarão o mundo ao nosso redor a um Domingo
de Páscoa de mudança e transformação.
Uso n ° 5: Testemunhe o Reino vindouro; não tente construí-lo na
Terra. Existe uma grande diferença entre tomar parte em obras de
justiça para dar testemunho de como é o Reino de Cristo e tentar
realmente estabelecê-lo na Terra. Dar testemunho significa estar
constantemente com a persuasão e o sofrimento. Poder e dinheiro
são necessários para o estabelecimento das estruturas do Reino.
Dar testemunho é reconhecer humildemente que o Reino vin-
douro é exatamente isto: uma realidade futura e gloriosa que jamais
pode ser incorporada a qualquer estrutura ou movimento criados
por homens.
Evite a tentação de confundir nosso testemunho passageiro do
Reino com sua gloriosa realidade. A história está repleta de exemplos
de injustiças cruéis cometidas pela Igreja quando ela confundiu suas
teocracias com o Reino de Deus na Terra. Precisamos de testemu-
nhas eficazes do Reino (At 1:8), não de falsificações presunçosas.
Uso n° 6: Reconheça que a renovação espiritual e a ação social são
parceiros necessários. Richard Lovelace demonstrou em Dynamics of

221
LIÇÕES DE MESTRE

Spiritual Life que o avivamento espiritual e a justiça social não são


inimigos, mas parceiros úteis para a obra de Deus na Terra. Tanto o
primeiro quanto o segundo Grande Despertamento nos Estados Uni-
dos produziram uma poderosa corrente em prol da ação social.51 A
obra de Wilberforce e do Grupo de Clapham seria difícil de imaginar
sem o trabalho de Wesley e o movimento metodista. Timothy Smith
rompeu terreno histórico muitos anos atrás, quando demonstrou a
ligação entre o perfeccionismo metodista e a abolição e outros movi-
mentos de reforma, no início da história americana do século XIX.52
O que não deve ser ignorado nesses exemplos é a ligação existente
entre renovação espiritual e justiça social. Os evangélicos modernos
nem sempre foram muito bons em juntar esses dois elementos. Co-
mentando sobre o declínio de um movimento americano chamado
Evangelicals for Social Action,* Lovelace apresenta uma imagem esti-
mulante do caminho a ser seguido:

Alguns dos seus soldados mais jovens continuam aprenden-


do a combinar as dinâmicas espirituais essenciais para o
despertamento evangélico com as preocupações profundas que
os estão levando em direção ao testemunho social. Eles se
reuniram por motivos políticos, mas oraram e compartilha-
ram pouco e demonstraram pouco a r r e p e n d i m e n t o e
santifícação posteriores. Conseqüentemente, serviram como
bodes expiatórios para as táticas de Satanás. Mas se uma ge-
ração inteira de jovens evangélicos amadurecer em sua
espiritualidade, e se os líderes evangélicos mais velhos expan-
direm a sua visão, teremos o potencial para alcançar um novo
nível de impacto evangélico na Igreja e na sociedade.53

Conforme Wilberforce ensinou em A Practical View, o cristianismo


vital impele os cristãos a lutar pela justiça. A separação entre ação
social e paixão espiritual fará com que esse cristianismo se apague e
feneça, como ocorre quando separamos uma brasa acesa do fogo.
'Evangélicos em prol de Ação Social.

222
UMA LIÇÃO DE JUSTIÇA: O MODELO DE AÇÃO SOCIAL CRISTÃ DE WILUAM WILBEREORCE

Embora o ódio parecesse forte em 1994, a história da justiça


manifestada em toda a África do Sul brilhou como uma luz na
escuridão. Os evangélicos da África do Sul, assim como seus
antecessores espirituais na Inglaterra de Wilberforce, termina-
ram do lado correto dessa luta. Enquanto encaramos um futuro
nebuloso, precisamos tomar emprestadas essas antigas tochas,
pois elas continuam brilhando o suficiente para iluminar o ca-
minho à nossa frente.

QUESTÕES PARA DEBATE

1. Uma das declarações públicas mais poderosas sobre a justi-


ça social feitas por Jesus está em Mateus 25:31-46. De que
maneiras o modelo de Wilberforce lança luz sobre esses
mandamentos do nosso Senhor?

2. Quais são os males da sociedade específicos que os cristãos


precisam abordar hoje em dia? Releia os usos mencionados
neste capítulo. Quais deles podem ajudá-lo a dar o passo
seguinte, se deseja servir "a uma parcela destes"?

LEITURAS COMPLEMENTARES

O livro Wilberforce, de John Pollock (reimpresso em 1986


pela editora Lion), é uma biografia bem escrita e bem
pesquisada. Quem deseja conhecer melhor o pensamento e
o coração de William Wilberforce pode ler A Practical View
ofthe Prevailing Religions System ofProfessed Christians in the
Higher and Middle Classes in this Country Contrasted wíth

223
LIÇÕES DE MESTRE

Real Christianity (1797, reimpresso por SCM Press, 1958).


Para conhecer o papel de Wilberforce no Grupo de Clapham,
recomendo a leitura de Saints in Politics: The "Clapham Sect"
and the Growth ofFreedom, de Marshall Howse (George Allen
and Unwin, 1953).

224
CAPÍTULO 10

UMA LIÇÃO DE COMUNHÃO:


Os PRINCÍPIOS DE COMUNIDADE
CRISTÃ DE DIETRICH BONHOEFFER

V ocê se lembra dos filmes da série Indiana Jones, muito populares na


década de 1980? O herói sempre vencia os nazistas — os vilões predi-
letos do público. Seja procurando pela arca perdida ou pelo santo
Graal, "Indy" sempre encontrava uma maneira de arruinar os planos
ardilosos dos nazistas. Os filmes eram típicos do cinema escapista;
pura diversão. Afinal, já fazia muito tempo que os nazistas foram
derrotados e ninguém mais parecia continuar levando aquele movi-
mento a sério.
No entanto, os filmes de Indiana Jones podem ter sido proféti-
cos. Os fantasmas do fascismo, do tribalismo e do neonazismo pa-
recem ter voltado a se manifestar no final do século xx. A "limpeza
étnica" reapareceu em vários lugares, como Bósnia e Ruanda. Os
defensores da supremacia branca colocaram uma bomba em um
prédio do governo em Oklahoma City, matando centenas de pes-
soas. Os fundamentalistas islâmicos destruíram o World Trade
Center. Um extremista de direita assassinou o primeiro-ministro
israelense em nome do nacionalismo judeu. O mundo está se divi-
dindo em milhares de tribos, e muitas delas estão dispostas a matar
para expressar suas idéias ao mundo. O espírito do nazismo —
supremacia étnica ou cultural a qualquer preço — está em toda

225
LIÇÕES DE MESTRE

parte. Os vilões prediletos do público parecem estar de volta à ativa.


Seria bom termos um Indiana Jones por perto.

Tríbalismo e pós-modernidade

Esse novo tribalismo político encontra paralelos em um tribalismo


cultural e intelectual. Quando o muro de Berlim veio abaixo, em
1989, sinalizou mais do que o fim simbólico do comunismo. Tam-
bém serviu como um fim simbólico da modernidade.
A modernidade surgiu a partir do Iluminismo do século XVIII.
Um aspecto central na fé da modernidade era a crença no progresso
humano. O evangelho secular ensinava que a utopia estava próxima;
tudo o que precisávamos para termos o paraíso na Terra era uma
aplicação sistemática da razão nos males sociais, econômicos e políti-
cos da h u m a n i d a d e . Esse sistema de crenças transformou o
"humanismo secular" em uma religião. O comunismo foi a expressão
mais extremada dessa idéia. A queda do muro serviu como testemu-
nho, para o mundo, de que o humanismo arrogante do Iluminismo
havia fracassado. A modernidade estava morta como sistema de cren-
ças. Em meio às ruínas da modernidade surgiu uma nova ordem
mundial para o século xxi: o mundo pós-moderno.
Esse admirável mundo novo da pós-modernidade, no início, parecia
ser um desenvolvimento positivo do movimento cristão. As críticas
que os pós-modernisras faziam ao humanismo secular pareciam, em
muito, com as reclamações que os cristãos também faziam. Gene
Veith explica:.

Se a era "moderna" realmente chegou ao fim, os cristãos têm


todos os motivos para estar felizes. Desde as batalhas entre
"modernistas" e "fundamentalistas" (e antes disso também),
o cristianismo bíblico vem sendo atacado pelas forças do
modernismo, com seu racionalismo científico, humanismo
e a tendência de atacar o passado. Hoje, as idéias do moder-
nismo, incluindo os que demonizaram a igreja neste século,

226
UMA LIÇÃO DE COMUNHÃO: OS PRINCÍPIOS DE COMUNIDADE CRISTÃ DE DIETRICH BONHOEFFER

estão sendo abandonadas. Os cristãos podem se alegrar com


o surgimento da era pós-moderna. 1

A modernidade morreu. Vida Longa à pós-modernidade!


Mas existe um outro lado dessa pós-modernidade. Ela traz con-
sigo uma ideologia chamada pós-modernismo. Essa nova ideologia,
de muitas maneiras, é antagonista à fé cristã. Por exemplo, o pós-
modernismo opõe-se ao conceito de verdade objetiva e absoluta. O
pós-modernismo é, portanto, tão hostil à verdade cristã quanto as
alegações de verdade do Iluminismo. No lugar da verdade abso-
luta, o pós-modernismo apregoa o evangelho do relativismo. Um
aluno da Faculdade Hunter captou a essência do relativismo pós-
moderno quando afirmou que "considerando que todas as crenças
são subjetivas, a pessoa deveria acreditar apenas naquilo que a faz se
sentir bem. A verdade para alguém é aquilo que a faz se sentir bem". 2
Esse pensamento de "sentir-se bem" gera um consenso muito
pequeno. O que ele produz é milhares de ideologias do tipo "eu
primeiro", isoladas de qualquer verdade comum significativa ou de
valores compartilhados. Conforme observou um jornalista: "A socie-
dade está esfacelada em centenas de subculturas e tipos de fé exclu-
sivos, sendo que cada uma possui sua própria linguagem, código de
conduta e estilo de vida".3
Existe algo ainda mais sinistro do que o simples egoísmo por trás
desse relativismo radical. A faceta familiar do fascismo está escondida
por trás do relativismo. Veith explica:

Muitas das idéias que acompanharam o fascismo na década de


1930 sobreviveram após a Segunda Guerra e continuaram a se
desenvolver no pensamento pós-moderno. O fascismo ensina-
va que a realidade é uma construção social e que a cultura
determina todos os valores. Culturas particulares e grupos
étnicos, portanto, formam mundos à parte, que não deveriam
se contaminar — embora muitas vezes esses grupos emulam
um com o outro. O individualismo é um mito, os seres humanos

227
LIÇÕES DE MESTRE

somente poderão encontrar individualmente alguma satisfa-


ção quando se perderem em um grupo maior. "Os valores
humanistas" são um mito, não existem leis morais transcen-
dentes pelas quais a cultura possa ser julgada. Essas são idéias
"judaicas" — ou seja, bíblicas — responsáveis pela alienação,
culpa e instabilidade da cultura ocidental. A verdadeira ex-
pressão de uma vontade cultural deve ser a força, não o amor e
a misericórdia. A emoção coletiva, não a razão abstrata (outra
contribuição "judaica"), deve ser cultivada como a fonte de
energia da cultura [...] Hitler pode ter falhado porque estava à
frente do seu tempo. 4

Essas são palavras assustadoras, mas que possuem um eco da verdade.


O filme Cabaret registrou a ascensão do nazismo nos anos de deca-
dência da República de Weimar. Conforme o filme ilustra, o indivi-
dualismo excessivo, a imoralidade e a desesperança da Alemanha da
década de 1920 serviram para criar o caldo cultural que fez o fascis-
mo de Hitler se tornar realidade. O tribalismo nazista era visto como
uma maneira de salvar a cultura alemã, que afundava no relativismo
e no egoísmo. O estudo anterior de Veith, Modem Fascism: Liquidating
the Judeo-Christian Worldview (1993), o levou à conclusão de que
existiam numerosas ligações entre o pós-modernismo e o fascismo. O
que parecia ser um aliado agora se apresentava como um formidável
novo adversário. Veith conclui que:

Tanto os pós-modernistas quanto os intelectuais fascistas da


década de 1930 adotaram um radicalismo com base mais na
cultura do que na economia. Ambos desprezaram a liberdade
individual em favor da vontade. Eles rejeitaram um Deus trans-
cendente em favor da natureza impessoal e mística.5

Os Caçadores da Arca Perdida estão saindo de suas sepulturas.


Até que ponto a Igreja cristã está preparada para combater as
forças do pós-modernismo? A situação não parece promissora.

228
UMA LIÇÃO DE COMUNHÃO: OS PRINCÍPIOS DE COMUNIDADE CRISTÃ DE DIETRICH BONHOEFFER

Logo quando a Igreja precisa dar um testemunho eficaz para uma


nova geração, parece estar contaminada pelo relativismo e o
tribalismo do pós-modernismo. Segundo uma pesquisa recente,
" 5 3 % das pessoas que se identificaram como cristãos evangélicos
não acreditam que existem absolutos". 6 Algumas vezes tenho o mes-
mo sentimento em relação à situação da Igreja que o historiador
Arthur Schlesinger Jr. tem sobre os Estados Unidos: "Temos muito
pluribus, mas não unum o suficiente", 7 ou seja, o excesso de diversi-
dade nos confunde.
O antigo egoísmo, do qual reclamávamos durante os anos 1980,
mudou. Ele se aliou ao tribalismo radical da década de 1990. Fac-
ções, consumismo espiritual e a ênfase no pensamento do "sentir-se
bem consigo mesmo" são as subculturas produzidas dentro da Igreja
que parecem refletir os valores do pós-modernismo mais do que o
Evangelho. Tem-se a impressão de que idéias semelhantes estão, infe-
lizmente, sendo reunidas. A verdadeira comunidade cristã, onde o
amor e os relacionamentos verdadeiros podem existir entre diferentes
faixas etárias, sexos, grupos de interesse e até mesmo pessoas que não
gostam umas das outras, acaba sendo tratada pelo cristianismo pós-
moderno no qual vivo como se fosse apenas "o meu tipo de gente". A
visão da vida de Corpo onde há unidade na diversidade, descrita por
Paulo com tanto poder em 1 Coríntios 12, aparentemente está
sucumbindo diante das ondas da pós-modernidade.
Como a Igreja pode navegar nas águas turbulentas do mundo
pós-moderno? Entre os muitos pilotos que procuraram guiar a Igreja
em meio a tempestades similares, um dos mais bem-sucedidos foi o
teólogo e pastor alemão Dietrich Bonhoeffer. Na Alemanha fasci-
nada por Hitler da década de 1930, o nacionalismo se tornou uma
doença, e as igrejas cristãs alemãs se afiliaram ao partido nazista.
Nessa mesma época, Bonhoeffer se voltou para os recursos da ver-
dadeira comunidade cristã como um guia da Igreja. De maneira
imprevisível, ele acabou estabelecendo uma teologia da comunhão
cristã que nos ajuda a combater tanto o egoísmo como o tribalismo
do mundo pós-moderno.

