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ROBIN BLACKBURN

A queda do
Escravismo Colonial:
1776-1848

Tradução de
MARIA BEATRIZ DE MEDINA

•.:)i

E D I T O R A R E C O R D
RIO DE J A N E I R O • SÃO P A U L O

2002
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Blackburn, Robin
B564q A queda do escravismo colonial: 1776-1848 / Robin
Blackburn; tradução Maria Bratriz Medina. - Rio de Janeiro:
Record, 2002. Rara Gemma e Christopher
mapas;

Tradução de: The overthrow of colonial slavery, 1776-


1848
ISBN 85-01-05821-1

1. Movimentos antiescravagistas - História - América.


2. Escravos - Emancipação - História - América. I. Título.

CDD - 326.097
02-1036 CDU - 326.4(7/8)

Título Original em inglês:


THE OVERTHROW OF COLONIAL SLAVERY
1776-1848

Copyright © 1988 by Robin Blackburn.

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ISBN 85-01-05821-1

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r

Sumário

Lista de mapas 9
Agradecimentos 11
Introdução: Escravidão colonial no Novo Mundo por volta de 1770 13

I. As origens do antiescravismo 45
II, A Grã-Bretanha hanoveriana: escravidão e império 81
III. A escravidão e a Revolução Americana 125
IV. O abolicionismo britânico e a reação conservadora da década de 1790 147
V A Revolução Francesa e as Antilhas: 1789-93 179
VI. O emancipacionismo revolucionário e o nascimento do Haiti 231
VII. Abolição e império: os Estados Unidos 285
VIII. A abolição do comércio negreiro britânico: 1803-14 315
DC. A América espanhola: independência e emancipação 353
X. Cuba e Brasil: o impasse abolicionista 405
XI. A luta pela emancipação britânica dos escravos: 1823-38 445
XII. A escravidão na Restauração francesa e 1848 505
XIII. Conclusão: resultados e perspectivas 553

índice 591
Introdução:
Escravidão colonial no Novo Mundo
por volta de 1770

Behold the peacc thafs owned by him who fcels


He does no wrong, or outrage when he deals
In human flesh; or yet supplies the gold
To stir the strifc, whose victiras you behold...
Perhaps the Cuban merchant too, may think
In guilfs great chain he's but the farthest link.
Forsooth, he sees not ali the ills take placc,
' .--..• Nor goes in person to the human chase;
He does not hunt the negro down himself;
Of course he only furnishes the pelf.
He does not watch the blazing huts beset,
Nor slips the horde at rapÍne's yell, nor yet
Selects the captives from the wretched baud
Nor spears the aged with his right hand...
He does not brand the captives for the mart,
Nor stow the cargo — 'tis the captain's part...
His agents simply snare the vicúms first,
They make the war and he defrays the cost...
Tb human suffering, sympathy and shamc,
His heart is closed, and wealth is ali his aim.*

O mercador de escravos (1840), R, R, Madden

capitão... /Seus
/ seus agentes aapenas capturam primeiro as v íitimas,
tinias, / ties
Eles razem
fazem a guerr: :ie paga o ccusto.,. / Pari o
guerra e ele
sofrimento humano, simpatia e vergonha, /Seu coração se fecha, ele só visa a riqueza. (N. da T.}
M ROBIN BLACKBURN

P orvolta de 1770 havia quase dois milhões e meio de escravos labutando nos campos,
engenhos, minas, oficinas e residências das colónias do Novo Mundo. A mão-
de-obra escrava produzia os artigos mais desejados e importantes do comércio atlântico
e europeu; açúcar, café, algodão e cacau do Caribe; tabaco, arroz e anil na América
do Norte; ouro e açúcar na América do Sul espanhola e portuguesa. Essas merca-
dorias representavam cerca de um terço do valor do comércio europeu, número in-
flado por regulamentos que obrigavam o transporte de produtos coloniais para a
metrópole antes de sua reexportação para outros destinos. A navegação atlântica e a
colonização europeia do Novo Mundo fizeram das Américas a fonte mais conve-
niente de produtos tropicais e subtropicais para a Europa. A taxa de crescimento do
comércio atlântico no século XVIII sobrepujou todos os outros ramos do comércio
europeu e criou fortunas fabulosas. Ainda assim, esta conexão impressionante entre
império e escravidão esteva para entrar em crise terminal.
O período entre 1776 e 1848 testemunhou sucessivas contestações dos regimes
i de escravidão colonial, levando à destruição quer da relação colonial, quer do siste-
ma escravista ou de ambos em cada uma das principais colónias do Novo Mundo.
A contestação do império e a contestação da escravidão eram, em princípio, proje-
tos dessemelhantes e distintos. Todavia, neste período eles se entrelaçaram quando
os colonos resistiram ao domínio imperial e os próprios escravos tentaram explorar
qualquer enfraquecimento do aparato de controle social. Todas as potências colo-
1
niais permitiam a escravidão e todos os sistemas escravistas estavam integrados em
C3 um ou outro império transatlântico. A escravidão em grande escala nas plantatwns
O havia se desenvolvido no Caribe, no século XVII, como resultado do empreendi-
mento privado e da iniciativa independente; depois de algumas décadas de autono-
mia virtual, os donos deplantaiions conquistaram a proteção interessada da Inglaterra
ou da França, potências que tinham poder naval suficiente para manter acuados piratas,
corsários e rivais coloniais. Os novos sistemas escravistas desenvolveram-se dentro
do arcabouço colonial e geraram grandes lucros comerciais e receitas alfandegárias
para a metrópole imperial. Mas para que asplantations prosperassem, as autorida-
des imperiais tiveram de resistirá tentação de regulamentar excessivamente e sobretaxar
o comércio de seus produtos.
As estruturas do império eram vulneráveis de forma mais imediata do que as de
dominação e a exploração de escravos. O poder dos proprietários de escravos con-
centrava-se nas Américas; o poder imperial estendia-se pelas distâncias oceânicas e
dependia da aliança mais ou menos voluntária das classes de proprietários das coló-
nias. À medida a que população de colonos europeus foi se reproduzindo pelas ge-
rações, desenvolveram-se instituições e recursos que reduziam a dependência à
16 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 17

metrópole. Na segunda metade do século XVIII as elites coloniais de toda a Amé- Tabela l Estimativa das populações escravas nas colónias americanas em 1770
rica ganharam mais autoconfiança, estivessem ou não envolvidas com a proprieda- Exravos População total
de de escravos. A vitalidade do comércio atlântico era tal que os monopólios comerciais
estavam a ponto de explodirem 1770. Depois da Guerra dos Sete Anos (1756-63), América britânica 878.000 2.600.000
(América do Norte britânica) (450.000) (2.100.000)
todas as potências imperiais aceitaram a pressão por maior autonomia colonial e pro-
(Caribe britânico) (428.000) (500.000)
moveram projetos de reforma. A contestação colonial aos funcionários e mercado-
América portuguesa (Brasil) 700.000 2.000.000
res metropolitanos representava uma aspiração ao autogoverno; foi ao mesmo tempo
América francesa (Caribe) 379.000 430.000
reivindicação de maior liberdade económica e afirmação da nova identidade e da América espanhola 290.000 12.144.000
civilização americana autónoma. A exigência americana de liberdade e autodeter- (Caribe espanhol) (50.000) (144.000)
minação fortaleceu os ataques à oligarquia e ao governo arbitrário no Velho Mun- (Continente espanhol) (240.000) (12.000.000)
do. Mas a rejeição dos regimes políticos do Velho Mundo não pressupunha mudanças Caribe holandês 75.000 90.000
fundamentais nas instituições sociais. Um dos objetivos deste livro é descobrir por Caribe dinamarquês 18.000 25.000
que a crise no modo de dominação política às vezes detonou uma crise do regime
social, em especial da instituição da escravidão.
O tamanho das populações escravas coloniais não reflete nem o tamanho geográfico
Esta introdução busca fornecer um esboço dos sistemas escravistas coloniais de
dos diferentes impérios nem a primazia da colonização. A Espanha, a primeira e
meados do século XVIII e estabelecer seus pontos fortes e fracos característicos, às
ainda maior potência colonial do Novo Mundo, estava em quarto lugar como pro-
vésperas daquela "Idade da Revolução" na qual teriam papel tão importante.
prietária de escravos. A Grã-Bretanha e a França, que não tinham colónias com es-
Os sistemas de controle mercantilista buscavam dirigir o comércio colonial, e para cravos em 1640, agora possuíam ^^plantations escravistas mais florescentes do Novo
isso empregavam dezenas de milhares de funcionários. A Grã-Bretanha permitia Mundo. A população escrava total do Brasil pode ter sido maior do que a das coló-
uma espécie de livre comércio imperial e não respeitava o monopólio colonial de nias francesas, mas a estimativa é incerta e a escravidão estava um tanto menos con-
seus rivais. Mercadores franceses tinham permissão de reexportar sem impostos pro- centrada no setor exportador. O Brasil era colónia de Portugal, mas Portugal era
dutos dasplantations e recebiam um bónus pelos escravos que vendiam aos donos de quase uma semicolônia britânica, e assim grande parte do ouro produzido pelos escravos
plantations nas Antilhas. As burocracias reais de Espanha e Portugal exigiam o con- no Brasil acabava indo para Londres. A Grã-Bretanha e a França tinham vigor co-
trole direto da prata e do ouro produzidos em suas possessões americanas. Em princípio, mercial para criaras colónias escravistas mais produtivas, embora as potências ibé-
os monopólios coloniais permitiam aos mercadores metropolitanos recolher um ex- ricas ainda mantivessem o domínio de imensos impérios continentais. E, em contraste
cedente e impediam o comércio interamericano. Mas o próprio vigor do comércio com os Países Baixos, a Grã-Bretanha e a França foram capazes de mobilizara for-
atlântico tendia a fàzê-lo ultrapassar as fronteiras prescritas. O contrabando prova- Ça necessária para defender suas conquistas coloniais no Novo Mundo. Embora as
velmente respondia por pelo menos um décimo de todo comércio, apesar dos funcio- relações sociais capitalistas estivessem mais desenvolvidas na Grã-Bretanha do que
nários da alfândega e do tesouro e das patrulhas navais regulares. Apesar da fraqueza na França, o desenvolvimento vigoroso do comércio e da manufatura franceses no
de Portugal e das concessões comerciais feitas à Grã-Bretanha, os mercadores de século XVIII equiparou-os aos britânicos. A exportação francesa de açúcar refina-
Lisboa e do Porto mantinham o controle do comércio brasileiro, mesmo que isso do ou de tecidos de algodão excedeu a britânica na década de 1760; materias-pri-
significasse vender tecidos britânicos em troca do ouro do Brasil. Na década de 1760 mas coloniais baratas, fornecidas com isenções e incentivos especiais, ajudaram a
a principal raison d'être das ilhas holandesas era como centros do comércio não re- possibilitar um enclave de acumulação que utilizava mão-de-obra escrava.
gulamentado. O uso de escravos africanos permitira à Grã-Bretanha alcançar a primeira posi-
Os diferentes padrões de desenvolvimento colonial produziram a divisão por terri- ção como potência colonial americana e desenvolver suas possessões na América até
tório da população escrava do Novo Mundo em 1770, mostrada na Tabela l, a seguir. que suas exportações ultrapassaram as da América espanhola. Na década de 1770, as
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colónias escravistas das Antilhas francesas lutavam para superaras índias Ocidentais ça no hemisfério. Os proprietários de escravos teriam participação importante nestes
britânicas. O valor anual da exportação colonial do início da década chegou a 5,6 milhões levantes, quer nas 13 colónias inglesas da América do Norte na década de 1770, quer
de libras nas colónias britânicas, 5,2 milhões nas colónias francesas, 1,8 milhão no Brasil nas Antilhas francesas em 1788-93, quer na Venezuela, em Nova Granada, no Peru e
e 4,9 milhões em toda a América espanhola. Mercadores e fabricantes britânicos no rio da Prata nas décadas de 1810 e 1820. Os proprietários de escravos do Brasil e
mantinham com ampla margem a liderança do fornecimento dos mercados coloniais; do Caribe espanhol e britânico jogaram suas cartas de forma diferente e evitaram ao
sua exportação para toda a América era pelo menos duas vezes maior que a dos fran- máximo os levantes, mas também marcaram sua presença. Os senhores de escravos
ceses. O comércio transatlântico exigia aproximadamente meio milhão de toneladas americanos deste período eram visivelmente menos conservadores que os ricos e po-
em meios de transporte marítimo e empregava mais de cem mil marinheiros e traba- derosos de outras regiões, fossem estes donos de minas no México ou proprietários de
lhadores nas docas. O lucro britânico no comércio atlântico vinha principalmente da terras na Europa. Algumas observações sobre o caráter da escravidão encontrada nas
organização capitalista eficaz do transporte marítimo, do fornecimento de manuíãtu- Américas nesta época podem ajudar a explicar isso.
ras e das finanças comerciais; o lucro comercial francês, que no todo chegava à metade
do comércio colonial de exportação, dependia mais do monopólio mercantilista. O tipo de escravidão que predominava nas Américas no século XVIII não deveria
Em meados do século XVIII a Grã-Bretanha e a França eram, segundo o teste- ser considerado uma relíquia da Antiguidade ou do mundo medieval. Os sistemas
munho geral de contemporâneos, os Estados mais poderosos, esplêndidos e dinâmi- coloniais eram de construção muito recente e de caráter altamente comercial. Cru-
cos do mundo. Cada um a seu modo, Versalhes e Westminster eram os exemplos de zavam todo um oceano e estavam enredados em rivalidades. Os escravos eram tra-
governo da época. Depois de Portugal, Espanha e Países Baixos, haviam criado uma zidos exclusivamente da África, e a grande maioria deles sujeitava-se a regimes
rede mundial de colónias e bases comerciais. Foram os primeiros impérios verdadei- duríssimos de trabalho. Em contraste, as formas anteriores de escravidão eram menos
ramente globais e transoceânicos da história humana. O Novo Mundo era considera- extensas, menos comerciais e mais heterogéneas. Os escravos do Novo Mundo eram
do área crucial de testes por estadistas importantes como Pitt, o Velho, e Choiseul. Até propriedade económica, e o principal motivo para possuir escravos era a exploração
mesmo o abade Raynal, que apoiava a nova crítica filosófica da escravidão, acreditava económica; com este fim, pelo menos nove décimos dos escravos americanos foram
que as piantations açucareiras haviam substituído as minas de ouro como esteios do postos a trabalhar na produção de mercadorias.1
império. Em sua Hisíoire dês Deux Indes (História das duas índias) (1770), Raynal ins- Em outras sociedades, a escravidão teve uma capacidade camaleônica de se adap-
ta as autoridades espanholas a promoverem a economia de plantation em Cuba para tar à formação social circundante; como uma perna mecânica social, ampliou o poder
que rivalizassem com as conquistas dos proprietários da Virgínia, que forneciam taba- dos proprietários de escravos de forma apropriada a cada sociedade — talvez pelo
co à Europa, ou de São Domingos, que supriam de açúcar metade da Europa. aumento de uma linhagem ou fornecendo um núcleo de administradores de confian-
O Atlântico e o Caribe agigantaram-se nas guerras do século XVIII. A Grã-Bretanha ça. Nas Américas do século XVIII o uso de escravos na agricultura e na mineração
e a França protegiam seus impérios com marinhas que compreendiam, cada uma, de ajudou a ampliar o alcance do capital mercantil e manufàtureiro e forneceu a regiões
sessenta a oitenta "navios de linha" e um enxame de embarcações menores; a força em industrialização matérias-primas e mercados. Elizabeth Fox Genovese e Eugene
naval da Espanha era apenas um pouco menor e incluía os eficientes guarda-costas do Genovese identificaram o impulso para a acumulação mercantil como força propulso-
Caribe. Os Países Baixos, derrotados no Brasil no século XVII, eram apenas uma potência ra por trás do surgimento dos novos sistemas escravistas. A parceria de mercadores e
americana menor. As conquistas inglesas e francesas no Caribe só foram sustentadas donos de piantations no Novo Mundo levou à criação de um empreendimento manu-
devido ao uso maciço do poder naval e da disponibilidade de um fluxo constante de fàtureiro e agrícola integrado. As própriàspíaníaítons escravistas incorporaram os avanços
emigrantes. Depois do Tratado de Ryswick em 1697, houve poucas alterações territoriais na técnica agrícola compatíveis com o trabalho em turmas coordenadas. Em geral, os
no Caribe, mas a ameaça ainda existia. No entanto, em 1770 chegou-se a um impor- empresários que as dirigiam dispunham-se a adotar métodos de processamento ino-
tante ponto crítico. As vitórias da Grã-Bretanha na Guerra dos Sete Anos permiti- vadores e tinham recursos para comprar os produtos da indústria capitalista e da agri-
ram-lhe expulsar os franceses da América do Norte. Desta época em diante, os levantes cultura comercial. O dono áàplantation do Novo Mundo, ao comprar implementos
internos sobrepujaram e deslocaram a rivalidade imperial do papel-chave na mudan- como parte da troca das mercadorias que fornecia, podia aumentar a produção, em
20 . ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

resposta às pressões de mercado, de forma muito mais rápida que os senhores feudais expansão do fornecimento só dependia do custo de limpar a terra, adquirir escravos e
da Europa oriental e com base numa complementaridade maior com o capital manu- equipamento e pagar supervisores assalariados. A demanda europeia de mercadorias exóticas
fâtureiro. A própria plantation representava uma façanha da organização e da fiscali- era tal que esses custos podiam ser cobertos com folga.4
zação da produção. As turmas de escravos nos campos e as equipes de escravos nos A caracterização aqui apresentada refere-se às formas predominantes de escra-
engenhos eram mobilizadas para um trabalho que era realizado sob coação, de forma vidão americana no século XVIII. Na América espanhola e no Brasil português,
intensa e contínua. Manuel Moreno Fraginals examinou as formas pelas quais o en- havia também resíduos de um padrão anterior e mais difuso. É necessário distin-
genho de açúcar antecipou alguns métodos de um industrialismo capitalista emergente, guir entre a escravidão acessória do início do colonialismo espanhol ou português e
com sua calibragem precisa da mão-de-obra e subordinação a um ritmo mecânico. O a escravidão sistémica, ligada z.s plantations e à produção de mercadorias, que se tor-
processo de trabalho altamente coordenado da "plantation" açucareira do final do sé- nou dominante no século XVIII. A "escravidão acessória" dos espanhóis não en-
culo XVIII lembra em parte a "planta" ou instalação industrial do futuro.2 volvia colónias com maioria escrava, a exclusão dos escravos de todos os cargos de
Todavia, esses autores marxistas distinguem corretamente a escravidão do Novo responsabilidade nem a negação de atributos humanos ao cativo. A introdução de
Mundo de um regime de produção generalizada de mercadorias. As empresas escravistas escravos ajudou a consolidar uma superestrutura imperial de exploração que não se
ainda tinham raízes na chamada "economia natural" -— o cultivo de subsistência e tra- baseava principalmente em mão-de-obra escrava. A riqueza e o poder espanhóis
balho interno, "não-comercializado". Os escravos plantavam a maior parte de sua pró- derivavam da conquista e da exploração dos povos indígenas do continente; tentou-
pria comida, construíam suas próprias cabanas e assim, diferentemente do trabalhador se a escravização total dos ameríndios, que se mostrou impossível ou tão destrutiva
assalariado, não dependiam principalmente de bens comprados no mercado. Normal- a ponto de ser contraproducente. As comunidades indígenas do século XVI nas ilhas
mente ^plantation escravista poderia sobreviver, se necessário, através de seu próprio cultivo do Caribe e no litoral foram dilaceradas e desmoralizadas pela invasão e pelo exces-
e manufãtura de subsistência. O feto de que os donos das plantations dispunham desta so de trabalho; seus povos foram destruídos por terríveis epidemias ou absorvidos
"reserva" de economia natural, como a denominou Jacob Gorender, reforçava sua capa- quando os conquistadores tomaram para si as mulheres indígenas. Alguns fugiram
cidade de sobreviver aos tempos de guerra, revolução ou depressão comercial.1 Assim para pântanos inóspitos e afastados ou mantiveram-se em ilhas rochosas e na selva
como o camponês ou pequeno fazendeiro, e ao contrário do fabricante ou do mercador, mais distante. Mas no continente os conquistadores espanhóis conseguiram substi-
o dono da plantation podia se retirar do mercado por longos períodos e manter seu em- tuir o estrato dominante anterior dos impérios inça e asteca e explorar as comunida-
preendimento. Mas, em fases de expansão, ele não se limitava aos recursos da proprie- des indígenas, que eram subjugadas, mas não escravizadas.
dade; com um mercado receptivo, suas perspectivas só eram limitadas pela capacidade Os cativos africanos foram introduzidos na América espanhola para compensar o
de comprar mais escravos, implementos e equipamento, quando necessário. Os campo- despovoamento das áreas mais atacadas e para fortalecer a presença da potência colo-
neses europeus ou senhores feudais, ao contrário, estavam limitados pela "economia natural" nizadora; para sustentar centros administrativos e Unhas de comunicação e para aten-
e restringidos pelo tamanho da família ou da mão-de-obra disponível na propriedade. deras necessidades pessoais dos conquistadores. O uso de escravos na América espanhola
Graças ao capital investido n&plantation, seu proprietário não tendia a cair na autarquia. no século XVIII reteve algo deste antigo padrão. Os escravos africanos trabalhavam
A construção e a manutenção de umzplantaíion envolvia custos económicos permanen- como criados domésticos, porteiros, gerentes, estivadores, costureiras, barbeiros, jar-
tes, que agiam como um aguilhão para a produção renovada de mercadorias sempre que dineiros, artesãos; havia escravos trabalhando nas minas de ouro de Nova Granada,
possível; e o valor económico dos escravos era tal que o produtor que não pudesse lucrar nas propriedades açucareiras de Cuba e nas lavouras de cacau da Venezuela, mas estes
com eles era induzido a vendê-los a alguém que o fizesse. Mais uma vez, nem o campo- eram ainda enclaves bastante modestos na economia imperial espanhola de 1770. A
nês nem o senhor feudal estavam sujeitos a uma pressão económica comparável. Já que prata era extraída por trabalhadores assalariados, cuja maioria era de origem indíge-
os escravos cobriam suas necessidades de subsistência em apenas dois dias de trabalho na, mas com alguns negros ou mestiços, ou por trabalhadores enviados como tributo
por semana, incluindo quase todo o seu pouco "tempo livre", a taxa de extração de exce- por aldeias índias. A administração imperial na América espanhola promovia e coor-
dente e lucro bruto era muito alta. Assim, o dono de uma plantation escravista era um denava diretamente a atividade económica; administradores do rei supervisionavam o
empreendedor com capacidade e motivação para responder às pressões do mercado. A fornecimento de alimento e mão-de-obra às minas, distribuíam concessões de mine-
ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

