Você está na página 1de 43

I

RETRATO
DO COLONIZADOR

19
I

Existe o Colonial?

Se n t id o d a v ia g e m c o l o n i a l

Muitos ainda imaginam o colonizador como um homem


de grande estatura, bronzeado pelo sol, calçado com meias-
botas, apoiado em uma pá — pois não deixa de pôr mãos
à obra, fixando seu olhar ao longe, no horizonte de suas
terras; nos intervalos de sua luta contra a natureza, dedica-
se aos homens, cuida dos doentes e difunde a cultura, um
nobre aventureiro, enfim, um pioneiro.
Não sei se essa imagem convencional jamais correspon-
deu a alguma realidade ou se às gravuras do dinheiro colo-
21
nial se limita. Os motivos econômicos do empreendimento
colonial estão, atualmente, esclarecidos por todos os histo-
riadores da colonização; ninguém acredita mais na missão
cultural e moral, mesmo original, do colonizador. Em nossos
dias, ao menos, a partida para a colônia não é a escolha de
uma luta incerta, procurada precisamente por seus perigos,
não é a tentação da aventura, mas a da facilidade.
É suficiente, aliás, interrogar o europeu das colônias:
que razões o levaram a expatriar-se e, principalmente, a per-
sistir em seu exílio? Acontece que ele fala também em aven-
tura, em pitoresco e em expatriação. Mas, por que não os
procurou na Arábia, ou simplesmente na Europa Central,
onde não se fala sua própria língua, onde não encontra um
grupo importante de compatriotas seus, uma administração
que o serve, um exército que o protege? A aventura com-
portaria mais imprevisto; essa expatriação, no entanto, mais
certa e de melhor qualidade, teria sido de duvidoso provei-
to: a expatriação colonial, se é que há expatriação, deve ser,
antes de mais nada, bastante lucrativa. Espontaneamente,
melhor que os técnicos da linguagem, nosso viajante nos
proporá a melhor definição da colônia: nela ganha-se mais,
nela gasta-se menos. Vai-se para a colônia porque nela as
situações são garantidas, altos os ordenados, as carreiras
mais rápidas e os negócios mais rendosos. Ao jovem diplo-
mado oferece-se um posto, ao funcionário uma promoção,
ao comerciante reduções substanciais de impostos, ao indus-
trial matéria-prima e mão-de-obra a preços irrisórios.
Mas, seja: suponhamos que. exista esse ingênuo, que
desembarque por acaso, como viria a Toulouse ou a Cornar.
Precisaria de muito tempo para descobrir as vantagens
de sua nova situação? Pelo fato de ser percebido mais tar-
de, o sentido econômico da viagem colonial nem por isso
deixa de impor-se, e rapidamente. O europeu das colônias
pode também, é claro, amar essa nova região, apreciar o
pitoresco dos seus costumes. Mas, mesmo repelido pelo seu
clima, mal à vontade no meio de suas multidões estranha-
mente vestidas, saudoso do seu país natal, o problema dora-
vante é o seguinte: deve aceitar esses aborrecimentos e esse
mal-estar em troca das vantagens da colônia?
Bem cedo não esconde mais; é freqüente ouvi-lo sonhar
em voz alta: alguns anos ainda e comprará uma casa na

22
metrópole... uma espécie de purgatório em suma, um pur-
gatório remunerado. Doravante, mesmo farto, enjoado de
exotismo, algumas vezes doente, ele se prende: a armadilha
funcionará até a aposentadoria ou mesmo até a morte. Como
retornar à metrópole, onde lhe seria necessário reduzir seu
padrão de vida pela metade? Retornar à lentidão viscosa de
sua carreira metropolitana?
Quando, nestes últimos anos, corn a aceleração da his-
tória, a vida se tornou difícil, freqüentemente perigosa para
os colonizadores, foi esse cálculo tão simples, porém irres-
pondível, que os reteve. Mesmo aqueles que na colônia são
chamados aves de arribação não manifestaram excessiva
pressa em partir. Alguns, considerando a volta, puseram-se
a temer, de forma inesperada, uma nova expatriação: a de
se reencontrarem em seu país de origem. Podemos acreditar
em parte: deixaram seu país há muito tempo, e nele não têm
mais amizades vivas, seus filhos nasceram na colônia e na
colônia enterraram seus mortos. Mas, exageram sua dilace-
ração; se organizaram seus hábitos quotidianos na cidade
colonial e, para ela importaram e a ela impuseram os costumes
da metrópole, onde passam regularmente suas férias, de
onde recolhem suas inspirações administrativas, políticas e
culturais, é para a metrópole que seus olhos permanecem
constantemente voltados.
Sua expatriação, na verdade, é de base econômica: a
do novo-rico que se arrisca a ficar pobre.
Resistirão, pois, o maior tempo possível, porque quanto
mais passa o tempo mais duram as vantagens, que bem me-
recem algumas inquietações e que sempre será cedo demais
para perder. Mas, se um dia o econômico é atingido, se as “si-
tuações”, como se diz, correm perigos reais, o colonizador sen-
te-se então ameaçado e pensa, seriamente, dessa vez, em
regressar à metrópole.
No plano coletivo, a questão é ainda mais clara. Os
empreendimentos coloniais nunca tiveram outro sentido con-
fessado. Quando das negociações franco-tunisinas, alguns
ingênuos se admiraram da relativa boa vontade do governo
francês, particularmente no domínio cultural, depois da
aquiescência, aliás rápida, dos chefes da colônia. É que as
cabeças pensantes da burguesia e da colônia tinham com-
preendido que o essencial da colonização não era nem o

23
prestígio da bandeira, nem a expansão cultural, nem mesmo
o controle administrativo e a salvação de um corpo de fun-
cionários. Admitiram que se pudesse transigir em tudo, des-
de que o principal, quer dizer, as vantagens econômicas,
fosse salvo. E, se o Sr. Mendès-France pôde efetuar sua
famosa viagem-relâmpago, foi com sua benção e sob a pro-
teção de um deles. Foi esse exatamente seu programa e o
conteúdo mais importante das convenções.

O In d í g e n a e o P r iv il e g ia d o

Tendo descoberto o lucro, por acaso ou porque o havia


procurado, o colonizador não tomou ainda consciência, ape-
sar disso, do papel histórico que deverá desempenhar. Pre-
cisa dar mais um passo no conhecimento de sua nova situa-
ção: falta-lhe compreender igualmente a origem e a signi-
ficação desse lucro ^ A bem dizer, isso não tardará muito.
Poderia demorar muito tempo para ver a miséria do colo-
nizado e a relação dessa miséria com seu bem-estar? Percebe
que esse lucro só é tão fácil porque tirado de outros. Em
suma, faz duas aquisições em uma: descobre a existência do
colonizado e ao mesmo tempo seu próprio privilégio.
Sabia, sem dúvida, que a colônia não era povoada uni-
camente por colonos ou colonizadores. Tinha mesmo algu-
ma idéia dos colonizados graças aos livros de leitura de sua
infância; tinha visto no cinema certo documentário sobre
alguns de seus costumes, escolhidos de preferência pela sua
estranheza. Mas, esses homens, pertenciam precisamente
aos domínios da imaginação, dos livros ou do espetáculo.
Não lhe diziam respeito, ou muito pouco, indiretamente, por
intermédio de imagens comuns a toda a sua nação, epopéias
militares, vagas considerações estratégicas. Inquietavam-
no um pouco desde que tinha decidido ir ele mesmo para
a colônia; não mais, porém, do que o clima, talvez desfa-
vorável, ou a água que diziam ser por demais calcária. E
eis que esses homens, subitamente, deixam de ser simples
elementos de cenário geográfico ou histórico, e instalam-se
em sua vida.

24
Nem mesmo pode decidir-se a evitá-los: deve viver em
relação constante com eles, pois é essa relação mesma que
lhe permite esta vida, que decidiu procurar na colônia: é
essa relação rendosa, que cria o privilégio. Encontra-se em
um dos pratos de uma balança que carrega, no outro, o co-
lonizado. Se seu nível de vida é elevado, é porque o do
colonizado é baixo; se pode beneficiar-se de mão-de-obra,
de criadagem numerosa e pouco exigente, é porque o colo-
nizado é explorável impunemente e não se acha protegido
pelas leis da colônia: se obtém tão facilmente postos admi-
nistrativos, é porque esses postos lhe são reservados e por-
que o colonizado deles está excluído; quanto mais respira
à vontade mais o colonizado sufoca.
Tudo isso, não pode deixar de ser por éle descoberto.
Não é ele que correria o risco de ser convencido pelos dis-
cursos oficiais, pois esses discursos são redigidos por èle,
ou por seu primo, ou por seu amigo: as leis que estabelecem
seus direitos exorbitantes e os deveres dos colonizados, é
ele que as concebe, e, porque é incumbido de sua aplicação,
está necessariamente no segredo das instruções discrimina-
tórias, muito pouco discretas, aliás, referentes às classifica-
ções nos concursos e à distribuição dos empregos. Se pre-
tendesse ficar cego e surdo em relação ao funcionamento
de toda a máquina, bastaria que recolhesse os resultados:
ora, é ele o beneficiário de todo o empreendimento.

O U s u r pa d o r

É impossível, finalmente, que não verifique a ilegitimi-


dade constante de sua situação. Ilegitimidade que, além dis-
so, é de certa maneira dupla. Estrangeiro, chegado a um
país pelos acasos da história, conseguiu não apenas um lu-
gar, mas tomar o do habitante, e outorgar-se privilégios
surpreendentes em detrimetito dos que a eles tinham direi-
to. E isso, não em virtude das leis locais, que legitimam de
certo modo a desigualdade p^la tradição, mas ao subverter
as normas vigentes, substituindo-as pelas suas.

25
Revela-se assim duplamente injusto: é um privilegiado
e um privilegiado não legítimo, quer dizer, um usurpador.
E, finalmente, não apenas aos olhos do colonizado, mas aos
seus próprios olhos. Se objeta algumas vezes que privilegia-
dos também existem no meio dos colonizados, feudais, bur-
gueses, cuja opulência iguala ou ultrapassa a sua, o faz sem
convicção. Não ser o único culpado pode tranqüilizar, mas
não absolver. Reconheceria facilmente que os privilégios
dos privilegiados autóctones são menos escandalosos que os
seus. Sabe também que os colonizados mais favorecidos se-
rão sempre colonizados, isto é, que certos direitos lhes serão
eternamente recusados, que certas vantagens lhes serão es-
tritamente reservadas. Em resumo, a seus olhos como aos
olhos de sua vítima, sabe-se usurpador: é preciso que se
acomode com esses olhares e com tal situação.

