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ANTROPOLOGIA ENTREVISTA
OS NEANDERTAIS E A SUA ANDRÉ CARRILHO
PAIXÃO POR CRÂNIOS UM CASO SÉRIO DE
SUCESSO INTERNACIONAL
SAÚDE
REJUVENESÇA A SUA
MICROBIOTA
ZOOLOGIA
A DANÇA «CULTURAL»
DAS ABELHAS
EVOLUÇÃO
COMO SE FORMAM AS
IMPRESSÕES DIGITAIS?
CRIMINOLOGIA
AS MENTES DOS
ASSASSINOS FRENÉTICOS
DECIFRAR
HISTÓRIA
O MILÉNIO E A
MATEMÁTICA
DOS MITOS
O UNIVERSO
ÚLTIMAS TEORIAS SOBRE O ANEL DE QUAOAR,
A NUVEM DE OORT E A ATMOSFERA DE TITÃ
ND A
A!
VE R
À AGO
VIVER A HISTÓRIA
COM PAIXÃO
EDIÇÃO BIBLIOTECA
EDIÇÃO
BIBLIOTECA
CELTAS GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS
PORTUGAL ORIGENS DE UMA NAÇAO
PALEOARTE
VALE DO CÔA
Território de
memória
GRUTA DO ESCOURAL
Marco do paleolítico
no Alentejo
MISTÉRIO
Stonehenge e outros
santuários megalíticos
PALEOARTE
Conheça a formação de Portugal
como Nação através de grandes
historiadores: conhecerá os
CELTAS
GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS
Onde e quando surgiu
o nosso impulso artístico
A arte acompanha o ser humano
desde os tempos mais remotos, ao
longo da sua evolução. O que é que
protagonistas, os momentos Mergulhe na Idade do Ferro e descubra os artistas das cavernas pretendiam
decisivos, os desafios e as bases uma das culturas mais fascinantes alcançar com as suas pinturas? O
do futuro império. da Europa, a Celta, pelas mãos de que é que elas simbolizam?
grandes especialistas.
NotíciasFlix
EDITORIAL
INTERESSANTE
AFONSO
HENRIQUES
CELTAS GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS
e o nascimento de
PORTUGAL ORIGENS DE UMA NAÇAO
Portugal
O MILAGRE DE
OURIQUE
PALEOARTE
ou o mito nacional
de sobrevivência
D.DINIS, A
VALE DO CÔA
Território de JÁ HOUVE UM TSUNAMI
EM PORTUGAL?
memória
CONSOLIDAÇÃO
DO TERRITÓRIO GRUTA DO ESCOURAL
e afirmação Marco do paleolítico
da identidade no Alentejo Que sermão deu
Santo António
EXPANSÃO MISTÉRIO aos peixes?
PORTUGUESA: Stonehenge e outros
Que países foram fundados
CELTAS
as primeiras décadas santuários megalíticos por ex-escravos?
É legal que a minha renda
PALEOARTE
seja revista em concordância
PORTUGAL
com o IPC?
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SUPER 3
Sumário
84
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30
ALBUM
ISTOCK SHUTTERSTOCK
12 78
64
24
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SUPER 5
DISCOVERY NOTÍCIAS ATUAIS
POR CRISTINA ENRÍQUEZ
Os pinguins avistados
encontram-se numa
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zona fortemente
afetada pelo degelo.
ientistas britânicos identifi- pécie está em risco devido ao aumento culo. Os investigadores detetaram a nova
6 SUPER
O MAPA MAIS DETALHADO DA MATÉRIA ESCURA
Embora represente cerca de detetar, pois não emite nem a gravidade. Existem mesmo Esta matéria é, sem dúvida, o
de 85% de toda a massa do absorve luz, e a única forma várias hipóteses sobre a sua andaime sobre o qual assenta
Universo, a misteriosa matéria óbvia de inferir a sua presença inexistência, como se pode ler a estrutura visível do Universo:
escura é extremamente difícil é através da sua interação com neste número da SUPER INTE- onde estão todas as galáxias
RESSANTE, baseadas numa e os vazios do espaço (as
possível perceção errada da grandes galáxias em rotação
O Telescópio Cosmológico de Atacama
mapeou a distribuição da matéria gravidade. O Telescópio Cos- desintegrar-se-iam se não
escura num quarto do céu. mológico de Atacama (ACT, houvesse uma massa invisível
na sigla inglesa), financiado que as unisse e assim as man-
pela National Science Foun- tivesse). Mas a matéria escura
dation e localizado no deserto distorce a luz e, por isso, foi
de Atacama (Chile), traçou a através das subtis distorções
distribuição da matéria escura desta luz antiga, introduzidas à
numa quarta parte do céu e ao medida que passava por toda
longo de quase 14 mil milhões a matéria no seu caminho, que
de anos. ACT conseguiu determinar a
O resultado é uma confirmação sua localização. Este fenóme-
espetacular das ideias de Al- no é conhecido como «lente
bert Einstein. gravitacional».
ASC
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DESCOBERTO O GRANDE SEGREDO DOS CONSTRUTORES MAIAS
da civilização maia, Oxwitik (o seu nome
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O
de Barcelona desenvolveu uma É um teste não
invasivo e tem uma
ferramenta que permite utilizar as
elevada sensibilidade
moléculas de ácido ribonucleico e especificidade.
de transferência (ARNt) como biomarcadores
para diagnosticar os cancros. Com «um enorme
potencial para o diagnóstico e o prognóstico
das doenças», poderá ser utilizado num futu-
ro próximo para determinar se uma amostra
é cancerígena e prever a sua malignidade em
menos de três horas e por menos de 50 euros
por amostra. O estudo, publicado na revista
Nature Biotechnology, explica que este méto-
do inovador não é um teste invasivo e tem
uma elevada sensibilidade e especificidade.
Segundo a diretora, Eva Novoa, «os ARNt são
moléculas que contêm muita informação,
com um enorme potencial para o diagnóstico
e prognóstico de doenças, e até agora não
foram exploradas devido à falta de métodos
que possam captar esta informação de uma
forma quantitativa e rentável». Alguns can-
cros são difíceis de diagnosticar porque os
seus sintomas não são específicos e podem
ser confundidos com outras doenças. Este
novo método, denominado Nano-tRNAseq,
pode medir tanto a abundância como as mo-
dificações das moléculas de ARNt num único
passo, tornando-o muito mais barato e mais
rápido (atualmente podemos ter resultados
em alguns dias e, num futuro próximo, em
algumas horas). e
8 SUPER
CIÊNCIA DA VIDA QUOTIDIANA
P controversos no domínio da
química como o bisfenol A
(BPA), um produto utilizado
há muitos anos no fabrico de policarbo-
nato e de resinas epoxi-fenólicas. O po-
licarbonato é um tipo de plástico rígido
e transparente utilizado em embalagens
de alimentos, CDs ou DVDs, lentes de
óculos, faróis de automóveis, gavetas de
frigoríficos, brinquedos, etc. Por outro
lado, as resinas epoxi-fenólicas são utili-
zadas em revestimentos e forros de con-
servas e embalagens de alimentos. O BPA
está também presente em muitos outros
objetos do quotidiano, como os recibos
de papel térmico das caixas registadoras.
Porque é que o BPA é uma substância
tão controversa? Porque é um disrup-
tor endócrino, ou seja, uma substância
com a capacidade de alterar a ação de
hormonas como a insulina ou a tiroxi- O BPA está presente no
na, que são libertadas pelas células β policarbonato utilizado
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CURIOSIDADE FALAR DE CIÊNCIA...
AS PALAVRAS DA CIÊNCIA
CADA DISCIPLINA TEM A SUA LINGUAGEM E AS SUAS PRÓPRIAS PALAVRAS. PALAVRAS QUE A DEFINEM E
QUE, NOUTRO CONTEXTO, PERDEM SENTIDO. AS PALAVRAS DA CIÊNCIA BEBERAM EM MUITAS FONTES,
DERAM NOME A ESTRELAS, INSETOS, EFEITOS FÍSICOS OU COMPORTAMENTOS.
Criaturas
mitológicas,
romances, peças
musicais e até
atores dão nome a
todo o tipo de
descobertas
científicas. Cada
nova descoberta
tem de ser
batizada.
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ormalmente não nos aperce- pelo contexto em que a utilizamos: a um café com um amigo? Recomendo ao
10 SUPER
car», «explorar», «comparação», «comu- tudo está vendido. No início, era-lhes
nicação», «aplicação».... Nenhuma outra
atividade humana utiliza este conjunto
OS ASTRÓNOMOS dado nomes femininos emprestados da
mitologia clássica, mas depressa se es-
de palavras de forma regular.
Por outro lado, hoje em dia, a escolha
COMEÇARAM POR USAR gotaram. Depois, os descobridores co-
meçaram a escolher personagens femi-
das palavras é crucial se se quiser atrair
a atenção dos meios de comunicação so-
NOMES FEMININOS DA ninas das peças de Shakespeare ou das
óperas de Wagner, especialmente se os
cial. Os cientistas sabem como o fazer; e
estão a melhorar cada vez mais. E não se
MITOLOGIA CLÁSSICA, asteróides se situassem entre Marte e
Júpiter. Quando estes nomes também se
trata de algo que acabaram de descobrir.