ração, compravam tabaco e cuidavam do fluxo de prata de volta para a Europa. Havia ouro no Brasil no final do século XVII deu à monarquia portuguesa um forte in-
falhas, naturalmente, mas este sistema extensivo de exploração imperial contrastava com centivo para manter os mecanismos de exploração imperial "extensiva". As frotas
o regime intensivo de microexploração das plantaíions escravistas no restante da Amé- facilitavam o controle imperial e a cobrança de impostos, além de oferecerem prote-
rica. Também ajudava a inibir a elite crioula, que sabia muito bem que o Estado im- ção. Mas com a exportação de ouro transportada em segurança em comboios para a
perial era um fãtor direto e crucial da extração de trabalho excedente dos produtores Europa, o comércio de açúcar foi estrangulado. Os escravos brasileiros continua-
fundamentais. Pelo contrário, os donos deplantations dirigiam um processo indepen- ram a produzir açúcar, mas nesta economia quase fechada muitos também eram
dente de extração de excedentes, em que era papel do Estado colonial recolher impos- utilizados no fornecimento de alimentos e manufaturas ao mercado local. As potên-
tos, criar regulamentos desastrados e fornecer proteção externa. Em 1770 as minas de cias ibéricas obrigaram os mercadores a viajar com a frota anual até a década de
prata da América espanhola exploravam veios fabulosos — daí o valor impressionan- 1760; o crescimento espontâneo da agricultura comercial foi inibido, e assim abriu-
te da exportação colonial espanhola —, mas, graças a isso, os proprietários de minas se mais espaço para holandeses, ingleses e franceses/
estavam muito menos interessados na autonomia colonial do que os donos de plantations. A largada para a produção em grande escala das plantations foi dada no Caribe
A escravidão brasileira na década de 1770, com propriedades açucareiras no pelos produtores britânicos e franceses, apoiados por mercadores holandeses inde-
Nordeste, minas de ouro no Sul e uso disseminado de escravos em oficinas, resi- pendentes, por volta de 1640-50. A escravidão sistémica tinha de ter caráter colonial
dências, fazendas e ranchos em todas as províncias, refletia a variedade da história porque as plantations escravistas precisavam de garantias navais e militares que as
da colónia. Os portugueses começaram a instalar engenhos de açúcar no Brasil no protegessem de rivais e da ameaça de revolta escrava. Embora a escravidão acessó-
final do século XVI e, com a ajuda holandesa, desenvolveram as principais caracte- ria tenha ajudado a reproduzir o império, o império ajudou a reproduzir a escravi-
rísticas da propriedade escravista comercial. No Brasil, assim como no Caribe, as dão sistémica. Ãplantation era administrada como uma empresa integrada com acesso
comunidades indígenas foram dizimadas por doenças e expulsas pela conquista. Os privilegiado ao mercado europeu; em pouco tempo, todas as tarefas braçais passa-
mercadores portugueses foram os primeiros a desenvolver o comércio atlântico de ram a ser realizadas por escravos. A instabilidade e a guerra retardaram o desenvol-
escravos, fornecendo escravos mais baratos de seus próprios entrepostos comerciais vimento das plantations na Jamaica e em São Domingos até que a Paz de Utrecht,
na costa africana. Para os recém-chegados da África, a fuga era muito mais difícil e em 1713, criou condições mais favoráveis tanto para este desenvolvimento quanto
perigosa do que para os ameríndios. Além disso, os cativos africanos vinham de para a organização do tráfico negreiro em grande escala.
sociedades em que a agricultura, a mineração e as relações sociais da escravização As colónias britânicas e francesas, assim como o Brasil, mas diferentemente da
eram muito mais desenvolvidas do que no caso dos ameríndios do Brasil, do Caribe América espanhola, tornaram-se regiões povoadas pelos colonizadores depois que
ou do litoral norte-americano. O Brasil atraiu uma torrente de colonos portugue- os habitantes originais foram mortos, marginalizados ou expulsos. A própria agri-
ses, mas os proprietários de terras (fazendeiros) acharam mais fácil explorar os ca- cultura de exportação ajudou a financiar a colonização, já que os mercadores conce-
tivos africanos do que negar todos os direitos a.servos emigrados da Europa. A força diam transporte a servos europeus dispostos a trabalhar nas plantations por três ou
de trabalho no engenho brasileiro do início do século XVII continuou a ser mista, e cinco anos. Mais da metade dos emigrantes brancos para a América do Norte colo-
combinava fileiras de servos africanos e índios com uma dúzia ou mais de imigran- nial vieram como servos contratados; o Caribe francês e britânico também absor-
tes portugueses; e o processamento não era integrado com o trabalho agrícola, já veu dezenas de milhares destes trabalhadores cativos, que podiam ser comprados a
que a maior parte da cana era fornecida por agricultores independentes (lavradores preço mais baixo que os escravos. No total, cerca de 350.000 servos foram embar-
de cana). O termoplantation não se aplicava à propriedade açucareira brasileira. cados para as colónias britânicas até a década de 1770. Os servos brancos ou engagés
Os primeiros colonos do Brasil demonstraram a lucratividade do cultivo do açúcar, podiam ser violentamente explorados, mas não ofereciam ao proprietário da plantation
e usavam uma força de trabalho mista com predominância crescente de escravos a oportunidade de construir uma força estável de trabalho. Servos brancos ouengagés
africanos. O avanço posterior rumo a uma escravidão sistémica completa foi blo- por fim seriam libertados; os africanos estavam condenados a uma vida inteira de
queado pela demanda irregular da Europa, pelas invasões e pela ocupação holande- cativeiro. Nas primeiras décadas do século XVIII os donos àzplantations de tabaco
sa (1624-54) e por um sistema caro e complicado de frotas anuais, A descoberta de da Virgínia e de Maryland também passaram a preferir cada vez mais o trabalho
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escravo aos servos contratados da Inglaterra. Servos brancos tinham direitos legais peso em 1700 para 220 milhões em 1775. Em 1700 havia cerca de 100.000 escravos nas
definidos e alguma expectativa de encontrar apoio na comunidade de colonizado- colónias britânicas e 30.000 nas francesas; nesta época não deveria havermais de 100.000
res, tanto por parte das autoridades quanto do povo. Africanos cativos tinham pou- escravos em toda a América espanhola, ou mais de 150.000 no Brasil. Assim, apesar das
cos direitos e, na prática, nenhuma capacidade de garanti-los. Podiam provocar piedade, taxas de mortalidade apavorantes, a população escrava das Américas multiplicou-se seis
mas não solidariedade de brancos que não possuíam escravos. Colonos brancos vezes, dos cerca de 400.000 indivíduos em 1700 para 2.400.000 em 1770, e as popula-
gozavam de um nível de liberdade desconhecido no Velho Mundo, enquanto os negros ções escravas das colónias britânicas e francesas expandiram-se com maior rapidez.6
eram sujeitos ao sistema de escravização mais sistemático e feroz que já existira. Por que foram as Américas o lugar desta expansão fenomenal e por que envol-
A escravidão colonial do Novo Mundo desenvolveu-se no alvorecer do avanço veu a escravidão? O desenvolvimento capitalista na Europa gerou novas necessida-
capitalista na Europa do século XVII. Na década de 1760, cerca de 600.000 escravos des que não poderiam ser atendidas com recursos europeus. O Novo Mundo tinha
eram levados para as Américas todo ano, quase dez vezes a quantidade anual da déca- o clima e o solo necessários para cultivares produtos exóticos desejados pelos euro-
da de 1650 e cinquenta vezes o número introduzido por ano por Espanha e Portugal peus, e o transporte marítimo era barato. Mas as Américas não eram povoadas por
nas décadas de 1560 e 1570. Antes de 1580, é provável que os imigrantes europeus agricultores dedicados à produção de mercadorias. Na verdade, as regiões costeiras
tenham sobrepujado em número os escravos levados para o Novo Mundo; entre 1580 subtropicais mais adequadas para o cultivo desses produtos foram severamente des-
e 1650 o número de cativos africanos que chegavam a cada ano era mais ou menos o povoadas depois do impacto desastroso da conquista europeia. O cultivo de produ-
mesmo que o de imigrantes europeus. Com o surgimento da escravidão "sistémica", a tos dtplantation envolvia o tipo de trabalho que espantava o migrante voluntário;
"importação" de escravos cresceu tanto em termos proporcionais quanto absolutos. A especialmente porque a abundância de terras no Novo Mundo oferecia uma alter-
primeira colónia do Novo Mundo onde os escravos tornaram-se maioria da popula- nativa preferida ao trabalho K&plantation — mesmo que, como muitas vezes acon-
ção foi a ilha britânica de Barbados, por volta de 1645, seguida de perto pelas outras tecia, isso significasse lutar com os habitantes indígenas pela posse da terra. Mercadores
ilhas controladas por britânicos e franceses nas Pequenas Antilhas, depois pela Jamaica, portugueses, holandeses, britânicos e franceses descobriram que era agradavelmen-
na década de 1660, e São Domingos, na de 1690. Os cativos africanos só começaram te lucrativo patrocinar o desenvolvimento de plantations, mas só conseguiram supri-
a ser embarcados em grande quantidade para a América do Norte nas primeiras déca- las de mão-de-obra por meio da garantia de fornecimento de escravos da costa da
das do século XVIII. A descoberta de ouro no Brasil no final do século XVII mais África. A competição no mercado atlântico afogou quaisquer escrúpulos que tives-
que duplicou a importação anual de escravos naquele território. Com o desenvolvi- sem a respeito do comércio de africanos escravizados, de forçá-los a trabalhar nas
mento do Caribe britânico e francês, o número de escravos africanos desembarcados plantations ou de ganhar dinheiro com o que os escravos produzissem. E espantoso
no Novo Mundo excedeu o número de imigrantes europeus, no período entre 1650 e que antes de 1760 tenha havido poucos protestos contra a escravização em massa de
1700. Mas foi apenas no século XVIII que apareceu uma imensa disparidade, com africanos apesar de, como veremos no próximo capítulo, a escravidão há muito já
cerca de seis milhões de cativos africanos chegando ao Novo Mundo, cinco ou seis ter desaparecido do noroeste da Europa. A escravidão do Novo Mundo resolveu o
vezes o número de europeus. Pelo menos um milhão de escravos morreram só nesse problema colonial de mão-de-obra em uma época em que não havia outra solução à
século durante a famosa "rota do meio", ou travessia da África para o Novo Mundo, vista. Assim, ela provou ser muito coerente com a acumulação comercial e manu-
e um número incontável morreu antes sequer de chegar à costa africana. íàtureira nos centros do avanço capitalista na Europa ocidental; em primeiro lugar
Este inchaço do comércio negreiro refletiu um vasto aumento da produção das nos da Grã-Bretanha, dos Países Baixos e da costa atlântica francesa e seu interior.
plantations escravistas. A produção total de açúcar do Brasil em 1620 tora de apenas 15.000 Como se mantinha a demanda pela produção dos escravos? Os produtos àasplantaítons
toneladas por ano, número que provavelmente não foi excedido até a década de 1750; a eram prazeres populares, e frequentemente a demanda de açúcar e tabaco funcionava
minúscula ilha de Barbados produziu sozinha 15.000 toneladas durante a década de 1670. como isca que atraía círculos cada vez maiores da população para a economia de merca-
Em 1760 as colónias escravistas britânicas e francesas produziam 150.000 toneladas de do; os impostos cobrados sobre estes produtos também representavam uma arrecadação
açúcar porano, e chegaram a 290.000 toneladas entre 1787 e 1790. A produção de taba- útil para os principais Estados. O novo padrão de relações sociais fez com que a renda
co das plantations escravistas da Virgínia e de Maryland subiu de 20 milhões de libras- passasse dos géneros para o dinheiro; bebidas adoçadas e tabaco eram tanto um consolo
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ROBIN BLACKBURN

quanto um aguilhão, enquanto tecidos leves, laváveis e brilhantes tornavam a vida mais seus próprios negócios e o funcionalismo colonial tinha a tarefa de ministrar a regu-
amena e saudável. A sede da Europa por produtos âzs plantations, que parecia impossí- lamentação mercantilista. Mas pelo menos as tropas coloniais davam-lhes alguma
vel de mitigar, fez com que, em uma década, o fornecimento de açúcar, café, tabaco e proteção. Os proprietários de escravos tendiam a um antagonismo mais acirrado
algodão duplicasse sem queda de preço. Comerciantes e donos àc, plantations eram enco- com os mercadores metropolitanos e seus agentes locais, especialmente quando, como
rajados a buscar as perspectivas quase ilimitadas de expansão que levaram à construção acontecia amiúde, tinham dívidas para com eles. Levar Mmzplantaíion escravista ao
dasplantations escravistas. A nova cultura do consumo comercializado não tinha consci- ponto em que se pudesse vender a colheita era um empreendimento demorado, caro
ência do custo humano acarretado por seus prazeres.7 e arriscado. Os proprietários de plantations muitas vezes precisavam recorrer ao crédito
para comprar escravos, equipamento ou provisões. Com frequência caíam nas gar-
Quais eram as tensões internas geradas pela escravidão colonial? Em 1770 as auto- ras dos mercadores depois que uma guerra, um furacão ou uma revolta de escravos
ridades britânicas e francesas enfrentavam o risco de rebeliões de colonos. Os colo- lhes destruía a colheita ou alguma epidemia levava metade ou mais do contingente
nos britânicos e franceses e seus descendentes não acreditavam que, por serem colonos, de escravos. Em geral o mercador cobrava juros altos nos empréstimos aos donos
pudessem ser privados de direitos; esta sensação era, naturalmente, mais forte nas de plantations e podia justificá-los com os riscos envolvidos. Mas com tudo isso, o
colónias britânicas mais antigas da América do Norte, mas era encontrada também dono de uma plantaíion escravista dava ao mercador-credor a primazia sobre os
nas Antilhas francesas. superlucros que ainda não tinham sido apurados. O próprio dinheiro gasto na com-
A força específica da escravidão colonial britânica e francesa era o aparato descen- pra de um escravo representava um desconto sobre o excedente futuro a ser apro-
tralizado e controlado pelo dono aa.planta.tion para conter os escravos. A força da coloni- priado quando se colocasse o escravo para trabalhar. Havia aqui um nexo antagónico
zação ibérica estava concentrada em centros administrativos nas próprias colónias. entre dono Átplantation e mercador que, com frequência, intensificava a hostilidade
A escravidão colonial criou seus próprios antagonismos sociais característicos. para com os sistemas coloniais que privilegiavam monopólios mercantis nacionais.
Mesmo o mais sábio dos ministros acharia difícil distribuir privilégios e penalidades Em geral os mercadores locais despertavam menos suspeita ou ódio, já que podiam
de forma eficaz e coerente, dada a espontaneidade da economia atlântica e suas rea- ser parceiros na fuga às restrições mercantilistas e aos credores metropolitanos. Mas
ções imprevisíveis à mudança de gosto e de métodos de produção. Os produtores de a relação entre donos de plantations e mercadores nunca foi tranquila. Ela incluía o
tabaco da Virgínia, os donos à& plantations açucareiras das Antilhas francesas e os con- antagonismo com os comerciantes de escravos, sempre que os donos àt plantations
cessionários de minas de ouro do Brasil tinham a desvantagem de que seus produtos sentiam que poderiam prosseguir sem novas compras de cativos. Poderia até provo-
haviam atingido alto grau de visibilidade. Expostos de qualquer maneira à atenção de car um sentimento de impaciência para com a própria escravidão, um tipo de desejo
mercadores e funcionários do Tesouro, estavam sujeitos a restrições mercantilistas que desesperado do proprietário de escravos e de plantations de se encantar com um se-
faziam com que se sentissem, como descreveu Washington, "tão miseravelmente opri- nhor de terras agrícolas mais importante e com maior soberania.
midos quanto nossos próprios negros". Os proprietários de plantations das índias A relação entre donos de plantations e outras camadas da população livre das
Ocidentais britânicas aceitavam sua posição com mais facilidade, já que sabiam que o colónias, embora também ambivalente, admitia mais cordialidade. Os grandes pro-
sistema colonial lhes abria um mercado metropolitano protegido, poupando-os da prietários compravam provisões de pequenos fazendeiros e alguns suprimentos de
necessidade de competir em igualdade de condições com xs, plantations francesas, mais fabricantes locais. Empregavam o serviço de feitores, guarda-livros, advogados,
eficientes. Da mesma forma, os produtores de açúcar da América espanhola ou mes- médicos e outros. Na própria zona àe. plantations, o grande proprietário era reco-
mo do Brasil ainda não eram dinâmicos o bastante para sentir uma frustração muito nhecido como líder da comunidade local e assumia cargos como magistrado ou co-
aguda; mas não foi este o caso dos produtores de cacau da Venezuela, que enfrentaram ronel da milícia local. Apesar das tensões associadas ao patronato, em geral os donos
as pretensões monopolistas da Companhia de Caracas e delas escaparam de todo jeito de plantations conseguiam o apoio de outros colonos livres em confrontos com a
conhecido até forçarem seu fechamento na década de 1780. metrópole. Este eixo dominado pelo grande proprietário era mais forte na zona de
Fora alguns grandes privilegiados, os proprietários de escravos do Novo Mun- plantations da América, mas encontrava-se também onde quer que houvesse desen-
do sentiam viva inimizade pelos funcionários coloniais, já que desejavam cuidar de volvimento átplantations. As potências metropolitanas foram obrigadas a permitir
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que as colónias desenvolvessem sua própria capacidade militar, quer como seguran- dinástico e nacional, a França mantinha grande estrutura naval e colonial; setores
ça contra revoltas de servos, quer como auxílio às forças metropolitanas durante as da aristocracia e da burguesia encontraram para si um nicho no sistema colonial.
guerras de rivalidade imperial. Mas os conseils coloniais franceses eram tão ciosos de seus direitos quanto ospafiemtnís
Em toda a América os donos de plantations, proprietários de escravos e mercadores metropolitanos e, provavelmente, mais representativos das classes proprietárias lo-
locais a eles ligados foram súditos impacientes e insubmissos. Isso foi tão verdadeiro na cais. A Grã-Bretanha e a França extraíam um excedente comercial de suas colónias,
América do Sul e no Caribe quanto na América do Norte. Mas, naturalmente, o equilí- mas não recebiam delas grande arrecadação direta. Os governos reais de Espanha e
brio predominante das forças sociais e o vigor da economia baseada na escravidão enco- Portugal tinham uma base europeia muito mais fraca e passaram a confiar na arre-
rajaram variações dos objetivos específicos e dos métodos adotados. A posse de escravos' cadação americana, gerada pela economia mineira e por algum comércio de produ-
conferia slaíus, e a administração àzplantation trazia o hábito do comando. Os donos de tos át plantations. Na verdade, o fluxo de receitas coloniais para Madri e Lisboa
plantations do continente tendiam a ser mais ousados ao enfrentarem as autoridades im- tanto exigia quanto financiava uma estrutura colonial cuja coluna vertebral era a
periais; os do Caribe, empoleirados em grandes maiorias escravas, eram mais ferozes casta militar aristocrática. Escravos africanos e pessoas de cor livres eram ainda usados
nas palavras do que nos atos e, muitas vezes, preferiam o jogo de influências para pres- como força auxiliar para reforçar fortificações imperiais, arsenais, estaleiros e co-
sionar os centros imperiais. Mas, independentemente de sua localização, os donos de municações. Em 1770 faltava quase inteiramente a Espanha e Portugal o vigor au-
plantations tendiam a ver-se como agentes autónomos com um objetivo racional e escla- tónomo dos territórios ingleses e franceses; a elite nascida no local ("crioula") tinha
recido na vida. O tipo de racionalidade económica quase capitalista incorporada íp/aníatíon importância no máximo secundária no governo e em geral, fora dos enclaves de
escravista estimulava este ponto de vista e muitas vezes o levava em uma direção antimer- planlalJons, estava mergulhada em torpor provinciano.
cantilista. Na luta para conseguir um retorno competitivo com sua propriedade, o dono Os proprietários de escravos mais independentes e vigorosos das Américas en-
da plantatíon contrariava-se com as restrições comerciais que o impediam de comprar contravam-se na América do Norte inglesa e no Caribe francês; perto do final do sé-
suprimentos mais baratos e vender a qualquer consumidor disponível. Os donos de culo XVIII alguns donos de plantations do Brasil português e do Caribe espanhol
plantations das índias Ocidentais britânicas sentiam essa contrariedade menos intensa- começaram a imitá-los. O arco da resistência dos proprietários de plantations ao con-
mente porque o livre comércio do império lhes permitia comprar suprimentos baratos trole imperial — que passou dos primeiros para estes últimos—é um dos temas deste
norte-americanos, implementos de metal e tecidos ingleses de baixo preço e encontrar livro. Começou com as colónias britânicas da América do Norte, em parte porque os
mercado para todo o açúcar que conseguissem produzir. Os donos de plantations da Virgínia proprietários de lá tinham uma posição mais forte, mas também porque o poder impe-
e de Maryland tinham um ponto de vista diferente porque, se vendessem o fumo dire- rial há muito vinha tolerando a autonomia colonial interna. Os Estados atlânticos mais
tamente para a Europa, poderiam economizar a comissão do intermediário. Os grandes fortes, Grã-Bretanha e França, haviam concedido mais espaço para o autogoverno colonial
proprietários das Antilhas francesas e dos enclaves à&plantatian da América espanhola do que Espanha e Portugal, mais fracos enquanto potências europeias, mas com for-
sabiam que os mercadores metropolitanos pagavam-lhes menos por causa de seus privi- midáveis burocracias imperiais. No ano de 1770 a escravidão colonial era mais forte
légios monopolistas e gostariam de ter acesso direto às manuraturas britânicas e aos su- onde a autoridade imperial era mais fraca, nas colónias inglesas. De forma semelhan-
primentos da América do Norte. Os proprietários de concessões de minas do Brasil sentiam te, a escravidão era mais fraca na América espanhola, onde a autoridade metropolita-
tais contrariedades de forma menos intensa, em parte porque suas concessões dependiam na era exercida de maneira mais dirigista. França e Portugal ocupavam posições
de licença real e em parte porque na década de 1770 a economia mineira estava em declínio intermediárias. Como a escravidão era inversamente proporcional ao exercício da au-
com a exaustão das jazidas. toridade metropolitana, não surpreende que o primeiro exercício de independência
O império colonial da Grã-Bretanha nas Américas permitia uma boa medida daria uma grande contribuição ao crescimento dos sistemas escravistas.
de autogoverno colonial. O império mantmha-se unido por sua própria coerência O império britânico, embora menos rigoroso e restritivo, era também menos
comercial, pela força da Marinha Real e pelo medo de índios e franceses. Com ex- útil para os donos de plantations da América do Norte do que as metrópoles de ou-
ceção do tabaco da Virgínia, a Grã-Bretanha absorvia com folga a maior parte da tros impérios coloniais, A partida dos franceses, que levaram consigo a necessidade
produção das plantations de suas próprias colónias. Por razões de engrandecimento de proteção militar britânica, também revelou que há muito faltavam ao império os
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princípios produtivos intrínsecos que ainda se mantinham, em maior ou menor grau, mais liberdade para fornecer couros e peles a mercadores europeus. Os que ti-
nos outros grandes impérios. O absolutismo francês concedia privilégios aos mer- nham concessões de minas operadas por escravos em Nova Granada e os donos
cadores de Bordéus e Nantes, mas também auxiliava os proprietários de plantations . de planíations de cacau da Venezuela faziam muito contrabando, mas, ainda as-
das Antilhas. O comércio de escravos era subsidiado, proprietários com títulos de sim, ressentiam-se do controle metropolitano.
nobreza eram isentos de impostos e as guarnições coloniais ajudavam a manter as
estradas, os portos e os sistemas de irrigação que tornavam São Domingos tão pro- A manutenção da escravidão colonial produziu padrões diferentes de privilégio ra-
dutiva. Os donos de plantations do Nordeste brasileiro também poderiam compilar cial, com diversos potenciais de conflito. Em todas as colónias, os brancos gozavam
uma lista semelhante de favores imperiais na década de 1760, quando Pombal ten-' destatus e vantagens especiais. Em 1770 todos os escravos americanos eram negros,
tou patrocinar a economia de plantations. Ao contrário, a infra-estrutura do império embora nem todos os negros fossem escravos. Os brancos de classe mais baixa e os
impunha-se aos donos de plantations da Virgínia mais como restrição do que como americanos nativos deviam sua liberdade à resistência comunitária. Os donos de
apoio. Isto não quer dizer que motivos estritamente económicos ditaram o padrão e escravos apelavam para a solidariedade racial dos brancos e às vezes clamavam até
a sequência da rebelião colonial; mas enquanto fossem eficazes, as estruturas aqui aos índios para ajudá-los a manter a escravização dos negros; mas apenas nas coló-
mencionadas teriam seu impacto na mentalidade e também no cálculo económico. nias inglesas a população negra livre era tão pequena que quase todos os negros eram
Quanto aos proprietários de minas da América espanhola, estavam em débito maior escravos. Na América portuguesa e espanhola, escravos ou seus descendentes ti-
para com as autoridades coloniais do que qualquer dono de plantation, já que de- nham obtido alforria em quantidade suficiente para criar uma população apreciável
pendiam delas, como observado anteriormente, para conseguir suprimentos, mão- de negros e mulatos livres. Às vezes os negros e mulatos livres eram considerados
de-obra, licenças e transporte.1 pelas autoridades um contrapeso, tanto em relação aos escravos quanto à elite crioula;
No Velho Mundo, o desenvolvimento comercial e manufàtureiro "intensivo" ocupavam uma posição intermediária no sistema de castas e era-lhes permiti-
dos Países Baixos levara a um choque momentoso com o império "extensivo" então da uma identidade separada, embora subordinada. No Brasil os portugueses formaram
mais poderoso, o dos Habsburgo espanhóis; impulso similar para a libertação nacional regimentos negros com oficiais negros em sua luta para expulsares holandeses; os
surgiu nas regiões do Novo Mundo onde havia intenso desenvolvimento do comér- espanhóis também formaram milícias negras no século XVIII. Cora frequência, as
cio, da agricultura e das plantations. fileiras de Henriques brasileiros ou dos batalhões pardos ou negros da América es-
A escravidão nas Américas estava pesadamente concentrada na zona tropical panhola eram formadas por escravos comprados pelo Estado, aos quais se oferecia a
e subtropical do Caribe e na área circunvizinha ao litoral atlântico das Américas liberdade em troca de um tempo mais longo de engajamento. Por ser cara a compra
do Norte e do Sul. Embora ainda houvesse regiões imensas que não haviam efe- de escravos para as forças armadas, eles eram, às vezes, capturados de inimigos da
tivamente sido colonizadas nem controladas por nenhuma potência imperial, ha- Coroa. No Caribe francês e holandês as pessoas de cor livres eram quase tão nume-
via também setores das economias coloniais nos quais a escravidão tinha papel rosas quanto os colonos brancos e recebiam algum reconhecimento oficial como
secundário ou insignificante. Os cerca de 25.000 escravos negros da Nova Ingla- contrafortes auxiliares do sistema escravista colonial. A complexa hierarquia social
terra em 1775 não eram cruciais para a agricultura ou a construção de navios; a das colónias espanholas, portuguesas e francesas contrastava com o sistema bipolar,
cooperação forçada da turma de escravos não tinha, na produtividade das peque- negro ou branco, das colónias inglesas, com sua população comparativamente grande
nas fazendas mistas e da manufàtura, a mesma influência importante que apre- de colonos brancos. Nas colónias àtplantation da América do Norte, a maioria branca
sentava no cultivo e no processamento dos produtos das plantations. No entanto, mal tolerava a presença de negros livres; nas índias Ocidentais britânicas, com sua
os mercadores, pequenos fazendeiros e capitães de navios da Nova Inglaterra maciça maioria negra, os brancos acharam aconselhável aceitar um pouco melhor
descobriram que os donos de escravos e, plantations eram bons fregueses e repeliam os negros e mulatos livres. Em todas as colónias, negros e mulatos livres podiam
tentativas de limitar seu comércio com as índias Ocidentais; até então era pouco possuir seus próprios escravos, mas nas colónias inglesas isso era bastante raro. A
o que podiam fornecer à Europa. Os criadores de gado da América do Sul muitas escravidão do Novo Mundo codificou a pele "negra" como característica de escra-
vezes utilizavam alguns escravos — vendiam carne-seca às plantations e queriam vos; pessoas de cor livres podiam ser levadas a negar sua cor — ou a negar a escra-
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vidão. Donos de escravos de ascendência parcialmente africana compartilhavam com cio negreiro de enormes proporções para manter ou aumentar o nível populacional. Não
os "brancos" a preocupação por seus direitos que os impelia a esta difícil opção. fosse por este afluxo, a população escrava das colónias do Caribe teria-se reduzido em
dois, três ou quatro por cento ao ano em meados do século XVL1L Os donos àtplantations
Em 1770 os escravos das Américas eram explorados mais intensamente do que qualquer do Caribe compravam mais homens do que mulheres por não estarem dispostos a arcar
outro grupo do mesmo tamanho em toda a história. Todavia, a ameaça imediata ao com as despesas da reprodução natural. Entre 1700 e 1774, meio milhão de escravos
império não vinha dos explorados, mas de uma aliança colonial que incluía muitos foram levados para a Jamaica, mas, ainda assim, a população escrava só aumentou em
exploradores. Embora as guarnições e esquadras coloniais às vezes estivessem dis- 150.000 indivíduos entre essas duas datas. O fato de que o escravo recém-chegado ao
poníveis para subjugar revoltas de escravos e para conter os maroons, * os donos de' Caribe tinha uma expectativa de vida de apenas sete ou dez anos e de que os contingen-
plantations preferiam esmagar a resistência por meio de suas próprias patrulhas e tes àasplantatwns eram continuamente refeitos pela compra tornou mais difícil a cons-
milícias. As forças metropolitanas tinham como principal função proteger as coló- trução e a transmissão de uma nova identidade coletiva. Por outro lado, a perspectiva
nias de ataques externos. É por essa razão que a vitória britânica na América do tenebrosa da vida n^plantaíion encorajou fugas individuais e ocasionais revoltas em massa.
Norte em 1763 foi abrangente demais para seu próprio bem; libertou os colonos de As condições de vida dos escravos e a segurança da plantation variavam muito
seu medo dos franceses e espanhóis. entre as colónias. Os 450.000 escravos da América do Norte inglesa estavam sujei-
Os que construíram, em cada colónia, os empreendimentos baseados em escra- tos à vigilância estrita e cuidadosa de seus proprietários, que em geral possuíam apenas
vos estavam unidos pela língua, pela identidade cultural e pelo interesse económi- algumas dezenas de escravos, se tanto. A chibata, o livro de orações e o controle dos
co; e tinham recursos para contratar empregados e garantir aliados junto à população alimentos pelo proprietário ajudavam a manter os escravos no trabalho árduo do
livre sem escravos. Estes últimos, pelo contrário, haviam sido arrancados de partes nascer ao pôr-do-sol, sendo as noites muitas vezes dedicadas ao processamento ou à
diferentes de um continente imenso, falavam línguas diferentes e tinham diferentes manufatura. No entanto, o clima mais ameno, a abundância de terra para o cultivo
tradições. A sequência de captura, venda e travessia era por si só traumática. Os de alimentos frescos e as exigências menos intensas do cultivo de tabaco evitaram
cativos africanos que vinham das regiões mais desenvolvidas eram mais vulnerá- que a população escrava norte-americana tivesse as taxas de mortalidade extrema-
veis, por terem mais familiaridade com a escravidão e menos familiaridade com a mente altas características das plantations açucareiras; os negros da América do Norte
vida na floresta do que os bosquímanos, que parecem ter formado uma parcela des- multiplicaram-se quase tão depressa quanto os brancos. Os donos deplaníaltons norte-
proporcional dos maroons. Fez-se todo o possível para impedir que os escravos de- americanas pagavam preço mais alto pelos escravos, mas taxas de juros muito mais
senvolvessem um objetivo ou interesse em comum, semeando-se a divisão dentro baixas, o que lhes dava incentivo para encorajar a reprodução natural da mão-de-
das plantations e impedindo a comunicação entre elas. A população escrava era sem- obra escrava. Os vínculos familiares tornaram os escravos da América do Norte menos
propensos a fugir ou revoltar-se do que os do Caribe.
pre fonte de apreensão para os senhores; mas este medo não paralisou os donos de
A baixa taxa de sobrevivência dos africanos em boa parte do Novo Mundo re-
escravos, que acreditavam estar mais bem informados do que os funcionários da
fletia parcialmente o fato de que estavam concentrados nas planícies tropicais, onde
metrópole a respeito das necessidades dos cativos.
as doenças cobram seu pesado preço de todos os imigrantes. Mas certamente o ex-
As colónias com grande maioria escrava não poderiam sobreviver por mais de um
cesso de trabalho e o consequente descuido com a subsistência ajudaram a matar os
século caso não reproduzissem com eficácia a sujeição dos que eram utilizados em traba-
escravos. Pelo menos dois terços dos africanos que chegaram ao Novo Mundo fo-
lhos forçados. O ímpeto destrutivo e a íucratividade extraordinária à&plantatkn recria-
ram enviados ^^plantations açucareiras. No Caribe e no Brasil, as plantations
vam continuamente uma força de trabalho que tinha pouca oportunidade de se descobrir.
açucareiras impunham regularmente aos escravos uma jornada de trabalho de 16
Os contingentes de escravos condenados a trabalhar n3£plant&tÍQns das zonas tropicais e
ou até de 18 horas por dia; havia trabalho noturno no engenho e, chovesse ou fizes-
subtropicais tinham mortalidade tão alta e fertilidade tão baixa que exigiam um comer-
se sol, trabalho no campo de dia durante o longo ciclo de plantio e colheita. Os es-
cravos recebiam rações magras e esperava-se que se alimentassem com o fruto do
*Com unidade s de negros fugidos da escravidão que se formaram em várias regiões do Caribe e viviam nas mon-
tanhas ou na selva, às vezes em associação com índios remanescentes. (N. da. T.) trabalho de um dia ou um dia e meio por semana em roças a eles destinadas para
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este propósito. As plantations do Caribe continham, em geral, centenas de escravos e ao fazê-lo também davam a seu dono os recursos para comprar um novo escra-