O P e q u e n o Co l o n iz a d o r

Antes de ver como essas três descobertas — lucro, pri-


vilégio, usurpação —•, esses três progressos da consciência
do colonizador vão modelar sua figura, por meio de que me-
canismos vão transformar o candidato colonial em coloni-
zador ou em colonialista, é preciso responder a uma objeção
corrente: a colônia, dizem constantemente, não inclui apenas
colonos. Pode-se falar de privilégios em relação a ferroviá-
rios, a funcionários médios ou mesmo a pequenos agriculto-
res, que contam o dinheiro para viver tanto quanto seus ho-
mólogos metropolitanos?. . .
Para usar de uma terminologia cômoda, distinguamos
o colonial, o cqkajizador e o colonialista. O colonial seria o
europeu vivendo na colônia porém sem privilégios, e cujas
condições de vida não seriam superiores às do colonizado de
categoria econômica e social equivalente. Por temperamento
ou convicção ética o colonial seria o europeu benevolente,
que não teria em face do colonizado a atitude do coloniza-
dor. Muito bem! Digamos desde logo, malgrado o aparente
exagero da afirmação: o colonial assim definido não existe,
pois todos os europeus das colônias são privilegiados.
26
Certamente todos os europeus das colônias não são
potentados, não dispõem de milhares de hectares e não con-
trolam administrações. Muitos são, eles mesmos, vítimas dos
senhores da colonização. São por eles economicamente ex-
plorados, politicamente utilizados, a fim de defenderem in-
teresses que, freqüentemente, não coincidem muito com os
seus próprios. Mas, as relações sociais quase nunca são uní-
vocas. Contrariamente a tudo o que a esse respeito se pre-
fere acreditar, aos votos piedosos e aos protestos interessa-
dos: o pequeno colonizador é, de fato, geralmente solidário
dos .colonos e defensor encarniçado dos privilégios coloniais.
Por quê?
Solidariedade do semelhante com o semelhante? Reação
de defesa, expressão ansiosa de uma minoria vivendo no
meio de uma maioria hostil? Em parte. Mas, nos bons tem-
pos da colonização, protegidos pela polícia e pelo exército,
por uma aviação sempre pronta a intervir, os europeus da
colônia não tinham medo, nem tanto, em todo caso, que ex-
plicasse tal unanimidade. Mistificação? Na maior parte, cer-
tamente. É exato que o pequeno colonizador teria, ele mes-
mo, um combate a travar, uma libertação a efetuar; se não
fosse tão gravemente enganado pelos seus e cego pela his-
tória. Mas, não creio que uma mistificação possa apoiar-se
em uma completa ilusão, possa determinar totalmente o com-
portamento humano. Se o pequeno colonizador defende o
sistema com tanto empenho, é porque é mais ou menos seu
beneficiário. A mistificação está no fato de que, para defen-
der seus interesses muito limitados, defende outros infinita-
mente mais importantes, dos quais é, aliás, a vítima. Mas,
enganado e vítima, nisso encontra também suas vantagens.
É que o privilégio é um negócio relativo: mais ou me-
nos, porém, todo colonizador é privilegiado, pois o é com-
parativamente e em detrimento do colonizado. Se os privi-
légios dos poderosos da colonização são ostensivos, os pri-
vilégios miúdos do pequeno colonizador, mesmo o menor de
todos, são muito numerosos. Cada gesto de sua via quoti-
diana o coloca em relação ao colonizado e por meio de cada
gesto se beneficia de uma vantagem reconhecida. Tem pro-
blemas com as leis? A polícia e mesmo a justiça ser-lhe-ão
mais clementes. Tem necessidade de serviços da administra-
ção? Ela ser-lhe-á menos embaraçosa, abreviar-lhe-á as for-

27
malidades, reservar-lhe-á um guichê, onde com os pedintes
menos numerosos, a espera será menos longa. Procura um
emprego? Precisa passar em um concurso? Lugares, postos,
ser-lhe-ão antecipadamente reservados, as provas serão na
sua lingua, ocasionando dificuldades eliminatórias ao colo-
nizado. Será ele, então, tão cego ou tão obnubilado que ja-
mais possa ver que, em condições objetivas iguais, classe
econômica, méritos iguais, é sempre favorecido? Como não
se voltaria, de vez em quando, a fim de perceber todos os
colonizados, algumas vezes antigos condiscípulos ou confra-
des, dos quais tanto se distanciou.
Finalmente, mesmo que nada peça, mesmo que de nada
precise, basta-lhe aparecer para ser recebido com o precon-
ceito favorável de todos aqueles que têm importância na co-
lônia; e mesmo dos que não a têm, pois se beneficia do pre-
conceito favorável, do respeito do próprio colonizado que
lhe concede mais que aos melhores dos seus; que tem, por
exemplo, mais confiança na sua palavra do que na palavra
dos seus. É que ele possui, de nascença, uma qualidade in-
dependente dos seus méritos pessoais, da sua classe obje-
tiva: é membro do grupo dos colonizadores, cujos valores
reinam e dos quais participa. O pais é ritmado pelas suas
festas tradicionais, mesmo religiosas, e não pelas dos habi-
tantes; o feriado semanal é o do seu pais de origem, é a
bandeira de sua nação que flutua sobre os monumentos, é
sua língua materna que permite as comunicações sociais;
mesmo seu traje, sua pronúncia, suas maneiras acabam por
impor-se à imitação do colonizado. O colonizador participa
de um mundo superior, do qual não pode deixar de recolher
automaticamente os privilégios.

O u t r o s M is t if ic a d o r e s da Co l o n iz a ç ã o

E é ainda sua situação concreta, econômica, psicológica,


o complexo colonial, em relação aos colonizados de um lado,
aos colonizadores de outro, que explicará a fisionomia dos
outros grupos humanos: — aqueles que não são nem colo-
nizadores nem colonizados. Os nacionais de outras potên-
28
cias (italianos, malteses da Tunísia), os candidatos à assi-
milação (a maioria dos judeus), os assimilados de data re-
cente (corsos na Tunísia, espanhóis na Algéria). Podemos
acrescentar aqui os representantes da autoridade recrutados
entre os próprios colonizados.
A pobreza dos italianos ou dos malteses é tal que pode
parecer ridículo falar de privilégio a seu respeito. Todavia,
se freqüentemente são miseráveis, as migalhas que lhes dis-
pensam sem nelas pensar, contribuem para diferenciá-los,
para separá-los nitidamente dos colonizados. Mais ou menos
favorecidos em relação às massas colonizadas, tendem a es-
tabelecer com elas relações de estilo colonizador-colonizado.
Ao mesmo tempo, não coincidindo com o grupo colonizador,
não tendo o mesmo papel no complexo colonial, dele se dis-
tinguem cada um à sua maneira.
Todos esses matizes são facilmente legíveis na análise
de suas relações com o fato colonial. Se os italianos da T u-
nísia sempre invejaram os privilégios jurídicos e adminis-
trativos dos franceses, estão de qualquer modo em melhor
situação que os colonizados. São protegidos por leis inter-
nacionais e por um consulado muito atuante, sob o cons-
tante olhar de uma metrópole atenta. Freqüentemente, lon-
ge de serem recusados pelo colonizador, são eles que hesi-
tam entre a assimilação e a fidelidade a sua pátria. Enfim,
mesma origem européia, religião comum, maioria de costu-
mes idênticos os aproximam sentimentalmente do coloniza-
dor. De tudo isso resultam algumas vantagens, .que certa-
mente o colonizado não possui: emprego mais fácil, menor
insegurança contra a total miséria e a doença, escolarização
menos precária; alguns cuidados enfim da parte do coloni-
zador, a dignidade mais ou menos respeitada. Compreende-
remos que, por deserdados que sejam no absoluto, terão,
frente ao colonizado, várias condutas semelhantes às do
colonizador.
Não se beneficiando da colonização, senão por tabela,
pelo seu parentesco com o colonizador, os italianos estão
bem menos afastados dos colonizados que os franceses. Não
têm com eles essas relações contrafeitas, formais, esse tom que
revela sempre o senhor, dirigindo-se ao escravo, do qual
não se pode desembaraçar totalmente o francês. Ao contrá-
rio dos franceses, os italianos falam, quase todos, a língua

29
dos colonizados, contraem com eles amizades duráveis e mes-
mo, sinal particularmente revelador, casamentos mistos. Em
suma, não tendo nisso maior interesse, os italianos não mantêm
entre eles e os colonizados» grande distância. A mesma análise
seria válida, com alguns matizes, em relação aos malteses.
A situação dos israelitas — eternos candidatos hesitan-
tes e recusados à assimilação — pode ser encarada de uma
perspectiva semelhante. Sua ambição constante, e quão jus-
tificada, é a de escapar à sua condição de colonizado, carga
suplementar para um balanço já pesado. Procuram, assim,
parecer-se com o colonizador, na esperança confessada de
que deixe de reconhecê-los diferentes dele. Daí seus esforços
para esquecer o passado, para mudar de hábitos coletivos,
sua adoção entusiasta da língua, da cultura e dos costumes
ocidentais. Mas, se o colonizador nem sempre desencoraja
abertamente esses candidatos à sua semelhança, jamais lhes
permitiu também realizá-la. Vivem assim em penosa e cons-
tante ambigüidade; recusados pelo colonizador, participam
em parte da situação concreta do colonizado, têm com ele
solidariedade de fato; por outro lado, recusam os valores do
colonizado enquanto pertencentes a um mundo decadente,
do qual esperam escapar com o tempo.
Os recém-assimilados Situam-se geralmente muito além
do colonizador médio. Praticam uma supercolonização;
ostentam orgulhoso desprêzo pelo colonizado e lembram
com insistência sua nobreza de empréstimo, desmentida fre-
quentemente por uma brutalidade plebéia e pela sofregui-
dão. Deslumbrados ainda com seus privilégios, os saboreiam
e defendem com avidez e inquietação. E, quando a coloniza-
ção corre perigo, fornecem-lhe seus defensores mais dinâ-
micos, suas tropas de choque, e, algumas vezes, seus agen-
tes provocadores.
Os representantes da autoridade, quadros, "caides”,
policiais, etc., recrutados entre os colonizados, formam uma
categoria de colonizados que pretende escapar à sua condi-
ção política e social. Mas, tendo escolhido, devido a isso,
colocar-se a serviço do colonizador e defender exclusiva-
mente seus interesses, acabam por adotar sua ideologia,
mesmo em relação aos seus e a eles próprios.
Todos enfim, mais ou menos mistificados, mais ou me-
nos beneficiários, abusados a ponto de aceitar o injusto sis-

30
tema (defendendo-o ou resignando-se a ele) que mais for-
temente pesa sobre o colonizado. Seu desprezo pode ser ape-
nas uma compensação de sua miséria, como o anti-semitis-
mo europeu é, freqüentemente, um derivativo cômodo. Tal
é a história da pirâmide dos tiranetes: cada um, socialmente
oprimido por outro mais poderoso, encontra sempre um me-
nos poderoso em quem apoiar-se, tornando-se por sua vez,
tirano. Que desforra e que orgulho para um pequeno mar-
ceneiro não colonizado andar em companhia de um mecânico
ãrabe levando na cabeça uma tábua e alguns pregos! Para
todos, há pelo menos essa profunda satisfação de ser nega-
tivamente melhor que o colonizado: jamais são totalmente
confundidos na abjeção em que os lança o fato colonial.