229
LIÇÕES DE MESTRE

O projeto de Bonhoeffer para a comunidade se encontra em seu


livro Vida em Comunhão. Muitos dos autores evangélicos recentes
escreveram sobre a questão da comunhão e do discipulado concen-
trando-se nas técnicas, Bonhoeffer, ao contrário, se concentrou na
verdade. Aqueles que priorizaram as técnicas estão vulneráveis a se-
rem dominados por ideologias rivais. A sensibilidade teológica de
Bonhoeffer resguardou a Igreja dessas ideologias rivais, enquanto
guiava a Igreja em direção a uma rica experiência de amor mútuo e
relacionamento profundo. Embora alguns tenham questionado a
pureza teológica de Bonhoeffer em outras áreas, estou convencido
de que ele nos apresenta um guia confiável no tocante à vida na
comunidade cristã.
Que lição ele nos ensina? Gostaria de tentar defini-la da seguin-
te forma: para Dietrich Bonhoeffer, a chave para a comunidade cristã
é aprendermos a deixar Cristo ser o ynediador de nossos relacionamentos.
Compreendida de maneira correta, essa lição nos ajudará a libertar
nossa igreja do egoísmo e do tribalismo característicos dos tempos
pós-modernos.
Indiana Jones não está por perto hoje em dia. Ninguém é ca-
paz de eliminar, com alguns truques inteligentes, as presunções
neonazistas que invadiram grande parte do pós-modernismo. Não
existe chicotada que possa restaurar os relacionamentos fragmen-
tados e comunidades esfaceladas que sobejam em nosso país. O
plano de Bonhoeffer pode nos ajudar muito a renovar a idéia da
verdadeira comunidade cristã e recapturar o mundo pós-moderno
para Cristo. Portanto, esse plano promissor merece ser analisado
de maneira mais cuidadosa.

A vida de Bonhoeffer

O arquiteto por trás dessas idéias nasceu em 1906, em Breslau, Ale-


manha. Dietrich Bonhoeffer cresceu em uma família muito unida,
de sete irmãos. Seu pai era um médico e psiquiatra renomado, e
também um descrente bastante cético em relação ao cristianismo.

230
UMA LIÇÃO DE COMUNHÃO: OS PRINCÍPIOS DI COMUNIDADE CRISTÃ DE DIETRICH BONHOEFFER

Sua família vivia à margem do cristianismo. "A família Bonhoeffer


não freqüentava a igreja no sentido de serem membros ativos ou de
participarem da vida da congregação", escreveu Eberhard Bethge,
seu cunhado e biógrafo. "Os filhos não eram mandados para a igreja,
e a família não ia aos cultos nem nas datas especiais".8 Mesmo assim,
por causa da influência da mãe de Dietrich, a Bíblia e suas histórias
foram preservadas dentro de sua casa.
Quando o jovem Bonhoeffer completou 14 anos, surpreendeu a
família ao anunciar sua decisão de se tornar ministro do Evangelho e
estudar teologia. Seus irmãos e irmãs criticaram essa decisão e dis-
seram que a Igreja era uma instituição "pobre, fraca, monótona e
pequeno-burguesa". A resposta de Dietrich a esse ataque contra a
Igreja foi simples: "Nesse caso, precisarei reformá-la".9
Bonhoeffer entrou na Universidade de Tübingen em 1923, aos 17
anos de idade. Após um ano de estudo, no qual absorveu muito do
liberalismo de seus dias, transferiu-se para a Universidade de Berlim,
onde completou seus estudos teológicos. Pouco antes de sua transfe-
rência para Berlim, uma visita a Roma o deixou impressionado com o
poder e a solidariedade do catolicismo romano. Essa visita colocou
dentro dele o desejo de alcançar a unidade visível e a comunhão da
Igreja, que posteriormente caracterizariam a sua teologia madura.
A Universidade de Berlim era o lar de alguns dos maiores teólogos
liberais do início do século XX. Adolf von Harnack continuou ensi-
nando ali na década de 1920. Karl Holl lecionava História da Igreja.
Reinhold Seeburg dava aulas de teologia sistemática. No entanto, a
influência mais profunda sobre Bonhoeffer foi a de Karl Barth, um
professor que o tocou por meio dos livros que escreveu. Barth rom-
peu com a teologia liberal defendida por Friederich Schleiermacher
(1768-1834), que fez da humanidade e da experiência humana o
ponto de partida e de referência da teologia. Para Barth, somente a
Palavra de Deus, que era fundamentalmente antagônica ao pensa-
mento e à experiência humana, poderia ser o verdadeiro ponto de
partida para a teologia. A descoberta de Bonhoeffer da teologia de
Barth mudou o rumo de sua vida.10

231
LIÇÕES DE MESTRE

Em 1927, Bonhoeffer recebeu o doutorado em Berlim. Sua tese


versava sobre a comunhão dos santos. Bonhoeffer definiu a Igreja
como "Cristo existindo em forma de comunidade". Para ele, "Deus,
embora distante, estava perto", e por meio de "encontros concretos
com os irmãos", os cristãos poderiam viver uma vida de fé verdadeira.
A fé foi definida por ele como "amarrar a pessoa à comunidade". Ele
concluiu que "Viver a vida humana era possível pela comunhão". 11
Bonhoeffer, talvez apanhado pelo espírito de seus dias, superenfatizou
a identificação de Cristo com a sua Igreja. Essas primeiras idéias pos-
teriormente seriam modificadas e corrigidas. O elemento central nesse
estágio é que Bonhoeffer tinha descoberto o tema que acabaria domi-
nando a sua vida.
Entre 1928 e 1933, Bonhoeffer mudou de endereço várias vezes.
Ele pastoreou em Barcelona, na Espanha, e depois por um breve
período em Berlim. Em 1930, ele passou um ano no Seminário
Teológico Union, em Nova Iorque, onde fez contato com Reinhold
e H. Richard Niebuhr. Ele saiu de Nova Iorque com uma paixão,
que durou a vida toda, pelos hinos espirituais entoados pelos negros
americanos e uma preocupação com a situação difícil vivida por eles
em uma sociedade que os discriminava de maneira cruel. Bonhoeffer
voltou a Berlim em 1931, quando passou a dar aulas na Universida-
de. Porém, descobriu que Berlim havia mudado muito desde os seus
dias de aluno. No centro da maioria dessas mudanças estava um mo-
vimento político e cultural chamado Nacional-Socialismo, liderado
por Adolf Hitler. Dentro de dois anos, os nazistas acabariam se tor-
nando o partido político mais popular da Alemanha.
Em I o de fevereiro de 1933, dois dias após Adolf Hitler ter toma-
do o poder, Bonhoeffer fez um pronunciamento à nação pelo rádio.
Ele tratou do seguinte assunto: "A mudança de visão nas gerações
mais novas do conceito de Führer [Senhor]". Bonhoeffer alertava seus
ouvintes a não permitir que nenhum líder "se renda aos desejos de
seus seguidores, pois eles sempre tentarão transformá-lo em seu ídolo".
Um líder que cai nessa tentação se torna um "líder que faz de si
mesmo e de seu cargo um ídolo, e, dessa maneira, zomba de Deus". 12

232
UMA LIÇÃO DE COMUNHÃO: OS PRINCÍPIOS DE COMUNIDADE CRISTÃ DE DIETRICH BONHOEFFER

Antes que Bonhoeffer pudesse terminar seu discurso, os microfones


foram desligados.
Dentro de poucas semanas, o Reichstag (Parlamento Alemão) foi
totalmente queimado em circunstâncias suspeitas, e Hitler declarou
um estado de emergência, tornando-se o ditador da Alemanha. Em
março, Hitler estava garantindo às igrejas "o cristianismo [providen-
ciou], os fundamentos inabaláveis da vida ética e política do nosso
povo".13 Todos respiraram aliviados.
Em abril de 1933, vários pastores alemães se reuniram para decla-
rar que concordavam com o "Princípio do Führer". Eles também
endossaram a idéia da supremacia ariana com suas conseqüências anti-
semitas. Ao continuar com essas políticas, os pastores votaram para
excluir os judeus cristãos de suas igrejas. Esse foi o início do movi-
mento cristão alemão. Bonhoeffer, Barth e outros ficaram chocados
com essas novas políticas e assumiram o compromisso de combatê-las.
Em 1933, a Gestapo prendera pastores luteranos dissidentes do
movimento cristão alemão. Com a certeza de que seria o próximo,
Bonhoeffer saiu da Alemanha e foi servir como pastor em uma con-
gregação de língua alemã na Inglaterra. Mesmo estando em Londres,
ele continuou ativo nos movimentos de protesto em sua terra. Em
maio de 1934, Bonhoeffer enviou uma carta pastoral, pedindo que
as igrejas confessionais emitissem um "ultimato" aos líderes cristãos
da Alemanha. Isso culminou na Declaração de Barmen, sendo Karl
Barth o seu principal articulador. A declaração (que foi endossada
por Bonhoeffer, embora ele não estivesse presente à reunião de
Barmen) rejeitou a "falsa doutrina de que a Igreja, como fonte de sua
proclamação, poderia e deveria, passando por cima da Palavra de Deus,
reconhecer outros eventos, poderes, imagens e verdades como se fos-
sem a revelação divina". Declarou ainda que a Igreja não tinha o
direito de "preparar ou permitir que líderes especiais com poderes
soberanos fossem assimilados".14 Somente Cristo era o Senhor.
Bonhoeffer voltou para a Alemanha em 1935, e como tarefa aju-
dou a Igreja Confessional a estabelecer um seminário ilegal em
linkenwalde. Como Bonhoeffer tinha sob sua liderança 25 jovens

233
1
i

LIÇÕES DE MESTRE

residentes desse seminário, os quais viviam em comunidade, era seu


desejo que esses alunos aprendessem não somente a paixão pela Pala-
vra de Deus, bem como:

[...] levar uma vida comunitária em obediência diária e restrita


à vontade de Cristo Jesus, realizando o maior e mais humilde
serviço que um irmão pode prestar a outro. Eles precisavam
aprender a reconhecer a força e a libertação de ser encontrado
em amor fraternal e vida comunitária na comunidade cristã.15

Em conseqüência daqueles anos quietos, vividos em comunidade cris-


tã, surgiram duas das maiores obras de Bonhoeffer: Discipulado e
Vida em Comunhão.
Depois que a Gestapo fechou o seminário, em 1937, Bonhoeffer
se dedicou a escrever sobre sua experiência de viver em comunidade.
Em 1939, o ano que a Alemanha começou a Segunda Guerra — ao
invadir a Polônia — ele publicou Vida em Comunhão, em que re-
sumia suas percepções sobre a comunidade cristã em um mundo
hostil. Em breve esse se tornaria o livro mais lido de Bonhoeffer du-
rante a sua vida. Segundo Bethge, "nele estavam as diretrizes para a
vida em uma comunidade protestante". 16 Após a publicação de Vida
em Comunhão, Bonhoeffer visitou os Estados Unidos, e apesar da
insistência dos amigos para que ficasse, ele voltou para a Alemanha.
A partir de 1940, Bonhoeffer esteve profundamente envolvido
com o movimento de resistência dentro da Alemanha. No inverno
de 1942-1943, quando a Alemanha começava a perder a guerra, a
Resistência armou dois planos para assassinar Hitler. Ambos falha-
ram. A participação de Bonhoeffer na conspiração acabou sendo
descoberta. Ele foi preso em 1943.
Bonhoeffer continuou escrevendo durante seus anos na prisão.
Ele começou a falar sobre o "cristianismo sem religião" e "um mun-
do adulto". Essas duas frases foram objeto de muito debate.
Bonhoeffer aparentemente acreditava que o secularismo, embora
fosse destrutivo e sem Deus, era um sinal de que Deus mais uma

234
UMA LIÇÃO DE COMUNHÃO: OS PRINCÍPIOS DE COMUNIDADE CRISTÃ DE DIETRICH BONHOEFFER

vez estava se aproximando da história, porque sua obra mais pode-


rosa é realizada sob o véu da fraqueza aparente. Esclarecendo a frase
"um mundo adulto", ele escreveu da prisão: "Não me refiro à visão
banal e centrada nesse mundo dos iluminados, ocupados, confortá-
veis ou lascivos, mas falo da profundidade centrada nesse mundo,
caracterizado pela disciplina e pelo conhecimento constante da morte
e da ressurreição". 17 A teologia da cruz de Lutero, portanto, moldou
as idéias que ocuparam os últimos anos da vida de Bonhoeffer.
Na verdade, Bonhoeffer jamais saiu da prisão. Ele foi morto algu-
mas semanas antes de os aliados tomarem o campo de concentração
onde ele estava preso. Em 9 de abril de 1945, uma segunda-feira,
após liderar o culto no dia anterior (e ter pregado sobre Isaías 53:5:
"Pelas suas pisaduras fomos sarados"), Dietrich Bonhoeffer foi enfor-
cado. Suas últimas palavras foram: "Este é o fim, mas para mim é
apenas o início da vida".18 O médico do campo de concentração, que
durante cinqüenta anos viu homens morrendo, escreveu sobre
Bonhoeffer: "Jamais vi um homem morrer tão inteiramente subordi-
nado à vontade de Deus". 19
Se existe um fio condutor que corre ao longo de toda a vida e a obra
de Bonhoeffer, é a centralidade da comunidade cristã em um mundo
cheio de discórdia. Em uma série de paradoxos dignos do próprio
Lutero, Bonhoeffer procurou penetrar no coração da comunidade cris-
tã. As descobertas feitas por Bonhoeffer em Vida em Comunhão podem
ser resumidas pelos seis princípios que reproduziremos a seguir.

Comunhão como um presente

Princípio n° 1: Em um mundo hostil, o dom da comunidade cristã é um


grande tesouro de Deus que não deve ser desprezado. Vida em Comunhão
c uma meditação aprofundada da passagem do Salmo 133:1: "Oh!
Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos!" Essa simples
celebração da comunhão cristã não pode sempre ser dada como cer-
ta. Pense, por exemplo, como os prazeres simples do Salmo 133:1
tomaram o Senhor Jesus Cristo: "Jesus Cristo vivia em meio a seus

235
LIÇÕES DE MESTRE

inimigos. E no final, todos os seus discípulos o deserdaram". Se nosso


Senhor vivesse uma vida de guerra contra o mundo, então "os cristãos
também não pertencem ao isolamento de uma vida enclausurada,
mas vivem no meio de seus opositores". 20 O mundo moderno, com
seu secularismo e idolatria, oferece esse tipo de vida para o cristão.
Se o cristão encontra a comunhão genuína em meio às hostilidades,
ela não deveria ser desprezada. Em um mundo caído, a comunhão
cristã é um presente gracioso que deve ser valorizado, e não uma
conquista pela qual a Igreja pode receber o crédito.
Não obstante, a falha em valorizar a comunidade cristã é freqüen-
temente a primeira violação da verdadeira comunhão com Cristo. "Esse
que é um presente indescritível de Deus para o indivíduo solitário",
escreveu Bonhoeffer:

Corre-se o perigo de esquecer que a comunhão dos cristãos é


um presente gracioso procedente do Reino de Deus, presente
esse que nos pode ser tirado a qualquer hora, que talvez um
prazo muito curto nos separa da mais profunda solidão.

Por causa dos tempos turbulentos em que vivemos:

[...] quem até hoje pôde viver em comunhão cristã com outros
cristãos que louve a graça de Deus do fundo do coração, agradeça
a Deus de joelhos e reconheça: é graça, nada mais do que graça o
fato de ainda podermos gozar a comunhão de irmãos cristãos".21

Valorizar o presente da comunidade é, portanto, o início da verda-


deira comunhão.