Um exemplo é a física das partículas. Aí
MAS ESTES, CEDO SE esgotaram, surgiram os nomes das suas
esposas, amantes, colegas astrónomos,
temos os quarks, um termo peculiar que
não significa nada. Foi inventado pelo
ESGOTARAM amigos... Assim, temos asteróides com
o nome do corredor olímpico finlandês
escritor irlandês James Joyce e aparece Paavo Nurmi, dos músicos Mozart, De-
numa frase do seu romance Finnegan’s lotos suicidas japoneses durante a Se- bussy e Leonard Bernstein, de uma série
Wake: «Three quarks for Muster Mark». gunda Guerra Mundial), o «efeito Beau de lagos e rios japoneses, dos milioná-
Em meados dos anos 60, o físico Murray Gest» (lembram-se do romance?), a «hi- rios Rockefeller e Carnegie, do navio de
Gell-Mann decidiu utilizá-lo para designar pótese da Rainha Vermelha» (da perso- guerra Potemkin, dos Beatles, de Spiel-
estas partículas subatómicas inimagina- nagem de Alice no País das Maravilhas) berg, de Lenine e, claro, de Elvis.
velmente pequenas, a partir das quais são ou o «efeito dos Três Mosqueteiros». Mas é na nomenclatura biológica que
construídos o protão e o neutrão. Mas o Questão diferente são os nomes na se encontram as maiores curiosidades:
mais curioso não está no seu nome, mas ciência. Não há dúvida de que a vontade há 1,4 milhões de espécies nomeadas.
nas suas propriedades. Os quarks, tal co- de dar um nome a algo que existe no Aqui, os investigadores deram largas à
mo os gelados, têm seis sabores — para universo e sobre o qual ainda não sabe- sua imaginação. Assim, temos o primata
cima, para baixo, pico, vale, charme e mos nada deve ser uma sensação única. de 20 milhões de anos Ekgmowechasha-
estranheza — e cada um pode ter a sua Claro que há disciplinas onde é mais fá- la, que significa «pequeno homem-ra-
própria carga de cor pessoal — vermelho, cil fazê-lo: um entomologista terá mais posa» em Lakota, uma língua Sioux. Ou-
verde e azul. E como se chama o ramo facilidade do que um físico teórico, mas tros são quase impronunciáveis, como o
da física que estuda as interações entre todos têm a sua oportunidade. mamífero do Cretáceo Lainodon oruee-
os quarks? Não poderia ser outro senão Os astrónomos têm o seu nicho — e txebarriai. A imaginação dos biólogos
cromodinâmica quântica. um nicho bastante grande — e é por é infinita e temos nomes de todos os
isso que a União Astronómica Interna- tipos: a mosca Campsicnemius charlie-
OUTRO NOME MUITO GRÁFICO É «A CIÊNCIA cional tem 40 comissões independentes chaplini, a vespa Mozartella beethoveni,
DO CAOS». Este nome foi introduzido por que nomeiam todos os objetos nos seus a aranha Calponia harrisonfordi ou os
um matemático algo excêntrico cha- respetivos campos. Os asteróides, em géneros Darthvaderum (ácaros) e Gollum
mado James Yorke. A palavra não foi particular, são um mercado onde nem (peixe cartilaginoso). e
muito bem escolhida, pois aqui «caos»
não significa aleatoriedade e desordem.
De facto, apresenta uma estrutura de-
finida se o observarmos durante tempo
suficiente: exemplos deste comporta-
mento são o gotejar habitual de uma
torneira mal fechada e as fibrilações
cardíacas, a economia, o clima ou as
inversões orbitais da lua de Saturno
Hiperion. Nele sempre apare-
cem uns monstros geométri-
cos descobertos por Benôit
Mandelbrot, a que chamou
fractais (do latim frangere,
quebrar).
A biologia também procu-
ra títulos apelativos. O zoó-
logo Richard Dawkins fê-lo
em 1976, quando utilizou o
termo «gene egoísta» para A nomenclatura biológica é
descrever o comportamento dos onde a imaginação dos
animais, que se comportam como se cientistas mais se
estivessem a pensar apenas nos seus desenvolveu. Há 1,4
próprios interesses. A situação torna- milhões de espécies
-se mais interessante quando ouvimos nomeadas e é preciso
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SUPER 11
A N T R O P O L O G I A
COLECIONADORES
DE
CRÂNIOS
Descobertas recentes
em grutas onde viveram
os neandertais
apontam para ritos de
iniciação ou santuários
para invocar a magia.
Tinham um pensamento
simbólico.
ALBUM
12 SUPER
O primo distante do Homo sapiens, o neandertal, era mais complexo do que parecia
à primeira vista. A descoberta de cavernas com crânios de animais revelou que
eles os guardavam como troféus e para praticar algum tipo de ritual, um pormenor
que diz muito sobre a capacidade cognitiva de quem o fazia. Por outras palavras,
os neandertais tinham uma capacidade cognitiva simbólica.
SUPER 13
P
oucos membros da linhagem com significados desconhecidos, ou pelo conhecimento
humana foram tão maltrata- atual da preservação de troféus de caça.
dos na cultura popular como É o caso recente da gruta de Des-Cubierta, no nor-
os neandertais. Desde a sua te da região de Madrid. Há 40 000 anos, os neandertais
descoberta em 1856 até ao fi- acumularam ali crânios de diferentes animais. Apa-
nal do século XX, os nossos rentemente, não tinham nada a ver com comida, eram
primos hominídeos mais pró- troféus associados a rituais de caça. E, segundo os seus
ximos foram constantemente descobridores, é o único sítio com atividade exclusiva-
subestimados, a tal ponto que mente simbólica identificado no registo arqueológico
chamar neandertal a alguém neandertal até à data.
se tornou um insulto.
Para muitos cientistas, os CAÇADORES HÁBEIS. Inicialmente, pensava-se que os
neandertais não eram suficientemente inteligentes para neandertais eram caçadores desajeitados com grandes
se juntarem aos grandes Homo sapiens. No entanto, as dificuldades para apanhar e caçar grandes animais da
provas arqueológicas e paleoantropológicas que se têm Idade do Gelo, como mamutes ou rinocerontes lanudos.
vindo a acumular desde os anos 90 até à data têm vindo Mas isso era mais um produto do pouco que se sabia so-
a desenvolver uma história muito mais rica e complexa bre eles do que algo real.
desta espécie humana. As provas acumuladas nas últimas décadas sugerem
Não só eram tão bons caçadores como o Homo sa- que os nossos primos eram muito flexíveis na escolha
piens, como também eram capazes de guardar crânios e obtenção dos seus alimentos. Em zonas como a atual
como troféus. Hoje em dia pode parecer estranho que os Bélgica, na gruta de Spy, uma das primeiras a ser es-
cientistas se maravilhem com esta descoberta, mas es- tudada, verificou-se que os neandertais eram quase
te pormenor diz muito sobre a capacidade cognitiva de exclusivamente carnívoros, concentrando-se em rino-
quem a fez. O facto é que conservar e até modificar um cerontes lanudos e ovelhas selvagens ou muflões.
crânio de animal não tem nada a ver com a alimentação Em locais como a gruta de El Sidrón, em Espanha,
em si, mas está relacionado com o chamado pensamen- verifica-se que a recolha de cogumelos, musgos e fru-
to simbólico, que consiste em atribuir um significado tos secos era também importante. Na gruta da Figueira
especial a um objeto, algo representativo, não prático. Brava, em Portugal, encontraram-se indícios de que
É assim que funcionam certos ornamentos, por exem- também cozinhavam caranguejos.
plo, um anel de ouro, que na mão esquerda é símbolo da No que se refere à caça, eram também flexíveis. As
união de duas pessoas num pacto de amor. Os objetos a suas escolhas culinárias variavam entre pequenas pre-
que é atribuído um significado podem comunicar de- sas, como coelhos e lebres, presas de tamanho médio,
terminadas informações aos outros. como vacas, veados, corços e cavalos, e presas de gran-
Os neandertais tinham todo o tipo de comporta- de porte, como o Palaeoloxodon antiquus, um elefante
mentos e objetos simbólicos, desde o enterro dos seus de quatro metros de altura.
mortos com ornamentos, a expressões artísticas em Estes últimos foram recentemente descobertos em
grutas, passando por objetos esculpidos ou modificados Neumark-Nord 1, na Alemanha, e têm 125 000 anos de
ALBUM
Contrariamente
ao que se
pensava até há
pouco tempo,
os neandertais
eram caçadores
hábeis. Para
caçar grandes
presas,
organizavam-se
em grupos.