Do C o l o n i a l ao Co l o n iz a d o r

O colonial não existe, porque não depende do europeu


das colônias permanecer colonial, mesmo se tivesse tido essa
intenção. Quer o tenha expressamente desejado ou não, é
acolhido privilegiado pelas instituições, pelos costumes, pe-
las pessoas. Tão logo desembarcado ou desde seu nasci-
mento, encontra-se em uma situação de fato, comum a todo
europeu que vive na colônia, situação que o transforma em
colonizador. Mas não é nesse nível, na realidade, que se
situa o problema ético fundamental do colonizador: o do
engajamento da sua liberdade e portanto da sua responsa-
bilidade. Teria podido, certamente, não tentar a aventura
colonial; desde que o empreendimento começou, no entanto,
não depende dele recusar suas condições. É preciso ainda
acrescentar que podia encontrar-se sujeito a essas condi-
ções, independentemente de toda escolha prévia, se nasceu
na colônia de pais já colonizadores, ou se realmente igno-
rou, quando de sua decisão, o sentido real da colonização.
É em outro nível que se vai apresentar o verdadeiro
problema do colonizador: uma vez que descobriu o sentido
da colonização e tomou consciência da sua própria situação,
da situação do colonizado, e de suas necessárias relações,
irá aceitá-las? Irá aceitar-se ou recusar-se como privilegiado,

31
e confirmar a miséria do colonizado, correlativo inevitável
de seus privilégios? aceitar-se-á como usurpador, e confir-
mará a opressão e a injustiça em relação ao verdadeiro ha-
bitante da colônia, correlativas da sua excessiva liberdade
e do seu prestígio? Irá, finalmente, aceitar-se como coloni-
zador, essa imagem de si mesmo que espreita, que já sente
desenhar-se sob o hábito nascente do privilégio e da ilegi-
timidade, sob o constante olhar do usurpado? Irá acomo-
dar-se com essa situação e com esse olhar e com a própria
condenação por si mesmo, cedo inevitável?

32
II

RETRATO
DO COLONIZADO
I

Retrato Mítico do Colonizado

N a s c ime n t o do M it o

Assim como a burguesia propõe uma imagem do prole-


tário, a existência do colonizador reclama e impõe uma ima-
gem do colonizado. Alibis sem os quais a conduta do colo-
nizador, e a do burguês, suas próprias existências, parece-
riam escandalosas. Mas, falamos em mistificação precisa-
mente porque as concilia muito bem.
Seja, nesse retrato-acusação o traço da preguiça. Pare-
ce recolher a unanimidade dos colonizadores, da Libéria ao
Laos, passando pelo Maghreb. É fácil verificar o quanto essa
caracterização é cômoda. Desempenha importante papel na

77
dialética enobrecimento do colonizador-aviltamento do colo-
nizado. Além disso, é economicamente proveitosa.
Nada poderia legitimar melhor o privilégio do coloni-
zador que seu trabalho; nada poderia justificar melhor o
desvalimento do colonizado que sua ociosidade. O retrato
mítico do colonizado conterá então uma inacreditável pregui-
ça. O do colonizador o gosto virtuoso da ação. Ao mesmo
tempo, o colonizador sugere que o emprego do colonizado
é pouco rendoso, o que autoriza os salários inverossímeis.
Pode parecer que a colonização teria ganho se dispu-
sesse de pessoal capacitado. Nada é menos certo. O operá-
rio qualificado trazido pelos colonizadores, exigiria salário
três ou quatro vezes superior àquele com o qual se contenta
o colonizado; não produz, porém, três ou quatro vezes mais
que este, nem em quantidade nem em qualidade; é mais eco-
nômico, pois, utilizar três colonizados do que um europeu.
Toda empresa requer especialistas, certamente, porém um
mínimo, que o colonizador importa ou recruta entre os seus.
Sem contar o tratamento especial, a proteção legal, justa-
mente exigidos pelo trabalhador europeu. Ao colonizado não
se pede senão seus braços, e ele não é senão isso: além dis-
so, esses braços são tão mal cotados, que pode-se alugar
três ou quatro pares deles pelo preço de um só.
Ao ouvi-lo, aliás, descobre-se que o colonizador não
está tão aborrecido assim com essa preguiça, suposta ou
real. Fala dela com uma complacência bem-humorada, diver-
te-se com ela; retoma todas as expressões habituais e as
aperfeiçoa, e com elas inventa outras. Nada é suficiente
para caracterizar a extraordinária deficiência do colonizado.
A esse respeito torna-se lírico, de um lirismo negativo: o co-
lonizado não tem um pêlo na mão, porém uma bengala, uma
árvore, e que árvore! um eucaliptus, uma tuia, um carvalho
centenário da América! uma árvore? não, uma floresta, etc.
Mas, insistirão, o colonizado é realmente preguiçoso?
A questão, a bem dizer, está mal proposta. Além de ser ne-
cessário definir um ideal de referência, uma norma, variável
de um povo a outro, será possível acusar de preguiça a um
povo todo? Pode-se suspeitar, a esse respeito, de indivíduos,
mesmo numerosos, em um mesmo grupo; perguntar se seu
rendimento não é medíocre; se a subalimentação, os baixos

78
salários, o futuro bloqueado, uma significação irrisória de
seu papel social, não desinteressa o colonizado de sua tare-
fa. O que é suspeito, é que a acusação não visa apenas o
trabalhador agrícola ou o habitante dos “bidonvilles”, mas
também o professor, o engenheiro ou o médico que dão as
mesmas horas de trabalho que seus colegas colonizadores,
enfim todos os indivíduos do agrupamento colonizado. Sus-
peita é a unanimidade da acusação e a globalidade de seu
objeto; de sorte que colonizado algum dela se salva, e nem
poderia jamais salvar-se. Quer dizer: a independência da
acusação de quaisquer condições sociológicas e históricas.
De fato, não se trata absolutamente de uma anotação
objetiva, diferenciada, pois, sujeita então a prováveis trans-
formações, porém de uma instituição: pela sua acusação, o
colonizador institui o colonizado como ser preguiçoso. De-
cide que a preguiça é constitutiva da essência do colonizado.
Isto posto, torna-se evidente que o colonizado, seja qual fôr
a função que assuma, seja qual fôr o zelo que manifeste,
nunca seria nada mais do que um preguiçoso. Voltamos sem-
pre ao racismo, que é bem uma substantificação, em proveito
do acusador, de um traço real ou imaginário do acusado.
É possível retomar a mesma análise a propósito de cada
um dos traços atribuídos ao colonizado.
Quando o colonizador afirma, em sua linguagem, que
o colonizado é um débil, sugere com isso que tal deficiência
reclama proteção. Daí, sem rir — escutei-o frequentemente
.— a noção do protetorado. É do próprio interesse do colo-
nizado ser excluído das funções de direção; e que essas pe-
sadas responsabilidades sejam reservadas ao colonizador.
Quando o colonizador acrescenta, para não cair na solicitu-
de, que o colonizado é um retardado perverso, de maus ins-
tintos, ladrão, um pouco sádico, legitima sua polícia e sua
justa severidade. É preciso defender-se das perigosas tolices
de um irresponsável; e também, preocupação meritória, de-
fendê-lo contra ele mesmo! Assim também quanto à ausên-
cia de necessidades do colonizado, sua inaptidão para o
conforto, para a técnica, para o progresso, sua espantosa
familiaridade com a miséria; por que se preocuparia o colo-
nizador com aquilo que não inquieta de modo algum o inte-
ressado? Isso seria, acrescenta ele, com uma sombria e auda-

79
ciosa filosofia, prestar-lhe um mau serviço, obrigando-o às
servidões da civilização. Ora! Lembremo-nos de que a sabe-
doria é oriental, aceitemos, como ele a aceita, a miséria do
colonizado. O mesmo se verifica com a famosa ingratidão
do colonizado, na qual insistiram autores considerados sé-
rios: lembra, ao mesmo tempo, tudo aquilo que o colonizado
deve ao colonizador, que todos esses benefícios são perdi-
dos, e que é inútil pretender emendar o colonizado.
É de notar que esse quadro não precise de nada mais.
É difícil, por exemplo, coordenar a maior parte desses tra-
ços, de proceder à sua síntese objetiva. Não se compreende
porque o colonizado seria ao mesmo tempo menor e mau,
preguiçoso e atrasado. Poderia ter sido menor e bom, como
o bom selvagem do século XVIII, ou pueril e duro no tra-
balho, ou preguiçoso e astuto. Melhor ainda, os traços atri-
buídos ao colonizado excluem-se uns aos outros, sem que
isso atrapalhe seu procurador. Descrevem-no, ao mesmo
tempo, frugal e sóbrio, sem maiores necessidades e engolin-
do quantidades incríveis de carne, de banha, de álcool, de
não importa o quê; como um pusilânime que tem medo de
sofrer e como um bruto que não é contido por nenhuma das
inibições da civilização, etc. Prova suplementar que é inútil
procurar essa coerência a não ser no próprio colonizador.
Na base de toda a construção, enfim, encontra-se a mesma
dinâmica: a das exigências econômicas e afetivas do colo-
nizador que nela faz as vezes da lógica, comanda e explica
cada um dos traços que atribui ao colonizado. Em definitivo,
são todos vantajosos para o colonizador mesmo aqueles que
à primeira vista, ser-lhe-iam prejudiciais.