Cristo como mediador

Princípio n° 2: Em uma era de confiança no eu, a comunidade cristã


deve ser mediada somente por Cristo. A comunhão cristã requer mais

236
UMA LIÇÃO DE COMUNHÃO: OS PRINCÍPIOS DE COMUNIDADE CRISTÃ DE DIETRICH BONHOEFFER

do que a gratidão para ser experimentada. Ela precisa de um media-


dor. O número mínimo para que os cristãos vivam juntos não é
dois, mas três. Quem é o terceiro elemento nesse relacionamento
genuinamente cristão? "Comunidade cristã significa comunidade
por intermédio de Jesus Cristo e em Jesus Cristo." 22 Mas Cristo
não é mediador somente entre Deus e a humanidade? Para
Bonhoeffer, Cristo é o mediador de nosso relacionamento com Deus
e com os outros cristãos. Como Cristo pode ser o mediador entre
minha irmã ou meu irmão e eu? A resposta de Bonhoeffer é que
Cristo serve como mediador da comunhão cristã de duas maneiras.
"Primeiro, significa que o cristão precisa dos outros por causa de
Jesus Cristo. Significa, em segundo lugar, que um cristão pode chegar
a outro cristão somente por meio de Jesus Cristo". 23
Primeiro, Cristo como nosso mediador nos leva à comunidade.
Nenhum cristão pode desfrutar de Cristo sozinho, longe do seu
Corpo. Preciso que Cristo me salve e me justifique. Somente ele
pode fazer isso. Contudo, preciso da comunidade para ter a fé em
Cristo. 24 Assim como Cristo me atrai para ele, primeiro me atrai
para a comunidade na qual o seu nome é proclamado, sua Palavra é
crida e o seu Espírito está ativo. Assim como preciso de Jesus, tam-
bém preciso de outros que poderão me levar a Cristo. Assim, Jesus é
o mediador da comunidade cristã, quando cria dentro de nós neces-
sidade de comunhão que nos levará para mais perto do mediador.
Cada um de nós precisa dos outros porque "o Cristo em seu cora-
ção é mais fraco que o Cristo na palavra de seu irmão; seu próprio
coração é incerto, o de seu irmão é seguro".25 Isso significa que minha
própria confissão de Cristo como Senhor e Salvador parecerá mais
fraca para mim do que a confissão de Cristo do meu irmão. Quando
falo sobre Cristo, tenho consciência de meus sentimentos de dúvida,
medo, hesitação, pecado e descrença. Quando falo sobre Cristo, os
"joelhos" de minha alma tremem de incerteza. Mas quando meu
irmão fala sobre Cristo, não posso sentir o seu medo, ver seu coração
trêmulo ou perceber a sua fé relutante. Posso apenas ouvir as suas
palavras, penetrando em minha alma com a confiança e a certeza de
que minhas próprias palavras jamais me dariam. Portanto, minha

237
LIÇÕES DE MESTRE

busca pela fé em Cristo me leva para a comunidade cristã, onde "o


Cristo em meu coração", por mais fraco que possa ser, é fortalecido
pelo "Cristo na palavra do meu irmão". Preciso de outro por causa da
minha necessidade de Cristo.
Isso nos leva a uma segunda maneira na qual Cristo serve como
mediador da comunhão cristã. Eu não apenas preciso de outros por-
que preciso de Cristo, mas também preciso de Cristo para poder
desfrutar verdadeiramente da comunhão com eles. Necessito de que
Cristo esteja entre mim e meu irmão ou irmã.
Isso certamente é um exagero. Se desejo ter um pouco de comu-
nhão cristã, basta ir a uma igreja ou ligar para um amigo cristão e sair
para tomar um café. Não é simples assim? Bonhoeffer acredita que
não. "Sem Cristo não conheceríamos a Deus [...] Sem Cristo tam-
bém não conheceríamos o irmão nem poderíamos ir ter com ele
[...] O caminho está bloqueado pelo nosso próprio ego". Isso sig-
nifica que, embora haja proximidade física ou relacionai com meu
irmão, existe uma barreira interior que nos mantém afastados. Estou
preocupado demais com o meu ego, como posso parecer para ele, o
que ele pode pensar de mim e coisas assim, para poder realmente
conhecê-lo ou ser verdadeiramente conhecido por ele. Continuo
tropeçando no meu próprio ego. Mas o quadro é completamente
diferente quando estou com meu irmão e reconheço consciente-
mente a presença de Cristo.
Quando sinto a crítica, a discórdia ou a rejeição por parte de
um irmão, isso não precisa me atingir diretamente. Cristo fica
entre nós dois. Ele é o elo do nosso relacionamento e absorve a
crítica do meu irmão em relação a mim. Quando critico o meu
irmão e me vejo cheio de acusação e ira, Cristo me confronta e
lembra que ele é o advogado do meu irmão. Ele me obriga a não
direcionar minha ira e acusação para meu irmão, e sim para ele.
Cristo absorve as críticas que faço ao meu irmão e me protege das
críticas de meu irmão. Não importa o quanto essa crítica de um
ao outro possa ser merecida: se deixam Cristo fora da equação, são
críticas distorcidas.

238
UMA LIÇÃO DE COMUNHÃO: OS PRINCÍPIOS DE COMUNIDADE CRISTÃ DE DIIIKK M BONIIOI MI R

Desse modo, Cristo não é o mediador apenas entre Deus e os


seres humanos, mas também entre um ser humano e o outro. "Nossa
comunhão de um com o outro não consiste apenas do que Cristo fez
por nós dois".26 Se Cristo pode ser o mediador de meus relaciona-
mentos dentro da Igreja, ele me levará a várias pessoas de maneira
surpreendente, afastando o tipo de tribalismo que faria com que me
associasse apenas ao "meu tipo de gente".

Perdendo o ideal

Princípio n° 3: Em um mundo viciado em ideologia, a comunidade


cristã não deve se basear em um ideal de comunidade. Bonhoeffer faz
um alerta aos cristãos que procuram trazer para a sua comunhão os
sonhos prazerosos das comunidades do passado. "Uma pessoa que
deseja algo além do que Cristo estabeleceu não deseja a irmandade
cristã. Está procurando por uma experiência social extraordinária
que encontrou em outro lugar". Se entro na comunhão de uma
igreja e reclamo da frieza das pessoas ou da falta de recepcionistas à
porta ou ainda da ausência de alguém com quem realmente possa
abrir o coração, fiz algo muito mais destrutivo do que ser frio ou
deixar de demonstrar simpatia. Acabei fazendo das experiências de
comunhão do passado um ídolo, sem deixar que Cristo seja o me-
diador de uma experiência completamente nova de comunidade
cristã. Acabei condenado à nova situação com toda a arrogância dos
fariseus. Cuidado com os ácidos do idealismo, alerta Bonhoeffer,
pois "aquele que ama o seu sonho de comunidade mais do que a
comunidade cristã torna-se um destruidor desta, embora suas in-
tenções pessoais possam ser muito honestas, dignas e sacrificiais".27
Bonhoeffer chegou ao ponto de dizer que existe um certo
valor em ficarmos inicialmente decepcionados pela qualidade
da comunhão cristã em uma igreja. Cristo pode estar nos levan-
do a essa experiência de decepção, para que possa destronar os
ídolos da comunidade que criamos a partir de nossa memória
ou teoria.

239
LIÇÕES DE MESTRE

Assim, o momento de decepção com meu irmão se torna


incomparavelmente salutar, porque ensina profundamente que
nenhum de nós é capaz de viver segundo nossas próprias palavras
ou ações, mas somente pela única Palavra e Obra que realmen-
te nos une — o perdão dos pecados em Jesus Cristo.28

A decepção com meus irmãos me força a procurar o mediador de


uma vida cristã comunitária genuína e satisfatória: Jesus Cristo.

O amor humano não é a base

Princípio n° 4: Em uma era humanista, a comunidade cristã não deve se


basear apenas no amor humano. Bonhoeffer suspeitava do amor que
ele via no movimento nazista — amor pela nação, amor pelo poder,
amor pelas pessoas que parecem com você. A princípio, esse amor
tribal pode parecer algo belo, mas com o passar do tempo sua feiúra
é revelada. Por esse motivo, Bonhoeffer não confiava na comunhão
direta entre cristãos fundamentada somente no amor humano. Isso
significa que qualquer comunhão com base apenas na atração mútua
ou benefício mútuo e não mediada por Cristo é subcristã. Tal comu-
nhão acabará sendo destrutiva por um motivo ou outro. Poderá ex-
cluir as pessoas que não me são atrativas ou benéficas o suficiente ou
falhará, com o passar do tempo, em relação aos irmãos que perderem
sua atração ou benefício aparente para mim. O amor humano não
será suficiente.
Para isso é necessário um outro tipo de amor, que vem de cima —
um amor pelos que não são amados, e mediado por Cristo.

Na comunidade espiritual, queima o amor brilhante do servi-


ço fraternal, ágape; na comunidade humana do espírito, brilha
o amor escuro [...] do eros. Na primeira, existe um serviço
ordenado e fraternal; na outra, o desejo desordenado pelo prazer.
Na primeira, existe a sujeição humilde aos irmãos; na outra, a
sujeição hipócrita de um irmão ao seu próprio desejo.29

240
UMA LIÇÃO DE COMUNHÃO: OS PRINCÍPIOS DE COMUNIDADE CRISTÃ DE DIETRICH BONHOEFFER

Bonhoeffer estava preocupado com a possibilidade do culto à


personalidade quando uma relação não mediada com o irmão ou
irmã fosse buscada. Ele viu isso ocorrer em excesso, durante o grande
movimento cristão alemão, para considerá-lo uma ameaça meramen-
te teórica:

Na comunidade espiritual, somente a Palavra de Deus domi-


na; na comunidade espiritual humana, domina o homem que,
juntamente com a Palavra, pretende dominar com sua
experiência, força, capacidade de sugestão e magia religiosa
excepcionais. Na primeira, somente a Palavra de Deus pode
unir; na outra, além da Palavra, os homens unem os outros a
si mesmos. Na primeira, todo o poder, honra e domínio são
submetidos ao Espírito Santo; na outra, as esferas do poder e
a influência de natureza pessoal são buscadas e cultivadas.30

Na comunidade cristã genuína, o Espírito governa com inocência e


simplicidade, mas onde governa o amor humano mal direcionado, o
faz por meio de técnicas psicológicas e manipulação que desumanizam.31
Podemos ser facilmente enganados pelo amor humano, imagi-
nando que ele seja o amor de Cristo. Isso acontece porque o amor
humano "ultrapassa o genuíno amor cristão em devoção fervorosa e
em resultados visíveis. Ele fala a linguagem cristã com eloqüência
surpreendente e provocante", mas esse amor é condenado por Paulo
em 1 Coríntios 13:3. 32 O verdadeiro mal do amor humano é o dese-
jo de empurrar Cristo para as margens da comunhão, para que assim
eu possa ligar-me diretamente com meu irmão ou irmã:

O amor humano é direcionado para os outros por eles mes-


mos; o amor espiritual os ama por causa de Cristo. O amor
humano procura o contato direto com as outras pessoas; ele os
ama não como pessoas livres, mas como aqueles que une a si
mesmo. Ele deseja ganhar, capturar por todos os meios; ele
usa a força. Ele deseja ser irresistível, governar.33

241
4

LIÇÕES DE MESTRE

Quando os planos egoístas e as técnicas de manipulação de um


irmão e das irmãs cristãs são descobertos, como acabarão sendo, a
comunhão é destruída. Retraímo-nos, desconfiados da comunidade
cristã, temendo que a intimidade signifique exploração.
A única salvação para a comunidade cristã, quando a máscara do
amor humano for exposta, é retornar para Cristo como o mediador
de nossos relacionamentos.

Jesus Cristo está entre o amante e aqueles que ele ama [...]
Uma vez que Cristo está entre mim e os outros, não me atrevo
a desejar a comunhão com eles. Como somente Cristo pode
falar comigo de maneira tal que posso ser salvo, então os outros
também podem ser salvos somente pelo próprio Cristo. Isso
significa que devo libertar a outra pessoa de todas as minhas
tentativas de regular, coagir, e dominá-la com o meu amor [...]
Porque Cristo há muito agiu de modo decisivo para meu irmão,
antes que eu pudesse começar a agir, devo deixar que sua liber-
dade esteja em Cristo; devo encontrar com ele apenas como a
pessoa que ela já é aos olhos de Cristo.34

A comunhão é sua para manter ou dissolver como quiser. Cristo é a


ponte para os outros, mas também a barreira, evitando que o eros
caído nos faça devorar uns aos outros. Por causa de Jesus Cristo, não
devemos permitir que a comunhão seja prejudicada por um espírito
separatista: "A vida em comunhão sob a Palavra continuará segura e
sadia somente quando [...] entende a si mesma como parte da Igreja
cristã una, católica, onde compartilha, de forma ativa e passiva, os
sofrimentos, lutas e promessas de toda a Igreja". Estando Cristo en-
tre mim e a Igreja, ele me leva a sofrer com ela em sua fraqueza e
trabalhar pacientemente pela sua cura e reforma.35

O individualismo na comunidade

Princípio n° 5: Em uma era de egoísmo e tribalismo, o único individualis-


mo seguro está na comunidade crista, e a única comunidade crista segura é
aquela que permite o individualismo.

242
UMA LIÇÃO DE COMUNHÃO: OS PRINCÍPIOS DE COMUNIDADE CRISTA DE DIETRICH BONHOEEEER

Bonhoeffer tem uma receita que parece feita por encomenda para
os tempos pós-modernos. Na cultura pós-moderna, um egoísmo
radical leva a pessoa a procurar a subcultura em que o "eu" possa
pertencer de verdade. Mas com freqüência a tribo cobra um preço
alto para que alguém faça parte dela. O indivíduo seguidamente deve
abrir mão de sua individualidade diante do grupo — ou ficar com
ela e sair do grupo.
A comunhão cristã jamais deve sucumbir a esses dois perigos: um
individualismo arrogante e um comunalismo opressivo. Quando se
espera conscientemente que Cristo seja mediador de nossa experiên-
cia de comunhão cristã, ele nos leva por uma terceira via. Bonhoeffer
a chama de trilha alternativa.
"Deixe aquele que não pode ficar sozinho ter consciência da
comunidade cristã".36 Devemos ser capazes de ficarmos sozinhos
com Deus por meio de Cristo e descobrir as nossas necessidades
satisfeitas nele, caso contrário nos tornaremos parasitas da comuni-
dade cristã, além de um fardo, sugando a vida da comunidade,
porque fizemos disso um substituto idolatra de Deus. Devemos
aprender a içar sozinhos com Cristo para encontrar nossa suficiên-
cia nele, antes que possamos nos tornar membros construtivos e
colaboradores da comunhão.
Existe, porém, um outro lado dessa terceira via: "Deixe que aque-
le que não está na comunidade tenha consistência do que é ficar
sozinho".37 Essa é a conseqüência necessária da regra anterior. Um
espírito independente, que não precisa de ninguém e prefere confiar
em si mesmo a mostrar uma confiança radical no corpo de Cristo é
um espírito em perigo. Portanto, "somente na comunhão aprende-
mos a ficar corretamente sozinhos, e apenas na solidão aprendemos a
viver corretamente em comunhão". 38

Humildade disciplinada

Princípio n° 6: Em uma era arrogante, a comunidade cristã deve pra-


ticar com humildade as disciplinas que a farão mais forte em Cristo.