14 SUPER
DIFERENTES GRUPOS DE
EIPV-IPHES
NEANDERTAIS COORDENAVAM-SE
PARA CAÇAR GRANDES MAMÍFEROS
QUE FORNECIAM GRANDES
QUANTIDADES DE CARNE FRESCA
SUPER 15
A DESCOBERTA DE FERRAMENTAS DE PEDRA NA GRUTA DE DES-CUBIERTA
INDICA QUE OS SEUS HABITANTES ERAM NEANDERTAIS
tem cerca de 80 metros de comprimento e entre dois EXEMPLOS DO PRESENTE. Para compreender o que se pas-
e quatro metros de largura, com um percurso em zi- sava no interior da gruta, os especialistas recorreram
guezague. Os crânios foram encontrados a cerca de não só a casos conhecidos, mas também ao que se sabe
25 metros da entrada, no chamado nível 3, que foi da etnografia, ou seja, o estudo dos caçadores-recoleto-
datado de 40 000 anos de antiguidade. Nessa época, res do passado e atuais.
a região era mais fria e seca do que atualmente, com Embora os hábitos destes parentes neandertais, que
poucas árvores, mais semelhante a uma estepe. É o viveram há mais de 40 000 anos, fossem provavelmente
que se depreende da análise do pólen fóssil descober- muito diferentes dos de qualquer ser humano recente,
to na zona. permitem aos especialistas comparar e tirar algumas
Ao mesmo nível foram encontradas ferramentas de conclusões.
pedra: são estas que apontam para os neandertais como «Culturas de todo o mundo atribuíram aos crânios
ocupantes da gruta, pois são de um estilo conhecido co- de animais um importante conteúdo simbólico e pro-
mo musteriense, só usado por eles. tegeram-nos e exibiram-nos com grande cuidado»,
Ao mesmo tempo, tanto os utensílios líticos como explicam os investigadores no estudo publicado na Na-
os crânios estavam associados a restos de lareiras. Os ture Human Behavior.
neandertais acendiam e mantinham lareiras no interior Por exemplo, tanto o povo Achuar da América do Sul
da gruta. como o povo Wola da Nova Guiné tinham o costume de
«A gruta de Des-Cubierta não é algo isolado na região, guardar crânios como lembranças ou troféus de caça.
já que, a apenas 100 metros desta, no Abrigo Navalmail- Noutras culturas, eram agrupados para formar aglo-
lo, onde também viveram neandertais, encontrámos merados relacionados com rituais de caça, por vezes
restos de ocre. Julgamos que poderia ter sido usado pa- associados a santuários.
ra decoração corporal, como ocorria noutros locais», Esta acumulação de crânios como troféus está tam-
acrescentou o investigador Enrique Baquedano. bém relacionada com a construção da identidade
JAVIER TRUEBA-IPHES
16 SUPER
A recolha de
crânios mostra
que os neandertais
não eram assim
tão diferentes de
nós e tinham
capacidades
simbólicas.
JAVIER TRUEBA-IPHES
masculina, como em grupos da Nova Guiné, ou com na Grotte du Prince, em França, que foram interpreta-
a realização de cerimónias específicas, como entre os dos como uma coleção de troféus de caça.
Ainu do Japão. Noutros casos, estava relacionada com Alguns enterramentos neandertais foram associados
rituais mortuários, como entre os Uilta da ilha de Sha- a crânios de animais de grande porte, como um da gru-
kalin, no norte do Japão. ta de Regoudou, em França, com um urso das cavernas
No caso dos neandertais de Des-Cubierta, o facto de como possível oferenda funerária. Um caso semelhante
os crânios pertencerem a espécies com chifres sugere é o de Teshik-Tash, no Uzbequistão. Mas foi só com a
aos investigadores que podem representar troféus. A chegada do Homo sapiens à Europa, e após a extinção
sua concentração num pequeno espaço poderia tam- dos seus primos neandertais, que se começou a obser-
bém indicar uma espécie de santuário. var a utilização de crânios de animais em contextos
O facto de existirem lareiras associadas aponta, se- simbólicos ou rituais. É por isso que este caso de uma
gundo os investigadores, para uma espécie de santuário manifestação de pensamento semelhante nos neander-
onde se realizariam expressões simbólicas relacionadas tais é tão marcante.
com o mundo natural, uma espécie de pensamento má- Foram catalogados cerca de 220 exemplos de simbo-
gico primitivo, ou simplesmente um rito de iniciação lismo em sítios neandertais, incluindo o enterramento
para os jovens que começavam a sua vida de caçadores. dos seus mortos com objetos ou decorações, represen-
tações artísticas e o uso de corante ocre no que parecem
MUNDO SIMBÓLICO NEANDERTAL. A gruta de Des-Cubierta ser estruturas rituais e para decorar objetos. A recolha
foi utilizada durante milhares de anos, o que implica de crânios para fins simbólicos só vem aumentar a evi-
que a prática de acumular crânios para fins simbólicos dência esmagadora de que o nosso primo hominídeo
pode ter sido transmitida de geração em geração, o que não era assim tão diferente de nós nos seus costumes.
faria dela um fenómeno cultural, segundo os autores «Interpretamos o santuário encontrado na gruta
do estudo. de Des-Cubierta como um conjunto arqueológico que
Conhecem-se muito poucas acumulações de crânios fornece fortes evidências da capacidade cognitiva sim-
relacionadas com as ferramentas líticas neandertais. bólica dos neandertais», concluiu o arqueólogo Enrique
Baquedano e os seus colegas mencionam os descobertos Baquedano. e
SUPER 17
C O S M O L O G I A
pareça, não há
nada nas leis da
física que nos diga
que o tempo anda
para a frente ou
para trás: as
equações
funcionam da
mesma forma no
passado e no
futuro.
PORQUE É QUE
O TEMPO
ANDA PARA A
FRENTE E NÃO
18 SUPER
PARA TRÁS?
Desde o nascimento, o nosso universo segue um fluxo irreversível, com
uma tendência natural para a desordem. Mas o tempo não é uma grandeza
absoluta: a nossa passagem do tempo é marcada pela entropia, ou seja,
lembramo-nos do passado, mas não nos lembramos do futuro.
U
m objeto move-se da esquerda com a sua teoria da relatividade especial. Descobriu-
para a direita com uma veloci- -se que o tempo não é uma quantidade absoluta, mas
dade constante de 1 metro por que a sua própria medição depende também do estado
segundo. O que teria de acon- de movimento do observador. A revolução einsteinia-
tecer para que se movesse da na implicava que o tempo devia ser integrado nas três
mesma forma, mas da direita dimensões espaciais a que estamos habituados, para
para a esquerda? A nossa res- formar um quadro tetradimensional chamado «espaço-
posta óbvia seria: a velocidade -tempo». O salto concetual foi muito profundo; nesta
teria de ser de -1 metro por se- realidade tetradimensional, a relação antes-depois só é
gundo, indo na direção oposta absoluta quando existe um nexo de causalidade entre os
para desfazer a trajetória. Mas factos físicos assim ordenados. Mas isso não responde
a física permite-nos outra solução: que o tempo ande à nossa questão: as equações continuam a funcionar da
para trás, sem necessidade de inverter o sinal da ve- mesma forma no passado e no futuro.
locidade. Pode parecer estranho, mas não há nada nas
leis fundamentais da física que nos diga que o tempo A MORTE: A DESORDEM DOS NOSSOS ÁTOMOS. É muito claro
anda para a frente ou para trás. De facto, desde as leis para nós que a seta do tempo tem uma direção passado-
de Newton ou as leis da teoria da relatividade, até aos -futuro; por exemplo, sabemos que estamos a caminho
desenvolvimentos da mecânica quântica, as equações da morte. Se nos mostrarem um filme de um vaso a cair
funcionam da mesma forma para a frente e para trás. no chão, e se o rebobinarem, sabemos perfeitamente
que não é real: não é possível que os fragmentos desor-
O TEMPO NÃO É ABSOLUTO. A grande revolução no conceito denados do vaso partido saltem para trás para voltar
físico de tempo ocorreu na transição do século XIX para a fabricar o vaso. Analogamente ao vaso, depois de
o século XX, como um processo derivado da publicação morrermos, os nossos átomos ficam desordenados. Os
das leis fundamentais do eletromagnetismo (equa- nossos átomos perduram, o que se perde é o conjunto
ções de Maxwell, concebidas por James Clerk Maxwell desses átomos que resulta no nosso corpo.
{1831-1879}). Este processo consistiu em compreender Esta é uma das chaves que estabelece a seta humana
como devemos adaptar as equações para que dois ob- do tempo: o nosso universo tem uma tendência natu-
servadores, um em movimento relativamente ao outro,
possam descrever corretamente a mesma realidade. Se
estivermos a conduzir numa autoestrada a 120 km/h e
na faixa de rodagem vizinha houver outro carro a cir-
cular à mesma velocidade, este parecerá estar parado
em relação a nós; mas uma pessoa parada na berma da
estrada observará que ele circula a 120 km/h. Ao com-
pararmos as nossas medições da realidade física com as
de outros observadores, temos de ter em conta a forma
como nos estamos a mover em relação a eles. No exem-
plo da autoestrada, o nosso senso comum diz-nos que
isto se resolve simplesmente adicionando ou subtrain-
do os 120 km/h que diferenciam o estado do observador
no carro do observador na berma, e isto foi feito sem
problemas desde o tempo de Galileu (1564-1642) até ao
advento das equações de Maxwell em 1865. Quando se
ISTOCK
SUPER 19
As leis fundamentais do
eletromagnetismo
permitiram compreender
como as equações devem
ser adaptadas para que
dois observadores, um em
movimento relativamente
ao outro, descrevam a
mesma realidade. Na
imagem: campos
eletromagnéticos em
torno da Terra.