A D e s u ma n iz a ç ã o

O que é verdadeiramente o colonizado importa pouco


ao colonizador. Longe de querer apreender o colonizado na
sua realidade, preocupa-se em submetê-lo a essa indispensá-
vel transformação. E o mecanismo dessa remodelagem do
colonizado é, ele próprio, esclarecedor.

80
Consiste, inicialmente, em uma série de negações. O co-
lonizado não é isso, não é aquilo. Jamais é considerado po-
sitivamente; ou se o é, a qualidade concedida procede de
uma lacuna psicológica ou ética. Assim, no que se refere à
hospitalidade árabe que dificilmente pode passar por um
traço negativo. Se observarmos bem, verificaremos que o ,
louvor é feito por turistas, europeus de passagem, e não pe-
los colonizadores, quer dizer europeus instalados na colônia.
Tão logo instalado, o europeu não desfruta mais dessa hos- '
pitalidade. interrompe as trocas, contribui para erguer bar-
reiras. Rapidamente muda de palheta para pintar o coloni-
zado, que se torna ciumento, ensimesmado, exclusivista, fa-
nático. Que é feito da famosa hospitalidade? Já que não pode
negá-la, o colonizador ressalta, então, suas sombras, e suas
desastrosas conseqüências.
Decorre da irresponsabilidade, da prodigalidade do co-
lonizado, que não tem o senso da previsão, da economia. Do
importante ao felá, as festas são belas e generosas, com
efeito, mas vejamos o que se segue. O colonizado se arruina,
pede dinheiro emprestado e finalmente paga com o dinheiro
dos outros! Fala-se, ao contrário, da modéstia da vida do
colonizado? Da tão famosa ausência de necessidades? Isso
é menos uma prova de prudência que de estupidez. Como
se, enfim, todo traço reconhecido ou inventado devesse ser
o índice de uma negatividade.
Assim se destroem, uma após outra, todas as qualida-
des que fazem do colonizado um homem. E a humanidade
do colonizado, recusada pelo colonizador, torna-se para ele,
com efeito, opaca. É inútil, pretende ele, procurar prever as
atitudes do colonizado ( “Eles são imprevisíveis” . . . ) “Com
eles nunca se sabe!’’). Uma estranha e inquietante impulsi-
vidade parece-lhe comandar o colonizado. É preciso que o
colonizado seja bem estranho, em verdade, para que perma-
neça tão misterioso após tantos anos de convivência. . . ou
então, devemos pensar que o colonizador tem boas razões
para agarrar-se a essa impenetrabilidade.
Outro sinal dessa despersonalização do colonizado; o
que se poderia chamar a marca do plural. O colonizado ja-
mais é caracterizado de maneira diferencial: só tem direito
ao afogamento no coletivo anônimo. ( “Eles são is s o ... Eles
81
são todos os mesmos ). Se a doméstica colonizada não vem
certa manhã, o colonizador não dirã que ela está doente, ou
que ela engana, ou que ela está tentada a não respeitar um
contrato abusivo. (Sete dias em sete: as domésticas colo-
nizadas raramente se beneficiam do descanso hebdomadário
concedido às outras.) Afirmará que “não se pode contar
com eles". Isso não é uma cláusula de estilo. Recusa-se a en-
carar os acontecimentos pessoais, particulares, da vida de
sua doméstica: essa vida na sua especificidade não o inte-
ressa, sua doméstica não existe como indivíduo.
Enfim o colonizador nega ao colonizado o direito mais
precioso reconhecido à.maioria dos homens: a liberdade. As
condições de vida, dadas ao colonizado__ pela colonização,
não a levam em conta, nem mesmo a supõem. O colonizado
não dispõe de saída alguma para deixar seu estado de infè^
licidade: nem jurídica (a naturalização) nem mística (a con-
versão religiosa): o colonizado não é livre de escolher-se
colonizado ou não colonizado.
Que pode restar-lhe, ao cabo desse esforço obstinado
de desnaturação? Não é mais, certamente, um alter ego do
colonizador. Ainda é apenas um ser humano. Tende rapi-
damente para o objeto. A rigor, ambição suprema do colo-
nizador, deveria existir somente em f unção das suas necessi-
dades, isto é, ser transformado em puro colonizado.
Nota-se a extraordinária eficácia dessa operação. Que
importante dever temos em relação a um animal ou a uma
coisa, com que se parece cada vez mais o colonizado? Com-
preende-se então que o colonizador possa permitir-se atitu-
des, julgamentos tão escandalosos. Um colonizado dirigindo
um automóvel, é um espetáculo ao qual o colonizador se
nega a habituar-se; nega-lhe toda normalidade, como a uma
pantomima simiesca. Um acidente, mesmo grave, que atinja
o colonizado, quase faz rir. Uma multidão de colonizados
metralhada, o faz dar de ombros. Aliás, a mãe indígena cho-
rando a morte de seu filho, a mulher indígena chorando seu
marido, não lhe recordam senão vagamente a dor da mãe
ou da esposa, tísses gritos desordenados, esses gestos insó-
litos, bastariam para esfriar sua compaixão, se chegasse a
nascer. Recentemente, um autor nos contava com bom humor
como, a exemplo da caça, encurralava-se em grandes jaulas

82
indígenas revoltados. Que se tivesse imaginado e depois ou-
sado construir essas jaulas e talvez mais ainda, que se te-
nha deixado os repórteres fotografarem as prisões, prova
bem que, no espírito de seus organizadores, o espetáculo
nada mais tinha de humano.

A M is t if ic a ç ã o

Proveniente, esse delírio destruidor do colonizado, das


exigências do colonizador, não é de surpreender que o colo-
nizado a ele corresponda tão bem, a tal ponto que pareça
confirmar e justificar a conduta do colonizador. Mais grave,
mais nocivo talvez, é o eco que suscita no próprio colonizado.
Em confronto constante com essa imagem de si mesmo,
proposta, imposta nas instituições como em todo contato hu-
mano, como não reagiria? Não lhe pode essa imagem perma-
necer indiferente, e sobre ele apenas depositada, com um
insulto que voa com o vento. Acaba por reconhecê-la como
um apelido detestado porém convertido em sinal familiar. A
acusação o perturba, o inquieta, tanto mais porque admira
e teme seu poderoso acusador. Não terá um pouco de razão?
— murmura eie. Não somos, de certo modo, um pouco cul-
pados? Preguiçosos, já que temos tantos ociosos? Medrosos,
já que nos deixamos oprimir? Desejado, divulgado pelo co-
lonizador, esse retrato mítico e degradante acaba, em certa
medida, por ser aceito e vivido pelo colonizado. Ganha as-
sim certa realidade e contribui para o retrato real do colo-
nizado.
Esse mecanismo não é desconhecido: é uma mistifica-
ção. A ideologia de uma classe dirigente, sabemos disso, faz-
se adotar em grande parte pelas classes dirigidas. Ora, toda
ideologia de combate inclui como parte integrante dela mes-
ma, uma concepção do adversário. Ao concordar com essa
ideologia, as classes dominadas confirmam, de certa manei-
ra, o papel que lhes foi atribuído. O que explica, entre ou-
tras coisas, a relativa estabilidade das sociedades; a opressão
é, por bem ou por mal, tolerada pelos próprios oprimidos.
Na relação colonial, a dominação se exerce de povo para
83
povo, mas o esquema permanece o mesmo. A caracterização
e o papel do colonizado ocupam lugar especial na ideologia
colonizadora; caracterização infiel ao real, incoerente em si
mesma, porém necessária e coerente no interior dessa ideo-
logia. E à qual o colonizado dá seu assentimento, perturba-
do, parcial, porém inegável.
Eis a única parcela de verdade nessas noções da moda:
o complexo de dependência, colonizabilidade, e tc .. . Veri-
fica-se, certamente — em determinado ponto de sua evolu-
ção — certa adesão do colonizado à colonização. Mas essa
adesão é resultado da colonização e não sua causa; nasce
depois e não antes da ocupação colonial. Para aue o colo-
nizador seja inteiramente senhor, não basta que o seja obje-
tivamente, é preciso ainda que acredite na sua legitimidade;
e, para que essa legitimidade seja completa, não basta que
o colonizado seja objetivamente escravo, é necessário que se
aceite como tal. Em suma, o colonizador deve ser reconhe-
cido pelo colonizado. O laço entre o colonizador e o colo-
nizado é, assim, destruidor e criador. Destrói e recria os dois
parceiros da colonização em colonizador e colonizado: um é
desfigurado em opressor, em ser parcial, mau cidadão, tra-
paceiro, preocupado unicamente com seus privilégios, com
sua defesa a todo preço: o outro em oprimido, partido no
seu desenvolvimento, conformando-se com o próprio esma-
gamento .
Assim como o colonizador é tentado a aceitar-se como
colonizador, o colonizado é obrigado, para viver, a aceitar-
se como colonizado.