243
LIÇÕES DE MESTRE

Somente Cristo é capaz de nos levar a esse equilíbrio entre o indivi-


dualismo santo e a comunhão santa. Assim como em todos os cinco
princípios da comunidade cristã, somente Cristo é a chave. Mas que
disciplinas específicas eu deveria praticar para vivenciar esses prin-
cípios e trazer Cristo para o centro da comunidade? Em Vida em
Comunhão, Bonhoeffer dá sugestões bastante práticas e descreve uma
grande variedade de disciplinas que irão cultivar, preparar, aprofundar
ou restaurar a comunhão. Decidi listar apenas essas vinte disciplinas,
mas você perceberá que podemos fazer muito para promover a comu-
nhão cristã em uma alegre dependência de Cristo.
No capítulo dois de Vida em Comunhão, Bonhoeffer menciona
seis disciplinas coletivas que devem ser cultivadas pela comunidade
cristã: (1) meditação nos Salmos centrada em Cristo; (2) leitura das
Escrituras; (3) canto em conjunto; (4) oração em conjunto; (5) refei-
ção em conjunto; e (6) trabalho em conjunto. No capítulo três, ele
apresenta uma lista com as cinco disciplinas pessoais que deveriam
ser praticadas em solitude e que nos prepararam para a comunidade:
(1) solitude e silêncio; (2) meditação; (3) oração em particular; (4)
intercessão por outros; e (5) incentivo particular da comunidade em
solitude (em que uma pessoa incentiva os outros no seu coração e
diante do Senhor quando eles não estão presentes).
No capítulo quatro, Bonhoeffer lista sete disciplinas interpessoais
que aprofundam a comunidade cristã: (1) o ministério de refrear a
sua língua; (2) o ministério da mansidão; (3) o ministério de escutar;
(4) o ministério de ajudar; (5) o ministério de apoiar e sustentar um
ao outro; (6) o ministério de proclamar a Palavra um ao outro; e (7)
o ministério da autoridade, em que nos submetemos aos líderes que
praticam os outros seis ministérios pelo bem da comunidade.
Finalmente, no último capítulo de Vida em Comunhão, Bonhoeffer
fala sobre duas disciplinas adicionais que servem a uma função espe-
cífica. Além das disciplinas que cultivam a comunidade cristã e as
disciplinas de solitude que nos preparam para a comunidade, existem
duas disciplinas as quais restauram a comunidade cristã: a confissão
dos pecados e a Ceia.

244
UMA LIÇÃO DE COMUNHÃO: OS PRINCÍPIOS DE COMUNIDADE CRISTÃ DE DIETRICH BONHOEFEER

"Na confissão ocorre a passagem para uma vida nova. Onde o


pecado é odiado, admitido e perdoado, ali ocorre o rompimento com
o passado".39 Essa confissão de pecados mútua está baseada na teolo-
gia da cruz. Uma vez que "a cruz de Cristo destrói todo o orgulho",
não seremos capazes de:

[...] encontrar a cruz de Jesus se evitarmos ir ao lugar onde


ela pode ser encontrada, ou seja, a morte pública do pecador.
E nos recusamos a carregar a cruz quando estamos envergo-
nhados de tomar sobre nós a morte vergonhosa do pecador
em confissão.40

Depois de confessarmos a Deus e uns aos outros, podemos partir


para a última e mais alegre de todas as disciplinas da comunidade:
a Ceia.

O dia da Ceia do Senhor é uma ocasião de alegria para a


comunidade cristã. Reconciliada com Deus e com os irmãos
no coração, a congregação recebe o presente do corpo e do
sangue de Cristo. E depois de receber o perdão, vida nova e
salvação. Uma nova comunhão com Deus e os homens. A
comunhão da Ceia do Senhor é o preenchimento superlativo
da comunhão cristã [...] Aqui a comunidade alcançou o seu
objetivo. Aqui a alegria em Cristo e em sua comunidade é
completa. 41

A luz de Cristo e sua cruz, as únicas coisas capazes de produzir a


verdadeira comunidade e até mesmo o amor pelos inimigos,
Bonhoeffer se sente forçado a parafrasear o Salmo 133:1: "Oh! Como
é bom e agradável viverem unidos os irmãos [por meio de Cristo]"]42
Somente quando Cristo fica entre nós é que estamos livres dos ata-
ques de nosso ego, prioridades, idealismos e medos. "Somente por
meio dele temos acesso um ao outro, alegria um no outro e a comu-

245
LIÇÕES DE MESTRE

Usando os conceitos de comunidade de Bonhoeffer

Embora não fosse um Indiana Jones, quando Dietrich Bonhoeffer


estabeleceu um plano para a comunidade cristã genuína, ele ajudou
a guiar a Igreja em meio ao egoísmo e ao tribalismo cruéis da era
nazista. Neste capítulo analisamos essa grande lição. Mesmo assim,
quero repetir mais uma vez: para Bonhoeffer, a chave da comunidade
crista é aprendermos a deixar Cristo ser o mediador de nosso relaciona-
mento. Agora a questão que se apresenta é esta: como podemos usar
essa idéia e seus princípios para construir a nossa comunhão?
Uso n ° 1: Pratique as disciplinas da comunidade cristã. O best-seller
de Richard Foster, Celebração da Disciplina, testifica a fome existente
dentro da comunidade cristã por vidas mais disciplinadas.44 O sucesso
do movimento Promisse Keepers nos Estados Unidos aponta para a
mesma direção. Seria muito bom se os grupos pequenos e as classes
de escola dominical da igreja estudassem Vida em Comunhão e exa-
minassem detalhadamente as vinte disciplinas de Bonhoeffer para a
comunidade cristã. Certa vez, ministrei aulas em um seminário onde
os alunos do primeiro ano precisavam estudá-lo em grupos peque-
nos, liderados pelos professores. Foi meu primeiro contato com esse
livro de Bonhoeffer, e fico feliz por tê-lo aproveitado. Sua igreja,
organização ou família poderá ser beneficiada se fizer algo similar.
Uso n ° 2: Utilize os aspectos positivos e combata os aspectos negativos
do pós-modernismo. Os cristãos podem aprender com o pós-moder-
nismo. O pós-modernista acredita que a razão é inadequada. O cris-
tão ortodoxo pensa o mesmo. O pós-modernista sente que todo
mundo deveria ter voz em um mundo onde não há consenso. Isso
significa que a ortodoxia cristã tem o direito de ser ouvida. O pós-
modernismo trouxe uma nova abertura para a história, algo que não
aconteceu em relação à antiga modernidade. O cristianismo está en-
raizado na história e tem uma forte orientação para a história. Essas
são as áreas de concordância que deveriam ser estimuladas.
Apesar disso, devemos nos opor à fragmentação e à tribalização da
comunidade, que são o resultado das idéias pós-modernas. Se queremos

246
UMA LIÇÃO DE COMUNHÃO: OS PRINCÍPIOS DE COMUNIDADE CRISTÃ DE DIETRICH BONHOEEEER

sobreviver à balcanização da cultura e da sociedade que está ocorren-


do ao nosso redor, devemos enfatizar novamente o modelo bíblico de
comunidade, conforme Bonhoeffer procurou fazer.
Isso pode significar a recuperação de idéias antigas e confiáveis de
ministério. Pelo bem do movimento de crescimento da Igreja, deve-
mos desenvolver habilidades mais fundamentais em aplicar o seu
programa. O seu método mais questionável é o princípio das unida-
des homogêneas. 4 5 Sua idéia de que deveríamos criar igrejas
monoculturais pode ter sido um conselho bom nas décadas mais ou
menos uniformes de 1950 e 1960. Nesse mundo tribalista contem-
porâneo, porém, é algo que precisa ser reexaminado de maneira críti-
ca. Podemos continuar com igrejas tribalistas apenas por um curto
espaço de tempo, e depois experimentaremos a lei dos retornos de-
crescentes. Começamos a nos parecer exatamente como o mundo e
não poderemos oferecer esperança ou alternativa redentora.
Os líderes podem instituir estratégias criativas para grupos pe-
quenos, pelas quais será possível suprir as necessidades específicas
de grupos e de pessoas na igreja. Mas acima desses grupos peque-
nos devem estar as congregações unificadas e as celebrações, como
recomenda Peter Wagner.46
Uso n ° 3: Renove os fundamentos teológicos de comunidade. Gene
Veith recomenda essa estratégia para a Igreja, chamando-a de "opção
confessional".47 Suas raízes estão nas igrejas confessionais da Alema-
nha da década de 1930:

As igrejas que resistiram ao sistema de Adolf Hitler, o primeiro


Estado pós-modernista, chamavam-se a si mesmas de 'igrejas
confessionais'. Elas confessavam a sua fé em oposição a uma
Igreja sincretista e contra o Estado totalitário, defendendo a
Palavra de Deus e a doutrina cristã, conforme expressado em
suas confissões de fé históricas.48

Embora admita que uma nova ênfase no cristianismo doutrinário


possa ter o efeito inverso, Veith acredita que as vantagens são maiores
que as desvantagens:

247
LIÇÕES DE MESTRE

O confessionalismo não deveria significar "ortodoxia morta", a


insistência em algum tipo de pureza doutrinaria à custa de
uma fé pessoal e calorosa. O objetivo seria a "ortodoxia viva",
uma fé que é, ao mesmo tempo, experiencial e firmada na ver-
dade, com espaço para os sentimentos e o intelecto. Algumas
vezes a doutrina foi superenfatizada na história da Igreja, mas
isso dificilmente seria um perigo em uma sociedade em que a
tendência é negar a todas elas.49

Precisamos restaurar mais do que apenas os sistemas teológicos. Ne-


cessitamos recobrar uma autêntica teologia da cruz, que penetre em
nossos corações. Erwin Lutzer nos lembra que:

[...] a batalha não está entre a Igreja e o Estado, mas dentro de


nosso coração. Se Cristo possuir a todos nós, e se a cruz estiver
acima da política e do mundo, como Bonhoeffer nos lembrou,
nós venceremos, seja qual for o custo.50

A teologia da cruz de Lutero, descrita no primeiro capítulo, pode nos


ajudar a recobrar essa perspectiva.
Existem muitos recursos que os líderes podem usar para alimen-
tar o conhecimento teológico de seu povo. Um deles é o ministério
CURE (Christians United for Reformation).* Sob a liderança de
Michael Horton, uma série impressionante e bem articulada de ma-
teriais vem sendo produzida com o objetivo de ajudar a restaurar esse
tipo de cristianismo confessional. Parece ser exatamente isso o que
precisamos para encarar o desafio do pós-modernismo 51
Uso n ° 4: Restaurar o conhecimento bíblico como uma ajuda para a
comunidade. George Lindbeck observou que, "até recentemente, a
maioria das pessoas em países tradicionalmente cristãos vivia no
mundo lingüístico e imaginário da Bíblia".52 Esse conhecimento bí-
blico não possui apenas uma função redentora; ele ajudou a moldar

* Cristãos Unidos Para Reforma.

248
UMA LIÇÃO DE COMUNHÃO: OS PRINCÍPIOS DE COMUNIDADE CRISTÃ DE DIETRICH BONHOEFFER

toda a cultura Ocidental. Como conseqüência, o declínio do conhe-


cimento bíblico gerou uma crise na literatura, no discurso político e
na cultura popular. Perdemos a imaginação comum, a linguagem
comum e um grupo comum de valores previamente oferecidos pela
Bíblia. Perdemos a linguagem da comunidade: "Se uma sociedade
pode sobreviver nessas condições", pondera Lindbeck, "é uma ques-
tão em aberto". 53
A Igreja deve reaprender a Bíblia para ser fiel ao seu Senhor e
também renovar sua força cultural na sociedade. "Deus prometeu
estar com seu povo como juiz e Salvador nas catacumbas e também
no trono", escreve Lindbeck, "e para cada um desses destinos, os cris-
tãos precisam ser mestres em sua língua nativa, que no momento está
desaparecendo rapidamente." Lindbeck conclui que, se a Igreja deve
ser recompensada e causar um efeito na cultura pós-moderna, "é
imperativo que reaprenda a linguagem de Sião".54
Isso pode requerer que o currículo da escola bíblica de sua igreja
seja totalmente revisto. Os cristãos deveriam ser encorajados a ler,
individualmente, a Bíblia toda em um ano. Incentive sua igreja a
realizar um dos seminários populares do ministério Caminhada Bí-
blica. O conhecimento bíblico é fundamental para a renovação da
comunidade cristã, bem como a sua preservação cultural.
Uso n ° 5: Apoie a desobediência civil. Em A Cruz de Hitler,* Erwin
Lutzer medita sobre as lições que as igrejas americanas de hoje podem
aprender com as igrejas que viveram sob o nazismo. Uma das preocu-
pações mais importantes diz respeito aos limites do patriotismo:

Devemos apoiar não somente o nosso governo, como também


estar prontos para criticá-lo ou mesmo desafiá-lo quando
necessário. O patriotismo é louvável, caso tenhamos uma causa
justa. Toda nação tem o direito de se defender, o direito de
esperar que o governo faça o melhor para seus cidadãos. Entre-
tanto, se aprendemos com a igreja alemã sobre os perigos da

' Editora Vida.

249
LIÇÕES DF. MESTRE

obediência cega ao governo, devemos evitar a estúpida filoso-


fia: "Certo ou errado, o meu país está sempre em primeiro
lugar". 55

Quando nos aliamos a um movimento de desobediência civil, deve-


mos adotar os princípios de resistência passiva. Não há lugar para a
violência em nome de Cristo. E depois há que se evitar a tentação de
identificarmos a causa de Cristo com qualquer partido político ou
planejamento. Lutzer alerta:

Alguns ativistas políticos complementam a doutrina cristã com


uma estratégia de reforma política. Aparentemente, a salvação
aconteceria se elegêssemos candidatos conservadores para car-
gos regionais e nacionais. Por mais importante que isso possa
ser, é bom sempre lembrar que Deus não é republicano nem
democrata. Quando a cruz é embrulhada na bandeira de um
partido político, acaba distorcida ou diminuída. 56

Uso n ° 6: Revitalize a celebração da Ceia do Senhor. Quer você venha


de um berço católico ou evangélico, a redescoberta da Ceia do Senhor
possui um caráter altamente significativo. Não carecemos de mais
rituais; precisamos de experiência e percepção mais profundas do
significado dessa comunhão com Cristo e de uns com os outros. Con-
forme Bonhoeffer acreditava: "A comunhão na Ceia do Senhor é o
preenchimento superlativo da comunhão cristã [...] Aqui a alegria
em Cristo e sua comunidade alcançam o seu objetivo".57
A igreja East Glenville Community, sob a liderança do reverendo
Ron Sylvester, modificou os seus cultos mensais de ceia. Durante
esse culto simples, a mensagem tradicional é posta de lado, e um
tempo de confissão mútua e de adoração prepara as pessoas para
promessas de perdão e nova vida dadas pela Ceia do Senhor. A cele-
bração da Ceia passou a ter um novo significado.
No último filme de Indiana Jones, seu objetivo era encontrar o
santo Graal, o copo que Jesus Cristo supostamente utilizou na primeira

250
UMAIJÇÀO DE COMUNHÃO: OS PRINCÍPIOS DE COMUNIDADE CRISTÃ DE DIETRICH BONHOEEEER

Santa Ceia. Tanto os nazistas quanto Jones queriam ficar com ele
devido aos seus poderes de cura. Perto do final do filme, um oficial
nazista atira no pai de Jones, que cai quase morto. Jones encontra o
Graal e o leva até seu pai. Ele enche o copo com água e a derrama
sobre o ferimento do pai. Milagrosamente, a ferida some e ele é salvo.
Em tempos pós-modernos, quando a ferida dentro de nossa cul-
tura e nossas instituições é profunda e talvez mortal, o poder da
morte sacrificial de Cristo — simbolizada pela Ceia e pela comuni-
dade cristã — pode ser o remédio que fará uma grande cura. Vamos
derramar o seu conteúdo e testemunhar o ferimento profundo de
um mundo pós-moderno desaparecer diante das feridas de Cristo,
que têm poder de cura.

1Q.UESTÕES PARA DEBATE

1. Leia Mateus 18:20, texto que fala sobre a presença de Cristo


no meio dos cristãos. Muitas vezes, vi a presença de Cristo
na comunidade crista apenas como um observador passivo.
Bonhoeffer me desafiou a ver Cristo presente como um
mediador ativo da comunidade cristã. Quais dos princípios
levantados por Bonhoeffer apontam para essa verdade?