cada uma; os feitores e capatazes brutalizados aos quais eram confiados não tinham vo jovem e, assim, perpetuar seu papel de proprietário de escravos.
sequer a razão dúbia do proprietário para tratar com algum cuidado os seus escra- Os proprietários de escravos americanos julgaram conveniente promover uma
vos, ou seja, que eles perderiam valor caso não fossem bem tratados. Na América camada de escravos mais permanentes, talentosos ou responsáveis que haviam do-
espanhola e portuguesa, em geral o destino do escravo d^ptantation não era melhor, minado as complexas exigências da agricultura deplantalion, e nela confiar Esses
e, na verdade, o dos escravos das minas de ouro era ainda pior—neste último caso, escravos recebiam pequenos privilégios e, em troca, esperava-se que ajudassem a
não havia sequer um ciclo de colheita para limitar o excesso de trabalho, e a exposi- vigiar ou dirigir seus colegas nas turmas de escravos. Os membros da elite escrava
ção à água e às intempéries provocava alta mortalidade. O preço relativamente bai- tinham rações extras, podiam escolhera parceira e gozavam pelo menos de uma margem
xo pelo qual se compravam novos cativos dos mercadores e o alto valor da produção de manobra para negociar o ritmo e o volume de trabalho n&plantation. Com fre-
dos escravos — fosse açúcar ou ouro — conferiram uma lógica comercial terrível à quência os donos de plantations do Caribe passavam para os "cabeças" escolhidos
prática de consumir a vida dos escravos em poucos anos de trabalho intenso. E en- todas as roupas, alimentos e rum destinados ao contingente inteiro de escravos. Desta
quanto o contingente de escravos fosse dizimado pela doença e pelo excesso de tra- forma a elite escrava tinha interesse na manutenção da estrutura de autoridade da
balho, seria difícil para eles resistir coletivamente à opressão. plantaíion. É importante reconhecer a força interna deste regime. Em princípio,
Em toda a zona deplaníations os escravos eram sujeitos a açoitamentos repeti- cada plantation era um mundo em si mesmo, e normalmente só os escravos mais
dos, e com eles ameaçados, além de outras formas de punição; as escravas eram es- privilegiados tinham permissão de relacionar-se com outras planíalions. Até os es-
tupradas pelos brancos; e a comunidade dzplantatton, se assim podemos chamá-la, cravos do campo tinham motivos para temer a vida nas áreas selvagens e sentir-se
era abandonada à subnutrição e à doença, ao desânimo e à lassidão, quando não ligados à propriedade, onde podiam ter suas roças e suas relações pessoais. A resis-
galvanizada pela força bruta para atender ao ritmo implacável do trabalho. As con- tência escrava ao regime da plantaíion era endémica e assumia tanto a forma refor-
dições materiais da existência do escravo eram, sem dúvida alguma, piores no Caribe mista quanto a revolucionária. Os escravos negociariam, por meio dos capatazes e
e no Brasil do que na América do Norte, onde o clima e o tipo de cultura eram menos feitores, hortas maiores ou uma noite extra para trabalhar para si mesmos. O abso-
rigorosos. Por outro lado, o grande tamanho das plantations do Caribe diminuiu o lutismo da categoria jurídica da escravidão pode nos impedir de ver todas as carac-
impacto cultural dos proprietários de escravos; este íàtor favoreceu a sobrevivência terísticas da verdadeira condição do escravo, importantes para os escravos propriamente
de traços africanos e, afinal, a descoberta de novas fontes de identidade comunitá- ditos. Embora o regime az plantation fosse um choque para o recém-chegado, os
ria. Em todo o Caribe as línguas e dialetos crioulos, pesadamente influenciados pelo habituados a ele vieram a distinguir boas e más condições, bons e maus capatazes
vocabulário e estrutura das línguas africanas, tornaram-se o principal meio de co- ou feitores. Ainda desejariam a liberdade, mas outros objetivos podiam parecer mais
municação. As grandes plantations de arroz da Carolina do Sul tenderam a este úl- imediatos e práticos — uma roça maior ou complicar a vida de um feitor odiado. Ao
timo padrão, e os habitantes daquela região desenvolveram uma língua própria, trabalharem de forma lenta ou "estúpida" ou aparentarem indiferença em relação a
chamada gullah, assim como os habitantes das ilhas em várias partes do Caribe. ameaças e punições, os escravos às vezes podiam barganhar condições melhores. Os
O padrão diversificado e tradicional da escravidão na América espanhola e, em donos dcplantatíons e as autoridades locais tinham poder de fogo superior e usariam
menor grau, no Brasil encorajou os escravos mais privilegiados a desenvolver sua de toda brutalidade para manter a subordinação servil, mas os proprietários e ad-
própria incorporação subordinada à sociedade colonial e a esperar o dia em que eles, ministradores às vezes descobriam que a negociação era a melhor forma de conse-
ou seus filhos, seriam libertados. Irmandades religiosas especiais proporcionavam guir completar a colheita; as tristes alternativas disponíveis para os negros limitavam
um meio cultural e uma forma de previdência social para a comparativamente gran- severamente as barganhas em que podiam ter sucesso.
de população negra e mulata livre.9 Nas colónias espanholas e portuguesas havia Nas ilhas açucareiras francesas e britânicas, onde os escravos representavam de
um número considerável de escravos semi-autônomos que trabalhavam no comér- 80a 90% da população, os proprietários estavam evidentemente muito mais atentos
cio ou na terra sob sua própria supervisão. Com permissão de reter parte de seus à garantia oferecida pelo Estado colonial do que no continente. Em último caso,
ganhos, podiam comprar a liberdade, sua ou de um parente, em cerca de vinte anos sempre poderiam pedir ajuda às guarnições e aos "navios de linha" da metrópole,
36 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 37

mesmo que preferissem contar apenas com suas próprias forças. Na prática, o ta- para o lado do progresso e pelo menos alguns deles ascenderam como os principais
manho pequeno das colónias do Caribe e a proximidade das tropas da milícia redu- líderes revolucionários da época. Com a revolução industrial ainda em sua primeira
ziam grandemente as oportunidades de revolta ou fuga de escravos. A preocupação infância em 1770, não havia nada no mundo atlântico que se comparasse ao espan-
com a segurança e as vantagens comerciais poderiam, no entanto, colocar os donos toso crescimento da produção e do comércio dasplaníaíions no século e meio anteriores.
deplantations do Caribe contra sua metrópole nacional. Durante a Guerra dos Sete Em termos socioeconômicos, os senhores de escravos do Novo Mundo criaram
Anos, a Grã-Bretanha conseguiu ocupar setores do Caribe francês e espanhol com um novo tipo de escravidão e foram obrigados a inventar, praticamente do nada, as
a colaboração ativa dos proprietários locais. bases legais e ideológicas de um sistema escravista. Esta experiência histórica do-
Todo o processo colonial, através do qual certos Estados da Europa ocidental tou-os de certa confiança em sua própria capacidade. No entanto, não haveria ne-
conquistaram impérios nas Américas e neles desenvolveram minas tplaníationst pode nhuma Declaração dos Direitos dos Senhores de Escravos. Os revolucionários donos
ser descrito como um crescimento prodigioso das forças sociais, algumas delas co- de escravos preferiram reforçar outras identidades e outros interesses comuns, em
ordenadas por Estados, muitas outras propelidas por centros privados de riqueza e geral os que unissem todos os cidadãos livres. Alguns revolucionários donos de
poder. Os cativos africanos foram introduzidos em uma formação social em que o plantations repudiaram não só o comércio negreiro, como também a escravidão como
dono de escravos não dispunha apenas do poder de fogo de seus capangas, mas também incoerentes com as liberdades civis e a integridade nacional; descartaram aquele aspecto
do apoio de seus vizinhos e clientes. Sem os alimentos adquiridos pelo proprietário de sua dupla ou tripla identidade que achavam mais difícil justificar e preferiram
ou seu administrador, poderia haver fome. Os proprietários dzplanlations e funcio- ver-se como cidadãos e homens de empresa e cultura. Mesmo para um senhor de
nários coloniais controlavam os sistemas locais de informações e faziam de negros escravos, não era difícil compreender o feto de que a escravidão era o lado feio do
desobedientes vítimas de violência exemplar. Até a população ameríndia era, com progresso do Novo Mundo. A escravidão já era considerada degradante muito tempo
frequência, hostil aos negros rebeldes ou fujões. antes de moralistas e economistas explicarem suas próprias objeções.
Em tempos normais o escravo estava preso a uma estrutura de opressão insidiosa
e multiíacetada, na qual os proprietários dispunham de recursos económicos e ideo- Em seu estudo clássico sobre A era da revolução, E. J. Hobsbawm examinou o im-
lógicos além de garantias políticas e militares; em contraste, os cativos estavam di- pacto económico da revolução industrial da Grã-Bretanha e o im pacto político da Revo-
vididos por seu histórico e pela situação, afastados de suas origens mas isolados lução Francesa. Há muita coisa no desenvolvimento europeu e americano subsequente
no novo ambiente e enredados em um sistema vasto e complexo de controle territorial, e no mundo moderno que pode ser rastreada até as consequências monumentais desta
troca económica e mobilização social. "dupla revolução". No entanto, a história da escravidão do Novo Mundo exige atenção
para outro conjunto de forças e impulsos: aqueles gerados pelo impacto e exemplo
A rivalidade entre os vários impérios ajudou a armar o cenário para as tentativas político do Estado hanoveriano, principal potência atlântica, e o impacto económico
dos colonos de assegurar uma esfera maior de autonomia e criou algumas oportuni- dos acontecimentos revolucionários na América do Norte, no Caribe e na América
dades para a resistência dos escravos; apenas uma década entre 1660 e 1770 não foi do Sul. Mesmo aqueles que combateram a Grã-Bretanha hanoveriana encontraram
marcada pela guerra entre um ou outro dos Estados atlânticos. nela muito que admirar; suas instituições políticas, como veremos, seriam ampla-
O mercantilismo colonial protegera a infância dos sistemas escravistas e os co- mente imitadas no mundo atlântico da época e vieram a ser associadas à coexistên-
mércios negreiros nacionais, mas a produção cresceu com mais vigor quando os cia desconfortável da escravidão dzplantation com um abolicionismo ainda imaturo.
monopólios oficiais foram desmantelados e suspensas as restrições mercantilistas. Da mesma forma, as revoluções de 1776, 1789 e posteriores tiveram consequências
Alguns donos de plantaíions sentiram confiança suficiente em sua posição para exi- prodigiosas para o futuro económico da escravidão nas Américas. Elas romperam
gir o autogoverno e a liberdade comercial para as colónias; outros preferiram patro- barreiras mercantilistas para a expansão dzs plantations e deram impulso à dissemi-
cinar a mudança dentro da metrópole. Alguns poucos eram reacionários com posição nação da escravidão no continente; ao mesmo tempo, criaram oportunidades para
contrária a mudanças, ocupando um nicho privilegiado na ordem predominante. uma sucessão de graves sublevações contra a escravidão no Caribe. A literatura so-
Os donos de escravos não tinham objetivos ou situações uniformes, mas tendiam bre a "Era da Revolução" tende a concentrar-se na Europa, embora R. R. Palmere
33 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 39