84
2

Situações do Colonizado

T e RIA s id o ótimo se eSse retrato mítico houvesse per-


manecido puro fantasma, olhar lançado sobre o colonizado,
que apenas atenuaria a má consciência do colonizador. Le-
vado pelas mesmas exigências que o suscitaram, não pode
deixar de traduzir-se em condutas efetivas, em comporta-
mentos ativos e constituintes.
Uma vez que o colonizado é presumido ladrão, é preci-
so prevenir-se efetivamente contra ele; suspeito por defini-
ção, por que não seria culpado? Roupa foi roubada (inci-
dente freqüente nessas regiões ensolaradas onde a róupa
seca em pleno vento e zomba daqueles que estão nus). Qual
deve ser o culpado senão o primeiro colonizado encontrado

85
sua
nas proximidades? E, uma vez que pode ser ele, vão a
casa e o levam ao posto policial. , TT em
"A bela injustiça, retorque o colonizador! Uma vez
duas, não nos enganamos. E, de qualquer maneira, o a
é um colonizado; se não o encontramos no primeiro gour .
estã no segundo” .
O que é exato: o ladrão (falo do pequeno) recruta-
cqm efeito entre os pobres e os pobres entre os colonizados.
Mas disso resulta que todo colonizado seja um ladrão pos-
sível e que deva ser tratado como tal?
Essas condutas, comuns ao conjunto dos colonizadores,
dirigindo-se ao conjunto dos colonizados, vão, então, expri-
mir-se em instituições. Dito de outra forma, definem e im-
põem -situações objetivas, que acuam o colonizado, pesam
sobre ele, até influir em sua conduta e enrugar sua fisiono-
mia. De modo geral, essas situações serão situações de ca~
rência. À agressão ideológica, que tende a desumanizá-lo,
depois a mistificá-lo, correspondem em suma situações con-
cretas que visam o mesmo resultado. Ser mistificado já é,
pouco ou muito, avalizar o mito e a ele conformar sua con-
duta, isto é, ser por ele determinado. Ora, esse mito está,
além disso, solidamente apoiado em uma organização bem
real, uma administração e uma jurisdição; alimentado, reno-
vado pelas exigências históricas, econômicas e culturais do
colonizador. Fosse insensível à calúnia e ao desprêzo desse
de ombros diante do insulto ou dos empurrões, como esca-
paria o colonizado aos baixos salários, à agonia -de sua cul
tuia, à lei que o rege desde o nascimento até a morte?
Assim como não pode escapar à mistificação coíoniza
dora, nao poderia subtrair-se a essas situações concretas Z
radoras de carências. Em certa medida o retrato real A
colonizado é função dessa conjunção. Invertendo uma fó7
mula precedente, pode-se dizer que a c o l o n , , , tor'
colonizados como vimos que fabrica colonizadores° fabnCa

O Co l o n iz a d o e a H is t ó r ia

A mais grave carência sofrida pelo colon.-, j .


estar colocado fora da história e fora da id Í a° ° ^ a de
cidade. A coloni-
86
zação lhe veda toda participação tanto na guerra quanto na a
paz, toda decisão que contribui para o destino do mundo e
para o seu próprio, toda responsabilidade histórica e social.
Acontece, sem dúvida, que os cidadãos dos países li-
vres, tomados de desalento, dizem que não interferem nos
negócios da nação, que sua ação é irrisória, que sua voz não
tem eco, que as eleições são fraudadas. A imprensa e o rá-
dio estão nas mãos de alguns; não podem impedir a guerra
nem exigir a paz; nem mesmo obter de seus eleitos que res-
peitem, uma vez eleitos, os compromissos pelos quais foram
enviados ao Parlamento. .. Mas reconhecem imediatamente
que possuem esse direito; o poder potencial senão eficaz:
que são enganados e cansados, mas não escravos. São ho-
mens livres, momentaneamente vencidos pela astúcia ou
aturdidos pela demagogia. E algumas vezes se excedem, to-
mam-se de súbitas cóleras, quebram suas cadeias de barban-
te e transtornam os pequenos cálculos dos políticos. A me-
mória popular guarda uma orgulhosa lembrança dessas pe-
riódicas e justas tempestades! A rigor, acusar-se-iam por não
se revoltarem mais freqüentemente; são responsáveis, afinal,
pela própria liberdade e se, por fadiga ou fraqueza, ou ceti-
cismo, deixam de utilizá-la, merecem a punição.
O colonizado, este, não se sente nem responsável ne
culpado, nem cético, está fora do jogo. Não é mais, de moc
algum, sujeito da história; sente, sem dúvida, seu peso, mu
tas vezes mais cruelmente que os outros, porém sempre, con
objeto. Acabou por perder o hábito de qualquer participaçé
ativa na história e nem sequer mais a reclama. Por pouco
que dure a colonização, perde até a lembrança de sua liber-
dade; esquece o que ela custa ou não ousa mais pagar seu
preço. Senão, como explicar que uma guarnição de alguns
homens possa manter-se em um posto de montanha? Que
um punhado de colonizadores freqüentemente arrogantes
possa viver no meio de uma multidão de colonizados? Os
próprios colonizadores se surpreendem com isso, explicando-
se assim que acusem o colonizado de baixeza. A acusação é
por demais desenvolta, na verdade; sabem muito bem que
se fossem ameaçados sua solidão seria rapidamente desfeita:
todos os recursos da técnica, telefone, telegrama, avião, po-
riam à sua disposição, em poucos minutos, terríveis meios de

87
defesa e de destruição. Para um colonizador morto, cente-
nas, milhares de colonizados são, ou serão exterminados. A
experiência foi bastante repetida — talvez provocada — para
ter convencido o colonizado da inevitável e terrível sanção.
Tudo foi empregado a fim de nele destruir a coragem de
morrer e de enfrentar a visão do sangue.
É tanto mais claro que, se é realmente de uma carência
que se trata, nascida de uma situação e da vontade do colo-
nizador, trata-se apenas disso. E não de uma incapacidade
congênita de assumir a história. A própria dificuldade do
condicionamento negativo, a obstinada severidade das leis
já o provam. Enquanto que a indulgência é plena para os
pequenos arsenais do colonizador, a descoberta de uma arma
enferrujada acarreta uma punição imediata. A famosa fan-
tasia não passa de uma representação de animal doméstico,
ao qual se pede para rugir como outrora a fim de arrepiar
os convidados. Mas, o animal ruge muito bem; e a nostalgia
das armas está sempre presente, está em todas as cerimô-
nias, do norte ao sul da África. A carência guerreira parece
proporcional à importante presença colonizadora; as tribos
mais isoladas permanecem as mais dispostas a pegar em ar-
mas. Isso não é uma prova de selvageria mas a de que o con-
dicionamento não é bastante sustentado.
Eis porque, igualmente, a experiência da última guerra
foi tão decisiva. Não apenas, como foi dito, ensinou impru-
dentemente aos colonizados a técnica da guerrilha. Também,
lembrou-lhes, ou sugeriu-lhes, a possibilidade de uma con-
duta agressiva e livre. Os governos europeus que, após essa
guerra, proibiram a projeção, nos cinemas coloniais, de fil-
mes como a Batalha do Trilho, não estavam errados, de seu
ponto de vista. Pois, os westerns americanos, os filmes de
gangsters, as faixas de propaganda de guerra, já mostravam
a maneira de utilizar um revólver ou uma metralhadora. O
argumento não é satisfatório. A significação dos filmes de
resistência é muito diferente: oprimidos, quase desarmados
ou mesmo sem armas, ousavam atacar seus opressores.
Um pouco mais tarde, logo que estouraram os primei-
ros motins nas colônias, os que não compreendiam seu sen-
tido tranqüilizavam-se contando os combatentes ativos e iro-
nizando seu pequeno número. O colonizado hesita, com efei-
88
to, antes de retomar nas mãos seu próprio destino. Mas o
sentido do acontecimento ultrapassava de tal forma seu peso
aritmético! Alguns colonizados não tremiam mais diante do
uniforme do colonizador! Acharam graça na insistência dos
revoltados em se vestirem de cáqui e de maneira homogênea.
Esperam, certamente, ser considerados como soldados e tra-
tados segundo as leis da guerra. Essa obstinação, porém, vai
mais longe: reivindicam, revestem o uniforme da história:
pois — infelizmente <— a história, hoje, está vestida de
militar.

. . . O Co l o n iz a d o e a Cid a de

Assim também para os negócios da cidade: "Não são


capazes de se governarem sozinhos”, diz o colonizador. "Por
isso, explica, não os deixo... e nunca os deixarei chegar ao
governo” . >
O fato é que o colonizado não governa. Inteiramente
afastado do poder, acaba, com efeito, dele perdendo o há-
bito e o gosto. Como poderia interessar-se por aquilo de que
é tão decididamçnte excluído? Os colonizados não são ricos
em homens de governo. Como poderiam, tão longas férias
do poder autonomo, suscitar competências? Pode o coloni-
zador prevalecer-se deste presente fraudado para barrar o
futuro?
Por que as organizações colonizadas têm reivindicações
nacionalistas, conclui-se freqüentemente que o colonizado é
xenófobo. Nada é menos certo. Trata-se, ao contrário, de
uma ambição e de uma técnica de concentração que apela
para motivos passionais. Salvo nos militantes desse renasci-
mento nacional, os sinais habituais da xenofobia — amor
agressivo à bandeira, utilização de cantos patrióticos, cons-
ciência aguda de pertencer a um mesmo organismo nacional
— são raros no colonizado. Repete-se que a colonização pre-
cipitou a tomada de consciência nacional do colonizado. Po-
der-se-ia também perfeitamente afirmar que moderou o seu
ritmo, ao manter o colonizado fora das condições objetivas
da nacionalidade contemporânea. Será coincidência o fato de

89
serem os povos colonizados os últimos a chegar a essa cons-
ciência de si mesmos?
O colonizado não desfruta de atributo algum da nacio-
nalidade; nem da sua, que é dependente, contestada, sufo-
cada, nem, bem entendido, da nacionalidade do colonizador.
Não pode apegar-se nem à primeira, nem à segunda. Não
tendo seu justo lugar na cidade, não gozando dos direitos do
cidadão moderno, não estando sujeito a seus deveres comezi-
nhos, não votando, não participando da responsabilidade dos
negócios quotidianos, não pode sentir-se um verdadeiro ci-
dadão. Devido à colonização, o colonizado quase nunca faz
a experiência da nacionalidade e da cidadania, a não ser
privativamente: Nacionalmente, civicamente é apenas aquilo
que o-colonizador não é.