2. Quais dos seis usos sugeridos capacitariam a sua igreja a


experimentar Cristo de maneira mais poderosa, como um
mediador ativo da comunidade cristã? Que aplicações
adicionais você observa nos princípios de Bonhoeffer? Que
passos poderiam ser dados para colocar em prática essas
idéias?

251
LIÇÕES DE MESTRE

LEITURAS COMPLEMENTARES

O livro A Cruz de Hitler, de Erwin Lutzer, traz algumas infor-


mações valiosas sobre a vida e a teologia de Bonhoeffer. Além
disso, várias obras de Dietrich Bonhoeffer ainda estão disponí-
veis: Vida em Comunhão; Tentação; Ética; Discipulado; Resistência
e Submissão: Cartas e anotações escritas na prisão. Todas
publicadas pela Editora Sinodal.

252
Epílogo

PASSANDO DA LIÇÃO PARA


A DECISÃO

Primeira Igreja Presbiteriana de Quincy tomou uma série de


decisões no final da década de 1960, que resultaram em crescimento
e bons relacionamentos nas décadas seguintes. As palavras ditas por
Stephen Brown à sua igreja em 1967 continuam válidas até hoje:

Toda igreja, em algum momento de sua vida eclesiástica, se


depara com uma encruzilhada. Uma estrada conduz à medio-
cridade, à frustração e ao fracasso. A outra leva à grandeza, à
satisfação e ao avanço do Reino de Deus. Creio que esse é o
nosso momento para tomar uma decisão.1

As decisões que tomamos em nossas igrejas, famílias e organizações


determinarão qual dessas duas estradas tomaremos. Para andar na
estrada da mediocridade, frustração e fracasso não é preciso o uso de
um mapa. O fracasso em pensar, planejar, brigar contra a Palavra de
Deus ou avaliar tudo de modo automático nos conduz a essa estrada.
Neste livro, porém, procurei traçar um mapa para a outra opção.
Uma estrada de "grandeza, satisfação e de avanço do Reino de Deus"
surge quando tomamos decisões com base nas melhores idéias dis-
poníveis. As grandes decisões são conseqüências de grandes idéias.

253
LIÇÕES DF MESTRE

Ao longo destas páginas aprendemos que muitas dessas idéias são


lições ensinadas pela história da Igreja.
Mas antes de concluir este estudo, precisamos tratar de uma ques-
tão importante. De que maneira você lida com as grandes idéias,
como as que vimos neste livro, e as põe em prática em sua casa, igreja
ou organização? Em seu provocante livro Thinking in Time: The Uses
ofHistoryfor Decision Makers, Richard Neustadt e Ernest May reco-
mendam que os líderes identifiquem alguns métodos úteis, em vez
de seguirem processos complexos de dez (ou vinte) passos para tomar
decisões "à prova de erro". Eles escreveram:

"Não temos a intenção de organizar uma Metodologia, com


"M" maiúsculo. Para os líderes muito ocupados, a melhor
tática é definir alguns 'métodos' que possam ser lembrados
facilmente e aplicados durante períodos breves, sem gerar
muito estresse, e que visem beneficiar homens e mulheres
em seu trabalho". 2

Gostaria de sugerir sete desses métodos rápidos, que auxiliarão líde-


res e chefes de família muito ocupados a usar as lições da história da
Igreja para tomar decisões melhores. Embora os métodos sugeridos
sejam diferentes dos apresentados por Neustadt e May, tanto os meus
quanto os deles têm como base um denominador comum: "O obje-
tivo de todos os minimétodos que propomos é lançar luz sobre as
questões". Se esses métodos o ajudarem a usar um pouco mais de
imaginação, de teologia e de análise em sua tomada de decisões, cer-
tamente terão servido bem ao seu propósito.
A idéia não é transformar você, líder, no equivalente gerencial de
um "artilheiro". Contudo, assim como nos esportes, até mesmo uma
pequena melhoria no modo de administrar pode trazer muitos bene-
fícios. Existe apenas uma pequena diminuta diferença entre um time
que chuta dez ou 12 bolas — e todas batem na trave — jogando
contra outro, que dá o mesmo número de chutes, mas faz um gol.
Apenas uma vitória é o suficiente para separar o campeão do vice.

254
PASSANDO DA LIÇÃO PARA A DECISÃO

Caso esses métodos rápidos o auxiliem, em parte, na tomada de


decisões acertadas, eles se traduzirão na diferença entre o gasto de seu
tempo na "estrada da excelência" ou a sua aceleração em busca da
estrada da "mediocridade, frustração e fracasso".

Minimétodo n° 1: estabeleça as prioridades.

Identifique a missão de Deus para sua família, igreja ou organização.


Em um dos capítulos anteriores, citei Tom Telford falando sobre a
tolice que é a liderança sem um plano estabelecido. Você lembra das
palavras ditas por ele? Liderança sem uma declaração de missão clara
é como "alguém que atira uma flecha e depois desenha o centro do
alvo ao redor da ponta da flecha. Depois, afirma que atingiu o alvo
em cheio". A maneira de evitar esse tipo de liderança é escrevendo
uma declaração de missão que inclua o chamado de Deus para a sua
família, igreja ou organização.
Stephen Covey nos conta a história de Viktor Frankl, um psicólo-
go austríaco que sobreviveu aos campos de concentração de Hitler.
Quando Frankl começou a observar seus companheiros, percebeu de
onde aqueles homens tiravam sua vontade de viver, e fez uma desco-
berta importante que acabaria estabelecendo seu futuro como psicó-
logo. Ele concluiu que saúde, vitalidade, vida familiar, inteligência e
táticas de sobrevivência, por mais importantes que fossem, não eram
fatores primordiais para garantia de sobrevivência ali. "O mais im-
portante era o sentimento de visão para o futuro — a convicção
motivadora que aquelas pessoas precisavam sobreviver porque tinham
uma missão a cumprir, algum trabalho relevante que ainda precisavam
executar".3 Covey concluiu, assim, que formular uma declaração de
visão pessoal ou institucional é uma das ações mais poderosas que os
líderes podem fazer para ajudar as pessoas que lideram. Quando essa
visão é compartilhada e valorizada por outros membros de um grupo,
coisas maravilhosas acontecem. Habilidades individuais podem ser
direcionadas para um objetivo comum, e uma tremenda sinergia pode
surgir como conseqüência.

255
LIÇÕES DE MESTRE

Durante o período em que servimos como missionários, nossa


família de quatro pessoas saiu e voltou à África alguma vezes. Por essa
razão, nem sempre era fácil definir onde a nossa casa ficava. Cada um
de nós sentia as dores ocasionais dessa ausência de raízes. Algo que nos
ajudou a criar "raízes alternativas" foi a declaração de missão que escre-
vemos para nossa família. Discutíamos essa missão periodicamente.
Nós a corrigíamos muitas vezes, segundo o que Deus parecia nos
dizer como família. Quando as decisões precisavam ser tomadas, re-
líamos a nossa missão para ver qual seria o melhor curso de ação. Isso
nos ajudou a ter um sentimento maior de propósito e direção. Tam-
bém me orientou a guiar minha família na direção que sentíamos
Deus estar nos chamando.
Identifique a missão de Deus para sua família, igreja ou organiza-
ção. A declaração de missão é uma das melhores ferramentas que
alguém poderá utilizar para tomar decisões.4

Minimétodo n° 2: pense de maneira clássica

Coloque as dez grandes lições em quatro categorias e siga em frente. Ao


longo da história, a Igreja seguidamente usou quatro características
clássicas para descrever o que ela devia ser e fazer neste mundo. Quando
digo "clássicas", não quero me referir a algo "antiquado e ultrapassa-
do". O que tenho em mente é algo que permanece sempre relevante
e nunca fica ultrapassado. A verdadeira Igreja, diziam os antigos, é
una, santa, católica e apostólica. Eu acredito que as melhores decisões
estão fundamentadas nessas quatro características clássicas. Durante
o transcorrer da história da Igreja, essas qualidades foram interpreta-
das de muitas maneiras diferentes. A melhor explicação que posso
apresentar é que elas descrevem quatro maneiras diferentes de amar-
mos a Deus e aos outros.
Unidade significa amarmos o povo de Deus, usando os nossos
dons para ministrar uns aos outros em nome e no poder de Cristo.
Ela também envolve uma relação de interdependência com igrejas
que pensam de maneira similar.

256
PASSANDO DA LIÇÃO PARA A DECISÃO

Santidade significa amar a pessoa de Deus. Envolve a satisfação


encontrada em Deus como o maior prazer e tesouro desta vida. Sua
expressão suprema é encontrada em "estarmos satisfeitos com tudo o
que Deus é para nós em Jesus".5 Uma vida de adoração e santidade
resulta desse prazer e satisfação em Deus.
Catolicidade significa amar a missão de Deus. A Igreja não tem o
direito de continuar sendo apenas local, paroquial ou tribal. A salva-
ção de Deus é para todas as pessoas, em todos os lugares e em todos
os tempos, por isso a Igreja deve pensar com essa mesma profundida-
de. Católico significa "universal" ou "total", em oposição ao que é
limitado ou exclusivo. Nesse sentido, ser católico é ser evangelístico e
guiado pela missão. Representa amar a missão de Deus, que visa
salvar os perdidos e reunir a sua Igreja.
Apostolicidade significa amar a verdade de Deus. Envolve também
acreditar, professar e proclamar que Cristo é o Senhor sobre o peca-
do, a morte e a redenção. Essa quarta característica não é apenas uma
entre outras. E a característica superior, que dá forma a todas as ou-
tras, conforme ilustra a figura abaixo.

Santa (amar a pessoa de Deus)

Apostólica
(amar a verdade de Deus)

Una Católica
(amar o povo de Deus) (amar a missão de Deus)

Figura 6: As quatro características da Igreja e a centralidade da


apostolicidade

257
LIÇÕES DE MESTRE

Caracterís- Una: amar o Santa: amar a Católica: amar Apostólica:


ticas da povo de Deus pessoa de a missão de amar a
(comunhão, Deus Deus para o verdade de
Igreja ministração (louvor) e lei mundo Deus
mútua, (moralidade) (evangelização, (pregação,
cooperação missões, ensino,
com as outras discipulado e crença no
igrejas) serviço) Evangelho)

Base Burroughs Calvino Wilberforce Lutero


comentando comentando comentando comentando
bíblica
sobre sobre a vida sobre ação sobre a cruz,
denominacio- cristã, Baxter social, Carey Perkins sobre
nalismo, sobre o prazer sobre missões conversão e
Bonhoeffer em Deus, globais segurança
sobre Edwards
comunidade e sobre o
Wesley sobre avivamento
disciplina

Atividades Grupos Louvor Sociedades Pregação,


pequenos, público, louvor voluntárias, ensino,
apropria-
d isci pulado em família, marchas e evangeli-
das individual, disciplinas demonstra- zação,
escola bíblica devocionais, ções públicas, educação
dominical, retiros conferências teológica,
grupo de espirituais, missionárias, aconselha-
jovens, grupos encontros de projetos de mento, grupo
de apoio e oração, dias tradução da de estudo
reabilitação, para arrepen- Bíblia, bíblico,
comunhão dimento e educação, estudo
regional, confissão evangelização bíblico
comunhão transcultural, individual,
denominacio- treinamento leitura de
nal, tomada de de líderes material
decisões, cristão
planejamento,
liderança,
organização

O crescimento da Igreja, seguindo esse modelo clássico, ocorre quando


ela se aproxima de cada uma dessas quatro características. A história
da Igreja pode ser um aliado valioso nesse crescimento, pois apresen-
ta exemplos dessas quatro características colocadas em ação. Todas as
dez lições exploradas neste livro são maneiras de andarmos em dire-
ção a uma ou mais dessas características. As idéias que ressaltam

258
PASSANDO DA LIÇÃO PARA A DECISÃO

apostolicidade possuem apenas um pouco mais de significado, porque


é a apostolicidade que orienta as outras; o Evangelho cria a Igreja. A
tabela apresentada na página anterior relaciona as dez lições com
essas quatro características clássicas.
As decisões tomadas de maneira "clássica" envolvem planejar as
atividades e fazer opções que levarão sua igreja em direção a uma ou
mais dessas quatro características. As dez lições representam manei-
ras específicas de fazermos isso. Quando desenvolver uma declaração
de missão para sua igreja ou organização, pense em maneiras de
incorporar essas quatro características nas palavras escolhidas. Se usar
essas categorias clássicas, estará optando por uma abordagem que o
ajudará a ficar ligado às grandes lições do passado. Pensar em termos
clássicos é outra ferramenta poderosa para o líder que deseja trilhar a
estrada da excelência.

Minimétodo n° 3: pensar no que aconteceu antes

Aprenda a perguntar: "O que aconteceu antes"? E não "Qual é o pro-


blema"?6 Se aprendermos a formular claramente as perguntas
poderemos tomar decisões melhores. Quando ocorre uma crise,
geralmente somos tentados a perguntar: "Qual é o problema"? A
resposta que recebemos nem sempre é uma descrição precisa do
problema. O mais provável é que seja a sugestão de alguém sobre o
que deve ser feito.
Se uma família inteira abandona a igreja e você pergunta ao chefe
da família qual é o problema, poderá ouvir um pequeno discurso
sobre como você deveria ter pregado melhor, visitado mais e ser mais
atencioso com os jovens. Mas se você fizer uma pergunta mais precisa
como: "O que aconteceu antes"?, poderá receber uma resposta mais
esclarecedora. O chefe da família poderá descrever uma seqüência de
eventos que resultaram na saída de sua família da igreja. Um evento
nessa seqüência — como a rebeldia do filho adolescente — pode
lançar luz sobre o verdadeiro motivo do abandono e ajudá-lo a tomar
uma decisão mais acertada em relação àquela família.

259
LIÇÕES DE MESTRE

Antes que você possa determinar adequadamente qual dessas dez


grandes lições se aplica mais diretamente às necessidade de sua igreja
ou organização, é preciso ter uma percepção da "história" que veio
antes de você. Trace uma linha de tempo e procure ressaltar os even-
tos mais importantes. Faça as seis "perguntas do jornalista": o que,
quem, quando, onde, como e por quê. Registre todos os "persona-
gens" que contribuíram para que sua igreja fosse o que é hoje. A
compreensão da "historinha" que gerou essa situação poderá ajudá-lo
a decidir qual das grandes lições ensinadas pela história da Igreja é a
mais relevante para suas necessidades atuais.

Minimétodo n° 4: o poder dos alvos de oração

Estabeleça alvos anuais para oração e ação. Uma das coisas mais
importantes que um líder precisa fazer antes de tomar decisões é
orar. Quando for estabelecer os alvos de oração para sua organiza-
ção referente ao próximo semestre ou ano, procure direcionar suas
orações de maneira que elas possam potencializar a sua declaração
de missão, e pense sempre nas características "clássicas". Passe algu-
mas horas com os demais líderes e juntos escrevam uma lista de
alvos bastante específicos para o crescimento clássico, que pode se
tornar uma diretriz constante para suas orações e ações.
Use as quatro características clássicas para divisão dos alvos por
tipos. Faça uma lista equilibrada. Pense nas áreas estratégicas de sua
vida pessoal ou de sua organização. Você possui alvos que cobrem a
maioria dessas áreas ou todos os alvos estão centrados em uma ou
duas áreas crônicas? Se possível, faça uma lista de dez alvos ou menos.
Alvos em excesso geram frustração, além do aumento de dificuldades
para o seu alcance.
Meu amigo Randy MacFarland usou esse método de maneira efi-
caz, tanto no seu pastorado como no período em que foi deão do
seminário. Ele reunia sua equipe de líderes uma vez por ano em um
local para retiro. Ali oravam e estabeleciam juntos os alvos de oração
para cada ano. As listas estabelecidas eram digitadas e impressas em

260
PASSANDO DA LIÇÃO PARA A DECISÃO

cartões, que estavam sempre à mão para guiar as orações e as decisões


que precisavam tomar. Segui essa prática e senti que as decisões se
tornaram melhores e mais de acordo com minhas orações.