ral para se desordenar desde que nasceu há 13,8 mil para o frio e não o contrário. Descobriram também que,
milhões de anos. O estudo desta tendência natural pa- no funcionamento de uma máquina, é impossível não
ra a desordem teve origem no século XIX e é um dos perder energia (o movimento perpétuo não é possível) e
fundamentos da área da física conhecida como termo- que era vital saber qual a fração de energia que se perde
dinâmica (que brilhou no mesmo século), impulsionada no processo. Para medir a parte da energia que se per-
pela revolução industrial causada pela invenção da má- de sem realizar trabalho, Rudolf Clausius (1822-1888)
quina a vapor e pela necessidade de compreender como definiu o conceito de entropia, uma palavra de origem
o calor flui nas máquinas. O vaso não volta a unir-se por- grega que significa evolução ou transformação.
que, ao partir-se e ao surgirem vários pontos de fricção,
uma parte da energia é dissipada sob a forma de calor. EVOLUÇÃO, TRANSFORMAÇÃO E... IRREVERSIBILIDADE, porque
Os físicos do século XIX aperceberam-se de que o fluxo o conceito de entropia é central para o estabelecimen-
de calor tem uma direção natural: vai do corpo quente to do chamado segundo princípio da termodinâmica,
que nos diz que a natureza impõe uma direção aos pro- um dos constituintes de um sistema macroscópico (por
cessos, segundo a qual é possível transformar todo exemplo, as moléculas de um gás). Mais curioso ainda é
o trabalho mecânico de um sistema em calor, mas é o facto de que, quando descemos à escala destes consti-
impossível transformar todo o calor que ele tem em tra- tuintes fundamentais (átomos ou moléculas), a seta do
balho mecânico. É natural que o vaso se parta cada vez tempo parece apagar-se.
mais (processos em que o calor se dissipa), não que esse Pense-se no filme de uma bola de bilhar a bater na
calor possa ser utilizado para reconstruir o vaso tal co- borda da mesa de jogo. Se o plano do ressalto for próxi-
mo estava no início. É a única lei fundamental da física mo, não se pode distinguir se o filme está a ser emitido
que marca o fluxo irreversível do nosso universo, que na sua direção natural ou rebobinado. Trata-se de uma
marca a direcionalidade do tempo. O nosso universo analogia para ilustrar que as colisões de átomos e mo-
segue este processo a uma escala global: desde o seu léculas (cujo efeito médio é medido por aquilo a que
nascimento, a sua entropia tem sempre aumentado. chamamos temperatura; quanto mais agitação, maior a
Curiosamente, a termodinâmica é um ramo da física temperatura) são processos assimétricos no tempo.
que não nasceu para abordar problemas tão fundamen- Chegamos assim a uma reflexão curiosa: a seta do tem-
tais, mas estuda o mundo macroscópico, trata das po, que marca o fluxo do passado para o futuro, parece
propriedades médias de um coletivo de partículas, ten- ser uma qualidade que surgiu na passagem do mundo
ta resolver o problema derivado da impossibilidade de atómico para o mundo macroscópico. A diferença en-
descrever individualmente o comportamento de cada tre passado e futuro parece, então, ser caraterística
SUPER 21
O universo é regido
pela segunda lei da
termodinâmica que
diz que a natureza
impõe uma direção
aos processos. O
universo segue um
fluxo irreversível.
SHUTTERSTOCK
(1942-2018) levou esta ideia mais longe e propôs em
1993 que o segundo princípio da termodinâmica seria
uma espécie de tautologia: a entropia aumenta com o
tempo simplesmente porque definimos a direção do
tempo como sendo aquela em que a entropia aumenta.
E onde é que ele acaba? À medida que a entropia total
do nosso universo aumenta, o paradigma atual diz-nos
que ele acabará tão diluído, tão desordenado, sem espa-
ço para aumentar ainda mais a sua entropia, que nessa
altura o tempo desaparecerá.
22 SUPER
O nosso cérebro
também é regido
por processos
termodinâmicos,
pelo que a nossa
passagem do tempo
seria marcada pelo
aumento da
entropia.
SHUTTERSTOCK
Em 1956, descobriu-se que o
universo não se comporta da
mesma forma que a sua
imagem no espelho: a isto
chama-se quebra de simetria
de paridade
SUPER 23
A SR TT RÍ CO UF LÍ SO I C A
24 SUPER
24 - Muy Interesante
MATÉRIA
E SE NÃO EXISTISSE?
A substância mais misteriosa e esquiva do universo continua a enlouquecer os astrofísicos.
Uma minoria deles explora uma via alternativa: MOND (Modified Newtonian Dynamics),
uma teoria segundo a qual a matéria escura simplesmente não existe. Segundo eles,
a nossa perceção da gravidade está errada e dá a falsa impressão de que existe outra
matéria. Desde 1983 que têm vindo a desenvolver a MOND, uma teoria da gravidade que
pretende superar a teoria da gravidade de Newton e a de Einstein.
Este ano, a hipótese MOND faz 40 anos. No mês de junho, uma conferência internacional
reuniu os melhores físicos da área para fazer o balanço dos sucessos e fracassos deste
paradigma alternativo.
O Universo é
composto apenas
por 16% de matéria
bariónica, ou seja, a
matéria normal,
aquela que constitui
as estrelas, os
planetas e os nossos
corpos. O resto seria
ISTOCK
matéria escura.
SUPER 25
Muy Interesante - 25
O
WIMP está morto», afirma
Françoise Combes, do Ob- Após a desilusão do WIMP, os
servatório de Paris. O WIMP?
Significa «partícula maci- caçadores de matéria escura
ça de interação fraca». É a
partícula hipotética que os consideraram um segundo
físicos pensaram durante
décadas que constituía a ma-
téria escura, um dos maiores
candidato, o Axion, mas
mistérios do Universo. O
mistério começou nos anos
também não o encontraram
70, quando a comunidade as-
trofísica se apercebeu de que havia um problema com até à data
a rotação das galáxias: com base na sua massa aparen-
te, elas giram demasiado depressa para conseguirem
manter a sua própria coesão. É como se estivessem
banhadas por uma substância extra invisível, cuja periores às da matéria vulgar. O WIMP era perfeito
gravidade faz com que as estrelas da periferia orbi- para explicar as observações astronómicas de matéria
tem tão depressa como as mais próximas do centro, escura no cosmos. Tão perfeito que os físicos falaram
mas sem escaparem para o espaço intergalático. Os do «milagre do WIMP».
astrónomos aperceberam-se de que este estranho «Infelizmente, em vez de um milagre, o WIMP
efeito também aparece a uma escala maior, nos aglo- acabou por ser uma miragem», diz Stacy McGaugh,
merados de galáxias, onde estas dançam umas com as da Case Western Reserve University, no Ohio. Ne-
outras como se estivessem sob a influência gravita- nhum dos grandes e dispendiosos detetores que
cional de uma substância invisível. Mesmo a radiação construíram para o detetar foi bem sucedido: nem
cósmica de fundo, a primeira luz do Universo, parece o LUX nos Estados Unidos, nem o Panda X2 na Chi-
indicar que existe um outro tipo de matéria que não na, nem o Xenon1T em Itália, nem sequer o enorme
brilha... A matéria escura estaria em todo o lado! Hoje LHC na fronteira franco-suíça... Perante tal desilu-
em dia, é consensual que o Universo é composto ape- são, nos anos 2010, os caçadores de matéria negra
nas por 16% de matéria bariónica, ou seja, a matéria começaram a considerar outro candidato, o segundo
«normal», que constitui as estrelas, os planetas e os favorito, «Axion». Até à data, também não o encon-
nossos organismos. O resto seria matéria escura! traram. Nem vestígios do «neutrino estéril», nem de
qualquer outro dos inúmeros outros candidatos... A
PERANTE ESTE ENIGMA, OS TEÓRICOS IMAGINARAM PARTÍCU- matéria escura continua a escapar-nos.
LAS EXÓTICAS COM DETERMINADAS CARACTERÍSTICAS que Alguns físicos estão cada vez mais convencidos de
poderiam formar a matéria escura. Pensaram ter en- que se tomou o caminho errado desde o início. «Na
contrado o candidato ideal, o WIMP, imaginado pelo minha opinião, já não há qualquer dúvida: nunca
Prémio Nobel Steven Weinberg em 1977. De acordo houve uma «massa perdida»», diz Stacy McGaugh.
com os seus cálculos, WIMP tinha a massa certa, Segundo eles, o fracasso dos detetores nos últimos
cerca de cem vezes superior à do protão. Era com- anos levou à conclusão inevitável de que as partícu-
pletamente insensível à luz, ou seja, perfeitamente las de matéria escura não existem. A solução seria de
«escuro». Além disso, uma vez injetado nos modelos facto de natureza «legislativa»: são as leis da física
do Big Bang, o WIMP aparecia espontaneamente no que têm de ser alteradas! As leis que temos atualmen-
início do Universo, em proporções 4 ou 5 vezes su- te estariam erradas, dando a ilusão de que existem
anomalias nas curvas de rotação das galáxias. Por esta
razão, as galáxias parecem conter matéria exótica que
não brilha... A matéria negra seria apenas uma ilusão
ASC
de ótica.