J. Godechot tenham ressaltado o impulso democrático revolucionário das 13 coló- ma semelhante, falando o idioma não marxista, considera-se que o avanço da racio-
nias norte-americanas. Mas os acontecimentos na zona dsplantations depois de 1776 nalização ou da sociedade industrial ou das relações de mercado expulsou a forma
— o surgimento de novas propriedades baseadas na escravidão ou a disseminação social primitiva da escravização. Se a escravidão desenvolveu-se na aurora do capi-
da revolução e da emancipação do Haiti para a América espanhola — não recebe- talismo, como insisti antes, como é que o avanço capitalista também despertou im-
ram atenção compatível com sua importância. O presente estudo, por dedicar-se a pulsos antiescravistas? No decorrer deste livro, tentar-se-á resolver o paradoxo de
um capítulo essencial da história da escravidão no Novo Mundo, vai explorar esta como o capitalismo, em primeiro lugar, precisou de regimes de trabalho forçado e,
dimensão americana um tanto negligenciada.10 mesmo assim, libertou forças que ajudaram a combater a escravidão americana.
E claro que não há entendimento consensual sobre a "Era da Revolução" na Europa, Em Capitalismo e escravidão (1944), Eric Williams desenvolveu o argumento
mesmo entre os marxistas. A obra de Hobsbawm foi notável por abordar a complexi- de que a escravidão pertencia ao velho mundo do mercantilismo colonial e que se
dade internacional de um processo continental e influente de "revolução burguesa" tornou redundante com o surgimento do trabalho assalariado na metrópole e com a
no qual a política e a economia avançaram em contraponto e não em uníssono. As lu- disseminação do domínio colonial europeu na Ásia e na África. Ao mesmo tempo
tas de classes desta época não ficaram de forma alguma confinadas à luta de uma nas- em que contém muitos argumentos poderosos e exemplos maravilhosos, Capitalis-
cente classe capitalista contra o feudalismo obsoleto. Pequenos produtores, trabalhadores mo e escravidão propõe uma explicação do abolicionismo segundo a qual os capita-
assalariados, artesãos, pequenos funcionários públicos, "burgueses" não capitalistas, listas industriais desfizeram-se do comércio negreiro e da escravidão colonial por
todos tiveram seu papel. Às vezes fizeram alianças com os interesses capitalistas ou motivos essencialmente económicos. Faz-se referência a tensões sociais mais amplas
ajudaram a remover obstáculos ao avanço capitalista. Mas uma característica distinti- e a revoltas de escravos, mas o peso principal da explicação recai sobre o interesse
va da "Era. da Revolução" é que as forças populares também intervieram para prote- económico capitalista. A abolição britânica é abordada como se fosse um processo
ger seus próprios interesses o melhor que puderam. Esta época de progresso "burguês" nacional bastante auto-suficiente, e o destino da escravidão na América indepen-
acabou por produzir estruturas de Estado nacional mais adequadas à acumulação de dente não é investigado, nem como teste de sua tese nem como influência sobre a
capital do que os anciens rê$ime$\s também trouxe à luz os movimentos e institui- emancipação britânica. Williams não ignora o fato de que o desenvolvimento do ca-
ções democráticos que agiram como freio ao poder do capital. O curso dos aconteci- pitalismo e da escravidão foram intimamente relacionados. Mas minimizou o pro-
mentos nas Américas apresentaria complexidade semelhante, marcada pek luta de classes blema da explicação ao sustentar que a escravidão produzira o capitalismo, e não o
popular e pela revolução burguesa. Este processo secular e contestado levou os se- contrário. Em contraste com o entendimento marxista das origens do capitalismo,
nhores de escravos americanos aos píncaros da riqueza e do poder em determinado Williams não levou em conta a acumulação de capital agrário, manufàtureiro e
momento apenas para despedaçá-los no momento seguinte. mercantil na época pré-industrial. Para ele, os sistemas escravistas do Novo Mun-
O feto de que os senhores de escravos, do Chesapeake ao Rio de Janeiro, pu- do, longe de serem uma consequência do desenvolvimento capitalista, foram uma
dessem ser protagonistas da "revolução burguesa" e do desenvolvimento capitalista escada descartável pela qual ele subiu. No final, seu esquema "dialético" de um
é, claro, totalmente paradoxal, já que eles mesmos não eram burgueses nem capita- capitalismo que usou uma escravidão descartável é mecânico e insatisfatório.
listas, ainda que seus parceiros mercantis pudessem ser assim descritos. E há ainda Em The Problem ofSlavery in the Age ofRevolution 1776-1823 (1975), David
o problema de que, embora o surgimento do capitalismo na Europa nos séculos XVII Brion Davis apresenta uma investigação mais comparativa e complexa dos aboli-
e XVIII tenha manifestamente promovido o desenvolvimento dos sistemas escravistas cionistas, esclarecendo os caminhos pelos quais eles ajudaram a construir uma nova
no Novo Mundo, ainda assim parece haver algum vínculo entre o capitalismo e o hegemonia burguesa, ainda que se movendo contra um modo de exploração mais
surgimento do antiescravismo. Em vários estudos notáveis, a abolição da escrava- primitivo na zona deplanlalions. Esta obra admirável focaliza principalmente a ideologia
tura ou do tráfico negreiro foi identificada com os objetivos ou os princípios de uma do abolicionismo, apresentando de forma apenas resumida algumas das lutas ante-
nova civilização capitalista e imperialista. Já se argumentou que a crítica da escravi- riores sobre a emancipação. Embora as controvérsias metropolitanas sejam muito
dão preparou o caminho para os regimes de mão-de-obra industrial assalariada ou bem esclarecidas, o padrão de resistência e acomodação dos próprios escravos não é
para a imposição da hegemonia burguesa a todas as camadas da sociedade. De for- integrado à análise. A experiência e as aspirações dos escravos desta época são mui-
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to mais difíceis de identificar e documentar do que o pensamento dos principais da escravidão e do antiescravismo nas Américas pode dar sua própria contribuição ao
abolicionistas, mas isto não nos dispensa de tentar sugerir sua inadequação, como este livro tenta fazer' 1
O ensaio notável de Eugene Genovese, From Rebellion to Rwolution (1979), ex- Embora os historiadores do abolicionismo tendam a ignorar os acontecimentos
plora o desenvolvimento do antiescravismo dos próprios escravos e argumenta que na zona de plantations ^ há também uma escola florescente de "estudos da escravi-
seu alcance e sua trajetória foram transformados durante a época da revolução demo- dão" que se abstrai do contexto fornecido pela política e pela economia da metrópo-
crática burguesa. Nestas substanciosas obras de interpretação, baseadas em amplas le. A vida dos escravos e a resistência negra são estudadas isoladamente, sem referência
pesquisas, Davis e Genovese qualificam e matizam a tese que vincula o antiescravismo a seu impacto sobre as decisões metropolitanas. A especialização académica e a di-
ao surgimento da sociedade burguesa. Davis mostra que os abolicionistas visavam com visão do trabalho têm suas justificativas, mas as razões da destruição da escravidão
frequência mais do que uma revisão puramente capitalista das relações sociais, enquanto colonial não podem ser percebidas se a abolição metropolitana e as lutas da zona de
Genovese apresenta as formas pelas quais a resistência escrava veio a prevalecer sobre plantations forem alceadas em departamentos diferentes do conhecimento.
o egoísmo burguês e lembra-nos de que a revolução democrática burguesa na própria O modelo ainda não superado para a compreensão da luta contra a escravidão é
Europa assistiu várias vezes às forças populares impondo o progresso democrático a The Black Jacobins: Toussaint TOuverture and tke San Domingo Revolution, de C. L. R.
uma burguesia relutante, tímida ou traiçoeira. Davis e Genovese chamam a atenção James (1938). Nesta obra, James determina o impacto da revolução no Caribe so-
para as tensões e contradições que isso provocou e colocam o surgimento dos movi- bre os acontecimentos na metrópole e explora a fusão extraordinária de tradições e
mentos abolicionistas e a legalização e o resultado final da emancipação em um con- impulsos diferentes conseguida em São Domingos na década de 1790. A história de
texto de luta de classes tanto na zona deplantations quanto na metrópole. Com base James esclarece o funcionamento essencial do capitalismo, do racialismo, do colo-
nessas abordagens, o presente livro busca construir uma narrativa marxista das ver- nialismo e da escravidão — e as complexas lutas de classes que provocaram em São
dadeiras lutas de libertação nas várias regiões das Américas e estabelecer até que pon- Domingos; transmite uma sensação maravilhosa de irrupção das massas na histó-
to o antiescravismo, em intenção ou resultado, transcendeu a dinâmica democrática ria. Com sensibilidade afinada com as forças cosmopolitas da época, ele segue o impulso
ou capitalista burguesa. A reconstrução narrativa oferecida também busca reconhe- revolucionário transatlântico a cruzar o oceano de São Domingos a Paris e de volta
cer a contribuição dos senhores de escravos ao processo revolucionário burguês mais ao Caribe. Como explicação, é mais satisfatória e, como narrativa, muito mais atra-
amplo, ao desmantelamento da escravidão colonial e ao nascimento de novos sistemas ente do que aqueles relatos de lutas ligadas à escravidão colonial que nunca olham
escravistas. Isto envolveu reunir a política colonial e metropolitana em um relato do para fora das plantations ou, pior ainda, nunca abandonam as salas de visita ou os
destino da escravidão em cada colónia durante a época revolucionária, país por país. salões de debate na metrópole. Em alguns círculos, supõe-se que a história narrati-
Na década de 1980 há sinais de que o estudo do abolicionismo vem se tornando va tem pouco a oferecer e é incapaz de identificar as estruturas profundas da econo-
um ramo especializado e desligado da história da escravidão. O abolicionismo é visto mia, da mentalidade ou da vida política.12 O presente livro foi escrito com a convicção
como uma expressão importante da reforma da classe média em vez de uma resposta de que, se são reais e efètivas, tais estruturas também serão visíveis no nível dos eventos.
às lutas na própria zona de plantations. O feto de que o abolicionismo levou à emanci- E com a crença adicional de que as forças socioeconômicas e os discursos ideológi-
pação dos escravos tende a ser aceito sem investigação. Assim, o abolicionismo é en- cos são tão inerentemente antagónicos e contraditórios que abrem espaço para a opção
tendido como justificativa do avanço capitalista, da propagação de um modelo de e a ação políticas, as quais também devem ser registradas caso se queira apreender a
sociedade de mercado e da confiança burguesa no progresso. Em um trabalho assim, dinâmica do desenvolvimento histórico. Assim, a tentativa de construir uma narra-
o foco tende a cair sobre a evolução do pensamento e do sentimento social nas classes tiva põe à prova interpretações conflitantes. Pode ser útil estabelecer o peso e o sig-
médias metropolitanas. Pouca atenção se dá à luta de classes metropolitana ou às dis- nificado respectivos das diferentes forças e fàtores em ação. Nos relatos a seguir,
putas relativas ao objetivo e ao caráter do Estado; e concede-se ainda menos atenção tentei colocar em contexto as lutas relativas à escravidão colonial e mostrar que o
aos acontecimentos na própria zona de plantations, à resistência escrava e ao papel dos antiescravismo foi muitas vezes imposto por pressões externas aos agentes de deci-
ex-escravos na determinação do resultado do processo de emancipação. Embora a crítica são na metrópole. A pesquisa marxista, em obras de escritores como James, Genovese,
•; teórica dessas abordagens seja necessária, uma narrativa que identifique os avanços Gorendere Fraginals, já deu uma contribuição notável à nossa compreensão da for-
r
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mação e da derrubada da escravidão nas Américas. Mas a relação deste conjunto de impacto deste último sobre os escravos e seus senhores, sobre os estrategistas do
obras com a corrente dominante do desenvolvimento capitalista e da luta de classes império e sobre o meio flutuante de aventureiros e revolucionários tenta remediar
ainda não foi suficientemente apreciada, o que fornece uma razão adicional para o esta deficiência, com a ajuda da bem-vinda enxurrada de monografias de historia-
presente estudo. As conclusões aqui oferecidas continuam a ser parciais e experi- dores do Caribe sobre o assunto. Espero mostrar que é quase impossível exagerar o
mentais, em um campo no qual a pesquisa e o debate avançam a passos rápidos. impacto da revolução haitiana sobre o destino da escravidão colonial.
Esta e outras conclusões emergem de capítulos que delineiam o progresso da es-
O primeiro capítulo examina as fontes do antiescravismo no mundo atlântico de mea- cravidão e do antiescravismo nos Estados Unidos, na América espanhola e portugue-
dos do século XVTII — no sentimento popular, na resistência dos escravos e na filo- sa, nas índias Ocidentais britânicas e nas Antilhas francesas. Eles destacam o paradoxo
sofia. Mas foi necessária a crise do império para que o antiescravismo se tornasse uma de que, embora este período de revolução "democrática burguesa" e de avanço capi-
questão da política prática; capítulos subsequentes traçam a irrupção de temas anties- talista tenha fortalecido e ampliado a escravidão em algumas partes do Novo Mundo
cravistas nas crises imperiais e revolucionárias que se alternaram na história das po- (sul dos Estados Unidos, Cuba e Brasil), também armou o cenário para as correntes
tências atlânticas até meados do século XIX. Os sistemas de escravidão colonial se antiescravistas que garantiram substanciais emancipações de escravos em quase todas
desfizeram quase na ordem inversa de sua formação, com a crise dos sistemas britâni- as décadas de 1780 até 1840, e ainda depois. Não pode haver dúvida de que esta cor-
co e francês precedendo, e ajudando a precipitar, a das potências ibéricas. Já foi suge- relação paradoxal apresenta um grande desafio à explicação histórica.
rido que a escravidão americana tinha um ímpeto expansionista geralmente frustrado Recentemente alegou-se que o compromisso com o progresso histórico não podia
pelo mercantilismo colonial, e portanto não surpreende que a crise dos sistemas colo- mais ser mantido. Certamente a história da escravidão do Novo Mundo não permi-
niais tenha sido provocada pelo crescimento e não pela contração. Foi totalmente apro- te uma concepção simples ou linear do avanço histórico. Mas quando se levam em
priado que a Grã-Bretanha hanoveriana, engrandecida pelo comércio ligado aos escravos, conta todas as tendências e contradições, os movimentos americanos pela indepen-
tenha sido o primeiro Estado a ser humilhado por seus próprios colonos, em 1776-83, dência, pelas liberdades republicanas e pela emancipação dos escravos representam
e depois, na década de 1790, o primeiro a ser derrotado por escravos rebelados. Os conquistas épicas da história humana e da formação do mundo moderno. Apesar
donos de plantations da América do Norte inglesa não eram os mais ricos do Novo dos resultados heterogéneos do antiescravismo da época, os sacrifícios de escravos
Mundo, mas incorporavam-se à formação social colonial mais dinâmica e estavam em rebeldes, abolicionistas radicais e democratas revolucionários não foram em vão. Eles
melhor situação para desafiar o poderio metropolitano. Os Capítulos 2 a 4 examinam mostram como foi possível enfrentar, e algumas vezes derrotar, a opressão que me-
o antiescravismo na Grã-Bretanha e na América do Norte, colocando tanto a Revolu- drou como anverso horrível do crescimento da capacidade e do poder sociais huma-
ção Americana quanto o surgimento da abolição no contexto da ordem política e da nos no mundo atlântico do início do período moderno. Em termos mais gerais, são
cultura da qual emergiram. Nos capítulos seguintes a derrubada da escravidão colo- de interesse por esclarecerem as maneiras como, embora de forma incompleta ou
nial francesa é, de forma similar, considerada em seu contexto, o da crise do ancien imperfeita, os interesses de emancipação podem prevalecer contra as leis e os costu-
regime e da irrupção das forças revolucionárias na França e no Caribe. mes antigos e o espírito de impiedosa acumulação.
Com frequência os relatos da abolição e da escravidão no Novo Mundo passam
depressa demais pelo impacto causado sobre elas pelas revoluções no Caribe fran-
cês e pelo aparecimento do Haiti, um Estado negro. É quase como se o Black Jacobins Notas
de James os dispensasse de levarem conta os importantes aspectos concomitantes e
as consequências da única revolta de escravos bem-sucedida na história. Na verda- 1. Sobre as muitas variedades de escravidão, ver Orlando Pattcrson, Sfauery and Social
de, a obra de James deveria ser uma inspiração para identificar o impacto da "pri- Death, Cambridge, Mass., 1982; tento definir esta instituição variável em uma contri-
meira emancipação" sobre as lutas posteriores contra a escravidão colonial em outras buição em Lconie Archer, org., Slavery, Londres 1988.
partes das Américas. O relato detalhado, nos Capítulos 5 a 9, da desintegração do 2. Elizabeth Fox Genovese c Eugene Genovese, Fruifs ofMerchant Capilal; Slavery and
poder dos senhores de escravos em São Domingos, do nascimento do Haiti e do Eourgeois Property in the Rise andExpansion of Capitalismt Oxford e Nova York, 1983;
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Manuel Moreno Fraginals, El Ingcnio, 3 vols., Havana, 1978; ver também Richard S.
Duna,SugararuíSfavcs, Chapei HU1, 1972;MichaelCratoneJames Walvin, AJamaica
Piantatian, Toronto, 1970; Gabriel Dcbien, Lês Escla-ves aux Aniilles Françaises: XVII-
XVIII Sièck, Basse Terrc, Guadalupe, 1974.
As origens do antiescravismo
3. Jacob Gorendcr, O exra-vismo colonial, São Rmlo, 1978 (p. 242 para a discussão citada).
4. Estas e outras características da formação da escravidão colonial no Novo Mundo até
1776 serão exploradas sistematicamente em uma sequência da presente obra intitulada
The West andthe Rise ofSlavery. *
Branco diz o preto furta
5. J. H. Rirry, The Spanish Sea-borne Empire, Londres, 1966; James Lockhart e Stuart
Preto furta com razão
Schwartz, Eariy Latin-America, Cambridge, 1983, pp. 98-101, 181-252; James Lang,
Sinhô branco também furta
Poríuguese Brazil: The Kings Plantation, Nova York, 1979, pp. 115-52, 205-18. Sobre o Quando faz a escravidão
contexto mais amplo, ver Eric Wolf, Europe andthe People Wiíhouí ffisíory, Londres,
1984. Canção brasileira dos tempos da escrawdão
6. Os dados neste parágrafo c nos anteriores foram extraídos de Ralph Davis, The Rise of
the Atlantic Economies, Londres, 1973, pp. 257, 264-5; Fraginals, El Ingenio, I, p. 41; [...] the king and his othcr lord[...] found there [Milc End]
Paul E. Lovcjoy, "The Volume of the Atlantic Slave Trade: A Synthesis", Journal of threescore thousand men of divers villages and of sundry countrics
África» History, voL 23,1983, pp. 473-501; David Eltis, "Free and Coerced Transatlantic in England. Só the king cntered in among them and said to them
Migrations", American Historical Revúrtc, vol. 88, n°. 2, abril de 1983, pp. 251-80. sweetly, 'Ah, yc good people, I am your king. What lack yc? What
7. Sobre, a dinâmica do consumo por trás do desenvolvimento da plantalion> ver Sidney will yc say?' Then such as understood him said: 'We will that ye
Mintz, Sioeetness and Power, Londres, 1985. makc us free for ever oursetves, our heirs and our lands, and that
8. Para um exame esclarecedor das formas pelas quais os impérios impuseram a coorde- we be called no more bond, nor só reputed1. 'Sirs', said the king. 'I
nação produtiva, ver Michael Mann, The Sources of Social Power, Cambridge, 1986, am well agreed thercto. Wíthdraw ye home into your own kouses
pp. 145-55, 250-98. and into such villages as ye carne from[...] and I shall cause
writings to be made aad seal them with my seal[...] containing
9. A. J. R. Russcll Wood, The Black Man in Slavery and Freedom in Colonial Brazil, Lon-
everything that ye demand' [...] These words appeared well to the
dres, 1982,pp. 128-60; mas ver também Ronaldo Vtin&s, Ideologia e escravidão, Petrópolis,
commom people, such as werc simple, good, plain men.*
1986, pp. 93-115.
10. Embora o próprio Hobsbawm certamente registre, de forma breve mas enfática, esta FrQÍs$ará"s Chronicle
dimensão americana; ver The Age ofRevotuíio», Londres, 1964, pp. 69, 110.
11. Para um exemplo desta abordagem, ver Thomas Haskell, "Capitalism and the Origins
ofthe Humanitarian Sensibility, Part l", American Hisloricall&view, vol. 90, n°. 2, abril
de 1985, "ftrt 2", American HistoricalReview, vol. 90, n°. 3, junho de 1985; ver tam-
bém o "Fórum" sobre estes artigos tmAmerican HistoricalReview, vol. 92, n°. 4, 1987,
pp. 797-878, com críticas de David Brion Davis c John Ashworth e a resposta de Thomas
HaskclL
12. François Furct, Interpreting the French fovo/utio», Cambridge, 1985, pp. 184-204. [..,] o rei e seus outros lordes [,..] encontraram lá [era Milc End] sessenta mil homens de aldeias de mergulha-
dores e de diferentes regiões da Inglaterra. E então o rei foi para junto deles e disse-lhes docemente: "Ah, boa
gente, sou vosso rei. O que vos falta? O que direis?" Então aqueles que o compreenderam disseram: "Desejamoí
que nos torneis livres, a nós, nossos herdeiros c nossas terras, c que não sejamos mais chamados cativos, nem
assim considerados." "Senhores", disse o rei, "estou bem de acordo com isso. Rclirai-vos para vossos tares, para
vossas próprias casas e para as aldeias de onde viestes [...] c eu farei com que os textos sejam escritos e selá-los-
•Obra que acabou por intitular-se The Maki»s efSUvery /«the Não Hér/úí e que *ri publicada pela Rccord, cm ei com meu selo [...] contendo tudo o que pedis." [...] Tais palavras soaram bem para a geníe do povo, que eram
breve, com o título A cotulr*íâo da ucravamo no Novo M*nda: 1492-130Q homens comuns, bons, simples.
. XIII ===

Conclusão: resultados e
perspectivas

No more of rapine and its wasted plains


Its stoíen victims and unhallowed gains,
Its Christian merchants, and the brigands bold
Who wage their wars and do their work for gold.
No more of sorrows sick'ning to the heart,
Commercial murders and the crowded mart;
The living cargoes and the constant trace
Of pain and anguish in each shmnken face!.,.

*No one perhaps, replied the Count, can more


The sad, butstrongnecessity deplore,
Of buying men to cultivate our plains
And holding these, our feilow men in chains.
The very name of slavery, to me
Is vile and odious te the last degree...
Thinlc not, I pray, I advocate this cause,
Or speak of such a system with applause;
Sir in the abstract it must be condemned,
It is the practice only I defend
For ad quo morais, nothing can be worse
Bui ad quo sugar, 'tis the sole resource.'*

The Sugar Esiaíe (1840), R. R. Maddcn

*Chega de rapina e suas terras devastadas/Suas vítimas roubadas e ímpios lucros/Seus mercadores cris-
tãos, e os ousados bandoleiros/que fazem sua guerra e trabalham por dinheiro./Chega de tristezas que
adoecem o coração /Assassínios comerciais e o mercado cheÍo;/A carga viva e o traço constante/de dor e
angústia em cada rosto encolhido! ,..// "Talvez ninguém, respondeu o conde, possa maís/deplorar a neces-
sidade triste, embora forte/De comprar homens para cultivar nossas terras/E mante-los, nossos irmãos,
em cativeiro./Para mim, o próprio nome da cscravídão/É víl e odioso no mais alto grau... /Não penseis,
peço, que defendo esta causa,/ou falo de tal sistema com aplauso;/Senhor, como ideia deve ser condenado,/
É apenas a prática que defendo/Ifcis quanto à moral, nada pode ser pior/Mas quanto *o açúcar, este é o
único jeito,"(JV. da T.~)
E m 1770 a Grã-Bretanha, a França, a Espanha e Portugal possuíam prósperas
colónias escravistas nas Américas. Na sucessão de lutas políticas e sociais tra-
tadas neste livro, o império colonial e a escravidão foram ambos combatidos. Até
meados do século XIX esses levantes destruíram o domínio colonial na maior parte
do continente e a escravidão na maior parte do Caribe. Assim, os acontecimentos
revolucionários desta época provocaram uma reestruturação simultânea e funda-
mental da escravidão e do império. O quadro mais amplo é bastante claro. Nos
Estados Unidos e no Brasil, o relacionamento colonial foi rejeitado com sucesso,
mas a escravidão sobreviveu — e até prosperou. No Haiti e na América espanhola
continental, tanto a escravidão quanto o domínio colonial foram derrotados. Nas
índias Ocidentais britânicas e francesas a escravidão foi suprimida, mas o domí-
nio colonial sobreviveu, A única colónia escravista próspera que sobrava nas Amé-
ricas em 1850 era a Cuba espanhola: um novo pacto colonial fora negociado, nascido
do medo que os senhores sentiam dos escravos e da disposição da metrópole empo-
brecida de permitir o desenvolvimento de uma rica colónia escravista. A emanci-
pação dos escravos confirmou e, provavelmente, reforçou o domínio colonial nas
índias Ocidentais britânicas e francesas. Nos Estados Unidos e no Brasil, a inde-
pendência confirmou e fortaleceu o vigor e o dinamismo do sistema escravocrata.
Assim, a destruição da escravidão colonial teve aspectos contraditórios, cujas con-
sequências devem agora ser levadas em consideração.