Minimétodo n° 5: pequenos passos até a excelência

Estabeleça uma agenda semanal. No filme Nosso Querido Bob, o perso-


nagem de Bill Murray é o paciente de um psiquiatra interpretado
por Richard Dreyfus, que ficou famoso por sua nova forma de terapia.
Essa terapia é resumida pelo título de seu best-seller "Passos de Bebê".
De maneiras ridículas, Murray aplica a terapia para dar pequenos
passos que o ajudariam a vencer os medos que o paralisavam.
Mas existe algo que eu gostei nessa filosofia de pequenos passos
ridicularizada pelo filme. Em seu cerne há uma sabedoria conven-
cional que dificilmente pode ser contestada: "O sucesso é alcançado
facilmente aos poucos, mas quando queremos tudo de uma só vez,
ele dificilmente ocorre". Se você pretende ser um líder "clássico" e
conduzir as pessoas pela estrada da excelência, precisa de mecanis-
mos que o ajudem a dar um passo de cada vez.
Stephen Covey menciona que mecanismo é este em seu livro Pri-
meiro o Mais Importante. Ele chama isso de "agenda semanal". A idéia
é simples. Não planeje o seu tempo, planeje as suas prioridades.
Enquanto estabelece sua agenda semanal, faça a si mesmo a seguinte
pergunta: "Segundo a minha missão de vida, que coisa (ou coisas)
poderia fazer essa semana em cada uma das áreas-chave de minha
vida que me trarão resultados importantes"? Planeje essas atividades
e programe a sua semana em volta delas tanto quanto for possível.
Isso fará com que você seja um líder que toma decisões de maneira
mais eficiente.

Minimétodo n° 6: gerenciamento de crises no modelo clássico

Mantenha o rumo mesmo quando tudo parece dar errado. A essa altura
você deve estar pensando:

261
LIÇÕES DE MESTRE

Esses métodos são ótimos na teoria, mas o autor obviamente


não conhece a nossa igreja [ou família ou organização]. Nós
passamos tanto tempo apagando os incêndios, que não temos
tempo para fazer todo esse planejamento e estabelecer alvos.

Confesso que eu mesmo já me senti assim. Como posso tentar en-


tender melhor as idéias de Lutero, Edwards ou Bonhoeffer quando
tenho trabalhos de alunos para corrigir ou um retiro para planejar
e liderar?
Uma vez mais, a chave é a missão estabelecida para sua vida ou
organização. Com base em sua declaração de missão e com a sabedoria
das quatro características, determine se essa crise é uma oportunidade
para seguir em frente. Se um conflito tiver início na congregação,
essa não poderia ser uma oportunidade para trabalhar uma ou mais
dessas características em sua igreja? O conceito de comunhão, pro-
posto por Bonhoeffer, não oferece algumas idéias para ajudá-lo a
resolver o seu problema e levar as pessoas a terem mais unidade? As
crises não precisam ser barreiras que atrapalham a tomada de deci-
sões de qualidade. Elas também podem ser pontes construídas para
se alcançar a "estrada da excelência".

Minimétodo n° 7: o esplendor da sinergia

Estabeleça as diferenças e os problemas. O objetivo de todos esses


minimétodos é ajudá-lo a alcançar resultados satisfatórios. Todos
queremos igrejas, organizações e famílias melhores. Resultados
surpreendentes podem surgir quando Cristo reúne pessoas talentosas,
grandes idéias e situações das quais nos beneficiamos. A sinergia pode
ocorrer. Sinergia "significa que o todo é maior do que a simples soma
das partes". 7 Sinergia é o fruto da cooperação criativa. Quando a
sinergia ocorre, os resultados excedem as expectativas. Há sinergia
quando dois pães e cinco peixes são colocados nas mãos do Mestre e
consagrados a Deus. "Sinergia é a atividade mais dinâmica de toda a
vida".8 Líderes sábios reconhecem que a sinergia é mais descoberta
do que fabricada.

262
PASSANDO DA LIÇÃO PARA A DECISÃO

Quando Deus reúne pessoas diferentes com talentos e personalida-


des diversas, a fricção pode ser grande, mas o potencial para sinergia
também cresce exponencialmente. Sinergia significa que alguém como
Wilberforce decidiu não trabalhar sozinho, mas uniu seus esforços aos
das diferentes pessoas que formavam o Grupo de Clapham. Sinergia é
descobrir que denominacionalismo não é um palavrão, mas que igrejas
diferentes, trabalhando sob Cristo, podem gerar resultados estupen-
dos. Sinergia é ver Carey trabalhando com Ward e Marshman e produ-
zindo um dos maiores modelos missionários da história. Sinergia é
Lutero descobrir que seu próprio desespero o preparou para a desco-
berta do Evangelho e que os princípios da Sexta-feira da Paixão não
levaram ao desastre, mas à ressurreição. Sinergia é Edwards pregando
seus sermões metafísicos para a surpresa de todos, incluindo a sua pró-
pria, e atiçando o fogo do avivamento. Sinergia é Wesley usando os
pobres que se converteram ao metodismo como pastores e líderes de
grupos, formando assim um dos movimentos eclesiásticos mais fortes
de todos os tempos. Sinergia é Bonhoeffer descobrindo que jóia rara é
a comunhão cristã, enquanto era caçado e perseguido pela Gestapo.
Um líder ao estilo clássico procura resultados sinérgicos que
extrapolem as expectativas, não os resultados calculados estabelecidos
por contadores. Toda decisão que tomamos deveria levar em conta a
premissa sinérgica de Romanos 8:28. Ela diz que todas as cousas coo-
peram para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chama-
dos segundo o seu propósito. Grandes líderes não ficam se queixando e
lamentando durante a vida toda. Eles sabem de algo que os que viajam
na estrada para a mediocridade desconhecem. Eles sabem que pessoas
diferentes podem ser ingredientes nessa receita de sinergia. Os líderes
enaltecem as diferenças das pessoas e aceitam a dificuldade de cada
situação. Eles acreditam que a única maneira para obtenção de resulta-
dos surpreendentes é o acréscimo do ingrediente-surpresa.

Walden e a Palavra de Deus

A estrada da excelência não é apenas para os que ambicionam o su-


cesso. Falei bastante sobre decisões e minimétodos, mas agora que

263
LIÇÕES DE MESTRE

estou prestes a terminar este livro, recheado de idéias antigas e sabe-


doria histórica, sinto mais urgência pessoal de experimentar essa dez
lições do que simplesmente ser um líder ou um pastor melhor. Que-
ro viver uma vida autêntica. É o tipo de urgência que Henry David
Thoreau expressou em seu livro Walden ou a Vida nos Bosques. Ele
construiu uma casa de campo e ficou isolado nela durante cerca de
dois anos, e posteriormente relatou sua experiência. Thoreau decla-
rou que desejava reduzir a vida à sua essência porque, desse modo,
próximo a seu fim, não corria o risco de acordar um dia e "descobrir
que não havia vivido".
Tenho um senso de urgência, um desejo de tomar decisões que façam
diferença, que melhorem a minha e a vida de outros para que Deus seja
glorificado com isso. Essas observações são resultantes, em parte, do
temor de que a maior parte do meu tempo tenha sido gasto com coisas
inúteis e sem valor ou vida. Por outro lado, também resultam do medo
de que, nos meus quarenta e tantos anos de vida, nesse planeta, eu só
tenha vivido realmente a metade desse tempo. Esse medo foi bem
descrito por Tim Bascom:

Não estou satisfeito com a qualidade da minha vida. Sim, sinto-


me confortável, provavelmente melhor do que a imensa maio-
ria dos seres humanos. Mas não estou satisfeito. Dias inteiros
passam, talvez semanas, e sinto que eles foram em vão. Isso me
enlouquece. Recebi um número determinado de anos para viver,
75, ou até 85 se tiver sorte, mas grande parte desse tempo
parece ter passado em meio ao nevoeiro. Quando tudo chegar
ao fim, temo que olharei para trás e descobrirei que vivi apenas
vinte desses anos. No restante, fiquei apenas esperando o tempo
passar, como um preso acorrentado e vendado, esperando.9

Por isso termino essa viagem ao passado com duas gotas de sabedoria
antiga para aqueles que desejam sentir-se vivos e despertos enquanto
continuam na estrada da excelência. Thoreau disse certa vez: "O dia
somente nasce para aqueles que estão acordados". Ele se expressou

264
PASSANDO DA LIÇÃO PARA A DECISÃO

bem. Precisamos de grandes idéias que nos despertem de nosso sono


mental e espiritual.
Mas a Bíblia registra de uma maneira muito melhor o desejo do
meu coração para você, como líder, e para mim mesmo, como his-
toriador. Nas palavras do apóstolo Paulo, nos acercamos do fogo
que queima por trás de cada uma dessas dez grandes lições e da
estrela que aponta para a visão suprema que deveria guiar todas as
nossas decisões:

[Oro para que] assim, habite Cristo no vosso coração, pela fé,
estando vós arraigados e alicerçados em amor, a fim de
poderdes compreender, com todos os santos, qual é a largu-
ra, e o comprimento, e a altura, e a profundidade e conhecer
o amor de Cristo, que excede todo entendimento, para que
sejais tomados de toda a plenitude de Deus.
EFÉSIOS 3:17-19

QUESTÕES PARA DEBATE

1. Qual dos minimétodos citados seria mais útil para ajudá-lo


a tomar decisões sábias?

2. Reveja o quadro das quatro características clássicas. Quais


das atividades sugeridas você realiza em sua igreja? Que
atividades adicionais poderiam ser acrescentadas?

265
NOTAS

INTRODUÇÃO

1. RODMAN, John. "Back on the Road to Life: The Pilgrimage


of First Presbyterian, Quincy". New EnglandJournalofMinistry,
jun. 1981, p. 34.
2. Ib., p. 35.
3. NEUSTADT, Richard e MAY, Ernest. Thinking in Time: The
Uses ofHistory for Decision Makers. Nova York: Free Press, 1986,
p. 11.
4. BARNA, George. O Poder da Visão. São Paulo: Abba Press, 1993,
p.6.
5. Ib., pp. 130, 131.
6. COVEY, Stephen. Os 7 Hábitos das Pessoas Altamente Eficazes.
São Paulo: Best Seller, 2000.

C A P Í T U L O I: U M A LIÇÃO S O B R E A V E R D A D E

1. BARNA, George. Virtual America. Ventura: Regai, 1994. Apre-


sentado no The Christian Century, 14/12/94, p. 1185.
2. WELLS, David. Godin the Wasteland. Grand Rapids: Eerdmans,
1994, p. 150.

267
LIÇÕES DE MESTRE

3. NOLL, Mark. The Scandal of the Evangelical Mind. Grand


Rapids: Eerdmans, 1994, p. 252.
4. McGRATH, Alister. Luther's Theology of the Cross. Oxford:
Blackwell, 1985, p. 1.
5. LUTHER, Martin. Heidelberg Disputation. In. ATKINSON,
James. Luther: Early Theological Works. James Atkinson (Ed.).
Philadelphia: Westminster Press, 1962, p. 290.
6. ALTHAUS, Paul. The Theology of Martin Luther. Philadelphia:
Fortress, 1966, p. 27-
7. Ib.
8. LUTHER, op. cit., p. 291.
9. ALTHAUS, op. cit., p. 34.
10. LUTHER, op. cit., p. 291.
11. ALTHAUS, op. cit., p. 32.
12. Ib.
13. Ib., p. 33.
14. LUTHER, Heidelberg, p. 291.
15. Ib.
16. McGRATH, op. cit., p. 159.
17. McGRATH, Alister. The Mystery of the Cross. Grand Rapids:
Zondervan, 1988, p. 161.
18. McGRATH, Luther's Theology ofthe Cross. p. 158.
19. LUTERO, apud McGRATH, op cit., p. 169. Veja a edição
alemã das obras de Lutero, mencionada também por AUSGABE,
Weimar (WA), v. 5., n. 176, pp. 32-33: "Crux sola est nostra
theologia".
20. ALTHAUS, Theology of Martin Luther. p. 30.
2 1 . McGRATH, Luthers Theology ofthe Cross. p. 181.
22. Ib.
2 3 . WILLIMON, William. "Turning an Audience into the Church".
Leadership, v. 15, n. 1, Inverno de 1994, p. 30.

268
NOTAS

24. Ib.
25. Ib., p. 33.
26. WELLS, David. God in the Wasteland, p. 185.
27. BARNA, George. Absolute Confusion. Ventura: Regai, 1993,
p. 89.
28. WELLS, David. God in the Wasteland, p. 213.
29. Algumas igrejas têm usado outro livro que escrevi para elevar o
nível de conhecimento teológico da congregação: Doing Theology
with Huck andjim: Parablesfor Understanding Doctrine. Downers
Grove: InterVarsity Press, 1993. Nesse livro, utilizo algumas
das abordagens da teologia das narrativas para tornar a teologia
mais acessível.
30. SOYINKA, Kayode. "Archbishop Tutu". África Today. Set./Out.
1995, pp. 7, 8.

CAPÍTULO 2: UMA LIÇÃO DE ESPIRITUALIDADE

1. FRANCE, Kim. "Generation Ex". Elle, março de 1994.


2. C O U P L A N D , Douglas. Life After God. Nova York: Pocket
Books/Simon & Schuster, 1995. GenerationXfoi publicada em
1991, em Nova York, pela editora St. Martins.
3. "The Search for the Sacred: Américas Quest for Spiritual
Meaning". Newsweek, nov. 1994.
4. VITZ, Paul. Psychology as Religion: The Cult of Self-Worship.
Grand Rapids: Eerdmans, 2 a ed., 1981, p. 103.
5. Ib., p. 122.
6. CALVINO, John. Calvins Commentaries. Joseph Hartounian
(Ed.). Filadélfia: Westminster Press, 1958, p. 52.
7. REID, W Stanford (Ed.). John Calvin; His Influence in the Western
World. Grand Rapids: Zondervan, 1982. Para conhecer melhor
o impacto internacional de Calvino, veja esta obra.
8. CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã. São Paulo:
Casa Editora Presbiteriana e Luz Para o Caminho (co-edição).

269
LIÇÕES DE MESTRE

A edição em português foi traduzida pelo Rev. Dr. Waldyr


Carvalho Luz em 1989. As referências às Institutas normalmen-
te são compostas de três números separados por pontos. O pri-
meiro número refere-se a um dos quatro volumes em que Calvino
dividiu as suas Institutas. O segundo número é o capítulo desse
livro específico. O terceiro número indica uma seção dentro
desse volume. Nos textos citados neste livro, os números em
parênteses referem-se às Institutas segundo essa ordem.
9. NIESEL, Wilhelm. The Theology of Calvin. Grand Rapids: Baker
Book House, 1980, p. 128.
10. CALVINO, apud W E N D E L , François. Calvin: Origins and
Development of His Religious Thought. 1950 e reimpresso em
Durham: Labyrinth, 1987.
11. M c G R A T H , Alister. Roots That Refresh: A Celebration of
Reformation Spirituality. Londres: Hodder & Stoughton, 1991,
p. 124.
12. A argumentação de Calvino sobre cada uma dessa seis petições
está em Institutas 3.20. pp. 34-49.
13. MEANS, James. Effective Pastors for a New Century. Grand
Rapids: Baker Book House, 1993, p. 17.
14. COVEY, Steven. Os 7 Hábitos das Pessoas Altamente Eficazes.
São Paulo: Best Seller, 2000.
15. MORLEY, Patrick. O Homem de Hoje. São Paulo: Mundo Cris-
tão, 1992, pp. 333-356. Oferece um excelente conselho e dá
diretrizes para o funcionamento desses grupos de prestação de
contas no capítulo 23 deste livro.
16. G U I N N E S S , Os. The Gravedigger File. Downers Grove:
InterVarsity Press, 1983, p. 85.
17. Ib., pp. 81, 82.
18. MACDONALD, Gordon. Ponha Ordem no Seu Mundo Interior.
Venda Nova: Betânia, 1998. Veja especialmente os sete princí-
pios de batalha espiritual apresentados no capítulo 17.