A Cr i a n ç a C o l o n iz a d a

Essa mutilação social e histórica é provàvelmente a mais


grave e a mais carregada de conseqüências. Contribui para
enfraquecer os outros aspectos da vida do colonizado e, por
ricochête, freqüente nos processos humanos, é ela mesma
alimentada pelas outras fraquezas do colonizado.
Considerando-se excluído da cidadania, o colonizado
perde igualmente a esperança de ver seu filho tornar-se um
cidadão. Cede, renunciando ele mesmo a essa esperança, não
alimenta mais esse projeto, elimina-o de suas ambições pa-
ternas, e não lhe dá lugar algum na sua pedagogia. Nada,
pois, sugerirá ao jovem colonizado a segurança, o orgulho
de sua cidadania. Dela não esperará vantagens, não estará
preparado para assumir seus encargos. (Nada tampouco, é
claro, na sua educação escolar, onde as alusões à cidadania,
à nação, serão sempre relativas à nação colonizadora); esse
vazio pedagógico, resultado da carência social, vem, pois,
perpetuar essa mesma carência, que atinge uma das dimen-
sões essenciais do indivíduo colonizado.
Mais tarde, adolescente, é com dificuldade que entrevê
a única saida para uma situação familiar desastrosa: a revol-
ta. O círculo está bem fechado, A revolta contra o pai e a

90
família é um ato sadio e indispensável para que se complete
a si mesmo; permite começar a vida de homem; nova bata-
lha feliz e infeliz, mas entre os outros homens. O conflito de
gerações pode e deve resolver-se no conflito social; inversa-
mente, é assim fator de movimento e progresso. As novas
gerações encontram no movimento coletivo a solução de suas
dificuldades e, escolhendo o movimento, o aceleram. É pre-
ciso ainda que esse movimento seja possível. Ora, em que
vida, em que dinâmica social aqui se desemboca? A vida da
colônia está coagulada; suas estruturas estão ao mesmo tem-
po fixas e esclerosadas. Nenhum novo papel se oferece ao
moço, nenhuma invenção é possível. O que o colonizador
reconhece ser um eufemismo que se tornou clássico: respei-
ta, proclama ele, os usos e costumes do colonizado. E, cer-
tamente, não pode senão respeitá-los, mesmo que seja pela
força. Toda mudança não se podendo fazer senão contra a
colonização, o colonizador é levado a favorecer os elemen-
tos mais retrógrados. Não é o único responsável por esta
mumificação da sociedade colonizada; está de relativa boa
fé ao sustentar que não depende apenas de sua vontade.
Decorre em grande parte, no entanto, da situação colonial.
Não sendo senhora do seu destino, não sendo mais sua pró-
pria legisladora não pode mais harmonizar suas instituições
com suas necessidades profundas. Ora, são essas necessida-
des que modelam a fisionomia organizacional de toda socie-
dade normal, ao menos relativamente. Foi sob sua constante
pressão que a fisionomia política e administrativa da Fran-
ça se transformou progressivamente ao longo dos séculos.
Mas, se a discordância se tornou por demais fl^grante^ e a
harmonia impossível de realizar nas formas legais existentes,
é a revolução ou a esclerose.
A sociedade colonizada é uma sociedade malsã na qual
a dinâmica interna não consegue mais desembocar em novas
estruturas. Sua fisionomia endurecida há séculos não é mais
do que uma máscara, sob a qual ela sufoca e agoniza lenta-
mente. Tal sociedade não pode reabsorver os conflitos de
gerações, pois não se deixa transformar. A revolta do ado-
lescente colonizado, longe de resolver-se em movimento, em
progresso social, só pode afundar-se nos pântanos da socie-
dade colonizada. (A menos que seja uma revolta absoluta,
mas a isso voltaremos depois).
91
Os V a l o r e s R e f ú g i o s

Cedo ou tarde, cai então em posições de recuo, quer di-


zer nos valores tradicionais.
Explica-se, assim, a surpreendente sobrevivência da fa-
mília colonizada; apresenta-se como verdadeiro valor~re[úgio.
Salva o colonizado do desespero de uma total derrota, mas
encontra-se em compensação confirmada pela constante con-
tribuição de sangue novo. O rapaz se casará, tornar-se-á pai
de família devotado, irmão solidário, tio responsável, e, até
que tome o lugar do pai, filho respeitoso. Tudo volta à or-
dem: a revolta e o conflito desembocaram na vitória dos
pais e da tradição.
Triste vitória, no entanto. A sociedade colonizada não
terá dado meio passo sequer; para o rapaz é uma catástrofe
interior. Permanecerá aglutinado, definitivamente, a essa fa-
mília, que lhe oferece calor e ternura, mas que o choca, o
absorve, e o castra. Não exige dele, a cidadania, deveres
completos de cidadão? Ser-lhe-iam recusados se pensasse
ainda em reclamá-los? Concede-lhe poucos direitos, impede-
lhe toda vida nacional? Em verdade, não tem mais necessi-
dade imperiosa disso. Seu justo lugar, sempre reservado na
doce sensaboria das reuniões da clã, o satisfaz. Teria medo
de abandoná-lo. De bom grado, submete-se agora, como os
outros, à autoridade do pai e se prepara para substituí-lo. O
modelo é débil, seu universo é o de um vencido! mas, que
outra saída lhe resta? Por um paradoxo curioso o pai é ao
mesmo tempo fraco e invasor, porque completamente adota-
do. O jovem está pronto para assumir seu papel de adulto
colonizado: isto é, a aceitar-se como ser de opressão.
Assim também, no que se refere à indiscutível influên-
cia de uma religião, ao mesmo tempo viva e formal. Com-
placentemente, os missionários apresentam esse formalismo
como um traço essencial das religiões não-cristãs. Sugerindo
assim que o único meio de sair dele seria passar para a reli-
gião mais próxima.
De fato, todas as religiões têm momentos de formalis-
mo coercitivo e momentos de flexibilidade indulgente. Resta
explicar porque tal grupo humano, em tal período de sua
92
história, sujeitou-se a tal estado. Por que essa rigidez ôca
das religiões colonizadas?
Seria inútil construir uma psicologia religiosa particular
ao colonizado; ou apelar para a famosa natureza-que-tudo-
explica. Se dispensam certa atenção ao fato religioso, não
notei nos meus alunos colonizados uma religiosidade exces-
siva. A explicação me parece ser paralela à da influência
familiar. Não é uma psicologia original que explica a impor-
tância da família nem a intensidade da vida familiar o estado
das estruturas sociais. É, ao contrário, a impossibilidade de
uma vida social completa, de um livre jogo da dinâmica so-
cial, que entretém o vigor da família, que concentra o indi-
víduo nesta célula mais restrita, que o salva e o sufoca. As-
sim também, o estado global das instituições colonizadas ex-
plica o peso excessivo do fato religioso.
Com sua rede institucional, suas festas coletivas e pe-
riódicas, a religião constitui outro valor-refúgio; para o indi-
víduo como para o grupo. Para o indivíduo apresenta-se
como uma das raras linhas de recuo; para o grupo, é uma
das raras manifestações capazes de proteger sua existência
original. Não possuindo estruturas nacionais, impedida de
imaginar um futuro histórico, a sociedade colonizada deve
contentar-se com o torpor passivo de seu presente. Esse pro-
prio presente, deve subtraí-lo à invasão conquistadora da
colonização, que a cerca por todos os lados, penetra-a com
sua técnica, com seu prestígio junto às novas gerações. O
formalismo, do qual o formalismo religioso é apenas um as-
pecto, é o quisto no qual ela se fecha, se endurece; reduzin-
do sua vida para salvá-la. Reação espontânea de autodefesa,
meio de salvaguarda da consciência coletiva, sem o qual um
povo, rapidamente, deixa de existir. Nas condições de depen-
dência colonial, a emancipação religiosa, assim como a desa-
gregação da família, teria comportado grave risco de morrer
para si mesmo.
A esclerose da sociedade colonizada é então a conse-
qüência de dois processos de sinais contrários: um enquis-
tamento nascido do interior, um colete imposto de fora. Os
dois fenômenos têm um fator comum: o contato com a colo-
nização. Convergem para um mesmo resultado: a catalepsia
social e histórica do colonizado.

93
A A m n é s ia C u l t u r a l

Uma vez que suporta a colonização, a única alternativa


possível para o colonizado é a assimilação ou a petrificação.
Sendo-lhe recusada a assimilação, nós o veremos, nada mais
lhe resta senão viver fora do tempo. É levado a isso pela
colonização, e em certa medida, acomoda-se. A projeção e
a construção de um futuro sendo-lhe proibidas, limita-se a
um presente; e esse presente, ele mesmo, é amputado,
abstrato.
Acrescentemos agora que dispõe cada vez menos de seu
passado. O colonizador jamais o conheceu; e todo mundo
sabe que o plebeu, do qual ignoramos as origens, não o tem.
Hã algo mais grave. Interroguemos o próprio colonizado:
quais são seus heróis populares? Seus grandes líderes popu-
lares? Seus sábios? Mal pode dar-nos alguns nomes, em
completa desordem, e cada vez menos à medida em que des-
cemos de gerações. O colonizado parece condenado a perder
progressivamente a memória.
A lembrança não é um fenômeno de puro espírito. As-
sim como a memória do indivíduo é o fruto de sua história
e de sua fisiologia, a de um povo apóia-se nas suas institui-
ções. Ora, as instituições do colonizado estão mortas ou es-
clerosadas. Mesmo nas que guardam uma aparência de vida,
ele não mais acredita, pois verifica todos os dias sua inefi-
cácia; acontece-lhe envergonhar-se delas como de um monu-
mento ridículo e antiquado.
Toda a eficácia, ao contrário, todo o dinamismo social,
parecem açambarcados pelas instituições do colonizador. O
colonizado tem necessidade de ajuda? É a elas que se dirige.
Está em falta? É delas que recebe sanção. Invariavelmente,
termina diante de magistrados colonizadores. Quando um
representante da autoridade, usa por acaso o turbante, terá
o olhar esquivo e o gesto mais ríspido, como se quisesse evi-
tar qualquer apelo, como se estivesse sob a constante vigi-
lância do colonizador. A cidade está em festa? São as festas
do colonizador, mesmo religiosas, que são celebradas com
estardalhaço: Natal e Joana D ’Arc, o Carnaval e o Quator-
ze de Ju lh o ..., são os exércitos do colonizador que desfi-

94
lam, os mesmos que esmagaram o colonizado, o mantém no
seu lugar e o esmagarão outra vez se fór preciso.
Sem dúvida, em virtude do seu formalismo, o coloniza-
do conserva todas suas festas religiosas, invariáveis há
séculos. Precisamente, são as únicas festas religiosas que, em
certo sentido, estão fora do tempo. Mais exatamente, encon-
tram-se na origem do tempo da história e não na história.
Desde o momento em que foram instituídas, nada mais se
passou na vida desse povo. Nada de particular na sua pró-
pria existência, que mereça ser guardado pela consciência
coletiva, e festejado. Nada, a não ser um grande vazio.
Os poucos traços materiais, enfim, desse passado, apa-
gam-se lentamente e os vestígios futuros não trarão mais a
marca do grupo colonizado. As poucas estátuas que apare-
cem na cidade simbolizam, com inacreditável desprezo pelo
colonizado que por elas passa todos os dias, os feitos da
colonização. As construções trazem as formas amadas pelo
colonizador; e até os nomes das ruas lembram as províncias
longínquas de onde ele vem. Acontece, sem dúvida, lançar
o colonizador um estilo neo-oriental, como o colonizado imi-
ta o estilo europeu. Trata-se, porém, de exotismo (velhas
armas e cofres antigos) e não de renascimento; o coloniza-
do, este, não faz senão evitar seu passado.

A Esc o l a do Co l o n iz a d o

Como se transmite ainda a herança de um povo?