Observações
hidrogé
nio De facto, existe um precedente histórico muito seme-
21 cm de lhante: em meados do século XIX, anomalias na órbita
s de Mercúrio levaram os astrónomos a acreditar que o
ela
estr
das planeta era influenciado pela gravidade de uma estrela
luz misteriosa, ainda mais próxima do Sol do que Mercú-
da
rio, que batizaram de Vulcano. Começaram a procurar
Expecta aquele que seria o «planeta zero» do sistema solar...
tiva do d
isco vis
ível mas apesar de décadas de buscas com telescópios,
Vulcano nunca apareceu. Finalmente, um tal Albert
Einstein apercebeu-se que eram as leis de Newton que
não eram exatas em campos gravitacionais fortes, como
é o caso do campo onde Mercúrio orbita, muito perto
do Sol. Segundo Einstein, os cálculos da órbita de Mer-
cúrio falharam porque as equações estavam incorretas.
Em 1915, inventou uma lei da gravitação mais precisa
Einstein apercebeu-se de que as leis de Newton não eram do que a de Newton, a relatividade geral, que conseguiu
exatas em campos gravitacionais fortes, como o campo em que prever com exatidão a trajetória de Mercúrio. Quanto a
Mercúrio orbita, muito próximo do Sol. Vulcano... nunca existiu.
26 SUPER
NASA
Na imagem, o
Quinteto de
Stephen, um
aglomerado de
galáxias
fotografado
pelo Telescópio
James Webb.
Também são
visíveis os
fluxos de saída
impulsionados
por um buraco
negro.
«Hoje, estaríamos perante uma situação semelhan- as duas abordagens estão em pé de igualdade. No
te, mas não para os campos de aceleração fortes, mas entanto, a verdade é que, em quatro décadas, o pa-
sim o contrário: campos fracos», explica Benoît Fa- radigma MOND nunca se estabeleceu efetivamente
maey, do Observatório Astronómico de Estrasburgo. na comunidade de investigação da matéria escura.
O termo «fraco» é eufemístico: a aceleração a que es- Continua a ser um nicho de investigação.
tão sujeitas as estrelas na periferia das galáxias é 100 Neste sentido, a MOND tem um espinho no meio
mil milhões de vezes inferior à gravidade à superfí- do caminho. Se funciona perfeitamente à escala
cie da Terra. Em julho de 1983, Mordehai Milgrom, galática, não funciona de todo a uma escala supe-
do Instituto Weizmann, em Israel, publicou os três rior, a dos aglomerados de galáxias. Não é uma lei
artigos fundamentais da teoria MOND, acrónimo de universal. Ao longo das últimas quatro décadas, os
«Modified Newtonian Dynamics» (Dinâmica Newto- teóricos da MOND não conseguiram extrapolar os
niana Modificada), nos quais propôs modificações à seus cálculos para o movimento de galáxias em ór-
lei da gravitação universal de Newton para regimes bita umas das outras. A dinâmica dos aglomerados
fracos de aceleração.
Basicamente, o que Milgrom fez foi modificar as
equações de forma a adaptá-las às curvas de rotação
das galáxias observadas pelos telescópios. Em resu-
mo: Newton considera que a atração gravitacional
gerada por uma massa diminui com o quadrado da A matéria escura à
distância a essa massa (lei em «1/d²»). Ao contrário,
Mond estipula que, na periferia das galáxias, a gra- nossa volta
vidade exercida pelo centro galático é tão fraca que
muda de regime, variando apenas de acordo com uma
lei em «1/d». Por incrível que pareça, esta simples
modificação permite explicar perfeitamente a ro-
A nossa galáxia, como todas as galáxias, parece conter matéria
escura — e muita. As estimativas indicam que conteria o equi-
valente a um milhão de milhões de milhões de vezes a massa do
tação dos discos galáticos, sem recorrer a qualquer Sol, que é já 2.10^30 kg! No sistema solar, estima-se que a esfera
matéria escura. delimitada pela órbita da Terra conteria 2 biliões de toneladas de
Assim, Françoise Combes afirma que «tendo em matéria escura. No entanto, o sistema solar é gigantesco, pelo que
conta os dados de precisão disponíveis atualmente, a a sua densidade média seria apenas de 6 10-28 kg/cm3... equiva-
MOND funciona ainda melhor do que a matéria es- lente a um terço de um protão por cada centímetro cúbico.
cura padrão». E acrescenta: «Atualmente, diria que
SUPER 27
E a energia escura?
NASA
A pesar de partilhar o mesmo rótulo, a energia escura é um con-
ceito radicalmente diferente. Surgiu em 1998, quando os
astrónomos se aperceberam que a expansão do Universo esta-
va a acelerar, em vez de abrandar gradualmente sob o efeito da
gravidade global. Em grande escala, os aglomerados de galáxias
afastam-se cada vez mais rapidamente uns dos outros sob o efeito
desta energia gravitacionalmente oposta, que representa 65% da
energia total do Universo. Por outras palavras, a energia escura e a
matéria escura não têm nada em comum — partilham apenas um
adjetivo, escuro, e o facto de serem dois dos maiores mistérios da
astrofísica moderna.
continua a ser um obstáculo com que os cálculos se trou pela primeira vez que as ondas gravitacionais
deparam inevitavelmente. viajam à velocidade da luz: a maioria das teorias da
Todos os entusiastas da MOND reconhecem o pro- gravitação modificada previa o contrário! A TeVes foi
blema. Mas não se sentem desencorajados, porque nos salva por pouco por Constantinos Skordis e Tom Zlos-
últimos 40 anos, muitas observações contradizem as nik, da Academia das Ciências Checa, em Praga, que a
previsões da sua teoria. No passado, muitos astróno- tornaram compatível com este novo constrangimen-
mos anunciaram que esta via alternativa conduzia a to observacional... à custa de acrescentar mais uma
um beco sem saída. No entanto, os físicos MONDianos camada de complexidade.
conseguiram sempre mostrar que havia uma forma Depois, em 2021, a mesma dupla publicou mais
ou outra de adaptar as suas equações e salvar a sua uma versão, a AEST (Aether-Scalar-Tensor theory),
teoria. Então, porque não haveriam de o conseguir graças à qual a MOND é agora, pela primeira vez,
mais uma vez, com os enxames de galáxias? Assim, ao compatível com o espetro das flutuações cósmicas de
longo dos anos, surgiu toda uma série de extensões, fundo em micro-ondas. Atualmente, a AEST é consi-
de subcategorias cada vez mais afinadas e complexas derada a teoria MOND mais avançada de todas. «Os
da MOND, desde AQUAL e QMOND (as versões ini- defensores da matéria escura estavam sempre a di-
ciais) até TeVeS (gravidade tensor-vetor-escalar) nos zer-nos que a MOND nunca poderia explicar o fundo
anos 2000, que foi a primeira tentativa bem sucedida difuso cosmológico. Bem, conseguiu», comemora
de unificar a MOND com a relatividade de Einstein. Stacy McGaugh. «Agora acusam-nos de estarmos
Todas estas teorias foram fortemente atacadas em constantemente a tornar a teoria mais complexa pa-
2017, quando a deteção da kilonova GW170817 mos- ra a salvar? Como se isso fosse pior do que inventar
uma massa invisível!»
É certo que evitar as armadilhas da observação,
uma a uma, adaptando as equações a cada problema
ASC
«Desenvolver as teorias
empiricamente, adaptando-se
continuamente aos factos
observados, é precisamente a
O físico americano Steven Weinberg, galardoado com o Prémio Nobel
estratégia certa», diz
da Física em 1979, formulou, juntamente com Abdus Salam, a teoria
unificada das interações eletromagnéticas e nucleares fracas. Françoise Combes
28 SUPER
NASA
Na imagem, o
Telescópio James
Webb. As galáxias
primordiais
descobertas por
este telescópio
ajudarão no estudo
da matéria escura.
Por seu lado, Stacy McGaugh está convencido de reuniram-se para apresentar os últimos avanços e
que as observações do cosmos acabarão por favore- fazer um balanço do estado da arte neste domínio de
cer a MOND. Os seus estudos atuais centram-se nas investigação. Como é óbvio, Mordehai Milgrom foi
galáxias primordiais recentemente descobertas pelo um dos convidados de honra. «Penso que a MOND
Telescópio Espacial James Webb, pouco depois da sua está em boa forma», afirma. A MOND está a in-
entrada em funcionamento no verão passado. Estão cutir cada vez mais confiança na comunidade de
localizadas a mais de 13,4 mil milhões de anos-luz investigação da matéria escura. «O que lamento, no
da Terra, pelo que as vemos como eram apenas 400 entanto, é o facto de tudo ter evoluído tão lentamen-
milhões de anos após o Big Bang. De acordo com o te. Quando propus a ideia, em 1983, pensei que ela se
modelo padrão da matéria escura, estas galáxias ma- ia desenvolver muito mais rapidamente. Nunca teria
ciças não deveriam ter existido tão cedo na história imaginado que levaria meia vida para chegar à fase
do Universo ou, pelo menos, não deveriam ter sido atual. Estava tão confiante no potencial da MOND
tão numerosas como as observadas. «Pelo contrário, que pensei que, assim que os meus artigos fossem
a sua existência foi prevista pela MOND já em 1998! publicados, muitos colegas iriam apreciá-los e come-
No entanto, de acordo com Mathieu Bethermin, çar imediatamente a trabalhar nela. É evidente que
especialista em galáxias primordiais do Observatório não foi isso que aconteceu.