270
NOTAS

CAPÍTULO 3: UMA LIÇÃO DE UNIDADE

1. BARRETT, David. African Initiatives in Religion. Nairobi:


Uzima, 1971, p. 148.
2. OMANSON, R. The Church. EvangelicalDictionary ofTheology.
Walter Elwell (Ed.). Grand Rapids: Baker Book House, 1984,
p. 231.
3. NEWBIGIN, Lesslie. Foolishness to the Greeks: The Gospel and
Western Culture. Grand Rapids: Eerdmans, 1986, p. 146.
4. KÜNG, Hans. The Church. Garden City: Doubleday/Image,
1976, p. 357.
5. Ib.
6. H U D S O N , W i n t h r o p . American Protestantism. Chicago:
University of Chicago Press, 1961, p. 34.
7. BOLAND, Michael. Biographical Introduction. In: BURROUGHS,
Jeremiah. The Rare Jewel of Christian Contentment, 1948 e
reimpresso em Edinburgo: Banner of Truth Trust, 1964, p. 11.
Grande parte das informações biográficas deste capítulo foram
retiradas do livro de BOLAND e do Dictionary of National
Biography, v. 3. Oxford: Oxford University Press, 1917.
8. BURROUGHS, apud H U D S O N , op. cit., p. 40.
9. Parafraseado em BOLAND, op. cit., p. 11.
10. Ib., p. 13.
11. H U D S O N . American Protestantism, p. 4 1 .
12. Ib.
13. Ib., pp. 4 1 , 42.
14. Ib., p. 42.
15. Ib., p. 44.
16. Ib., pp. 42, 43.
17. Ib., p. 44.
18. WAGNER, Peter C. Your Church Can Grow. Ventura: Regai,
1976, pp. 168, 169. Devo mencionar um alerta feito por Peter

271
LIÇÕES DE MESTRE

Wagner sobre os perigos da "koinonite". Sua análise do fracasso


do projeto Key '73 é um lembrete valioso de que a unidade é
apenas um meio para um fim mais excelente. Queremos que o
mundo veja a nossa unidade para que isso possa atrair as pessoas
a Cristo. De acordo com Wagner, o projeto Key '73 perdeu o
seu foco e fez da unidade o alvo, à custa da evangelização. Veja
seus argumentos nesta obra.

CAPÍTULO 4: UMA LIÇÃO DE SEGURANÇA

1. As fontes que oferecem informações sobre a vida de Perkins são


escassas. O excelente resumo apresentado no Dictionary of
National Biography. Londres: Oxford University Press, 1917-,
vol. 15, p. 892ss, é baseado nos relatos mais confiáveis. O relato
mais antigo sobre a vida de Perkins está em FULLER, Thomas.
Abel Redivivus. Londres: William Tegg, 1867, publicado origi-
nalmente em 1640. Samuel Clarke falou sobre Perkins em 1675,
na sua obra Marrow ofEcclesiasticalHistory. Benjamin Brook fez
o mesmo um século depois.
2. Um pensionista era uma pessoa que pagava suas "taxas", ou seja,
despesas comuns da faculdade. Um bolsista era o estudante que
não podia arcar com essas despesas e era forçado a trabalhar para
compensar os gastos que a faculdade tinha com ele. Um aluno
erudito possuía uma posição privilegiada: as taxas eram abona-
das por causa da sua performance excepcional nos estudos.
3. PERKINS, apud BREWARD, lan. The Work ofWilliam Perkins.
Appleford: Sutton Courtenay, 1970, p. 7. A história de que
Perkins era um alcoólatra convertido, após ouvir uma mulher
chamá-lo de "o bêbado Perkins" e saber que era usado como
uma imagem para aterrorizar uma criança, aparentemente foi
criada por Benjamin Brook. Não há evidências de que isso seja
verdade nas fontes mais antigas que tratam da vida de Perkins.
4. A situação religiosa dos dias em que Perkins e o movimento pu-
ritano apareceram pode ser mencionada rapidamente. A rainha
Mary Tudor (1516-1558), que assumiu a coroa em 1553,

272
NOTAS

reinstituiu o catolicismo no país. Ela mandou executar líderes


protestantes como Thomas Cranmer, Nicholas Ridléy, Hugh
Latimer — cerca de trezentos mártires ao todo. Milhares foram
exilados em Estrasburgo, Frankfurt e Genebra. Havia pouca
lamentação por essas coisas na Inglaterra quando Mary (que
entrou para a história com o apelido de "a sanguinária") morreu
em 1558. Sua morte resultou na ascensão ao trono de Elizabeth I
(1533-1603). Sendo filha de Ana Bolena (a esposa protestante
do rei Henrique viu), Elizabeth favoreceu o protestantismo. Na
verdade, para seu reinado ser legítimo, ela precisava adotar o
protestantismo, pois o casamento de sua mãe não fora reconhe-
cido pelo papa. Os exilados voltaram para a Inglaterra, esperan-
do estabelecer ali o modelo de Igreja reformada que viram em
outras partes da Europa e fora ensinada nos anos do rei Edward,
quando Martin Bucer e Peter Martyr Vermigli davam aulas em
Cambridge. As ações de Elizabeth decepcionaram os reformadores
mais zelosos. Seus "Atos de Supremacia e Uniformidade", de 1559,
criaram o famoso "caminho do meio", típico do anglicanismo, ou
seja, adicionou elementos de catolicismo à doutrina protestante.
Suas convicções teológicas em relação à Igreja foram estabelecidas,
em grande parte, pelos "42 Artigos de fé" editados em 1553 e
revisados em 1563, quando passaram a ser chamados de "39 Ar-
tigos de Fé". Tanto os católicos como os protestantes mais "radi-
cais" se opuseram à decisão de Elizabeth.
5. Dktionary of National Biography. Londres: Oxford University,
1977, v. 15, p. 893.
6. PORTER, H. Reformation and Reaction in Tudor Cambridge.
Cambridge: University of Cambridge Press, 1958, p. 290.
7. Ib., p. 268.
8. HALLER, William. The Rise ofPuritanism. Nova York: Columbia
University Press, 1938. Para uma discussão da quarta ramifica-
ção do puritanismo e sua história, consulte esta obra.
9. MERRILL, Thomas (Ed.). William Perkins (1558-1602): His
Pioneer Works on Casuistry. Nieuwkoop: B. DeGraaf, 1966,

273
LIÇÕES DE MESTRE

pp. 103-107. Os quatro passos para a verdadeira conversão fo-


ram elaborados por Perkins em seu livro Whole Treatise of Cases
of Conscience. Sua transcrição pode ser encontrada na obra de
Thomas Merril.
10. Ib., pp. 39, 40.
11. Ib., p. 61.
12. Ib., p. 56.
13. PERKINS, apud SHAW, Mark. TheMarrow ofPracticalDivinity.
Dissertação de Ph.D., WestminsterTheological Seminary, 1981,
p. 161.
14. Ib., p. 164.
15. Ib., p. 171.
16. MEANS, James. Ejfective Pastors for a New Century. Grand
Rapids: Baker Book House, 1993, p. 63.
17. SHAW, Mark. "Drama in the Meeting House: The Concept of
Conversion in the Theology of William Perkins". Westminster
Theological Journal 45, 1983, p. 7 1 .

CAPÍTULO 5: UMA LIÇÃO DE ADORAÇÃO

1. PACKEPv, J. I. no prefácio da edição Soli Deo Gloria do Directory,


n. p. Exceto quando indicado, todas as referências ao Christian
Directory foram retiradas dessa edição. Gostaria de agradecer ao
dr. Timothy Beougher por ter lido este capítulo e feito suges-
tões muito úteis.
2. Retirado de PoeticalFragments. BAXTER, apud nuttall, Geoffrey.
Richard Baxter. Londres: Nelson, 1965, p. AA.
3. CLARKE, Adam (Ed.). Christian Directory. Abridged edition,
Londres: n. p., [s.d.], p. 4.
4. POWICKE, F. J. The Reverend Richard Baxter Under the Cross
(1662-1691). Londres: Jonathan Cape, 1927, p. 24.
5. NUTTALL, op. cit., p. 108.

274
NOTAS

6. CLARKE, op. cit., p. 90.


7. Ib., p. 158.
8. Ib.
9. Ib., p. 138.
10. Ib., p. 142.
11. Ib., p. 139.
12. Todos esses pontos são mencionados em Christian Directory,
p. 138.
13. Ib., p. 139.
14. Ib., p. 140.
15. Ib.
16. Ib., p. 139.
17. Essas meditações estão em Christian Directory, pp. 139-142.
18. WEBBER, Robert (Ed.). The Renewal ofSunday Worship. Com-
plete Library of Christian Worship v. 3. Nashville: Star Song,
1993.

CAPÍTULO 6: U M A LIÇÃO DE RENOVAÇÃO

1. COLSON, Charles. The Body. Dallas: Word, 1992, pp. 11-28.


A história do corpo de bombeiros e a igreja da comunidade está
registrada nesta obra.
2. GUINNESS, Os. The Gravedigger File. Downers Grove:
InterVarsity Press, 1983, p. 51.
3. Ib., p. 52.
4. Ib., p. 51.
5. Ib., p. 49.
6. GALLUP Jr., apud COLSON, op. cit., p. 31.
7. COLSON, op. cit., p. 184.
8. PACKER, J.l.A Questfor Godliness. Wheaton: Crossway, 1990,
p. 316.

275
LIÇÕES DE MESTRE

9. Edwards, apud MURRAY, Ian. Jonathan Edwards. Edinburgo:


Banner of Truth Trust, 1987, p. 17.
10. PIPER, John. A Supremacia de Deus na Pregação: Teologia,
Estratégia e Espiritualidade do Ministério de Púlpito. São Paulo:
Shedd Publicações, 2003, p. 65.
11. WINSLOW, Ola. Jonathan Edwards. 1940, reimpresso em New
York: Octangon, 1979, p. 2.
12. EDWARDS, Jonathan. Works. 1834, reimpresso em Edinburgo:
Banner of Truth Trust, 1974, v. 1, p. 428.
13. Ib., v. 1, p. 536.
14. Ib., v. 1, p. 277.
15. Ib., v. 1, p. 120.
16. Ib., v. 2, p. 224.
17. EDWARDS, apud PACKER, Questfor Godliness, pp. 313, 314.
18. EDWARDS, apud PIPER, John. A Supremacia de Deus na Pre-
gação, pp. 82-84.
19. EDWARDS, op. cit., v. 2, p. 266.
20. Ib.
2 1 . EDWARDS, apud PACKER, op. cit., p. 326.
22. Ib., p. 317.
2 3 . Ib., p. 318.
24. EDWARDS, op. cit., v. 1, p. 372.
2 5. Compare com DistinguishingMarks ofa True Work ojthe Spirit of
God, em: Works, v. 2, pp. 266-269.
26. TRACY, Joseph. The Great Awakening. 1842, reimpresso em
Edinburgo: Banner of Truth Trust, 1976, p. 9.
27. Citado em FAUST, T. e J O H N S O N , C. H. (Eds.). Jonathan
Edwards: Selections. Nova York: Hill and Wang, 1962, p. 106.
28. EDWARDS, Jonathan. Narrative ofSurprising Conversions, em:
Works, v. 1, pp. 350-353. Sobre a santidade e a conversão, veja
os argumentos de Murray em Jonathan Edwards, p. 261.

276
NOTAS

29. PACKER, Questfor Godliness, p. 311. O Espírito Santo era tão


fundamental para seu trabalho que Packer parece resumir o con-
ceito de avivamento de Edwards em uma única frase. Ela dá
destaque particular ao Espírito Santo: "Avivamento é uma obra
extraordinária de Deus, o Espírito Santo revigorando e propa-
gando a piedade cristã em uma comunidade". (Ib., p. 318.)
30. Este é o 12° sinal da verdadeira ação do Espírito nas Religious
Affections de Edwards, v. 1, p. 314.
3 1 . EDWARDS, Works. v. 1, p. 609.
32. Ib., v. 1, p. 605.
3 3 . LOVELACE, Richard. Dynamics of Spiritual Life. Downers
Grove: InterVarsity Press, 1979, p. 4 1 .
34. JONES, Timothy. Great Awakenings. Christianity Today, 8 nov.
1993, p. 25.
3 5. BARNA, George. O Poder na Visão. São Paulo: Abba Press, 1993,
p. 36.
36. PIPER, John. Teologia da Alegria. São Paulo: Vida Nova. 2001,
p. 78.
37. LEFEVER, Marlene. "100 Ways to take the yawn out of your
relationship eith god." Discipleship Journal, n. 66, 1991.
38. Compare com a crítica de PACKER sobre o método de
evangelização de Finney em: Questfor Godliness, pp. 292ss.
39. C O L S O N , op. cit., p. 194.
4 0. SHAW, Mark. Doing Theology with Huck andjim. Downers Grove:
InterVarsity Press, 1993. Para um exemplo de representação po-
sitiva da verdade bíblica que procura glorificar a Deus mostrando
que ele é a fonte de todo prazer e salvação, veja esta obra.
4 1 . Veja PIPER, John. A Supremacia de Deus na Pregação: Teologia,
estratégia e espiritualidade do Ministério de Púlpito. São Paulo:
Shedd Publicações, 2003, pp. 81-104.
42. LOVELACE, Richard. Renewalasa Way ofLife. Downers Grove:
InterVarsity Press, 1985, p. 173.

277
LIÇÕES DE MESTRE

4 3 . PIPER, op. cit., pp. 10, 11.


44. J O H N S T O N E , Patrick. Intercessão Mundial. Camanducaia:
Missão Horizontes, 2003.
4 5 . PIPER, op. cit., p. 11.

CAPÍTULO 7: UMA LIÇÃO DE CRESCIMENTO

1. HULL, Bill. The Disciple Making Pastor. Old Tappan: Revell,


1988, p. 19.
2. Ib.
3. TRUEBLOOD, Elton. TheBestofElton Trueblood:AnAnthology.
Nashville: Impact, 1979, p. 34. Apud HULL, Disciple Making
Pastor, p. 19.
4. W O O D , A. Skevington. The Inextinguishable Blaze. Grand
Rapids: Eerdmans, 1968, p. 15.
5. Ib., p. 15.
6. Descrito resumidamente em W O O D , A. Skevington. The
Burning Heart: John Wesley, Evangelist. Minneapolis: Bethany
Fellowship, 1978, p. 38.
7. SNYDER, Howard. The Radical Wesley. Downers Grove:
InterVarsity Press, 1980, p. 14.
8. SIMMEL, Bernard. The Methodist Revolution. New York: Basic
Books, 1973. Para uma análise sobre a perspectiva de que o
metodismo de Wesley salvou a Inglaterra de uma revolução vio-
lenta, veja esta obra.
9. WESLEY, John. Journal. Nehemiah Curnock (Ed.). Londres:
Epworth, 1938, v. 3, p. 71.
10. Ib., v. 5, p. 26.
11. WESLEY, The Nature, Design and General Rules ofthe United
Societies, apud W O O D , Burning Heart, p. 190.
12. W O O D , op. cit., p. 190.
13. SNYDER, op. cit., pp. 54-58. Veja a descrição nesta obra.