Pela educação que dá às suas crianças, e por meio da
lingua, maravilhoso reservatório incessantemente enriquecido
por novas experiências. As tradições e as aquisições, os há-
bitos e as conquistas, os fatos e os gestos das gerações pre-
cedentes são assim legados e inscritos na história.
Ora, a maior parte das crianças colonizadas está na rua.
E aquela que tem a insigne oportunidade de ser acolhida em
uma escola, não será por ela nacionalmente salva: a memó-
ria que lhe formam não é a de seu povo. A história que lhe
ensinam não é a sua. Sabe quem foi Colbert ou Croniwell
mas não quem foi Khaznadar; sabe quem foi Joana D ’Arc

95
mas não Kahena. Tudo parece ter acontecido longe de sua
terra; seu país e ele mesmo estão no ar, ou não existem se-
não com referência aos Gauleses, aos Francos, à batalha do
Marne; em relação ao que ele não é, ao cristianismo, ao
passo que não é cristão, ao Ocidente que se detém diante de
seu nariz, em uma linha tanto mais transponível quanto mais
imaginária. Os livros lhe falam de um mundo que em nada
lembra o seu; o menino chama-se Toto e a menina Marie;
e, nas tardes de inverno, Marie e Toto voltam para casa por
caminhos cobertos de neve, detêm-se diante do mercado de
castanhas. Seus mestres, enfim, não continuam o pai, não
são seus prestigiosos e sábios substitutos como todos os pro-
fessores do mundo, são diferentes. A transferência não se
faz, nem da criança para o mestre, nem (muito freqüente-
mente, é preciso confessá-lo) do mestre para a criança; e isto
a criança o sente perfeitamente. Um dos meus antigos cole-
gas de classe confessou-me que a literatura, as artes, a filo-
sofia, lhe tinham permanecido estranhas, como pertencentes
a um mundo estranho, o da escola. Foi-lhe necessária uma
longa temporada parisiense para começar realmente a
assimilá-las.
Se a transferência acaba por fazer-se, não é sem peri-
go: o mestre e a escola representam um universo por demais
diferente do universo familiar. Nos dois casos, enfim, longe
de preparar o adolescente para assumir-se totalmente, a es-
cola estabelece em seu seio uma definitiva dualidade.

O Bi l in g ü is mo Co l o n ia l

Essa dilaceração essencial do colonizado encontra-se


particularmente expressa e simbolizada no bilingüismo
colonial.
O colonizado não se salva do analfabetismo senão para
cair no dualismo lingüístico. Quando tem essa oportunidade.
A maioria dos colonizados jamais teve a boa sorte de sofrer
os tormentos do bilingüismo colonial. Nunca dispõe senão
de sua língua materna; quer dizer, uma Tingua nem escrita
nem lida, que só permite a incerta e pobre cultura oral.
96
Pequenos grupos de letrados obstinam-se, certamente,
em cultivar a língua de seu povo, a perpetuá-la nos seus es-
plendores sábios e ultrapassados. Mas essas formas sutis
perderam, há muito tempo, todo contato com a vida quoti-
diana, tornaram-se opacas para o homem da rua. O coloni-
zado as considera como relíquias, e a esses homens venerá-
veis, como sonâmbulos, que vivem um velho sonho.
Ainda se a língua materna ao menos permitisse inter- (
ferir na vida social, atravessasse os guichês das administra-
ções ou funcionasse no tráfico postal. Nem isso. Toda a
burocracia, toda a magistratura, toda a tecnicidade não en-
tende e não utiliza senão a língua do colonizador, assim como
os marcos da quilometragem, os cartazes das estações, as
placas das ruas e os recibos. Munido apenas de sua língua
o colonizado é um estrangeiro dentro de seu próprio país.
No contexto colonial o bilingüismo é necessário. É a
condição de toda comunicação, de toda cultura e de todo
progresso. Mas o bilingüe colonial só se salva do enclausu-
ramento para sofrer uma catástrofe cultural, jamais comple-
tamente superada.
A não-coincidência entre a língua materna e a língua
cultural não é exclusiva do colonizado. Mas o bilingüismo
colonial não pode ser confundido com qualquer dualismo lin-
güístico. A posse de duas línguas não é apenas a de dois
instrumentos, é a participação em dois reinos psíquicos e cul-
turais. Ora aqui, os dois universos simbolizados, carregados
pelas duas línguas, estão em conflito: são os do colonizador
e do colonizado.
Além disso, a língua materna do colonizado, aquela que
é nutrida por suas sensações, suas paixões e seus sonhos,
aquela pela qual se exprimem sua ternura e seus espantos,
aquela enfim que contém a maior carga afetiva, essa é pre-
cisamente a menos valorizada. Não possui dignidade alguma
no país ou no concerto dos povos. Se quer obter uma colo-
cação, conquistar seu lugar, existir na cidade e no mundo,
deve, primeiramente, aplicar-se à língua dos outros, a dos
colonizadores, seus senhores. No conflito lingüístico que ha-
bita o colonizado, sua língua materna é humilhada, esmaga-
da. E esse desprezo, objetivamente fundado, acaba por im-
por-se ao colonizado. De moto próprio, põe-se a afastar essa
língua enferma, a esconde-la dos olhos dos estrangeiros, e

97
não parecer à vontade senão com a língua do colonizador.
Em resumo, o bilingüismo colonial não é nem uma digtossia,
onde coexistem um idioma popular e uma língua de purista,
pertencentes ambos ao mesmo universo afetivo, nem uma
simples riqueza poliglota, que se beneficia de um teclado su-
plementar porém relativamente neutro; é um drama lingüís-
tico.

... E a S itu a ç ã o do E scrito r

Espantamo-nos de que o colonizado não tenha literatu-


ra viva na sua própria língua. Como recorreria a ela, se a
desdenha? Como, se é afastado de sua música, de suas artes
plásticas, de toda sua cultura tradicional? Sua ambigüidade
lingüística é o simbolo, e uma das maiores causas de sua am-
bigüidade cultural. E a situação do escritor colonizado é
disso uma perfeita ilustração.
As condições materiais da existência colonizada basta-
riam, sem dúvida, para explicar sua raridade. A miséria ex-
cessiva do maior número reduz ao extremo as oportunidades
estatísticas de ver nascer e crescer um escritor. Mas a histó-
ria nos mostra que basta uma classe privilegiada para prover
de artistas um povo inteiro. De fato, o papel dq escritor co-
lonizado é por demais difícil de sustentar: encarna todas as
ambigüidades, todas as impossibilidades do colonizado, le-
vadas a um grau extremo.
Suponhamos que tenha aprendido a manejar sua língua,
até mesmo a recriá-la em obras escritas, que tenha vencido
sua profunda recusa a servir-se dela; para quem escreveria,
para que público? Se se obstina em escrever na sua língua,
condena-se a falar para um auditório de surdos. O povo é
inculto e não lê língua alguma. Os burgueses e os letrados
só entendem a do colonizador. Uma única saída lhe resta,
que se apresenta como natural: escrever na língua do colo-
nizador. Como se não fizesse senão mudar de impasse!
É preciso, sem dúvida, que supere seu handicap. Se o
bilingüe colonial tem a vantagem de conhecer duas línguas,
nenhuma domina totalmente. Isso explica igualmente a len-

98
tidão com que nascem as literaturas colonizadas. É preciso
malbaratar muita matéria humana, fazer inúmeras tentativas
para ter a oportunidade de um acaso feliz. Após o que, res-
surge a ambigüidade do escritor colonizado, em forma nova
porém mais grave. , í
Curioso destino o de escrever para um povo que não o ^
seu! Mais curioso ainda o de escrever para os vencedores de
seu povo! Surpreende a aspereza dos primeiros escritores
colonizados. Esquecem-se de que se dirigem ao mesmo pú- .
blico cuja lingua tomam emprestada. Não se trata, porém,
nem de inconsciência, nem de ingratidão, nem de insolência.
A esse público, precisamente, já que ousam falar, que irão
dizer a não ser seu mal-estar e sua revolta? Esperavam pa-
lavras de paz daquele que sofre de uma longa discórdia?
Reconhecimento por empréstimo a juros tão altos?
Por um empréstimo que, aliás, nunca será senão um em.
préstimo. A rigor substituímos aqui a descrição pela previ-
são. Mas é tão legível, tão evidente! A emergência de uma
literatura de colonizados, a tomada de consciência de escri-
tores norte-africanos, por exemplo, não é um fenômeno iso-
lado. Participa da tomada de consciência de si mesmô de r
todo um grupo humano. O fruto não é um acidente ou um
milagre da planta, mas o sinal de sua maturidade. Quando /
muito o surgimento do artista colonizado precede um pouco
a tomada de consciência coletiva da qual participa, que ace- A
lera com sua participação. Ora, a reivindicação mais urgente
de um grupo que se recupera é certamente a libertação e a
restauração de sua língua.
Se me surpreendo, em verdade, é de que possam sur-
preender-se. Somente essa lingua permitiria ao colonizado
retomar seu tempo interrompido, reencontrar sua continui-
dade perdida e a de sua história. A língua francesa é ape-
nas um instrumento, preciso, eficaz? Ou esse cofre maravi-
lhoso, onde se acumulam as descobertas e as conquistas, dos
escritores e dos moralistas, dos filósofos e dos sábios, dos
heróis e dos aventureiros, onde se transformam em uma só
legenda os tesouros do espirito e a alma dos franceses?
O escritor colonizado, que chegou penosamente à utili-
zação das linguas européias — a dos colonizadores, não o
esqueçamos <— não pode deixar de servir-se delas para re-
clamar em favor da sua. Não se trata nem de incoerência
99
nem de reivindicação pura ou cego ressentimento, mas de
uma necessidade. Não o fizesse e todo o seu povo acabaria
por fazê-lo. Trata-se de uma dinâmica objetiva que ele ali-
menta, certamente, mas que o nutre e que continuaria sem
ele. Fazendo-o, se contribui para liquidar seu drama de ho-
mem, confirma, acentua seu drama de escritor. Para conci-
liar seu destino consigo mesmo poderia tentar escrever na
sua língua materna. Mas não se refaz tal aprendizagem em
uma vida humana. O escritor colonizado está condenado a
viver suas rupturas até a morte. O problema só pode resol-
ver-se de duas maneiras: pelo esgotamento natural da lite-
ratura colonizada: as próximas gerações nascidas na liber-
dade, escreverão espontaneamente na sua língua recupera-
da. Sem ir tão longe, outra possibilidade pode tentar o es-
critor: decidir-se a pertencer totalmente a literatura metro-
politana. Deixemos de lado os prolemas éticos suscitados por
tal atitude. É então o suicídio da literatura colonizada. Nas
duas perspectivas, só o prazo diferindo, a literatura coloni-
zada de lingua européia parece condenada a morrer jovem.