Astronómico de Estrasburgo, em França, é demasia- Ainda assim, Milgrom tem grandes esperanças pa-
do cedo para utilizar os dados do James Webb para ra os desenvolvimentos futuros. Segundo ele, a falta
distinguir entre as duas teorias: «Em primeiro lugar, de resultados dos detetores conduzirá a uma desilu-
estas galáxias antigas e maciças podem ser menos an- são cada vez maior e, a pouco e pouco, mais pessoas
tigas ou menos maciças do que parecem. Em segundo ficarão convencidas de que a MOND é uma boa alter-
lugar, as simulações de matéria escura ainda não nativa. Por outro lado, Françoise Combes não é tão
estão suficientemente desenvolvidas para concluir otimista. «Não creio que o mistério seja resolvido tão
categoricamente que estas galáxias maciças não de- cedo», diz. «Não acho que a solução apareça de um
veriam existir». dia para o outro, acho que pode demorar mais uns 50
anos. Afinal de contas, passaram dois séculos entre
PARALELAMENTE AOS SEUS ESTUDOS, STACY MCGAUGH PRE- Newton e Einstein. Sim, há muito mais cientistas hoje
PAROU UMA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL, juntamente do que havia na altura e estão a ser exploradas muitas
com Françoise Combes e Benoît Famaey, realizada de mais vias em paralelo, mas estamos no limite das nos-
5 a 9 de junho, na Universidade de St Andrews, na sas capacidades. A fruta mais fácil de apanhar já foi
Escócia, onde foi celebrado o 40º aniversário do pa- colhida, agora é altura de ir para as que estão no topo
radigma MOND. Os maiores especialistas mundiais da árvore, as mais difíceis de alcançar. e
SUPER 29
E V O L U Ç Ã O H U M A N A
COMO SE
FORMAM AS
IMPRESSÕÕES
DIGITAIS?
Porque é que as temos e como é possível que sejam completamente
diferentes em cada pessoa? Estas estruturas anatómicas únicas em cada
pessoa, e irrepetíveis no seu desenho, são um dos mais claros reflexos da
complexidade dos processos biológicos que ocorrem no organismo.
30 SUPER
As impressões digitais
SHUTTERSTOCK
seguem os chamados
«padrões de Turing»: a
formação dos sulcos
na pele é influenciada
por reações químicas.
SUPER 31
SHUTTERSTOCK
O
código de barras do nos- seguintes de gestação, formam-se as cristas primá-
so corpo. Traços biológicos rias no resto da pele das mãos e dos pés. «A formação
únicos, imutáveis para cada das cristas primárias está completa na décima sétima
pessoa. Estamos a falar de semana de gravidez, e depois começam a aparecer
impressões digitais, padrões cristas secundárias mais pequenas entre elas», conti-
complexos e individualmente nua a doutora Ayuso.
únicos na pele dos dedos das
mãos e dos pés, estabelecidos QUANTO AO DESENHO ESPECÍFICO DAS IMPRESSÕES DIGITAIS,
pré-natalmente e inalterá- CADA PADRÃO É DIFERENTE de pessoa para pessoa. Mesmo
veis ao longo da vida de uma as impressões digitais de gémeos univitelinos, que são
pessoa, ao ponto de, se as clones geneticamente perfeitos, não são iguais. Porquê?
pontas dos dedos forem danificadas mas consegui- Durante anos, biólogos do desenvolvimento de dife-
rem regenerar-se, estas impressões digitais voltarem rentes universidades, bem como de outras comunidades
ao seu padrão original. Mas como e porquê se formam científicas, têm investigado o desenvolvimento e a ma-
as impressões digitais, e porque é que são diferentes turação da pele, com especial interesse nas impressões
umas das outras? digitais, intrigados com a falta de compreensão dos me-
«A pele volar, ou seja, a pele das palmas das mãos canismos exatos pelos quais estes padrões distintivos se
e das plantas dos pés, é coberta por finas cristas pa- desenvolvem. E com a convicção de que compreender
ralelas ou pequenos sulcos chamados dermatóglifos. este processo poderia ajudar a melhorar a abordagem
As impressões digitais humanas formam-se quando de diferentes patologias ou mesmo a conseguir melho-
estas cristas epiteliais primárias se desenvolvem numa res formas de regenerar a pele.
espécie de «almofadas volares» que surgem na ponta Finalmente, foram descobertas três razões para a
dos dedos, aproximadamente na 13ª semana de gesta- singularidade das impressões digitais. Em primeiro lu-
ção», explica Carmen Ayuso, diretora do Instituto de gar, o desenho das cristas papilares seria determinado
Investigação Biomédica da Fundação Jiménez Díaz, em pela composição do líquido amniótico de cada mulher
Madrid. grávida, pela forma como o feto toca no que o rodeia
Estas «almofadas volares», ou elevações das pon- enquanto se desloca, pelas pressões intra-uterinas, pe-
tas dos dedos, ocorrem porque a camada intermédia los movimentos e pela posição do feto no útero e pela
da pele nas pontas dos dedos começa a crescer mais pressão sanguínea durante a gravidez. A mais peque-
rapidamente do que as camadas interior e exterior, o na variação em qualquer um destes fatores aleatórios
que faz com que estas áreas sejam mais altas do que o no processo de gestação resultaria em alterações em
resto da pele dos dedos. Depois, durante as semanas toda a estrutura da impressão digital. Em segundo lu-
32 SUPER
gar, as iniciações das cristas cutâneas que dão origem
aos diferentes tipos de impressões digitais são geradas
a diferentes alturas dos dedos, em locais anatomica- As impressões digitais
mente variáveis em cada pessoa, o que também afeta
o tipo de padrão destas características biológicas úni- na História
cas. Assim, o desenho de cada impressão digital pode
começar originalmente em três zonas: junto à unha,
em direção ao centro da ponta do dedo e junto à prega
E mbora tenham sido necessários séculos para que as impressões
digitais fossem consideradas elementos de reconhecimento
válidos no Ocidente, foram encontradas impressões digitais data-
da primeira articulação. As impressões digitais espa- das de 1792-1750 a. C. em placas de cerâmica na Babilónia, no
lham-se como uma série de ondas a partir destes locais Oriente, bem como em documentos da China e do Japão antigos.
de iniciação até se encontrarem finalmente no centro De facto, há provas de que eram utilizadas na China já em 300 a. C.
da última falange dos dedos e formarem o padrão de como prova de identidade e no Japão já em 702 d. C. O documento
impressão digital único com que nascemos. chinês intitulado The Volume of Crime Scene Investigation - Burglary,
E, em terceiro lugar, o processo de desenho das im- da dinastia Qin (221-206 a. C.), contém uma descrição de como as
pressões digitais é influenciado por um mecanismo impressões das mãos eram utilizadas como um tipo de prova para o
biológico de reação-difusão extremamente compli- reconhecimento das pessoas.
cado que gera padrões de desenho completamente
aleatórios: «Os padrões das impressões digitais, todos
diferentes uns dos outros, são gerados por processos
biológicos muito complicados de reação e difusão.
Especificamente, a reação química, por um lado, e a Os padrões gerados por este mecanismo de rea-
difusão das células resultantes dessas reações, por ou- ção-difusão são chamados «padrões de Turing», em
tro. Por outras palavras: a forma como estão dispostas homenagem ao cientista que investigou este tipo de
as cristas da pele que dão origem às impressões digitais processos. E têm a mesma aleatoriedade e singulari-
é influenciada pelas reações químicas que ocorrem en- dade no caso das impressões digitais e das riscas das
tre as moléculas do nosso organismo, reações químicas zebras ou manchas de leopardo. Fenómenos análogos
que geram células, e pela difusão destas células através na física podem até explicar padrões como as riscas nas
dos tecidos, em processos de reação-difusão tão alta- dunas de areia.
mente aleatórios que produzem padrões de impressões No artigo The developmental basis of fingerprint
digitais únicos e completamente diferentes em cada pattern formation and variation, da autoria, en-
caso», explica a doutora Carmen Ayuso. tre outros, de James D. Glover, do Instituto Roslin
SUPER 33
e da Universidade de Edimburgo, um dos principais dos, assim como aumentam, em geral, a sensibilidade
estudiosos do assunto, confirma-se que o tipo de tátil, pois ajudam a discriminar a textura das coisas»,
padrão de impressão digital gerado em cada caso se explica a doutora Ayuso.
deve a um conjunto de ondas de moléculas e célu- Por outro lado, por serem traços biológicos carac-
las que se propagam a partir de locais de iniciação terísticos de cada pessoa, únicos e individuais, são
variáveis definidos pelas complexidades anatómicas utilizados como sistema de identificação pessoal em
dos dedos e à propagação e encontro dessas ondas de medicina legal e criminalística. Neste sentido, as Ciên-
formas diferentes. cias Forenses falam de impressões digitais latentes,
patentes e plásticas. As impressões digitais latentes
PARA EFEITOS DE ESTUDO E CLASSIFICAÇÃO, OS PADRÕES são invisíveis ao olho humano e são transferidas para
DAS IMPRESSÕES DIGITAIS FORAM ESTEREOTIPADOS em superfícies através de secreções corporais e contami-
três grandes grupos, os mais frequentes e comuns: o nantes encontrados nos dedos. São as mais difíceis
arco, a espiral e o laço. O arco é o padrão de impres- de identificar, ao contrário das impressões digitais
são digital mais comum. É um formato de impressão patentes e plásticas. As impressões patentes são visí-
digital composto por linhas que começam num dos veis a olho nu e são aquelas que são transferidas para
lados da impressão, continuam em direção ao centro as superfícies por substâncias como sangue, tinta ou
e terminam no outro lado da impressão. Podem distin- gordura. As impressões digitais plásticas são as gera-
guir-se os arcos simples (as cristas começam num lado das pela pressão dos dedos em objetos macios, como
e seguem para o lado oposto, subindo ligeiramente na sabão, cera ou cola.