278
NOTAS

14. WESLEY, op. cit., v. 3, p. 285.


15. SNYDER, Radical Wesley, p. 60.
16. Ib., pp. 59-60.
17. Ib., p. 60.
18. Ib., p. 63.
19. Ib., p. 64.
20. WESLEY, apud W O O D , op. cit., p. 198.
2 1 . WAGNER, C. Peter. Your Church Can Grow. Ventura: Regai,
1976, pp. 111-126.
22. Ib., p. 161.
2 3 . WESLEY, Letters, v. 5, p. 344, apud W O O D , op. cit., p. 186.
24. BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Leopoldo: Sinodal,
1980, p. 10.

CAPÍTULO 8: UMA LIÇÃO SOBRE OS PERDIDOS

1. B O R T H W I C K , Paul. How to Be a World-Class Christian.


Wheaton: Victor, 1991, pp. 52-53.
2. C O O T E , Robert. "Bad News, Good News: North American
Protestant Overseas Personnel Statistics in Twenty-five-Year
Perspective". International Bulletin ofMission Research, v. 19, n.
1, jan. 1995, p. 6ss. Coote observa que parte do declínio foi
resultado da maneira como as agências registravam as estatísti-
cas missionárias de curto prazo, mas ele admite que ocorreu um
declínio significativo nos números dos missionários de curto e
de longo prazo.
3. MURRAY, lan em: William Carey: Climbing the Rainbow.
EvangelicalReview ofTheology. v. 17, n. 3, julho de 1993, p. 365.
4. GEORGE, Timothy. Fiel Testemunha: Vida e Obra de William
Carey. São Paulo: Vida Nova, 1998, pp. 248-294. Estou usando
as estimativas do próprio Carey, conforme publicadas em Uma
Averiguação da Obrigação dos Cristãos de Usar Meios para a Con-
versão dos Pagãos (1792), reproduzido na obra de Timothy George.

279
LIÇÕES DE MESTRE

5. MURRAY, op. cit., p. 357.


6. Ib., p. 358.
7. CAREY, apud GEORGE, op. cit., p. 57.
8. EDWARDS, Jonathan. Works. 1834, reimpresso em Edinburgo
pela editora Banner of Truth Trust, 1974, v. 2, p. 306.
9. RYLAND JR., John, apud MURRAY, op. cit., p. 361.
10. BEBBINGTON, David. Eerdmans Handbook to the History of
Christianity. Tim Dowley (Ed.). Grand Rapids: Eerdmans, 1977,
p. 548.
11. GEORGE, Timothy. Fiel Testemunha: Vida e Obra de William
Carey. São Paulo: Vida Nova, 1998, pp. 171, 172. (menciona-
das nesta obra).
12. BEBBINGTON, op. cit., p. 548.
13. WATTS, John. "Baptists and the Transformation of Culture".
Evangelical Review ofTheology. v. 17, n. 3, jul. 1993, p. 331.
14. MURRAY, op. cit., p. 363.
15. "Form of Agreement" (1805), reimpresso em: SMITH, Life of
William Carey, p. 442.
16. Ib.
17. Ib., p. 444.
18. Ib., p. 441.
19. O livro estava dividido em cinco seções: (1) se a Grande Comissão
continua válida para a Igreja hoje (sim, pois ainda batizamos), a
desobediência daqueles que não fizeram missões e a promessa
da presença de Cristo; (2) uma breve história do movimento
missionário anterior da Igreja; (3) um relatório estatístico do
estado em que o mundo se encontrava na época; (4) respostas às
objeçÕes levantadas contra a praticidade de missões (distância,
culturas não civilizadas, perigos, dificuldades para se obter
comida e suprir as necessidades diárias, barreiras da linguagem);
(5) passos práticos para promover missões (orar, formar agên-
cias enviadoras e contribuir financeiramente).

280
NOTAS

20. BEBBINGTON, op. cit., p. 550.


21. CAREY, Averiguação, apud GEORGE, op. cit., p. 292.
22. BEBBINGTON, op. cit., p. 550.
23. "Form of Agreement", p. 448.
24. Ib., pp. 448-449.
25. Ib., p. 449.
26. WATTS, op. cit., p. 333.
27- "Form of Agreement", p. 447.
28. Ib.
29. Ib., p. 442.
30. DOWNS, Frederick. "Reflections on the Enculturation/Social
Justice Issue in Contemporary Mission". Evangelical Review of
Theology. v. 17, n. 3, jul. 1993, p. 321.
31. "Form of Agreement", p. 443.
32. NICHOLLS, Bruce. "The Theology of William Carey".
Evangelical Review of Theology. v. 17, n. 3, jul. 1993, p. 378.
33. SANNEH, Lamin. Translating the Message. Maryknoll: Orbis,
1989, p. 102.
34. "Form of Agreement", p. 450.
35. Ib.
36. Ib., p. 443.
37. SINE, apud BORTHWICK, How to Be a World-Class Christian,
p. 15.
38. JOHNSTONE, Patrick. A Igreja é Maior do que Você Pensa.
Camanducaia, 2003.
39. PIPER, John. Alegrem-se os Povos: A Supremacia de Deus em
Missões. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, pp. 123-176.
40. Cultivating a Missions-Active Church. Wheaton: ACMC
[Association of Church Missions Commitees], 1988, p. 32.
41. Ib., p. 14.
42. Apud ib., p. 17.

281
LIÇÕES DE MESTRE

CAPÍTULO 9: UMA LIÇÃO DE JUSTIÇA

1. C O N C E R N E D EVANGELICALS. Evangelicals Witness in South


África: A Critique of Evangelical Theology by Evangelicals
Themselves. Dobsonville, África do Sul: Concerned Evangelicals,
1986.
2. WALKER, David. "Radical Evangelicalism: An Expression of
Evangelical Social Concern Relevant to South África". Journal of
Theology for Southern África, mar. 1990. Para um debate sobre
esses eventos, veja este artigo.
3. HOWSE, Ernest Marshall. Saints in Politics: The "Clapham Sect"
andthe Growth ofFreedom. Londres: George Allen and Unwin,
1953, p. 28.
4. Ib., p. 29.
5. Ib., p. 7.
6. LOVELACE, Richard. Dynamics of Spiritual Life. Downers
Grove: InterVarsity Press, 1979, pp. 357-381. Veja a análise
dessa herança nesta obra.
7. Ib., p. 7.
8. BOSWELL, apud P O L L O C K , John. Wilberforce, 1977,
reimpresso em Tring: Lion, 1986, p. 27.
9. Ib., p. 7.
10. Ib., p. 11.
11. Ib., p. 11.
12. HOWSE, op. cit., p. 25.
13. Ib., pp. 80-81.
14. Ib., p. 46.
15. Ib., p. 183.
16. Ib., p. 120.
17. Ib., p. 152.
18. WILBERFORCE, WiUiam. A Practical View ofthe Prevailing
Relígious System ofProfessed Christians in the Higher andMiddle

282
NOTAS

Classes in This Country Contrasted with Real Christianity. 1797,


reimpresso em Londres: SCM Press, 1958, p. 113.
19. Ib., p. 7.
20. Ib., p. 119.
2 1 . Ib., p. 115.
22. Ib., p. 117.
2 3 . Ib., p. 147.
24. Esse nome aparentemente foi dado em 1844 pelo Sir James
Stephen no Edinburgh Review.
25. HOWSE, op. cit., p. 7.
26. POLLOCK, op. cit., p. 308.
27. Ib.
28. Ib., p. 307.
29. Ib., p. 257.
30. Ib., p. 258.
3 1 . HOWSE, op. cit., p. 4.
32. Ib., p. 5.
3 3. LOVELACE, Richard. Dynamics ofSpriritual Life. Dowers Grove:
Intervarity Press, 1979, p. 370. Lovelace identifica Ford Brown
e Charles Foster como dois eruditos que contribuíram para o
avanço dessa visão.
34. Ib., p. 370.
35. WILBERFORCE, op. cit., p. 103.
36. Ib., p. 104.
37. Ib., p. 118.
38. HOWSE, op. cit., p. 181.
39. POLLOCK, op. cit., p. 259.
40. Ib., p. 129.
4 1 . HOWSE, op. cit., pp. 3 1 , 32.
42. Ib., p. 33.

283
LIÇÕES DE MESTRE

43. Ib., p. 7.
44. COLSON, Charles. The Body. Waco: Word, 1992, p. 367.
45. Ib., p. 366.
46. Ib., pp. 368-369.
47. Ib., pp. 371-372.
48. Ib., pp. 370-371.
49. WOLTERS, Albert. Creation Regained. Grand Rapids: Eerdmans,
1985, pp. 76-77.
50. Ib., pp. 296-297.
51. LOVELACE, op. cit., pp. 364-375.
52. SMITH, Timothy L. Revivalism and Social Reform in Mid-
Nineteenth-Century America. Nova York: Abingdon, 1957.
53. LOVELACE, op. cit., p. 399.

CAPÍTULO IO: U M A LIÇÃO DE C O M U N H Ã O

1. VEITH, Gene Edward. Postmodern Times: A Christian Guide to


Contemporary Thought and Culture. Wheaton: Crossway, 1994,
p. 19. Publicado no Brasil pela Cultura Cristã com o título
Tempos Pós-modernos: uma Avaliação Cristã do Pensamento e da
Cultura da Nossa Época.
2. Apud SIRE, James. Why Should Anyone Believe Anything at Ali?
Downers Grove: InterVarsity Press, 1994, p. 58.
3. ELMER-DeWITT, Philip. Cyberpunk! Time. 8 fev. 1993, p. 62;
apud VEITH, Postmodern Times, p. 144.
4. VEITH, Postmodern Times, p. 165.
5. Ib., p. 79.
6. Ib., p. 15.
7. Essa frase é de Francis Schaeffer.
8. BETHGE, Eberhard. Dietrich Bonhoeffer. Nova York: Harper
& Row, 1977, p. 20.

284
NOTAS

9. Ib. , p. 22.
10. Ib. , pp. 52, 53.
11. Ib. , p. 60.
12. Ib. , p. 194.
13. Ib. , p. 202.
14. Ib. , p. 297.
15. Ib. , p. 385.
16. Ib. pp. 389, 390.
17. Ib. pp. 772, 773.
18. Ib. p. 830.
19. Ib. p. 831.
20. BONHOEFFER, Dietrich. Life Together São Francisco: Harper
& Row, 1954, p. 17. Publicado no Brásil pela Editora Sinodal
com o título de Vida em Comunhão.
21. Ib. p. 20.
22. Ib., p. 21.
23. Ib.
24. Ib., pp. 22, 23.
25. Ib., p. 23.
26. Ib., p. 25.
27. Ib., p. 27.
28. Ib., p. 28.
29. Ib., pp. 31-33.
30. Ib., p. 32.
31. Ib.
32. Ib., p. 34.
33. Ib.
34. Ib., p. 35.
35. Ib., p. 37. -

285
LIÇÕES DE MESTRE

36. Ib., p. 77.


37. Ib.
38. Ib., PP. 77, 78.
39. Ib., p. 115.
40. Ib., p. 114.
4 1 . Ib., p. 122.
42. Ib., p. 39.
4 3 . Ib.
44. FOSTER, Richard. Celebração da Disciplina: O Caminho do
Crescimento Espiritual. São Paulo: Vida, 1993.
4 5 . Compare com WAGNER, C. Peter. Your Church Can Grow. Ven-
tura: Regai, 1976, cap. 8.
46. Ib., cap. 7.
47. VEITH, Postmodern Times, p. 216.
48. Ib., p. 219.
49. Ib., p. 220.
50. LUTZER, Erwin. A Cruz de Hitler: Como a Cruz de Cristo foi
Usada Para Promover a Ideologia Nazista. São Paulo: Vida, 2003,
p. 259.
5 1 . O ministério The Alliance of Confessing Evangelicals pode ser con-
tatado pela internet. Disponível em: www.alliancenet.org.html.
52. LINDBECK, George. "The Churchs Mission to Postmodern
Culture". In: B U R N H A M , Frederick B. (Ed.). Postmodern
Theology: Christian Faith in a Pluralist World. São Francisco:
Harper & Row, 1989, p. 38.
53. Ib., p. 49.
54. Ib., p. 55.
55. LUTZER, op. cit., pp. 243, 244.
56. Ib., p. 255.
57. BONHOEFFER, op. cit., p. 122.

286
NOTAS

EPÍLOGO

1. RODMAN, John, "Back on the Road to Life: The Pilgrimage


of First Presbyterian, Quincy". New EnglandJournal ofMinistry,
jun. 1981, p. 35.
2. NEUSTADT, Richard e MAY, Ernest. Thinking in Time: The
Uses ofHistory for Decision Makers. Nova York: Free Press, 1986,
pp. 15, 16.
3. COVEY, Stephen. Primeiro o Mais Importante. São Paulo:
Campus, 2003.
4. Ib., pp. 307-321. Para uma boa análise sobre o registro por
escrito das declarações de missão e visão, veja esta obra.
5. PIPER,John. Future Grace. Portland: Multnomah Press, 1995,
p. 13. (Leia nesta obra a definição de hedonismo cristão)
6. NEUSTADT, Richard e MAY, Ernest. Thinking in Time. The
uses ofhistory for Decision Makers. New York: Free Press, 1986,
pp. 105, 106. Veja o debate sobre este método nesta obra.
7. COVEY, Stephen R. Os 7 Hábitos das Pessoas Altamente Efica-
zes. São Paulo: Best Seller, 2000, pp. 262-263.
8. Ib., p. 262.
9. BASCOM, Tim. The Confort Trap: Spiritual Dangers of the
Convenience Culture. Downers Grove: InterVarsity Press, 1993,
p. 51.

287
POR MAIS DE 500 ANOS, A IGREJA EVANGÉLICA
TEVE ÓTIMOS PROFESSORES.
MAS AINDA TEM MUITO OUE APRENDER.

esde suas origens, há mais de cinco séculos, com o processo da


Reforma encabeçado por Martinho Lutero, a Igreja Protestante

soes, questionamentos e ataques os mais diversos. Por outro lado, sua


vitalidade e sua resistência foram alimentadas por grandes pensadores
que ousaram desafiar o comodismo e a conveniência, revendo e influen-
ciando não apenas o papel histórico do Corpo de Cristo, como também
suas estruturas.
Em Lições de Mestre, Mark Shaw resgata o perfil e o legado teológico e

De Lutero, a teologia da cruz


De Calvino, a devoção cristã
De Burroughs, o valor da diversidade
De Perkins, a importância da conversão
De Baxter, o prazer no Criador
De Edwards, a chama do avivamento
De Wesley, o conceito de discipulado
De Carey, o modelo de missões
De Wilberforce, o papel social
De Bonhoeffer, os princípios da comunhão

o objetivo de fornecer uma visão ampla de missão, santidade, louvor,


crescimento, justiça e fraternidade, Shaw também analisa criticamente
a contribuição e o pensamento de cada um desses arquitetos do protes-
tantismo, e de que maneira a Igreja de hoje pode estar negligenciando as
valiosas lições do passado. Ele faz de Lições de Mestre leitura indispen-
sável à liderança moderna.

ISBN 85-7325-367-3

9 " 7 8 8 5 7 3 "2 5 3 6 7 2 "


EDITORA MUNDO CRISTÃO

Você também pode gostar