Neste livro, não se tentou fazer um relato detalhado das principais revoluções e
guerras metropolitanas, ou do curso da revolução industrial; este cenário de uma
"era da revolução" só foi apresentado até o ponto em que influenciava o destino da
escravidão colonial. Neste período o avanço do capitalismo e o progresso da revo-
lução burguesa tiveram um caráter irregular e contraditório. A autonomia e o poder
dos detentores de riqueza foram promovidos pelo desmantelamento do absolutis-
mo, pelo retrocesso do mercantilismo, pela elaboração de códigos legais que con-
sagraram o respeito ao contrato e à propriedade privada, pela maior velocidade
das comunicações e pela construção de regimes políticos mais amplamente repre-
sentativos das classes proprietárias. Mas ao mesmo tempo as populações subjacentes
buscaram deter ou controlar o poder das novas ou rejuvenescidas classes domi-
nantes. A dependência crescente à produção e ao consumo de mercadorias agríco-
ks, a maior facilidade de movimentos, a extensão da cidadania ativa e passiva criaram
novas esperanças e novos medos, além de novas formas de associação e um novo
terreno de contestação. O avanço da escravidão e da abolição deve ser visto neste
contexto — ele foi parte de contradições e tendências semelhantes.
556 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 557

Houve uma correlação definida entre o surgimento do abolicionismo como Os fazendeiros holandeses de Nova York da década de 1790, os donos ÁQ plantations
movimento de massa importante e o início de uma fase de crescente "densidade da Venezuela da década de 1810, os grandes proprietários das Antilhas francesas
dinâmica" na sociedade burguesa: a Grã-Bretanha em 1788-92 e 1830-38; a Fran- da década de 1840 perderam seus escravos por causa de conflitos sociais e políti-
ça, fracamente em 1789-91, com mais força na década de 1840 (e, para antecipar, cos, revoluções e lutas de classes mais amplos. Em cada um desses casos a escravi-
os estados do norte dos Estados Unidos em 1830-65). É como se o abolicionismo dão era politicamente vulnerável, e não economicamente pouco lucrativa; e em
tivesse ressonância especial nas formações sociais que faziam a transição a partir um sistema escravista politicamente viável, a resposta natural do proprietário de
da transição — na qual as classes exploradoras tiveram de combater formas menos escravos ao lucro insuficiente não era a emancipação, e sim a venda dos escravos
particularistas de contestação social quando as arruaças ou atos incendiários se fundi- excedentes para setores mais dinâmicos da economia escravista. A emancipação
ram em formas mais coordenadas e politizadas de luta de classes, e a elas deram dos escravos entrou na agenda por causa de crises políticas e contestação social
lugar. O fracasso da Espanha, ou o da Holanda e da Dinamarca, de desenvolver globais. As datas-chave para o surgimento do combate à escravidão e ao comércio
movimentos abolicionistas também se relaciona com o desenvolvimento mais len- de escravos marcaram momentos de tensão excepcional na política e na formação
to da ordem capitalista industrial nesses países. Essas correlações amplas parecem social: 1780 na Pensilvânia, 1793-4 na França e São Domingos, 1804 no Haiti,
convidar à conclusão de que havia uma relação direta de causa e efeito entre o avanço 1807 na Grã-Bretanha, 1821 na Grande Colômbia, 1833 na Grã-Bretanha, 1848
capitalista e o surgimento do antiescravismo. A conclusão proposta aqui é diferen- nas Pequenas Antilhas francesas. Enquanto regimes, governos e Estados eram fei-
te: tal visão simplificada provocaria a compreensão enganosa do vínculo causal e tos e desfeitos, assim também as forças antiescravistas, incluindo os próprios es-
não poderia levar em conta a escravidão "paraindustrial" da época nem impulsos cravos, conquistaram a oportunidade de isolar e derrotar os senhores de escravos.
antie se rãvistas vitais que não tinham caráter burguês e que eram até anticapitalistas. Os empreendimentos e as famílias baseadas na posse de escravos tinham capaci-
dade considerável, embora nunca totalmente adequada, de reproduzir a sujeição
Se o avanço capitalista promoveu o antiescravismo, foi de forma indireta, por cau-
sa das lutas de classe às quais deu origem e por causa das possibilidades do novo dos escravos. Acontecimentos políticos que abriram uma fissura entre os senhores
tipo de Estado criado na aurora da revolução industrial. de escravos e o governo deram oportunidades à resistência escrava; qualquer Es-
tado desafiado por senhores de escravos, como a Grã-Bretanha na década de 1770,
A conclusão principal dos relatos apresentados neste livro é de que a escravi-
dão não foi derrubada por motivos económicos, mas sim quando se tornou politi- a França na de 1790 ou a Espanha depois de 1811 na América do Sul, seria tentado a
camente insustentável. Lutas militares e políticas intensas dentro das potências retaliar retirando o apoio à escravidão. Do mesmo modo, os que buscavam estabe-
atlânticas mais importantes e entre elas criaram condições nas quais a escravidão lecer ou dar forma a um novo sistema político encontraram no abolicionismo um
pôde ser combatida com sucesso em muitos dos locais onde fora mais importante poderoso símbolo de legitimidade, um programa social calculado para evocar o
consentimento espontâneo de amplas camadas da população que não possuía es-
em 1770. Os sistemas escravistas derrubados no período entre 1776 e 1848 não
foram atingidos por interesses económicos rivais, condenados por não contribuí- cravos.
Mas deve-se observar uma restrição. Embora os interesses económicos não
rem mais para o acúmulo de capital nem privados de existência pela pressão do
tenham ditado proibições ao comércio de escravos nem a emancipação dos escra-
mercado. As sólidas fileiras da burguesia, nas ocasiões em que apoiaram a escravi-
vos, ainda assim é verdade que também não perderam muito com as ações anties-
dão, inclinaram-se para uma espécie moderada de abolicionismo. Os sistemas
cravistas na época em que foram tomadas. A supressão de comércios nacionais
escravistas pereceram em lutas de classe tempestuosas, nas colónias e nas metró-
específicos de escravos beneficiou alguns donos de plantations e não envolveu de-
poles. Os beneficiários económicos da derrubada da escravidão colonial não fo-
sapropriação. O sistema escravista do Caribe francês era vigoroso em 1789, mas
ram os industriais, mas outros donos az plantations e de escravos na América, ainda
estava em total desintegração na época do decreto de Pluviôse 1794. A emancipa-
com capacidade e disposição para suprir as regiões em industrialização. São Do-
ção norte-americana só avançou quando a escravidão já estava enfraquecida e( em
mingos estava no ápice de sua prosperidade em 1789. As índias Ocidentais britâ-
geral, só libertou os ainda não-nascidos. Da mesma forma, o antiescravismo ga-
nicas haviam atingido o pináculo da lucratividade comercial por volta de 1807 e as
nhou terreno na América do Sul espanhola, onde os escravos eram poucos, mas
plantations escravistas da região ainda eram bastante lucrativas na década de 1820.
558 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 559

não em Cuba ou no Brasil, onde a escravidão sobreviveu. Embora as plantations senvolvimento baseado em escravos em enclaves especiais; a condição de escravo
escravistas ainda pudessem ter sido lucrativas nas índias Ocidentais britânicas na definia-se, em princípio, por estatuto real e não pelo jogo das forças económicas;
década de 1820 ou nas Antilhas francesas na de 1840, a importância económica da se a defesa do interesse real assim o exigisse, os escravos podiam receber armas e
posse de escravos para as classes dominantes metropolitanas era pequena e o co- ser libertados; pessoas de cor livres tinham seus próprios deveres e privilégios, como
mércio com o Caribe colonial estava em declínio. Em ambos os casos, a incipiente casta ou estado regulamentados. O segundo tipo de regime, produzido no desper-
resistência escrava era um fator que conciliava os senhores com a emancipação tar da primeira onda de revolução burguesa, o do Estado capitalista primitivo —
indenizada. Os recursos disponíveis destes governos metropolitanos permitiram- fosse república, Commonwealth ou "monarquia ilegítima" —, dava muito maior
lhes financiar esquemas de indenização sem muito esforço, em essência porque a espaço à riqueza e ao poder privados e, em geral, patrocinou uma fase mais avan-
posse de escravos só representava uma fração minúscula da riqueza imperial total. çada e intensiva de escravidão colonial e acumulação mercantil/manufatureira;
No caso britânico, a indenização generosa ajudou a eliminar a oposição dos pro- embora algumas aspirações abolicionistas moderadas pudessem ser divulgadas,
prietários das índias Ocidentais; no caso francês, a indenização foi prometida por esses regimes forneciam terreno inóspito para o triunfo do antiescravismo. O ter-
respeito geral à propriedade privada e paga logo depois da reunião do partido da ceiro tipo de regime, muitas vezes surgido como consequência da crise dos regi-
ordem em torno de Luís-Napoleão. mes de absolutismo ou oligarquia burguesa, foi aquele no qual as forças burguesas
A emancipação dos escravos triunfou neste período, no qual convergiram três viram-se forçadas a fazer concessões a pequenos proprietários, artesãos e operá-
fàtores favoráveis a este resultado: (i) uma crise política que marginalizou os se- rios especializados, trabalhadores religiosos e as camadas mais humildes de pro-
nhores de escravos e deu origem a um novo tipo de Estado; (ii) a realidade ou a fissionais; o Estado foi convocado a regulamentar as forças capitalistas e realizar
perspectiva de resistência ou rebelião escrava; (iii) mobilizações sociais que enco- funções mais amplas para garantir a reprodução social; o antiescravismo teve maior
rajaram os defensores da reforma ou da revolução a unirem o sentimento popular oportunidade de progresso sob este tipo de regime. Antes de examinar brevemente
aos atos antiescravistas. o alcance diferente do antiescravismo nestes cenários, deve-se deixar claro que esta
tripla tipologia proposta não corresponde exatamente à sequência cronológica, já
A crise política, por si só, não destruiu necessariamente a subordinação escrava que algumas fases "intermediárias" de revolução burguesa — Filadélfia era 1778-
nem desorganizou e desacreditou os proprietários de escravos, como mostra sufi- 80, Paris em 1793-9 — anteciparam dilemas e evoluções posteriores sem serem
cientemente o exemplo da América do Norte depois de 1776. Onde havia uma capazes de contê-los ou estabilizá-los; premonições do "terceiro" tipo foram inca-
classe de donos de plantations nativos, residentes e solidamente estabelecidos, esto pazes de impedir a regressão ao segundo.
podia explorar a crise política para patrocinar formas políticas que fortaleceriam, Como os regimes feudais e absolutistas tardios reivindicavam uniformemente
em vez de ameaçar, a posse de escravos. Todavia, a crise política relacionou-se fir- sanção divina, possuíam recursos ideológicos já prontos para ocultar e normalizar
memente com o surgimento do antiescravismo; isso foi verdade até mesmo no caso as relações sociais de escravidão. Fortalecidas por uma estrutura tradicional como
daquelas partes da América do Norte onde os senhores de escravos podiam ser essa, as autoridades reais de Madri reagiram às pressões da época com o novo có-
isolados. Um desafio à ordem estabelecida poderia armar o cenário para revoltas digo de escravos de 1789 e uma política militar de manumissão escrava seletiva e
de escravos ou lutas de classe desesperadas; poderia também levar à ampliação oportunista em Santo Domingo e Venezuela. A escravidão como tal só se tornou
dramática do espaço público secular no qual o funcionamento da escravidão tor- objeto de controvérsia na Espanha durante o curto período constitucional (1811-
nar-se-ia mais visível e controvertido. 14). Os excêntricos regimes absolutistas de Portugal e da Dinamarca tomaram
Durante este período havia, ralando em termos gerais, três tipos de regime po- medidas específicas e limitadas contra o comércio de escravos, mas sob coação e
lítico, correspondentes a diferentes fases do desenvolvimento do capitalismo e que com o objetivo de evitar a mobilização abolicionista. Enquanto duraram, as estru-
produziam contextos e possibilidades diferentes para o antiescravismo. Primeiro, turas coloniais do absolutismo estimularam os oponentes a adotar uma retórica de
havia os regimes feudais absolutistas tardios, nos quais a escravidão era uma rela- universalismo iluminista. A autocracia absolutista e o mercantilismo provocaram
Ção social aceita mas regulamentada; o capital mercantil podia patrocinar o de- o radicalismo patriótico, mas sua capacidade de resistir aos patriotas foi minada
560 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 561

pela expansão atlântica mesmo antes de serem abalados pelos choques da guerra e escravidão. Como as datas deixam claro, a ideologia patriota estava longe de ter
da revolução. O regime escravista na São Domingos francesa fora o primeiro a consequências antiescravistas coerentes. Mas a tensão que criou entre a prática e a
romper-se por causa da profundidade da crise da ordem metropolitana e porque as ideologia era diferente daquela característica da ordem feudal. Levantava ques-
estruturas coloniais não haviam permitido que se desenvolvesse uma classe de donos tões não sobre o tratamento justo dos escravos, mas de se a escravidão deveria ser
de plantations suficientemente coesa e hegemónica. tolerada.
As estruturas políticas da "monarquia ilegítima" não impediram que a posse Do ponto de vista dos senhores de escravos, a "monarquia ilegítima" ou a li-
de escravos fosse alvo de controvérsia, mas legitimaram e autorizaram o interesse mitada república burguesa poderia ser atraente, ao prometer a libertação dos re-
económico como defesa da escravidão; e representaram uma forma de Estado com gulamentos absolutistas ou da tutelagem colonial. Mas para que isto se aplicasse,
capacidade limitada de intervir na sociedade civil. Uma espécie moderada de a posse de escravos teria de ser protegida por um princípio exclusivista baseado
abolicionismo tornar-se-ia típica desses regimes, mas só quando a própria "mo- em propriedade ou raça, ou em alguma combinação das duas, e a competência do
narquia ilegítima" foi questionada — como na Grã-Bretanha, em 1831-3, ou na Estado teria de ser estritamente circunscrita. O modelo original da Grã-Bretanha
França, em 1848 —é que o antiescravismo triunfou. O advento do republicanismo de "monarquia ilegítima" concedia reconhecimento e garantias aos interesses dos
não garantiu de forma automática o sucesso do antiescravismo, especialmente quando que dispunham de propriedades, inclusive aos donos de escravos; embora forne-
uma classe coesa de donos de plantations manteve a hegemonia sobre uma conside- cesse as condições para o surgimento do abolicionismo, ele mitigou, desviou e
rável população livre e sem escravos. Mas as instituições republicanas impuseram retardou tanto o impacto do antiescravismo, que um agitado meio século se passou
aos senhores de escravos uma difícil prova, exigindo deles que desenvolvessem no- entre a fundação do comité de abolição e a emancipação dos escravos nas colónias
vas ideologias justificadoras e novos instrumentos políticos para garantir sua britânicas.
hegemonia. As leis de emancipação norte-americanas da década de 1780, apesar Nos Estados Unidos, a posse de escravos estava protegida pelo respeito à pro-
de todas as suas limitações, prepararam o terreno para os desafios mais radicais à priedade privada, por um sistema de privilégios raciais e por limites estreitos ao
escravidão que apareceriam nos impérios francês e britânico; e deixaram como herança espaço legal de intervenção do Estado. No Brasil o equilíbrio étnico era tal que
uma contradição não resolvida para as instituições republicanas dos próprios Es- uma ideologia racial bipolar ao estilo norte-amencano não teria fortalecido as defesas
tados Unidos. Assim como o avanço do capitalismo trouxe em seu rastro a luta de da escravidão. Os senhores de escravos do Brasil, parte dos quais era de origem
classes, tornando a escravidão mais difícil de defender, o avanço da revolução bur- mestiça, podiam beber da tradição luso-brasileira de um espectro racial hierárqui-
guesa criou um espaço político secular que também criou aberturas para o anties- co no qual roupas, maneiras e dinheiro "clareavam" a pele. A formação social
cravismo. escravista brasileira estava encastoada em um sistema político e uma ordem social
O ciclo de revoluções burguesas criou Estados que eram não só mais sensí- fortemente oligárquicos e era por eles protegida. Os fazendeiros maiores goza-
veis à dinâmica da propriedade e do comércio independentes, como também vam de poder local quase ilimitado no campo, por meio de uma combinação de
poderiam, por esta mesma razão, mobilizar recursos socioeconômicos e militares apadrinhamento e intimidação violenta; o direito de voto vinculado à propriedade
maiores do que os sistemas políticos absolutistas que substituíram. Ao pedir mais e a Guarda Nacional davam diretamente o poder aos cidadãos urbanos mais ricos;
de seus cidadãos, também buscavam conceder mais, ou ao menos prometer mais, o imperador podia fazer e desfazer os governos, mas não interferir na vida dentro
A liberdade civil era componente indispensável do pacote oferecido por patriotas, das propriedades.
republicanos e liberais; e pelo menos igualdade civil suficiente para deixar fora da O respeito à propriedade foi certamente um fàtor poderoso para neutralizar
lei a tirania ou a plutocracia nuas. As canções populares patrióticas dessa época ou diminuir a pressão antiescravista. Os bloqueios e atrasos sofridos pela abolição
provavelmente nos aproximam ainda mais do novo tipo de intersubjetividade ca- britânica e francesa nasceram mais da solidariedade das classes proprietárias do
racterística do período do que os folhetos políticos; e em "Rule Britannia" (1740), que da solidariedade racial. Nas primeiras repúblicas e monarquias burguesas, o
na "Marseillaise" (1791), em "Star-Spangled Banner" (1814) ou no hino nacio- desafio ideológico do antiescravismo podia ser enfrentado com um tipo moderado
nal do Peru (1821) encontramos a orgulhosa bravata de que a cidadania bane a de abolicionismo que rejeitava a expropriação, confinando seus objetivos a acabar
562 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 177S-1S48 563

com o comércio de escravos, estimular a manumissão voluntária e regulamentar uma sequência que ziguezagueou pelo Atlântico a cada cinco ou dez anos entre
zsplaníaíwns. O abolicionismo britânico não visava a mais que isso antes da déca- 1780 e 1848. As fronteiras imperiais ou nacionais continuam importantes não porque
da de 1820. A francesa Sociétédes Amis dês Noirs, como vimos, não exigiu a eman- os impulsos ou motivos antiescravistas tivessem caráter puramente local, mas por-
cipação, mas manteve sua posição quanto aos direitos iguais das pessoas de cor que a emancipação dos escravos só poderia ser estabilizada dentro de estruturas
livres. estatais nacionais, ainda que isto significasse a criação de um novo Estado, como
A nova ideologia secular do patriotismo nutriu um ideal cívico que coabitava aconteceu em São Domingos/Haiti. É claro que no período 1776-1825 a guerra
de forma incómoda com a escravidão, mas que evitava atacar fontes importantes ameaçou de forma muito mais devastadora as divisões territoriais do que as guer-
de riqueza nacional. Nas Américas, o abolicionismo patriótico dos primeiros cons- ras de épocas anteriores. As guerras esfacelaram impérios e tornaram-se instru-
trutores de nações visava deter a importação de africanos e reduzir gradualmente mentos de transformação revolucionária. Mobilizaram ideologias seculares de uma
a necessidade da escravidão na zona de plantaíions. As proibições ao comércio de forma nova, sujeitando regimes rivais à prova mais severa e exigindo novas pala-
escravos adotadas pelos norte-americanos entre 1775 e 1807 não tiveram conse- vras de ordem e sacrifício material. A emancipação francesa de 1794 c a abolição
quências antiescravistas diretas, embora tenham encorajado a oposição ao tráfico do comércio inglês de escravos em 1807 foram muitíssimo facilitadas pela atmos-
negreiro em outros locais. Onde a escravidão permaneceu forte, os abolicionistas fera de emergência do conflito militar.
patriotas respeitaram os direitos de propriedade dos donos de escravos, ainda que O patriotismo chamou à existência política camadas mais amplas da popula-
lamentassem seu destino à moda de Jeffèrson, Arango e Feijó. Mas, embora mui- ção dos Estados atlânticos. Seu desenvolvimento foi traçado da Grâ-Bretanha
tos patriotas tenham se conformado com a posse de escravos, ainda havia uma ten- hanoveriana à América do Norte, de volta à Europa revolucionária e à América do
são provocada pelo poder desmedido dos senhores de escravos em uma estrutura Sul. Em seu extremo, quando a própria causa patriótica enfrentava uma luta de
que supóstamente oferecia direitos iguais a todos os cidadãos livres. Seria errado vida ou morte, alguns patriotas radicais chegaram a prever a entrega de armas aos
dar excessiva atenção à "dissonância cognitiva" existente na ideologia patriota e negros e fazer-lhes promessas de emancipação. No entanto, as salvaguardas de se-
não notar o fato de que ideais patriotas conflitantes tornaram-se mais complicados gurança previamente citadas, propriedade e raça, ainda seriam uma restrição. Os
quando cidadãos livres sem escravos ficaram em melhor posição para combater a abolicionistas patriotas mais radicais eram os hispano-americanos, mas até eles
hegemonia dos senhores de escravos. Foram a pressão da conjuntura política e as escolheram meios lentos e parciais de emancipação. O abolicionismo patriótico
aspirações de pequenos proprietários, artesãos, trabalhadores portuários ou a não era uma formação estável, tendia a desintegrar-se ou a dissipar-se ao fim da
fraternidade marítima que conseguiram deixar os patriotas donos de plantations crise revolucionária. Em seus momentos mais radicais e exaltados, era difícil se-
dispostos a repudiar a escravidão. A disseminação do metodismo no sul dos Esta- parar o universalismo secular, o messianismo nacional e o emancipacionismo. Os
dos Unidos na década de 1780 ou o intenso patriotismo dos cólons brancos das ilhas patriotas que mais contribuíram para o antiescravismo muitas vezes alimentavam
de Barlavento, contrário aos donos de plantations, na década de 1790, demonstra- aspirações cosmopolitas (Paine, os jacobinos e kébertistes. Bolívar), enquanto con-
ram a animosidade latente com relação aos senhores de escravos, que permanecia tribuições cruciais vieram de indivíduos quacres, maçons e ex-escravos como
oculta em períodos estáveis mas da qual os próprios donos de plantations estavam Equiano, que não deviam fidelidade a nenhum Estado. O patriotismo radical po-
bem cientes. dia oferecer apoio tático ou conjuntural ao antiescravismo, mas o avanço crítico
Em períodos normais, o abolicionismo parlamentar das "monarquias ilegíti- veio dos "jacobinos negros", cujo compromisso era para com a liberdade social
mas" era uma formação tipicamente fraca e contraditória. Os avanços antiescravistas em vez da identidade nacional.
aconteceram mais sob a pressão de eventos revolucionários ou proto-revolucio-
nários e da existência ou da ameaça de resistência escrava. A narrativa da emancipa- A negociação da aliança entre a insurgência escrava e o republicanismo francês na
ção apresentada neste livro tentou expor o caráter cumulativo do combate à escravidão década de 1790 mudou a história da escravidão do Novo Mundo ao transformar
colonial, ainda que cada capítulo individual siga uma história nacional ou impe- os dois lados para a aliança. Levou à construção do poder e do governo negro que
rial. Cada progresso abolicionista recebeu algum ímpeto do que o precedeu, em derrotou as duas principais potências imperiais da época: a Grã-Bretanha e a França
564 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 565