zona central) e os arcos piramidais (as configurações As impressões digitais podem também ser um au-
formadas pelas cristas são mais elaboradas do que as xiliar no diagnóstico de vários tipos de doenças. No
dos arcos simples). artigo The role of hand fingerprints on predisposition
Por outro lado, as espirais são impressões digitais of cancer development, os autores analisam as asso-
que desenvolvem numerosos círculos concêntricos à ciações entre padrões de impressões digitais e tipos de
volta do centro da espiral. E, finalmente, o laço mos- cancro.
tra linhas que começam num dos lados da impressão, Desta forma, as impressões digitais poderão ser uma
sobem em direção ao centro da mesma e depois regres- ferramenta potencialmente útil para o diagnóstico
sam à extremidade de onde partiram. precoce da predisposição para o desenvolvimento de
E quais são as funções das impressões digitais? «Em algumas doenças, nomeadamente cancros ginecológi-
primeiro lugar, esta caraterística da pele, especial- cos, cancro oral, cancro da próstata, cancro gástrico,
mente dos dedos, aumenta a superfície de aderência, leucemia e tumores da hipófise, uma vez que diferen-
razão pela qual aparecem evolutivamente nas espécies tes características dos padrões poderão indicar uma
de mamíferos e permitem segurar objetos com os de- maior predisposição para as desenvolver.
ISTOCK
34 SUPER
ASC
ASC
Jan Evangelista
Purkyne classifi-
cou os sulcos
dos dedos em
nove catego-
rias.
O ESTUDO DESTES TRAÇOS BIOLÓGICOS ÚNICOS É TÃO INTRI- o século XIX até aos nossos dias.
GANTE E EXCITANTE que levou ao aparecimento de uma Em 1823, um anatomista checo, Jan Evangelista
ciência, a datiloscopia, cujo nome deriva das palavras Purkyne, publicou um estudo que descrevia os sulcos
gregas daktylos (dedo) e skopein (exame ou estudo). dos dedos e classificou-os em nove categorias: curva
Esta ciência tornou-se um instrumento fundamental transversal, sulco longitudinal central, linha oblíqua,
no processo de identificação de qualquer pessoa, desde laço oblíquo, verruga amendoada, verruga espiral,
elipse, círculo e verruga dupla.
Em 1850, o cientista William James Herschel te-
ve a ideia de aplicar os seus conhecimentos sobre as
ASC
SUPER 35
B I O L O G I A
IC R O BI
OT
M
A E NV
A S U A
ELH
E CE
AS BACTÉRIAS INTESTINAIS
TAMBÉM ENVELHECEM
Texto de AURA ISABEL ARELLANO,
Departamento de Nutrigenómica e Nutrição
Personalizada da Universidade do País Basco
36 SUPER
A
percentagem de pessoas com
mais de 65 anos de idade na nossa
população tem vindo a aumentar
de forma constante nas últimas
décadas. De facto, de acordo
com as tendências atuais, es-
pera-se que em 2050 haja mais
pessoas com mais de 65 anos do
que jovens entre os 10 e os 24
anos. O aumento deste setor da
população levou a um aumento
da prevalência de doenças asso-
ciadas à velhice. Mas porque é que ficamos doentes
à medida que envelhecemos? O envelhecimento é
um processo complexo, natural e irreversível que, a
nível fisiológico, se caracteriza pela perda progres-
siva da funcionalidade dos nossos órgãos e tecidos.
Esta diminuição da capacidade funcional do nosso
organismo leva a um aumento do risco de sofrer de
doenças crónicas como a diabetes tipo 2, doenças car-
diovasculares ou cancro, que afetam negativamente a
esperança e a qualidade de vida das pessoas que delas
sofrem. Por conseguinte, existe um interesse crescen-
te em prolongar a manutenção de uma boa saúde. Não
se trata apenas de acrescentar anos à vida, mas tam-
bém de acrescentar vida aos anos.
Todas estas doenças partilham um denominador
comum, nomeadamente a inflamação de baixo grau.
O termo inflammaging foi cunhado em 2000 e é uti-
lizado para descrever a inflamação crónica de baixo
grau que se desenvolve com a idade e que prevê a
suscetibilidade de uma pessoa desenvolver patolo-
gias relacionadas com a idade. Dado o papel central
deste fenómeno inflamatório no desenvolvimento
de doenças metabólicas, é de interesse compreender
quais os fatores que promovem a inflamação, a fim de
estabelecer objetivos de prevenção e de conseguir um
envelhecimento mais saudável. Embora existam al-
O envelhecimento
saudável tem
terações fisiológicas inerentes à passagem do tempo,
muito a ver com o sabe-se que há fatores relacionados com o estilo de
equilíbrio da vida e, portanto, modificáveis, que podem promover
microbiota do um estado inflamatório aumentado. Por exemplo, a
nosso organismo. ingestão calórica excessiva, nomeadamente no con-
Certos hábitos texto de uma dieta rica em gorduras e açúcares (típica
ajudam a mantê-la dos países ocidentais), tem-se mostrado associada a
em boas um aumento da resposta inflamatória. Neste cenário,
condições. um dos campos mais estudados nos últimos anos é
ISTOCK
SUPER 37
SHUTTERSTOCK
Os seres humanos
têm a microbiota
mais abundante
do reino animal.
De facto, os
organismos do
nosso intestino
são dez vezes mais
abundantes do
que o número total
de células do
nosso próprio
corpo.
intestino são dez vezes mais abundantes do que o nú- ta imunitária do hospedeiro, dependendo dos hábitos
mero total de células do nosso próprio corpo. alimentares e das necessidades energéticas do hos-
A composição da nossa microbiota intestinal va- pedeiro, influenciando assim o seu estado de saúde.
ria muito de um indivíduo para outro, uma vez que Desta forma, estabelece-se uma relação bidirecional
depende, entre outros fatores, da dieta, idade, sexo, entre o intestino (do qual a microbiota faz parte) e os
exercício e genética. No entanto, em termos gerais, tecidos não intestinais. Assim, qualquer perturbação
podemos dizer que é constituída principalmente no intestino pode potencialmente ter um impacto na
por Firmicutes e Bacteroidetes, que são bactérias função de outros tecidos.
anaeróbias, ou seja, não necessitam de oxigénio pa-
ra crescer. Encontram-se também Proteobactérias e O ENVELHECIMENTO REPRESENTA PER SE UM FATOR QUE IN-
Actinobactérias, embora em menor quantidade. FLUENCIA A COMPOSIÇÃO DA MICROBIOTA INTESTINAL e a sua
No que diz respeito à distribuição espacial das bac- funcionalidade. Durante esta fase, fatores externos
térias ao longo do intestino, o intestino delgado é como a menor ingestão de fibras ou a utilização de me-
dominado por bactérias anaeróbias facultativas, que dicamentos podem alterar a composição microbiana.
são aquelas que, na presença de oxigénio, podem Além disso, fatores internos como o envelhecimen-
utilizá-lo para gerar energia e, na sua ausência, são to celular (um processo natural) e a diminuição da
capazes de fermentar. Estes microrganismos com- funcionalidade do organismo também podem causar
petem com os transportadores da parede intestinal alterações na microbiota.
pela absorção de nutrientes. No entanto, no intes- De uma forma geral, podemos dizer que o enve-
tino grosso, para além de uma maior diversidade e lhecimento da microbiota implica uma redução da
riqueza de microrganismos, dominam as bactérias abundância de bactérias que controlam o crescimen-
anaeróbias obrigatórias. Estas metabolizam os com- to de potenciais agentes patogénicos (organismos
ponentes não digeríveis da dieta, prejudiciais à saúde) e mantêm a
produzindo ácidos gordos de ca- integridade da barreira intestinal
deia curta (AGCC) como produtos,
que são facilmente absorvidos. AS DOENÇAS através da produção de muco e áci-
dos gordos de cadeia curta (AGCC),
CRÓNICAS TÊM UM
Foram atribuídos a estes ácidos entre outros. Isto resulta num au-
gordos numerosos benefícios para mento do estado inflamatório.
a saúde, como a redução da síntese Mais especificamente, observou-se
hepática de colesterol, um efeito
interessante no controlo das con-
DENOMINADOR que, com a idade, a diversidade de
microrganismos diminui, as pro-
centrações de colesterol no sangue.
A microbiota tem um caráter COMUM: INFLAMAÇÃO teobactérias (agentes patogénicos
oportunistas) aumentam e a abun-
adaptativo e é capaz de modular
certas vias metabólicas e a respos- DE BAIXO GRAU dância de bactérias benéficas,
como as Bifidobacterium,diminui .