O Se r de Ca r ê n c ia

Tudo se passa, enfim, como se a colonização fosse uma


frustração da história. Por sua fatalidade própria e por ego-
ísmo, tudo terá feito malograr, terá poluído tudo aquilo que
tiver tocado. Terá apodrecido o colonizador e destruído o
colonizado.
Pi ra melhor triunfar, só quis servir a si mesma. Mas,
excluindo o homem colonizado, somente por meio do qual
teria podido marcar a colônia, condenou-se a nela permane-
cer estrangeira, por isso necessariamente efêmera.
De seu suicídio, porém, só ela própria é responsável.
Mais imperdoável é seu crime histórico contra o colonizado:
ela o terá posto à margem do caminho, fora do tempo con-
temporâneo .
A questão de saber se o colonizado, entregue a si mes-
mo, teria andado com o mesmo passo que os outros povos

100
não tem grande significação- A rigor, nada sabemos a esse
respeito. É possível que não. Sem dúvida, não há apenas o
fator colonial para explicar o atraso de um povo. ToHõs“õs
países não seguiram o mesmo ritmo da América dO NóftéTm )
da Inglaterra; tinham, cada um, suas razões particulares de
atraso e seus próprios freios. Todavia, andaram com os pró^ l
prios pés e no seu caminho. Além disso, pode-se legitimar >
a infelicidade histórica de um povo pelas dificuldades dos
outros? Os colonizados não são as únicas vítimas da histó-
ria, certamente, mas a infelicidade histórica própria dos co-
lonizadores foi a colonização.
A esse mesmo falso problema acrescenta-se a questão
tão aflitiva para tantos: o colonizado, apesar de tudo, não
tirou proveito da colonização? Anesar de tudo, o colnniza-
dor não abriu estradas, não construiu hospitais e escolas?
Essa restrição, tão renitente, equivale a dizer que a coloni-
zação foi, apesar de tudo, positiva; pois, sem ela, nãÕThãvé-
ria nem estradas, nem hospitais, nem escolas. Que sabemos
a esse respeito? Por que devemos supor que o colonizado
ter-se-ia fossilizado no estado em que o colonizador o en-
controu? Poder-se-ia também perfeitamente afirmar o con-
trário: se a colonização não tivesse ocorrido, ele teria tido
mais escolas e mais hospitais. Se a história tunisiana fosse
mais conhecida, ter-se-ia visto que o país estava então em
plena gestação. Após haver excluído o colonizado da hisfo^
ria, vedando-lhe qualquer futuro, o colonizador afirma sua
imobilidade fundamental, passada e definitiva.
Essa objeção, aliãs, só perturba aqueles que estão dis-
postos a perturbar-se. Renunciei até aqui à comodidade dos
números e das estatísticas. Seria o momento de fazer-lhes
um discreto apelo: após vários decenios de colonização, a
multidão de crianças na rua ultrapassa de longe aquelas que
estão no colégio! O número de leitos dos hospitais é tão ir-
risório diante do número dos doentes, a intenção no traçado
das estradas tão clara, tão desenvolta ao olhar do coloniza-
do, tão estritamente submetida às necessidades do coloniza-
dor!. Por tão pouco, em verdade, a colonização não era in- f
dispensável. Será uma temeridade pretender que a Tunísia ,
de 1952’teria sido, de qualquer maneira, muito diferente da
cTe 1881? Existem, afinal de contas, outras possibilidades de
Triíluência e de intercâmbio entre os povos além da domina-

101
ção. Outros pequenos países se transformaram profunda-
meríte sem ter fidõTíFcéssIdade Je serem colonizados. Assim
numerosos paises da Europa Central. . .
Mas, depois de um momento, nosso interlocutor sorri,
cético.
— Mas, não se trata exatamente da mesma coisa. . .
— Por quê? Quereis dizer, não é, que esses países são
povoados por europeus?
—• ...Sim !
— Pois bem, nesse caso, sois pura e simplesmente
racista.
Voltamos, com efeito, ao mesmo preconceito fundamen-
tal. Os europeus conquistaram o mundo porque sua nature-
za a isso os predispunha, os não-europeus foram colonizados
porque sua natureza a isso os condenava.
■Vamos, sejamos sérios, deixemos de lado o racismo e
essa mania de refazer a história. Deixemos mesmo de lado
o problema da responsabilidade inicial da colonização. Foi o
resultado da expansão capitalista ou o empreendimento con-
tingente de vorazes homens de negócios? A rigor tudo isso
não é tão importante assim. O que conta, é a realidade atual
da colonização e do colonizado. Nada sabemos do que teria
sido o colonizado sem a colonização, mas vemos perfeita-
mente o que se tornou em conseqüência da colonização. Para
melhor dominá-lo e explorá-lo, o colonizador o expeliu do
circuito histórico e social, cultural e técnico. O que é atual
e verificável é que a cultura do colonizado, sua sociedade,
seu saber-fazer estão gravemente atingidos, e que ele não
adquiriu um novo saber e uma nova cultura. Um resultado
patente da colonização é que não há mais artistas e ainda
não há técnicos colonizados. É verdade que existe, igual-
mente, uma carência técnica do colonizado: "Trabalho ára-
be”, diz o colonizador com desprezo. Mas longe de ver nisso
uma desculpa para sua conduta e um ponto de referência
vantajoso para ele, deve ver sua propria acusação. É verda-
de que os colonizados não sabem trabalhar. Mas onde lhes
explicaram, quem lhes ensinou a técnica moderna? Onde
estão as escolas profissionais e os centros de aprendizagem?
Insistis demais, dizem às vezes, na técnica industrial. E
os artesãos? Vede esta mesa de madeira branca; por que é
de madeira de caixote? E mal acabada, mal aplainada, nem

102
p i n t a d a , n e m encerada? C e r t a m e n t e e s t a d e s c r i ç ã o é e x a t a .
D ecen te, n essa s m e s a s d e ch á , h á a p e n a s a f o r m a , p r e s e n t e
secular f e i t o ao artesão pela tradição. M a s , quanto ao resto,
é a encomenda que provoca a criação. O ra, p ara quem são
f e i t a s e s s a s m e s a s ? O comprador
não tem como p a g a r esses
aplainamentos s u p l e m e n t a r e s , n e m a cera, nem a p in tu ra .
Então, continuam em tábuas de caixotes desconjuntadas,
onde os buracos dos pregos permanecem abertos.
O f a t o verificável é que a colonização r e d u z o coloni-
zado à privação e que todas as carências se entretêm e se
alimentam umas às outras. A não-industrialização, a au sên -
cia de desenvolvimento técnico do país, conduz ao lento es-
magamento econômico do colonizado. E o esm agam ento
econômico, o nível de vida das massas colonizadas, impedem
o técnico de existir, como o artesão de aperfeiçoar-se e de
criar. As causas últimas são a recusa do colonizador, que
ganha muito mais vendendo matéria-prima do que fazendo
concorrência à indústria metropolitana. Além disso, porém ,
o sistema funciona em círculo, adquire uma autonom ia de
desgraça. Se tivessem aberto mais centros de aprendizagem ,
e mesmo de universidades, não teriam salvo o colonizado
que não encontraria ao sair delas a utilização do seu saber.
Em um país que de tudo carece, os poucos engenheiros co-
lonizados que conseguem obter seus diplomas são utilizados
como burocratas ou como professores! A sociedade coloni-
zada não tem necessidade imediata de técnicos e não os sus-
cita. Mas, infeliz daquele que não é indispensável! O tra b a -
lhador colonizado é substituível, por que pagar-lhe seu j'usto
preço? Além disso, nosso tempo e nossa história são cada
vez mais técnicos; o atraso técnico do colonizado aum enta
e parece justificar o desprezo que inspira. T o rn a concreta,
parece, a distância que o separa do colonizador. E não é
falso que o atraso técnico seja em parte causa da incom -
preensão dos dois parceiros. O nível geral de vida do colo-
nizado é, freqüentemente, tão baixo que o contato é quase
impossivel. Livram-se disso falando no medievalismo da co-
lônia. Pode-se prosseguir assim durante muito tempo. O uso,
a fruição das técnicas, criam tradições técnicas. O menino
francês, o menino italiano, têm ocasião de lidar com um mo-
tor, um rádio, estão cercados pelos produtos da técnica.
Muitos colonizados esperam deixar a casa paterna p ara se
103
aproximarem de qualquer máquina. Como poderiam ter gos-
to pela civilização mecanica e a intuição da máquina?
Tudo no colonizado, enfim, é privação, tudo contribui
para torná-lo um ser de carência. Mesmo seu corpo, mal
nutrido, enfezado e doente. Muitas palavras seriam econo-
mizadas se, antes de qualquer discussão começássemos por
admitir: primeiramente há a miséria, coletiva e permanente,
imensa. A simples e brutal miséria biológica, a fome crônica
de todo um povo, a subalimentação e a doença. Certamente,
ao longe, isso fica um pouco abstrato, e, para concebê-lo,
seria necessária uma imaginação alucinatória. Lembro-me do
dia em que o carro da "Tunisienne Automobile” que nos le-
vava rumo ao sul, parou no meio de uma multidão cujas bo-
cas sorriam, mas cujos olhos, quase todos os olhos, afunda-
vam nas faces: onde procurei com mal-estar um olhar não
tracomatoso no qual pudesse repousar o meu. E a tuber-
culose, e a sífilis, e esses corpos esqueléticos e nus, que pe-
rambulam entre as mesas dos cafés, como mortos-vivos, pe-
gajosos como moscas, as moscas dos nossos remorsos...
— Ah! não, grita nosso interlocutor, essa miséria já
estava lá! Nós a encontramos ao chegar!
Seja. (É verdade, aliás: o habitante dos subúrbios é
freqüentemente um felá sem posses.) Mas, como poderia tal
sistema social, que perpetua tais angústias — supondo que
não as crie — manter-se por tanto tempo? Como se ousa
comparar as vantagens e os inconvenientes da colonização?
Que vantagens, fossem elas mil vezes mais importantes, po-
deriam tornar admissíveis tais catástrofes, interiores e
exteriores?

104

Você também pode gostar