napoleônica. O emancipacionismo revolucionário do Caribe francês não se confi- A resistência e a revolta negras revelaram tanto a unidade quanto a diversida-
nou nas promessas vagas e na manumissão dos não-nascidos, mas derrotou o que de da comunidade escrava e o antagonismo latente dos negros livres em relação à
fora o sistema escravista mais bem-sucedido das Américas. Impôs um padrão se- escravidão. Os escravos especializados ou de "elite" com frequência desempenha-
gundo o qual as evasões e traições do abolicionismo moderado poderiam ser me- vam um papel de liderança nas revoltas dasplantations e nas conspirações urbanas.
didas. A figura de Toussaint Louverture gravou-se na imaginação da época, enquanto Nas colónias caribenhas da Grã-Bretanha e da França, como foi notado na Intro-
os exércitos que criou demonstraram o espírito inconquistável dos que haviam dução, a administração das plantations era especialmente dependente dos "cabe-
derrubado a escravidão. A disposição dos escravos de lutar pela liberdade persua- ças" do contingente de escravos por causa da falta de trabalhadores livres disponíveis
diu Sonthonax, Laveaux e Vincent a enfrentar os caprichos da intriga metropolita- para servir de feitores ou artesãos. Nessas colónias, a participação dos escravos
na e defender a grandeza da política de emancipação; da mesma forma, a resistência nos mercados locais também era mais extensa. Em uma crise política, com a legi-
obstinada a Leclerc convenceu Dessalines e Christophe a romper com ele. O im- timidade da própria escravatura em questão, os escravos de elite estavam em con-
pacto da Revolução Haitiana no Caribe e no resto das Américas inspirou grupos dições tanto de transmitir informações quanto de fomentar a resistência coletiva.
de escravos e pessoas de cor livres e ajudou a radicalizar uma parte dos patriotas A segurança das plantations nos Estados Unidos, em Cuba e no Brasil era menos
hispano-americanos. Como Genovese ressaltou em From Rebellion to Revolution, vulnerável porque havia mais trabalhadores livres disponíveis para serem empre-
a própria resistência escrava adquiriu significado e potencial novos no contexto gados como capatazes ou seus assistentes e porque havia um número muito maior
das lutas revolucionárias da década de 1790. Houve uma "politização" incipiente de pequenas propriedades com apenas alguns poucos escravos. Mas embora a dis-
da resistência escrava quando ela assumiu formas que buscavam e podiam ga- posição dos "cabeças" fosse muitas vezes um fàtor crítico, a resistência escrava não
rantir a emancipação geral. Nas condições do mundo atlântico do início do sé- sairia do nível da conspiração sem o envolvimento da massa de escravos do campo.
culo XIX, isso teve de tomar a fornia de uma legislação apoiada por um eficaz Os escravos do campo das plantations açucareiras do Caribe tinham notável capa-
Estado territorial. cidade de resistência, em parte por causa do considerável tamanho médio dessas
O progresso da abolição dependeu de maneira crucial do testemunho negro, propriedades, em parte porque seu padrão de implemento agrícola — o macheie de
da resistência negra e do avanço dos "jacobinos negros" na década de 1790. Fosse cortar cana — também podia ser usado como arma. O "amadurecimento" das co-
grande ou pequena, e as proporções variaram em diferentes épocas e lugares, a con x lónias escravas fez com que os vínculos de parentesco unissem cada vez mais os
tribuição negra ao antiescravismo foi absolutamente essencial para a criação de escravos aos negros livres, os crioulos aos africanos, os escravos de campo aos
uma reação mais ampla. Sem os primeiros "processos de liberdade" e petições de domésticos, os de uma propriedade aos de outra. A própria pressão feroz dos sis-
negros, sem os textos de Equiano e Cugoano, sem Toussaint Louverture e Moyse, temas escravistas tendia a fundir a população escravizada e de cor em um antago-
Christophe e Dessalines, Pierrot e Goman, Julien Fédon, Padilla e Romero, Jordan nismo em comum, embora diferenciado, contra a ordem dominante. Deu origem
e Sharpe, Mary Prince, Bissette e Pory Papy, Pétion e Buddhoe e tantos outros à exigência de que os escravos deveriam trabalhar para si mesmos e suas famílias
rebeldes e abolicionistas negros, o combate à escravidão colonial talvez não tives- em vez de para seus exploradores. A resistência escrava, neste sentido, era uma forma
se triunfado. Conforme as formações escravistas coloniais "amadureceram", tam- de luta de classes, tanto quanto as revoltas dos seguidores do capitão Swing ou do
bém multiplicaram as probabilidades de contestação negra. A crescente resistência proletariado de Lyons. E embora o ponto de produção pudesse fornecer o local
escrava em Barbados em 1816, na Guiana em 1823 e na Jamaica em 1831-2 atin- inicial do conflito, o caráter e o controle da autoridade pública foram temas vitais
giram tanto uma escala maior quanto um envolvimento mais íntimo com o regime de contestação tanto nas colónias quanto na metrópole.
escravista do que quaisquer revoltas anteriores no Caribe britânico. Também esta- As derrotas impostas à escravidão colonial britânica e francesa no Caribe re-
vam voltadas com mais clareza à contestação de todo o regime escravista. As ma- fletiram a vulnerabilidade especial de uma ordem escravocrata dependente de um
nifestações armadas de escravos na Martinica, em 1848, marcaram igualmente o Estado metropolitano distante. Nas próprias colónias, propriedade e raça definiam
avanço das massas negras das ilhas de Barlavento francesas, já que nesta ocasião minorias privilegiadas muito reduzidas. A mobilização da identidade racial como
não confiaram a emancipação aos agentes da metrópole. apoio à posse de escravos era míope onde havia grande maioria negra e onde havia
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minorias crescentes de negros livres. E no que dizia respeito à metrópole, mal era três vezes este número. Mas é inegável que as conquistas dos Libertadores não
possível argumentar, como JefFerson fez na Virgínia, que a emancipação seria um deveriam ser medidas apenas nestes termos quantitativos, em parte porque seu
desastre para os cidadãos brancos, já que os escravos estavam a milhares de quiló- próprio exemplo envergonhou os hipócritas parlamentares da Grã-Bretanha e em
metros de distância. Não está claro quanto se encontraria de racismo popular na parte porque fecharam à escravidão uma vasta extensão do território americano.
Grã-Bretanha e na França na época das lutas pela emancipação — possivelmente Se a Venezuela, a Colômbia, o Peru ou a América Central tivessem permanecido
muito pouco —, mas, mesmo que esta estimativa esteja errada, os senhores de es- espanhóis, como Cuba, ou se não conseguissem transformar cm lei a emancipa-
cravos não conseguiriam muita coisa a partir dele; da mesma maneira, em certas ção, como o Brasil, então novos e formidáveis sistemas escravistas poderiam ter
regiões da América do Norte e do Sul, onde havia pouquíssimos escravos, a ani- sido construídos ali. Como a Grã-Bretanha era a principal potência atlântica da
mosidade racial poderia até favorecer leis que proibissem a introdução de mais época, as lutas relativas ao comércio de escravos e à escravidão britânicos deve-
escravos negros. Na época da emancipação, os donos de plantations britânicos e riam ser examinados em profundidade, embora eu espere que o relato resultante mostre
franceses eram um estorvo para as autoridades dominantes e não dispunham de que estavam em jogo forças mais amplas do que o "grupinho" aqui referido.
instrumentos políticos eficazes para defender-se; as assembleias coloniais estavam Os capítulos sobre a emancipação britânica e francesa buscam sublinhar o pro-
desacreditadas e os grupos de pressão dos proprietários, isolados ou dispersos. cesso multiíacetado pelo qual as forças antiescravistas convergiram e os senhores
Muitos proprietários britânicos e franceses não viviam em suas plantations\a de escravos foram isolados. Há duas abordagens já prontas, porém enganosas, sobre
situação deixou-os mais dispostos a ceder do que os residentes. Incapazes de im- a emancipação que tentei combater. Uma delas concentra toda a atenção no res-
por a sujeição aos escravos através de seu próprio peso social, esses proprietários peitável abolicionismo metropolitano; a outra alimenta um respeito romântico pelas
precisavam de apoio da metrópole; mas à medida que a escravidão colonial tor- virtudes límpidas da rebelião. A própria repulsa provocada pela ideia de escravi-
nou-se mais desacreditada e problemática, este apoio acabou esvanecendo-se, apesar dão pode levar a uma visão excessivamente simplificada de como foi fácil acabar
do desagrado constante e vigoroso da burguesia em relação à expropriação. A com ela. Quando se examinam os registros históricos, fica claro que o abolicionismo
dialética de resistência escrava, abolicionismo e luta de classes era complexa e só foi muitas vezes tímido e ineficaz, que os defensores da escravidão tinham grandes
se resolveu no decorrer de várias décadas. recursos para procrastinar e desviar a atenção e que os avanços críticos trouxeram
à frente forças sociais elementares intocadas pelo antiescravismo "literário". Mas
Um amigo generoso o bastante para ler um esboço deste livro ficou desconcertado daí não se conclui que um antiescravismo espontâneo tenha empurrado tudo à sua
com o espaço nele destinado ao abolicionismo britânico, quando comparado ao frente. Os registros também mostram que as probabilidades acumulavam-se con-
dedicado à derrubada do colonialismo e da escravidão na América Latina. "Não tra a resistência escrava, que unificar os oprimidos era extraordinariamente difícil
posso deixar de sentir [...] que está errado dedicar tanto espaço a mais ao abo- e que as diferentes formas de antiescravismo muitas vezes não se misturavam. A
licionismo britânico do que àqueles levantes gigantescos através de dois continentes construção de uma aliança antiescravista e de uma ordem pós-escravidão foram
— as atividades de um grupinho de vigários resmungões e hipócritas parlamentares realizações muito exigentes e árduas.
estudados de forma tão microscópica enquanto o pincel mais largo é reservado Entre as ideias já prontas que deixam de promover a compreensão estão todas
para as heróicas guerras de vinte anos dos Libertadores!" Como explicação e jus- aquelas que colocam a dinâmica antiescravista em uma relação essencialmente
tificativa, eu alegaria que a emancipação britânica, embora sejam pouco atraentes dialética entre senhor e escravo. A conhecida tese de Hegel sobre a dialética se-
alguns de seus protagonistas, envolveu a destruição de um grande sistema escravista nhor-escravo, como Jean-Paul Sartre indicou na Crítica da razão dialética, deixa de
e a rápida libertação de cerca de 700.000 escravos. Os atos antiescravistas dos levar em conta a dialética entre um senhor e outro.1 A "dialética do sujeito" tam-
movimentos hispano-americanos de libertação visavam a sistemas escravistas fra- bém deixa de abordar o problema de como a intersubjetividade poderia desenvol-
cos e, no que diz respeito à quantidade de escravos, assumiram uma forma muito ver-se entre escravos de origens diferentes e cm diferentes situações; e, da mesma
gradual ou arriscada; durante os vinte anos de luta de libertação, é improvável que forma, deixa de considerar o papel desempenhado por terceiros grupos, como as
mais de 70.000 escravos tenham sido libertados, em um total de mais ou menos pessoas de cor livres ou os brancos sem escravos. A crise política da ordem escra-
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vocrata sempre se agravou quando os senhores de escravos perderam sua capaci- distas, abbês radicais, diáconos negros, deístas revolucionários e houngans do vodu.
dade de manter a hegemonia sobre a população sem escravos da zona escravista; a A conclusão que desejo sugerir não é que o antiescravismo era de inspiração pura-
presença de pessoas de cor livres hostis e mobilizadas em São Domingos, em 1791, mente secular, mas que suas conquistas exigiram um ambiente secular. O cumpri-
ou na Jamaica, na década de 1830, foi um ingrediente importante para precipitar mento das várias leis de emancipação foi confiado a magistrados e comissários,
a crise da ordem escravista, apesar de muitos deles terem sido também senhores de funcionários públicos e policiais e, dentro de certos limites, à vigilância dos pró-
escravos. prios ex-escravos. Elas não dependeram de algum apelo à providência divina ou à
Os sistemas de escravidão colonial exigiam um complexo de meios e instru- consciência do senhor de escravos. As tentativas geralmente ineficazes e mal
mentos para garantir a reprodução da escravatura e do colonialismo — privilégios projetadas de abolicionistas moderados para regulamentar a escravidão às vezes
raciais, tropas de milícia, caçadores de escravos, assembleias locais, leis sobre a conferiram responsabilidade a padres e missionários — como nas índias Ociden-
propriedade, regulamentos comerciais e daí por diante. Sua desintegração desti- tais britânicas na década de 1820 ou nas Antilhas francesas na de 1830 —, mas
nava-se a ser um problema multifacetado. Este livro traçou as circunstâncias nas organismos religiosos tiveram papel pequeno ou nenhuma participação formal na
quais o poder dos senhores de escravos foi contestado e um vínculo antiescravista ordem pós-emancipação. No caso britânico, os missionários e diáconos negros
pôde brotar entre rebeldes escravos e radicais antiescravista s, abolicionismo me- tiveram um papel notável nas décadas de 1820 e 1830. Apesar de seus muitos tra-
tropolitano e levantes democráticos mais amplos. Este processo político foi desi- ços conservadores, os metodistas e batistas do Império britânico ajudaram a
gual e irregular, para não dizer cumulativo. As casas de pouso construídas ao longo desestabilizar a escravidão colonial e a desenvolver uma aliança implícita entre
do caminho não eram elegantes nem duráveis, abrigos antiescravistas unidos pela camadas da população escrava e da gente comum da metrópole. As atividades de
argamassa pouco confiável do patriotismo, da demagogia ou do oportunismo po- Sharpe ou Knibb comparam-se às de William Loveless e dos mártires de Tolpuddle,
lítico. Más estas casas de pouso dificilmente poderiam ter sido evitadas a menos e em ambos os casos parecia que a experiência da auto-organização não-confor-
que a emancipação fosse o resultado de uma única contradição principal. mista temperou e dirigiu o impulso a resistir, fortalecendo seu conteúdo secular e
Este livro tentou identificar os vínculos relevantes entre as lutas de classe da instrumental à custa de elementos puramente expressivos, simbólicos e rituais (em-
metrópole e as da zona de plantations e colocar ambas no contexto mais amplo do bora, é claro, sem deslocar totalmente estes últimos). As realizações dos pregado-
desenvolvimento capitalista e da revolução burguesa. Embora este relato seja no res negros e missionários brancos nas índias Ocidentais teve contexto e caráter
máximo uma aproximação, visa evitar o problema da historiografia "idealista", na seculares. Foram reforçadas por magistrados e policiais civis, embora com algu-
qual o desdobrar de eventos já está pré-programado — seja pelo conteúdo da ideo- ma mobilização auxiliar por missionários e diáconos negros. A religião ajudou a
logia abolicionista, seja pela tragédia da rebelião romântica. Sob o risco de pare- dar identidade e respeito próprio a algumas populações de ex-escravos; mas o mesmo
cer desrespeitoso para com obras de admirável profundidade, citarei como exemplos fizeram a posse da terra, a liberdade de deslocar-se, a lembrança da resistência à
de estudos nos quais os problemas anteriormente citados não foram resolvidos de escravidão, a música e as canções, os idiomas locais. A religião foi, provavelmente,
forma satisfatória, Síavery andHuman Progress^ de David Brion Davis, e Testing the um elemento mais importante desta mistura nas índias Ocidentais britânicas; e
Chains, de Michael Craton. Apesar de muito instrutivos, estes livros correm o ris- um elemento mais fraco nos territórios franceses e nos ex-territórios espanhóis. O
co de nos deixar cair na armadilha de uma história fechada, na qual não se pode próprio Estado colonial gozou com frequência de legitimidade como consequên-
escapar ao imperativo do progresso (Davis) ou os escravos rebeldes estão conde- cia da emancipação; o complexo ideológico resultante no Caribe colonial era mais
nados à repetição cíclica (Craton). aberto ao radicalismo social do que ao nacionalismo anticolonial.
E no contexto do crescimento confuso e irregular de uma aliança antiescravista Embora o apoio ao antiescravismo fosse conveniente para grupos dominantes
que posso abordar a aparente contradição entre as conclusões aqui tiradas e as nar- em condições de abrir mão da posse de escravos, seria errado ignorar os ganhos
rativas apresentadas em capítulos precedentes. Sugeri que o antiescravismo cres- reais obtidos pelos grupos de interesse emancipacionista. Pode parecer que a abo-
ceu no espaço secular aberto pelo arco da revolução burguesa. Mas, manifestamente, lição da abjeta dependência pessoal apenas açucarou a pílula amarga dos poderes
o antiescravismo recebeu forte patrocínio de entusiastas religiosos: quacres, meto- estatais mais abrangentes sobre o cidadão dos novos Estados e regimes. Mas quer
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570 ROBIN BLACKBURN

na metrópole, quer na zona àzplantationsy o antiescravismo também era uma dou* O antiescravismo de Wallace, Sharp, Péchmèja, Paine, Grégoire, Hidalgo, Artigas
trina que ligava os cidadãos entre si sem relação com o Estado, e mesmo contra o ou Schoelcher tinha de dispor-se a combater a propriedade privada, e muitas vezes
Estado. O recurso ao antiescravismo pelas autoridades políticas encurraladas, ob- estava pronto a isso. Esses homens não eram, em nenhum sentido moderno, socialis-
servado em muitos dos capítulos anteriores, sugere vigorosamente que desta for- tas, comunistas ou social-democratas. Mas eram críticos da propriedade privada em
ma eles buscavam melhorar sua posição, antecipando uma adesão de popularidade uma época em que ela era uma instituição sagrada e central em todo o mundo atlân-
por muitos setores da população livre e pelos escravos. tico. Além do mais, todos os movimentos antiescravistas sobreviveram em momen-
O período entre 1776 e 1848 assistiu a intensas lutas de classes quando explo- tos em que os movimentos sociais impunham um desafio profundo aos detentores de
radores e explorados, "senhores e servos", funcionários públicos e contribuintes, riqueza e privilégios: da América do Norte no início da década de 1780 a Paris em
grandes proprietários de terras e modestos fazendeiros e camponeses, mercadores 1794, ao Bajío mexicano em 1811-4, à América do Sul nas garras da revolução, à
monopolistas e pequenos produtores independentes buscaram defender ou pro- Grã-Bretanha em 1830-4 e à França em 1848.
mover seus interesses essenciais. O surgimento da manufatura industrial e o declínio Houve, como vimos, espécies moderadas de abolicionismo e usos moderados
do velho mercantilismo ofereceram oportunidades e perigos para todos os grupos do antiescravismo. Houve, com certeza, um antiescravismo especificamente capi-
sociais. O abolicionismo, com suas raízes em um reflexo popular antiescravista talista que insistiu em indenizações generosas para os senhores de escravos e que
com séculos de existência, também parecia oferecer garantias para o futuro — ba- acompanhou a supressão da escravatura com tentativas de desenvolver disciplinas
sicamente, uma garantia de que o circuito ampliado da acumulação de capital não do trabalho que não dependessem de um aparato problemático ou caro de coação
reforçaria e aumentaria simplesmente o cativeiro pessoal. O antiescravismo, en- direta. Muitos defensores do antiescravismo também eram ardentes reformadores
quanto doutrina, fazia um apelo especial aos que estavam presos no meio ou aos de prisões ou devotos de uma nova lei dos pobres ou sistema de repressão à vaga-
que buscavam construir um bloco entre as classes. E, como vimos, a hostilidade ao bundagem. O abolicionismo como ideologia era capaz de articular diretamente
comércio de escravos muitas vezes serviu de escoadouro para o descontentamento uma projeção bem abrangente de ideais burgueses e disciplinas capitalistas. Toda-
mais geral com o poder ou a riqueza dos mercadores. O emancipacionismo certa- via, apelava a uma minoria idealista, em vez de à massa de capitalistas ou aos líde-
mente era compatível com projeções ideais do trabalho assalariado e, assim, coe- res da comunidade dos negócios, como Sir Robert Peei (que encabeçou uma lista
rente com a industrialização capitalista. Mas o ideal de "trabalho livre" ou "trabalho de mais de cem fabricantes e mercadores em uma petição contra a abolição do co-
independente", que o abolicionismo alegava proteger, tinha apelo popular porque mércio de escravos ainda em 1806), enquanto casas bancárias como Baring, Lafitte,
também podia ser entendido como referente ao pequeno produtor, o artesão ou o Rothschild e Ardouin competiam pelo privilégio de investir nas colónias escravistas.
profissional liberal, cada um dos quais era livre para trabalhar por sua própria conta Os sinceros e dedicados abolicionistas burgueses do século XDC costumavam
em vez de para um capitalista. As mulheres, normalmente excluídas da vida polí- ter um lado generoso e até mesmo utópico. Seus esquemas de reforma não podem
tica, tiveram papel importante no antiescravismo; embora o abolicionismo ideali- ser todos reduzidos a receitas de disciplina social mais eficaz, já que muitos bata-
zasse a família, inspirou diretamente as primeiras campanhas pela igualdade civil lharam para ampliar os direitos civis e impor limites ao poder económico e polí-
das mulheres.2 tico. Esses reformadores e revisores do capitalismo e da revolução burguesa podem
Às vezes o antiescravismo tirou forças daqueles saudosos de uma ordem tradi- ser comparados àqueles que tentaram, ou estão tentando, limitar ou reverter as con-
cional que impedisse os excessos de uma "era comercial". Mas, na verdade, os mo- sequências não igualitárias, autoritárias e ecologicamente destrutivas do processo
vimentos antiescravistas não visavam restaurar a regulamentação medieval da vida de acumulação de nossa própria época; tentou-se uma projeção ideal de possibili-
económica. As leis a que visavam supunham alguma forma de governo representati- dades contemporâneas para salvar o potencial de progresso dos poderes sociais
vo responsável perante os interesses e exigências populares. Muitos dos pioneiros do recém-liberados, e não para refinar a opressão.
antiescravismo foram atraídos por ideias democráticas e anticapitalistas. Wilberforce, Abolicionistas como Sturge ou Schoelcher permaneceram eminentemente bur-
o abolicionista mais famoso de todos, é, a este respeito, nada típico; e, naturalmente, gueses sem nunca pertencerem à corrente principal nem serem especificamente
o principal alvo de suas campanhas foi o comércio de escravos, em vez da escravidão. pró-capitalistas. O termo "burguês" significa basicamente morador urbano de classe
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média, uma categoria social que de forma alguma é coetânea à do capitalista, já pação em um mercado de trabalho livre como um avanço substancial em relação à
que havia senhores de terra capitalistas agrários, assim como moradores medianos escravatura; e, mesmo sob a escravidão, muitos escravos descobriram que a peque-
da cidade sem capital. E tão bom manter uma ideia da discrepância quanto da na produção e o comércio de mercadorias agrícolas eram uma forma de adquirir
sobreposição entre o burguês e o capitalista; isso também pode nos ajudar a com- uma medida mínima de autonomia frente a seus proprietários. Outra forma de apre-
preender por que as revoluções burguesas não promoveram simplesmente os inte- sentar essa questões seria dizer que Mary Prince via o mercado de força de traba-
resses capitalistas, apesar de sua função de limpeza de terreno no que tange à antiga lho como preferível ao mercado de seres humanos, e que os escravos usavam os
ordem. A aliança abolicionista às vezes fundiu burgueses e capitalistas em um único mercados locais de bens de subsistência para adquirir alguma vantagem contra aqueles
bloco, mas houve períodos importantes em que radicais burgueses dirigiram seus que controlavam o mercado de produtos agrícolas de exportação. Embora prefe-
principais esforços para combater o padrão predominante de economia capitalis- rissem o trabalho livre assalariado, os ex-escravos levaram para o período poste-
ta, com seu comércio de escravos, plantations escravistas, comércio ligado aos es- rior à emancipação expectativas substanciais, algumas das quais alimentadas pelo
cravos, trabalho infantil, sistema fabril não regulamentado e daí por diante; os radicais mercado, que seus futuros empregadores não poderiam satisfazer. Da mesma for-
burgueses também se dispunham a enfrentar os regimes políticos burgueses pre- ma, na metrópole o antiescravismo popular muitas vezes serviu de escoadouro para
dominantes, com seus muitos princípios oligárquicos e exclusivistas. O apoio de ansiedades criadas pelo novo senso de dependência que a produção generalizada
Sturge aos cartistas na década de 1840 ou a simpatia de Schoelcher pelo "socialis- de mercadorias provocava. A escravidão colonial era, ao mesmo tempo, um modo
mo" testemunham a existência de uma corrente de progressivismo burguês que de exploração extremo e distante; o comércio atlântico aproximou-a, em termos
era característico, mas, também, excêntrico. de espaço social, permitindo que o abolicionismo metropolitano despertasse as
E sobre a tese de que o próprio abolicionismo era produto do novo espaço e da ansiedades populares quanto à dependência extrema de empregadores ou ao instá-
nova liberdade dados às forças de mercado pelas relações sociais capitalistas? Será vel mecanismo de mercado. O ataque à posse e ao comércio de escravos impôs
que a participação crescente nas transações de mercado educou a percepção moral regras básicas mínimas para a negociação justa. Embora alguns escritores anties-
das massas, ampliando seus horizontes e alargando sua "economia moral"? Os re- cravistas vissem a emancipação como, certamente, um programa auto-suficiente e
latos feitos nos capítulos anteriores mostram que esta visão deixa de identificar o adequado para controlar e reformar o padrão predominante de sociedade, não era
impulso antiescravista. As forças de mercado muitas vezes funcionaram com tal este o caso da maioria de ativistas e entusiastas antiescravistas, que viam seu traba-
impessoalidade e impiedade que na verdade permitiram e promoveram um circui- lho como parte de um esforço mais amplo para estender a liberdade de forma coe-
to de acumulação capitalista alimentado pela exploração dos escravos. Os aboli- rente com o respeito ao interesse humano universal. Aos olhos dos abolicionistas
cionistas descobriram que não era fácil conquistar aqueles mais diretamente envolvidos radicais, isso muitas vezes significava aceitar a noção de um sistema de mercado
nos ramos do comércio relacionados com os escravos; os boicotes de consumido- homogéneo e, em vez disso, enfrentar e reprimir, restringir ou reestruturar merca-
res tinham efeito desprezível, enquanto homens de negócios confrontados com um dos determinados pela legislação ou pela redistribuição da riqueza e pela promo-
investimento lucrativo não viam razão para deixá-lo aos rivais. Embora alguns pou- ção de novas formas de cooperação social.
cos indivíduos tenham recusado, por razões éticas, envolver-se com a escravidão, Na Grã-Bretanha e na França, os temas antiescravistas causaram repercussão
não havia escassez de gente disposta a ocupar seu lugar. Os mercados criaram uma em todas as classes sociais. Os governantes podiam considerar os gestos anti-
estrutura que parecia apagar a responsabilidade individual no padrão de ação re- escravistas como uma forma conveniente de aliviar a pressão por reformas. A bur-
sultante. Muitíssimas vezes banqueiros e administradores estariam negligencian- guesia e a classe média mais amplas podiam tentar impor-se à oligarquia por tráa
do os interesses de seus clientes se não aproveitassem oportunidades favoráveis no de palavras de ordem abolicionistas; e podiam até ter esperanças de derrotar a
setor ligado à escravidão. obstinação das classes trabalhadoras através de conferências e sermões abolicionistas.
Mas há mais a ser dito sobre este tópico, já que a reação popular à crescente E por fim, mas não menos importante, os pequenos produtores, empregados do-
"mercadização" das relações sociais ajudou a conseguir apoio ao antiescravismo. mésticos, artesãos e todo tipo de trabalhador assalariado podiam ver nas medidas
Escravos como Mary Prince, citada no Capítulo 11, viam a perspectiva de partici- antiescravistas um limite aos poderes dos ricos. Essas várias interpretações foram
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mesmo apresentadas na época por abolicionistas importantes; Wilberforce não era expansivas. Eles, entretanto, tinham valor em si mesmos e como passos auxiliares
de todo avesso a ressaltar os saudáveis efeitos colaterais políticos e socioeconômícos para a luto de classes em um nível mais alto; sem eles os poderes humanos coleti-
do antiescravismo oficial. Mas essas declarações não resolveram a questão. Os vos mal poderiam ter esperanças de enfrentar o sistema global de acumulação ca-
registros históricos sugerem que os gestos antiescravistas pouco ou nada fizeram pitalista.
para minar a oposição popular à oligarquia ou a oposição da classe trabalhadora Uma vez que se deu o crédito devido ao abolicionismo em suas várias mani-
ao capital. A maré alta do antiescravismo britânico em 1831-8 foi seguida quase festações, ainda se deve perguntar até que ponto os abolicionistas foram na verda-
imediatamente pelo surgimento do cartismo, desafio popular mais radical à oli- de os autores da emancipação; e os resultados da emancipação também devem ser
garquia dominante na história moderna britânica. Não só os principais abolicionistas escrutinados para ver até que ponto foram determinados pelo abolicionismo me-
apoiaram o cartismo, como cartistas importantes articularam suas ideias bebendo tropolitano, fosse burguês ou pequeno-burguês, patrício ou plebeu.
da tradição antiescravista, como no influente folheto The Rise and'Progress ofHuman
Stavery, de Bronterre O'Brien. O termo "escravidão assalariada" ajudou a criar Os acontecimentos estudados neste livro não mostram uma correspondência biu-
uma dimensão social no radicalismo talvez "superpolítico" da época. Na França, nívoca entre emancipação e "abolicionismo", especialmente o abolicionismo ofi-
em 1848, o avanço abolicionista aconteceu quando as correntes socialistas e pro- cial e respeitável que foi documentado de maneira tão copiosa e completamente
letárias estavam no auge de sua força. analisado. Na Filadélfia a emancipação foi promovida por radicais democratas em
O fato de que poucos dentre os abolicionistas, mesmo os mais radicais, propu- uma época em que muitos entusiastas antiescravistas estavam em um recuo políti-
seram uma crítica sistemática do capitalismo não é suficiente para supor que fos- co. O decreto de Pluviôse foi aprovado em uma época em que os Amis dês Noirs
sem ideólogos capitalistas. É claro que foi só bem no final do período estudado eram uma organização defunta. A emancipação na América espanhola aconteceu,
neste livro 'que Karl Marx começou a analisar o funcionamento do capitalismo, em sua maior parte, sem instigação de organizações abolicionistas isoladas. No
distinguindo excessos específicos do funcionamento essencial da acumulação ca- caso britânico, as mobilizações abolicionistas tiveram na verdade papel importan-
pitalista. As relações capitalistas, as relações de mercado e a escravidão não cons- te, mas não venceram sozinhas; a perspectiva de crescimento da resistência escrava
tituíam para Marx uma totalidade necessária nem homogénea, já que existiam tensões e a pressão da luta de classes interna foram necessárias para garantir a vitória. Na
entre elas e cada uma podia existir de alguma forma sem as outras. Mas em dado França, em 1848, não houve movimento abolicionista comparável; a emancipação
momento, bem que poderiam constituir uma estrutura complexa de dominação e foi obra da Revolução, de um ousado ministro abolicionista e da pressão da insur-
exploração com uma lógica histórica toda sua. Além disso, o próprio Marx via a reição escrava. A distinção entre abolicionistas radicais e moderados também foi
resistência a excessos específicos gerados pelo capitalismo como preparação ne- significativa no período imediatamente posterior à emancipação, com radicais como
cessária para uma investida mais fundamental. Ele seguiu muitos dos primeiros Sturge ou Schoelcher inclinados a apoiar as novas lutas dos ex-escravos, enquanto
socialistas ao atacar a escravidão nas Américas, considerando a derrubada da "escra- os moderados, como Buxton ou Tocqueville, voltavam-se para outros problemas.
vidão declarada" do Novo Mundo como prelúdio necessário ao ataque à "escravi- Mas embora os protestos formais dos radicais pudessem ser úteis, os ex-escravos
dão velada" do Velho Mundo. Além disso, ao fàzê-lo ele não se incomodou de encontraram formas de defender diretamente seus próprios interesses.
associar-se a reformistas liberais como John Stuart Mill. As formações sociais da O reflexo pessimista imediato que nos diz que na verdade os ex-escravos não
zona atlântica em meados do século XIX sofriam mudanças e até um observador estavam em melhores condições do que sob a escravidão não pode ser sustentado.
como Marx, atento às determinações de estruturas profundas, poderia acreditar Para começar, há um contraste amplo e impressionante entre as estatísticas de vida
que a melhor forma de unir forças para combater o rolo compressor da acumula- antes e depois do fim do sistema escravocrata. Por volta de 1770, nenhuma das popu-
ção de capital seria lutar por medidas específicas, tais como a emancipação dos lações negras do Caribe tinha taxa positiva de crescimento natural; um século depois
escravos, o sufrágio universal, a jornada de oito horas e daí por diante. Marx talvez todas a tinham, com exceção apenas da colónia escravista espanhola de Cuba. No
não ficasse surpreso se descobrisse que estes ganhos populares não provocaram o Haiti, na Jamaica e em várias das ilhas menores do Caribe, ex-escravos e descenden-
fim do capitalismo ou que mesmo ajudaram a criar sociedades burguesas mais tes de escravos possuíam agora pequenos pedaços de terra nos quais cultivavam pró-
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dutos de subsistência e, talvez, algum café. Construíram casas para si. Desenvolve- menos parecido ao anterior, mas os maiores progressos aconteceram em territó-
ram a vida familiar e formas culturais de maneira que seria impossível sob a escravi- rios onde se podia mobilizar trabalho cativo. Mas em geral esta "insubordinação"
dão. A escravidão ainda deixou marcas tanto nas pessoas libertadas quanto em seus incipiente dos ex-escravos era vista com desfavor cada vez maior pelas autoridades
senhores. A vida era dura para os ex-escravos — as estruturas de classe e a desigual- públicas, que buscavam oportunidades para tornar os ex-<scravos mais submissos:
dade ou opressão raciais não eram difíceis de identificar. Mas os ex-escravos e seus a feroz repressão imposta na década de 1860 pelo governador Eyre na Jamaica é
descendentes agora viviam mais e mais livremente do que nos dias da escravidão. um destes casos. A nova liberdade social de que gozava a massa de ex-escravos foi
Embora a maioria dos ex-escravos não tivesse terra ou a possuísse em quantidade acompanhada de forma quase universal pela exclusão cfetiva do poder político;
insuficiente, podia mudar de empregador ou de ilha. Encontra-se o reconhecimento neste sentido, o espaço secular aberto pela consolidação dos Estados burgueses
indireto da nova autonomia dos ex-escravos no fato de que donos deplanlaíions e outros estabeleceu seus próprios limites à emancipação.
empregadores procuraram novas fontes de mão-de-obra cativa. O fluxo considerá-
vel de trabalhadores com contrato de servidão para as índias Ocidentais britânicas e O destino da República do Haiti nos anos de 1825 a 1850 tem significado especial
francesas e para o Peru demonstrou que a exigência económica de trabalho servil para os acontecimentos estudados neste livro pelas razões aludidas anteriormente.
não desapareceu de forma alguma. O novo uso de trabalhadores sob contrato de ser- Ao escrever sobre sua experiência como escravo e fugitivo na América do Norte
vidão também demonstrou que a própria emancipação não fora o produto final da nas décadas de 1830 e 1840, o notável defensor do antiescravismo FrederickDouglass
demanda do capital por um novo tipo de mão-de-obra, mas sim da incapacidade do observou que seu interesse apaixonado por aprender sobre o Haiti levou-o a devo-
capital de manter a forma existente de escravidão.j rar todo fiapo de notícia que podia encontrar sobre o primeiro Estado americano
Os resultados da emancipação justificam a tese de que o antiescravismo vin- a tornar ilegal a escravidão e o único Estado americano a ter um governo negro.5
culava-se a um processo abrangente de revolução "democrática burguesa", ao mesmo O presidente Boyer governou o Haiti até 1843. A República que liderou era
tempo que contradizia a visão mais estreita de que a emancipação era simplesmen- pobre mas digna. Embora o presidente tomasse todas as verdadeiras decisões, uma
te uma emanação da visão de mundo burguesa ou do progresso burguês. Pequenos assembleia de notáveis tinha permissão de debatê-las. Quando o preço do café subia,
produtores, artesãos e profissionais liberais tinham objetivos que se entrecruzavam uma camada de camponeses e proprietários de terras haitianos podiam ganhar um
com o programa puramente burguês no Caribe, assim como na França.4 Muitas pouco mais que a subsistência. Enquanto uma pequena elite educada escrevia poe-
vezes a própria resistência escrava tinha, como vimos, características "proto- sia ou história, as massas negras elaboravam um rico folclore sincretista e arre-
camponesas". Para melhor ou para pior, muitos ex-escravos tornaram-se campo- gimentavam rapidamente tropas irregulares locais como limite a governantes
neses, bem poucos tornaram-se trabalhadores assalariados de algum tipo, e menos predominante m ente mulatos. O sucesso de Boyer na ocupação do leste e sua dis-
ainda operários industriais assalariados. Assim, a força de trabalho liberada pela posição de permitir uma "oposição oficial" acabaram dispondo o cenário para sua
emancipação desta época não se tornou disponível para o capitalismo industrial queda na década de 1840 quando, ao reduzir-se a receita do café, ele enfrentou
nem mesmo, na maioria dos casos, para a agricultura deplantation totalmente ca- secessão no leste e revolta no oeste. Boyer buscara estender para a metade espa-
pitalista, embora certamente se encontrassem enclaves desta última em Barbados, nhola da ilha a mistura de pequenas propriedades e administração militar que pre-
na Martinica e cm algumas outras ilhas francesas e britânicas menores. Em 1780, dominava no oeste. Todos os escravos remanescentes haviam sido emancipados
quase todo o café plantado nas Américas fora cultivado por escravos; em 1840, o em 1822-3, e os que estavam em idade militar foram reunidos em regimentos es-
grosso era plantado por rnão-de-obra livre ou assalariada. Nos últimos dias da peciais. Houvera uma tentativa de dividir a terra comunal e as terras da Igreja e
escravidão, as mulheres cresceram nas turmas de corte de cana; depois da emanci- criar um numeroso campesinato de pequenos proprietários. Mas esta reforma agrária
pação, era mais provável encontrá-las cuidando de roças de hortaliças ou levando sofreu forte oposição porque foi acompanhada por favoritismo militar e taxação
produtos para o mercado do que trabalhando nos campos dzsplanlalions. Em algu- desajeitada; além disso, deixou de fora os que preferiam deixar seu gado pastar
mas ilhas menores os donos deplantations podiam encontrar trabalhadores sem terra livremente e cortar madeira de lei onde a encontravam em vez de tornar-se donos
em quantidade suficiente para manter a produção de açúcar em um nível mais ou de pequenos pedaços de terra. O contrabando prosperou. Os habitantes do leste
573 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 579

acreditavam que era injusto terem de pagar impostos para permitir à República no Haiti as estruturas haviam mudado a ponto de não serem mais reconhecidas, e
reembolsar os ex-grandes proprietários franceses do oeste. A invasão de Boyer em surgiram novos problemas. Os problemas do tesouro público do Haiti tiveram
1822 gozara de certo apoio interno, mas este dissipou-se inteiramente no início da paralelo na América do Sul, enquanto o sofrimento do campesinato de subsistên-
década de 1840. Os problemas de Boyer no leste combinaram-se com a oposição cia tinha mais em comum com os problemas dos camponeses da Sardenha ou da
no oeste. De um lado, uma jovem elite urbana, predominantemente mulata, atritou- Sicília do que com os dos escravos encarcerados nas planlations cubanas. Embora
se com as supostas inclinações autocráticas de Boyer; de outro, o campesinato negro os negros libertados do Caribe não tivessem mais o chicote do feitor para enfren-
ressentia-se da influência dos mulatos ricos e das tentativas do Estado de controlá- tar, é verdade que ainda sentiam a pressão da competição do trabalho cativo; as-
los. E havia a suspeita de que Boyer ou os que lhe eram próximos dispunham-se a sim, o declínio do preço do café refletiu a produção em veloz crescimento das
fazer mais concessões aos franceses, permitindo-lhes criar uma base naval. As tra- plantatwns escravistas do Brasil.
dições e estruturas do heróico período revolucionário levaram a alguns ecos inte-
ressantes. A oposição a Boyer era liderada por uma "Sociedade pelos Direitos do Embora a maior preocupação deste livro tenha sido traçar o curso do combate à
Homem e do Cidadão". Depois da partida de Boyer a presidência foi ocupada, em escravidão, ele também buscou identificar o bloqueio encontrado nos dois Esta-
rápida sucessão, por quatro veteranos negros das lutas contra os franceses; Louis dos recém-independentes mais fortes e na remodelada colónia escravista de Cuba.
Pierrot, que se unira a Sonthonax em 1792 em Lê Cap, tornou-se presidente do A revolução burguesa desenvolvera-se nessas terras de forma a permitir aos se-
Haiti em 1845, nomeado por políticos mulatos que assim buscavam assegurar às nhores de escravos manter a liderança da formação social escravocrata e suprimir
massas negras que seus interesses estavam garantidos. Em 1848-9 um chefe mili- qualquer agitação de emancipacionismo.
tar negro, Faustin Soulouque, destruiu o poder dos grupos políticos mulatos e criou Os senhores de escravos americanos mostraram-se capazes de tornar-se revo-
um regime'imperial supostamente baseado no de Dessalines; as notícias sobre isso lucionários notáveis e estadistas ousados. Não surpreende que tivessem maior
tiveram algum impacto na Martinica.6 autoconfiança onde residiam, na América, em suas propriedades. Os donos de
No entanto, os sucessivos governos haitianos acharam impossível recuperar plantatwns e senhores de escravos do Novo Mundo tinham a alma dividida. Eram
as finanças do Estado e fracassaram na promoção de uma classe camponesa prós- produto da revolução comercial, do Iluminismo, da nova ascensão da agricultura
pera. Grandes propriedades foram divididas, mas os camponeses dos minifúndios americana e do padrão liberal de sociedade e de política; desejavam construir no-
não tinham incentivo para deixar o cultivo de subsistência. Qualquer mudança vas nações, mas suas realizações mais esplêndidas cresceram sobre a exploração e
significativa rumo à produção de mercadorias agrícolas simplesmente atraía im- a opressão brutais dos negros escravizados. Sua posse de escravos deu-lhes con-
postos ou pilhagem oficial. A erosão do solo tornou-se um problema sério. O único fiança e às vezes permitiu-lhes seguir uma vocação revolucionária, mas também
grande Estado atlântico disposto a íãzer negócios com o Haiti era a França — e o impôs limites ao tipo de participação política que ofereceriam aos que não tinham
governo francês pressionava pelo pagamento do empréstimo de indenização de 1825 escravos e envolveu-os em um sistema de trocas atlânticas dominado pelas regiões
e de seus vários sucessores. Até a década de 1870o pagamento dos juros respondeu em industrialização.
por pelo menos um quarto do orçamento nacional, enquanto as despesas militares Os donos deplantattons dos Estados Unidos, de Cuba e do Brasil apressaram-
chegavam normalmente a pelo menos metade dele. As principais potências atlân- se avidamente a preencher as lacunas deixadas pelo declínio das exportações de
ticas ficaram bem contentes de ver o governo do Haiti enfraquecido e acuado como São Domingos; também pagaram à Revolução haitiana o tributo de isolar-se o
forma de reduzir seu poder de criar problemas em outros lugares.7 máximo possível de seu exemplo. Enquanto o Haiti era submetido ao isolamentc
O Haiti pós-revolucíonário não era uma utopia abolicionista, nem a reencar- diplomático e comercial, os Estados Unidos e o Brasil eram rapidamente admiti-
nação da antiga ordem. A imagem compulsiva do "mundo virado de cabeça para dos ao concerto das nações. A reação das potências escravistas não surpreende; a
baixo", a troca carnavalesca de papéis, a Saturnália, na verdade não se aplica a este cumplicidade entre eles e governos supostamente abolicionistas é muito notável e
Estado negro. Embora estas imagens tivessem um apelo subversivo, sua permuta- instrutiva. A Grã-Bretanha orgulhava-se de sua campanha internacional contra o
ção dos papéis sociais acabava confirmando a imutabilidade da estrutura. Todavia, comércio atlântico de escravos, mas não conseguia boicotar o algodão, o açúcar ou
580 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 581

o café produzidos por escravos. O algodão norte-americano foi desde o início formações sociais escravistas e da economia atlântica. Em boa parte da América
importado sem taxas; entre 1846 e 1851, todos os impostos sobre o açúcar foram do Sul espanhola, notadamente no México e no Peru, a infra-estrutura do império
derrubados em deferência à agitação favorável ao livre comércio. Alguns defenso- ainda conservara princípios básicos produtivos no encerramento da época colo-
res importantes do livre comércio haviam apoiado anteriormente o antiescravismo, nial. Aquela "libertação da sociedade civil", que levou a uma nova época de pro-
mas a maioria dos abolicionistas organizados ficara ofendida com o encorajamento gresso para os donos At plantations nos Estados Unidos e no Brasil, enfraqueceu e
assim concedido à agricultura escravista. O abolicionismo oficial da Grã-Bretanha fragmentou a extensa coordenação imposta pelo estado da economia das minas,
não impediu que mercadores britânicos mantivessem um comércio próspero e cada haciendas e aldeias no continente sul-americano. Em Cuba, a metrópole estimulou
vez mais livre com as plantations escravistas. Depois de 1848 a França também se o desenvolvimento ao retirar da economia interna a regulamentação estatal e con-
moveu na direção do livre comércio, embora de forma mais cautelosa. Em meados tentando-se em extrair receita do sistema alfandegário.
do século, a perspectiva de comercializar a produção dos escravos das Américas Assim, do ponto de vista da economia atlântica, a independência pareceu fun-
era melhor do que nunca. O capitalismo, como sistema económico — e como for- cionar melhor com a escravidão e esta pareceu funcionar melhor sem interferência
mação social na qual a economia tinha importância e independência bastante no- metropolitana. Como símbolos da nova América, prédios novos e esplêndidos fo-
vas — permeava e integrava totalmente os sistemas escravistas em expansão nas ram construídos para o governo em Washington, com sua Casa Branca e o Capitólio,
Américas na década de 1850. O capital britânico encontrou mercados vantajosos no Rio de Janeiro, com seus Palácios Reais ampliados, e em Havana, com a Inten-
em todos os Estados escravistas em crescimento nas Américas, ajudando a cons- dência e o Palácio do Governador ampliados e uma prisão nova e impressionante,
truir estradas de ferro, equipar plantations e financiar o comércio. Assim, o capita- reputada a maior e mais moderna do hemisfério. Esses edifícios foram construídos
lismo "flanqueou" os negros recém-liberta dos do Caribe, engordando com os com mão-de-obra escrava, mas são monumentos ao classicismo iluminista. Os go-
sistemas escravistas mais robustos do continente.1 vernos que os habitavam logo se tornaram capazes de reivindicar jurisdição sobre
Os senhores de escravos dos Estados Unidos, do Brasil e de Cuba consegui- áreas do interior que em grande parte escapavam à administração colonial. O pre-
ram prever ou reprimir a resistência escrava e manter ou reafirmar sua liderança sidente dos Estados Unidos, o imperador do Brasil ou o capitâo-geral de Cuba
sobre um número considerável de pessoas livres que não possuíam escravos. A eco- não podiam regulamentar a vida nas planíations, e neste sentido os poderes do Es-
nomia baseada em escravos tinha caráter extensivo e rural, mas os senhores de es- tado eram limitados. Mas esses Estados podiam defender com eficácia seu pró-
cravos formaram alianças estratégicas com as elites urbanas na época complicada prio território e não sucumbiram às tendências divisionistas da Grande Colômbia
da revolução burguesa. O vigor dos sistemas escravistas era tal que representaram ou das "Províncias Unidas".
um bom meio de vida para uma camada de homens de negócios, advogados e po- O destino desta nova escravidão no continente americano e na maior das ilhas
líticos em centros como Nova York, Washington, Havana, Madri, Barcelona e Rio do Caribe forma o assunto central da continuação deste volume. Mas nos capítu-
de Janeiro. As alianças feitas entre essas facções burguesas demonstraram um ta- los precedentes já se viu que a sobrevivência da escravidão nesses territórios de-
lento promíscuo de negociar com forças não capitalistas em uma direção simetri- pendeu não só da relação favorável das forças sociais—com os escravos constituindo
camente oposta ao impulso da reforma burguesa observado anteriormente. uma minoria, mesmo que grande, da população —, mas também da vitalidade eco-
Os sistemas escravistas americanos eram fortes e flexíveis o bastante para se nómica das plantations escravistas, ^plantations escravistas prosperaram mais nos
aproveitarem das novas oportunidades de mercado apresentadas pelo colapso do territórios com o índice mais alto de participação na economia atlântica. Esta vi-
mercantilismo colonial e pela demanda vigorosa de produtos das plantations. A con- talidade brotou da demanda crescente de produtos das plantations e de um sistema
quista da independência pelos territórios do continente levaram ao crescimento de trocas atlânticas que se aproximou progressivamente do livre comércio. Os
económico dos Estados ligados à expansão das plantations', mas levaram à estagna- impérios britânico, francês, espanhol e português tiveram de ser destruídos ou, como
ção ou recessão em boa parte da América do Sul espanhola, onde a escravidão era no caso cubano, reorganizados segundo novas linhas, para que isso fosse possível.
fraca. Na zona escravista, o mercantilismo imperial era um impedimento a um A criação dos Estados Unidos ou do Império do Brasil e de um novo pacto colo-
progresso maior, que recebia seu ímpeto da dinâmica espontânea e expansiva das nial entre Cuba e Espanha fez parte da onda de revolução burguesa no mundo atlântico
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ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 583

e contribuiu de forma maciça com seu avanço económico; ela demonstrou quê o número de trabalhadores sem posses excluídos dos meios de subsistência, mas não
capital ainda utilizava a muleta das formas de exploração mais antigas. conseguia encontrá-los. As regiões em industrialização também descobriram que
Vistas de certa perspectiva, as derrotas impostas ao império mal enfraqueceram ísplantatíons escravistas punham em produção as novas terras para a cana-de-açú-
a escravidão e simplesmente promoveram seu crescimento em três territórios onde car, algodão ou café mais depressa que os pequenos proprietários.
os senhores de escravos tinham perspectivas e oportunidades imensamente maiores Em 1770 a Grã-Bretanha era o único grande Estado atlântico no qual o capi-
do que nas antigas colónias. A escravidão das pequenas ilhas, de qualquer forma, seria talismo assumira o controle, embora até ela restringisse artificialmente o caminho
marginalizada pelas estradas de ferro, pelos navios a vapor, pelos rifles de retrocarga da acumulação em suas colónias americanas. A derrubada do absolutismo na França,
e pelos cartuchos. Em 1770 havia mais ou menos 2.340.000 escravos nas Américas. na Espanha e em Portugal e a derrota do mercantilismo colonial na maior parte da
Apesar da derrubada da escravidão em São Domingos, o número de escravos nas América levaram ao surgimento de um novo sistema estatal no mundo atlântico,
Américas subiu para 3 milhões em 18 00 e, apesar de mais emancipações, para 6 milhões mais afinado com a expansão do comércio e da indústria capitalista. Esses Estados
em 1860. A área de terra cultivada por escravos cresceu em proporção semelhante ou não intervinham mais diretamente no processo de produção; buscavam cobrar
maior, quando o interior do sudoeste dos Estados Unidos, Cuba e Brasil abriram-se impostos, mas não incorporar o comércio ultramarino e a esfera da circulação. Mas
para a agricultura extensiva âeplantation. As pequenas ilhas não tinham espaço para esses foram apenas passos preliminares. O aparecimento dos novos regimes de
acomodar um aumento tão grande da agricultura âeplantation ou os novos métodos "monarquia ilegítima" representou um tipo de progresso capitalista, mas ainda
de cultivar algodão, açúcar e café em grande escala. A escravidão do Novo Mundo limitado pelo localismo dos magnatas agrários, alguns deles senhores de escravos.
não era mais colonial, mas sim colonizadora. Os Estados Unidos fizeram os maiores progressos rumo à destruição do parasi-
Deve-se notar que onde a escravidão sobreviveu houve continuidade das formas tismo do Estado, assim como a Grã-Bretanha tomara as medidas mais completas
locais de governo, por mais drásticas que fossem as mudanças na relação com uma contra a escravidão colonial. Mas, por outro lado, a república norte-americana
economia e uma política mais amplas. Em Cuba, isto é bastante evidente. E na Virgínia, estabilizara de forma triunfante a escravidão, enquanto a oligarquia britânica
não menos que no Brasil, o movimento de independência foi liderado pela institui- reentrincheirava-se habilmente no novo Palácio de Westminster "reformado".
ção do governo local já existente; no primeiro caso a House of Burgesses (a assem- Ambos os Estados enfrentavam o risco de que este avanço irregular e paradoxal os
bleia legislativa colonial da Virgínia), no segundo a dinastia de Bragança. Isso contrasta ridicularizasse por suas contradições. A Constituição da República norte-ameri-
com a correlação já observada entre a emancipação e o advento de novos regimes: a cana reconhecera a escravidão, mas não resolvera a questão dos direitos dos esta-
República Francesa da década de 1790, o Haiti, as Repúblicas hispano-americanas, dos constituintes; na Convenção de Hartford em 1814 os habitantes da Nova
o Parlamento da Reforma da Grã-Bretanha, a República Francesa de 1848. E sem- Inglaterra levantaram o espectro da secessão. Desde 1860 a república de senhores
pre que houve qualquer apelo ao sentimento abolicionista na América do Norte, em de escravos e o império abolicionista competiam pelo domínio do hemisfério, cir-
Cuba ou no Brasil foi em momentos de ruptura e renovação, como na Filadélfia em cunstância que levaria a algumas alianças bizarras.
1775, em Cádiz em 1811 ou no Rio de Janeiro em 1824. A Grã-Bretanha alegou policiar os oceanos como combate aos comerciantes
O colapso das formas previamente dominantes de escravidão colonial, com- de escravos, mas as principais potências escravistas do Atlântico eram Estados clientes
binado à expansão contínua do capitalismo atlântico, sugere que o colonialismo, o do império informal da Grã-Bretanha; as "monarquias ilegítimas" de Espanha,
monarquismo, o racismo e a própria escravidão eram apenas superestruturas aci- Brasil e Portugal haviam se estabelecido com o vital apoio britânico — este últi-
dentais sobre as relações de produção capitalistas. Talvez em teoria o capitalismo mo envolvendo diplomacia, demonstrações navais de poder, empréstimos, volun-
pudesse sobreviver sem nenhuma delas. Mas na prática ele considerou necessárias tários e agentes secretos. A predominância comercial britânica na zona do Atlântico
e convenientes estas formas sociais mais ou menos anómalas. No fundo isso acon- arrastou os interesses britânicos de volta à conivência com o comércio de escravos,
teceu porque as relações sociais capitalistas e seus pressupostos não estavam im- assim como com a escravidão, quando as manufàturas britânicas, agora mais dis-
plantados de forma suficientemente profunda e porque fontes potenciais de excedentes poníveis do que nunca para comerciantes de escravos luso-brasileiros e hispano-
seriam aproveitadas enquanto fosse possível. Assim, o capital precisava de um grande cubanos, passaram a ser ativamente trocadas por cativos na costa da África.
584 KOBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 585

O fim do tráfico negreiro atlântico fora uma das primeiras e mais moderadas metas de 1.000 dólares em meados do século, certamente havia um bom incentivo para
do antiescravismo respeitável. Em 1815 o comércio de escravos atlântico fora contrabandear escravos. A proibição britânica de 1808 foi bastante eficaz, mas
solenemente condenado por todas as potências, e em 1820 o intervalo prepara- tornou-se ainda mais a partir de meados da década de 1830 com a abolição da
tório permitido no Tratado Anglo-Espanhol chegara ao fim. Na década de 1820 escravatura, A proibição francesa foi bem ineficaz antes de 1831, mas daí para a
um total de pouco mais de 600.000 africanos chegaram à América como escra- frente a importação clandestina seria muito pequena por causa da facilidade de
vos, volume um pouco inferior ao da década de 1780, mas acima da média das vigiar o acesso às pequenas ilhas francesas. Desde 1850 Cuba e Brasil importa-
décadas do século XVIII, de apenas 500.000. Durante a maior parte da década vam grande número de escravos, sem dar importância a acordos internacionais;
de 1820 o comércio brasileiro de escravos era apenas semi-ilegal, no sentido de certamente havia algum envolvimento de mercadores norte-americanos, britâ-
que, embora tivessem sido feitas declarações vagas, não se efetivara nenhum acordo nicos e franceses neste comércio. O controle do tráfico negreiro tornava-se par-
internacional específico. A partir de 1830 o Tratado Anglo-Brasíleiro que su- ticularmente difícil pelo fracasso da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos e da
primia o tráfico negreiro supostamente passou a vigorar, e durante um ano ou França de chegarem a um acordo quanto à abordagem conjunta do policiamento
dois o volume da importação de escravos veio a declinar. Em 1835 a Grã-Bretanha dos oceanos. Durante alguns anos na década de 1830 houve um acordo conjunto
e a Espanha fizeram um novo acordo, supostamente mais rigoroso, mas ele teve anglo-francês, mas que não foi renovado em 1838. As tentativas de chegar a um
pouco impacto nos números das importações cubanas. No total, 560.000 escra- acordo foram dificultadas pela beligerância nacional e por rivalidades im-
vos foram trazidos para as Américas na década de 1830. Na de 1840 a importa- periais. Como maior potência marítima, a Grã-Bretanha pretendia ganhar prin-
ção de escravos caiu um pouco, em parte devido ao patrulhamento mais vigoroso, cipalmente por acordos aparentemente recíprocos e igualitários, que concediam
mas, ainda assim, chegou a 445.000. O milhão de escravos que chegaram às direitos de busca e apreensão. A intimidação britânica agravou ainda mais o
Américas;entre 1830 e 1850 o fizeram em violação tanto à legislação nacional problema, como no tratamento ultrajante de Palmerston a um governo portu-
quanto ao tratado internacional. Nos anos 1851 e 1852 as autoridades imperiais, guês que, na década de 1830, tinha desejo genuíno de suprimir o comércio de
em resposta ao sentimento nacional e à ameaçadora esquadra de belonaves bri- escravos, o de Sá de Bandeira. Na verdade, o governo britânico chegou perto de
tânicas, começaram a executar ações mais eficazes dentro do próprio Brasil para declarar guerra aos Estados Unidos e à França no início e em meados da década
deter os comerciantes atlânticos de escravos. Mas não se sabia ao certo quanto de 1840 por questões em sua maior parte sem relação com os escravos; e em 1853-4
tempo isso continuaria a acontecer O capítão-geral de Cuba levou a importação os governos britânico e norte-americano ficaram novamente próximos da guer-
de escravos a uma interrupção temporária em 1853, mas o tráfico logo voltou ao ra. A disposição britânica de afirmar o "domínio das ondas" e a falta de zelo de
antigo nível depois que ele foi substituído.9 Washington na perseguição aos comerciantes de escravos ajudaram a inflamar
Enquanto a escravidão florescesse nas Américas, seria difícil deter o comér- as relações anglo-americanas, assim como a preocupação de ambas as potências
cio atlântico de escravos. Um sistema escravista florescente significava preço de ampliar sua influência nas Américas, especialmente na zona delicada do Caribe
alto dos escravos. O controle do comércio tornava-se excepcionalmente difícil e da América Central. Mesmo em épocas em que havia relações um tanto me-
por causa da extensão das linhas costeiras envolvidas e pelo tamanho do oceano; lhores entre Londres e Paris, ou Londres e Washington, a supressão do comér-
os obstáculos naturais eram muito ampliados pela capacidade dos comerciantes cio de escravos pouco se beneficiou, a menos que houvesse uma reação cooperativa
de escravos de comprar os vapores mais rápidos e pagar altos subornos. Todos dos governos dos territórios envolvidos no tráfico. Muitos escravos foram ex-
esses fatores significavam que qualquer política de supressão do comércio de portados de partes da costa africana sob soberania nominal portuguesa. Havia
escravos exigiria coordenação entre as potências marítimas e os governos das em Portugal forças hostis ao tráfico negreiro, mas o Estado português não era
regiões importadoras e exportadoras. A proibição de 1808 nos Estados Unidos forte o bastante para enfrentar os interesses envolvidos no comércio de escravos.
foi bastante eficaz para impedir a importação de escravos na América do Norte; Não só os escravos eram a exportação mais valiosa de Angola, Guiné e Moçam-
no entanto, o comércio clandestino continuou e introduziu mil escravos ou mais bique, como também o valor combinado das exportações de escravos da África
por ano. Com o preço dos escravos no sul dos Estados Unidos subindo para mais portuguesa era consideravelmente maior que o orçamento nacional português.
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ROBIN BLACKBURN
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 587

Funcionários coloniais, dos governadores para baixo, receberiam ricas propinas


nal, não foi preciso o vozerio dos presidentes norte-americanos falando do destino
se cooperassem com os comerciantes de escravos. Além disso, toda a formação
imperial de seu país para deixar clara a seriedade da ameaça vinda daquela parte.
social das colónias portuguesas ajustava-se a este negócio altamente lucrativo,
Aventureiros norte-americanos invadiram a Nicarágua em 1856-7; logo depois o
tornando extremamente difícil para os funcionários metropolitanos encontrar
aliados locais.10 "presidente" Walker legalizou novamente a propriedade de escravos. Com ajuda
do próspero tesouro cubano, a Espanha reocupou Santo Domingo em 1859, trans»
Entre 1770 e 1850 foram levados da África para algum destino no Novo Mundo
formando outra vez a ilha em uma colónia escravista. Uma expedição franco-es-
bem mais de cinco milhões de escravos; isto é, mais nestes oitenta anos do que nos
panhola atracou no México, supostamente para reclamar dívidas não pagas, e
280 anteriores. Durante este período, as guerras napoleônicas tiveram um impac-
agitou-se uma disputa entre a Espanha e o Chile que logo levaria à guerra. O im-
to imediato maior, embora temporário, no volume do tráfico do que as proibições
pério brasileiro chegou à década de 1860 com seus próprios planos de defender os
do comércio de escravos e a diplomacia. As perspectivas futuras do comércio de-
interesses brasileiros na região do Prata; aí também se continham as sementes de
pendiam muitíssimo da evolução política nos Estados Unidos, no Brasil, na Espanha,
uma guerra futura.
na França e na Grã-Bretanha. O antiescravismo continuaria ou viria a ser uma for-
A continuação deste volume estudará o carater e a dinâmica dos novos siste-
ça em todos estes Estados, mas as expectativas na década de 1850 eram realmente
mas escravistas e dos novos desafios que sofreram por parte do antiescravismo. A
agourentas. A difusão do domínio colonial europeu dera novo ímpeto a doutrinas
própria lembrança e as lições das lutas contra a escravidão colonial entre 1776 e
de supremacia branca. Na prosa retórica de Carlyle e Gobineau, o racismo romântico
1848 tiveram importância ao precipitarem e darem forma à crise dos Estados que
era contrapartida a noções pseudocientíficas muito disseminadas de hierarquia racial.
defendiam a escravidão. Os novos desafios teriam de vencer obstáculos formidá-
Os governantes da Grã-Bretanha e da França ainda podiam impor limites aos co-
veis, exatamente porque esses Estados já haviam passado na prova das tempestades
merciantes de escravos, mas estavam prontos a aceitar a respeitabilidade dos se-
nhores de escravos americanos e a competir por vantagens diplomáticas e comerciais de uma época revolucionária, mas derivaram principalmente de antagonismos in-
na zona escravista. ternos acumulados pelo avanço da própria escravidão. Neste sentido, ainda está
para ser abordado o significado total dos acontecimentos relatados neste livro e as
A escravidão colonial foi a pique nas Américas nesta época porque a forma colo- conclusões aqui oferecidas devem permanecer parciais e provisórias.
nial não era forte o bastante para conter as ameaças conjuntas de senhores ou de Tanta é a pressão do conhecimento do que veio depois, que a década de 1850
escravos. Mas como em uma luta social darwiniana pela "sobrevivência do mais pode parecer uma época esquisita e arbitrária para fechar esta narrativa, mesmo
apto", os regimes escravistas mais fortes conseguiram resistir, obrigando-nos a com a perspectiva de uma continuação. Eu contestaria esta afirmação não só por-
admitir um nível "funcional" de explicação em nosso relato de como foi que al- que a nova escravidão americana era diferente da escravidão colonial, mas tam-
guns desapareceram enquanto outros prosperaram. bém porque, seja qual for a data escolhida para o encerramento, haverá contradições
Apesar das conquistas do antiescravismo neste período, a verdadeira área de e ambiguidades. Hoje é saudável considerar o mundo como deve ter parecido
terra cultivada por escravos viera se expandindo constantemente. Milhões e mi- àqueles que viviam na década de 1850, conscientes dos ideais e do exemplo da
lhões de hectares nas terras algodoeiras do sudoeste norte-americano, as planícies época revolucionária, mas também conscientes da maré crescente do comércio
de Matanzas, em Cuba, e do oeste paulista, no Brasil, abriram-se pela primeira vez atlântico baseado nos escravos. Privilegiar datas incandescentes como 1776, 1789
ao desenvolvimento de plantations. Além disso, esta expansão da escravatura con- e 1848 encoraja simplesmente a complacência, a menos que os anos de desapon-
jugou-se a rivalidades internacionais e imperiais agravadas que criaram perspec- tamento, reveses ou restauração também recebam seu quinhão. Será que 1945 é
tivas ruins para a abolição na década de 1850. As próprias grandes potências mesmo uma data mais confiável que 1940? Embora adicionasse novos perigos,
escravistas estavam na crista da onda de expansão e pareciam determinadas a con- terá mesmo aquietado a ameaça de 1940? O conselho de William Blake deve
quistar novos territórios para a escravidão. Depois da guerra entre os Estados Unidos aplicar-se também à obra histórica; "Damn braces, bless relaxes" (O mal fortale-
e o México em 1845-8, na qual o México perdeu um terço de seu território nacio- ce, o bem relaxa).
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 589
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7. Sir SpenserSt John, Haytiorthe Black Republic, Londres, 1884, pp. 380-9.
Notas 8. Meu uso deste termo deve algo a Michael Mann, The Sourcesof Social Power, embora o próprio
Mann provavelmente não concordasse que a constituição do nível económico em uma forma-
1. Sartre observa: "Hegel pode ser criticado por descrevero Senhor e o Escravo, isto é, ção social dominada pelo capitalismo dê aos exploradores tal poder de levar a melhor.
em última instância, por descrever as relações entre um senhor e seu escravo por meio 9. Murray, Odious Commerce, pp. 92-113,208-70.
de conceitos universais, sem referência a suas relações com outros escravos ou outros 10. Esses padrões, tratados no Capítulo 9 deste livro, são muito esclarecidos por Bethell,
senhores. Na realidade, a pluralidade de senhores e o caráter serial de toda sociedade The Abolition ofthe Brazilian Slave Trade, e Alexandre, Origens do colonialismo português
fazem com que o Senhor como tal, mesmo em termos idealistas, encontre uma verda- moderno.
de diferente dentro do conjunto de sua classe." J-P. Sartre, The Critique ofDialectical
Reason, vol. I, Londres, 1976, nota na p. 158. No segundo volume da Critique, Sartre
segue esta linha de pensamento ao examinar o racismo e a violência; Critique de Ia
Raison Dialectique, II, Paris, 1985, pp. 470-1. Para uma discussão esclarecedora da
disposição dos escravos, ver Harry Fineberg, "Resources in Class Conflict and Collective
Action with Reference to SIavery and Slave Revolts", Manchester University, De-
partamento do Governo, 1987.
2. Sobre o papel das mulheres, ver Louis Billington e Rosamund Billington, wtA Burning
Zeal for Righteousness': Women in the British Anti-slavery Movement", em Jane Rendall,
Qrg.,EqualorDifferent: Womens Politics in Britain 1800-1914, Oxford, 1987. Sobre ele-
mentos radicais ou "populistas" do antiescravismo desta época, ver Di Telia, La Rebelión
de los Esclavos de Haiti, pp. 95-6.
3. Rira uma discussão e uma pesquisa penetrantes, ver Robert Miles, Capttalism and Unjree
Labour: Anomaly or Necessity, Londres, 1987.
4. Hobsbawm, The Age ofRsvolution, pp. 177-9, para uma discussão que vai dos obstáculos ao
avanço capitalista na França aos obstáculos nos Estados Unidos. George Comninel recen-
temente usou indícios como este para lançar dúvida sobre todo o conceito de "revolução
burguesa" (George Comninel, Re-thinking the French Revolution, Londres, 1987). Hobsbawm
certamente atribui alguns dos obstáculos ao avanço capitalista na França à erupção da luta
da classe popular na forma de jacobinismo. Mas ele não conclui, a partir da predominância
da propriedade camponesa na França, que não houve nenhuma revolução burguesa. E em-
bora Comninel permita que Marx o leve a exagerar muito o papel da autonomia do Es-
tado sob Napoleão III, Hobsbawm ressalta, em outro texto, que o Segundo Império na
verdade antecipou muitas características da economia e da política liberais. E. J. Hobsbawm,
The Age of Capital, Londres, 1975, capítulo 6.
5. Frederick Douglass, Narrative ofíke Life of Frederick Douglass, a Slave; Written by Himself,
Boston, 1845.
6. Frank Moya Pons, "The Land Question in Haiti and Santo Domingo: The Socio-
Fblitical Context ofthe Transition from SIavery to Free Labor, 1801-1843", em Between
SIavery and Free Labor: The Spanish-speaking Caribbean in the Nineteenth Century, org.
por Manuel Moreno Fraginals, Frank Moya Pons e Stanley Engerman, Baltimore,
1985, pp. 181-214.

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