38 SUPER
Isto pode estar associado a uma maior suscetibilidade contêm pectinas (fibras solúveis) que são fermenta-
ao desenvolvimento de infeções e à rutura da barrei- das e contribuem para o fornecimento total de AGCC,
ra intestinal. Por outro lado, foi demonstrado que as bem como vitaminas, carotenóides e polifenóis com
pessoas mais velhas têm uma diminuição das bactérias efeitos anti-inflamatórios conhecidos.
produtoras de butirato. O butirato, que faz parte dos Para além das estratégias nutricionais, alguns estu-
AGCC, é responsável por 60-70% da energia de que dos tentaram testar se a utilização de probióticos,
os colonócitos (células do cólon) necessitam para se prebióticos ou simbióticos (combinações de pro- e
multiplicarem e diferenciarem. Este metabolito pro- prebióticos) é útil na prevenção da disbiose relacio-
move a produção de IL-10 (anti-inflamatória) pelas nada com a idade. Os probióticos são «organismos
células imunitárias na barreira intestinal. Além disso, vivos que, quando administrados em determinadas
também a nível intestinal, reduz os níveis de molécu- quantidades, conferem benefícios para a saúde do
las inflamatórias como o fator de necrose tumoral alfa hospedeiro» (FAO/OMS, 2006), enquanto os pre-
(TNFa) e a interleucina-6 (IL-6). Estes estudos permi- bióticos foram definidos como «ingredientes cuja
tiram também determinar alguns dos marcadores que fermentação seletiva produz alterações específi-
poderiam indicar o início do processo de envelheci- cas na composição e/ou atividade da microbiota
mento, bem como se o processo de envelhecimento intestinal, conferindo benefícios para a saúde do
é saudável. Em primeiro lugar, o rácio Firmicutes/ hospedeiro».
Bacteroidetes foi proposto como um marcador do iní- Os primeiros, probióticos das linhagens Lactobacil-
cio do processo, uma vez que as pessoas mais velhas lus e Bifidobacterium, têm-se revelado eficazes na
têm uma maior proporção de Bacteroidetes, enquan- modulação da abundância de determinados grupos
to os Firmicutes predominam nos jovens. Por outro de microrganismos intestinais, bem como na melho-
lado, a presença de bactérias como a Akkermansia ria do perfil dos mediadores da resposta imunitária.
muciniphila foi identificada como um marcador de Por outro lado, entre os prebióticos estudados, os que
envelhecimento saudável. A muciniphila é conside- apresentam maior evidência científica são os galac-
rada um indicador de uma microbiota saudável; está to-oligossacáridos (GOS), que parecem melhorar a
envolvida na regulação do metabolismo da gordura e composição da microbiota e os parâmetros de imu-
da glucose, na regulação da inflamação e na produção nidade nos idosos.
de mucina (glicoproteínas que fazem parte do muco É uma realidade que, graças aos avanços da medici-
da barreira intestinal). na, a percentagem de pessoas idosas está a aumentar
Para além das alterações na composição da própria a nível mundial. Dada a relação entre o envelhe-
microbiota, as células do intestino (enterócitos) são cimento e o desenvolvimento de certas doenças, é
também afetadas na sua funcionalidade ao longo dos necessário aprofundar a investigação sobre os fatores
anos. A este respeito, um estudo realizado na mosca que influenciam este processo natural.
da fruta (Drosophila melanogaster) mostrou que as A prossecução de uma alimentação e de um estilo
alterações da composição da microbiota precedem as de vida saudáveis pode reduzir a probabilidade de
alterações fisiológicas da barreira intestinal associa- ocorrência de doenças inflamatórias e melhorar as-
das ao envelhecimento. sim o nosso processo de envelhecimento. e
Do mesmo modo, num outro estudo em ratos,
observou-se que, em ratos sem microbiota, as altera-
ções funcionais da barreira intestinal e a inflamação
eram menores, sugerindo que ambas são uma conse-
quência da ação da microbiota alterada com a idade.
Em suma, as alterações da microbiota promovem a
permeabilidade intestinal e, consequentemente, a
inflamação, que por sua vez influencia a composição
Envelhecer
da microbiota, criando assim um círculo. Manter a
eubiose (equilíbrio na composição microbiana) pode,
portanto, ser essencial para tentar garantir um enve-
Q ue estamos a envelhecer é um facto inquestioná-
vel. De acordo com os dados do Instituto Nacional
de Estatística sobre a evolução da proporção de ido-
lhecimento saudável. sos, 23,4% da população tinha mais de 65 anos em
2021, contra apenas 12,9% de jovens até aos 14 anos.
EMBORA EXISTAM FATORES QUE AFETAM A COMPOSIÇÃO DA Em 1970 a percentagem dos maiores de 65 anos era
MICROBIOTA QUE NÃO SÃO CONTROLÁVEIS, um estilo de de apenas 9,7%.
vida ativo, com predominância de alimentos nutriti- De acordo com os dados publicados pelo gabinete
vos, pode ajudar a manter a eubiose intestinal. Assim, oficial de estatísticas da UE, Portugal registou a maior
a dieta mediterrânica é um dos padrões alimentares subida na idade média na UE entre 2012 e 2022, pas-
mais ricos em nutrientes, com abundantes alimen- sando de 42,1 para 46,8 anos. A mesma fonte indica
tos à base de plantas, ricos em fibras e ácidos gordos que Portugal apresenta o terceiro rácio mais alto de de-
ómega 3, com baixo teor de proteínas animais e gor- pendência de idosos, 37,2%. Este rácio, que em 2012
duras saturadas. As frutas, os legumes e os cereais são era de 27,1%, representa o número de pessoas com 65
alimentos ricos em fibras e fitoquímicos que demons- anos ou mais em comparação com o número de pes-
traram ter um efeito modulador positivo nalgumas soas em idade ativa (15-64 anos). É o quarto país mais
comunidades microbianas. Num estudo, verificou-se envelhecido do mundo.
que uma maior frequência de consumo de frutas e Segundo projeções do INE, este cenário vai agravar-se,
legumes estava diretamente relacionada com a abun- sendo apontado que a percentagem da população com
dância de microrganismos benéficos (Lactobacillus, mais de 65 anos será de 36,8% em 2080.
Bl. coccoides e Prevotella). As frutas e os legumes
SUPER 39
M I C O L O G I A
O ESPANTOSO
PODER DOS
FUNGOS
O REINO MAIS DESCONHECIDO E BEM-SUCEDIDO
Transformam as formigas em zombies, degradam o petróleo, alteram a consciência
humana, criam auto-estradas de nutrientes debaixo das árvores e dão e tiram
vida. Bem-vindos ao seu reino!
Um fungo é um
modo de vida e
cada espécie se
especializa em
prosperar num
determinado
ambiente.
SHUTTERSTOCK
Aprenderam a
defender-se de tudo
o que os ataca.
40 SUPER
SUPER 41
Muy Interesante - 41
N
ão consegues evitar... Acabas Os fungos inventaram o mundo: estavam cá antes de
de aspirar o esporo de um fun- nós e estarão cá depois de nós. Têm o segredo da vida: um
go. Em cada metro cúbico de ar, esporo que tenta o destino. Procura o lugar certo (precisa
existem entre mil e dez mil. Em de alimento, de um substrato, de uma temperatura infe-
cada respiração, inalarás entre rior a 34 graus e de humidade). Esta estratégia fez deles
um e dez. Omnipresentes, pa- um dos organismos mais bem-sucedidos deste planeta
recem os favoritos de Deus. e até do espaço (há colónias de bolores nas paredes da
Isto se a sala em que se encon- Estação Espacial Internacional).
tra for ventilada, em espaços Um casal beija-se e ele flutua. Estão por todo o lado.
fechados podem ser muitos Mas não te assustes. Não vão colonizar o teu pulmão e
mais, e até perigosos: pense-se provocar-te uma pneumonia. Se fores saudável, nem a
na maldição de Tutankhamon, e na razão — segundo alguns temperatura do teu corpo nem o teu sistema imunitário
microbiologistas — pela qual os arqueólogos que abriram o os deixarão fazer isso. Deste modo, não passarás pela se-
túmulo morreram: talvez tenham respirado ar contamina- guinte cena de terror...
do pelas micotoxinas de um fungo chamado Aspergillus.
ESTAMOS NOS TRÓPICOS, UMA ZONA DE GUERRA BIOLÓGICA devido
SÓ ASPIRAM A COLONIZAR O AMBIENTE. São como passageiros à grande competitividade das espécies. A vítima é uma
clandestinos do vento. É o ser com mil faces: dá-nos pão e formiga-bala, um animal frio, o hospedeiro perfeito. Um
cerveja com a levedura; mata-nos num hospital se as nossas fungo da espécie Ophiocordyceps unilateralis acaba de
defesas baixarem; oferece-nos a experiência do cogumelo libertar um esporo para penetrar na sua cutícula. Uma vez
alucinogénio; com os seus metabolitos, permite os trans- colonizada a formiga, transformá-la-á num zombie, numa
plantes de fígado; limpa um bidão cheio de hidrocarbonetos marioneta. Respeitará apenas a sua carapaça e uma parte
para o transmutar em cogumelos que atrairão com os seus do seu sistema nervoso para a manipular, dirigi-la, com
açúcares, insetos, pássaros, sementes... reiniciará a vida as suas hifas, pequenos tentáculos tubulares enfiados no
onde só havia morte. seu cérebro; lançará metabolitos que modificarão os seus
Na imagem, uma
ilustração 3D de um
fungo parasita
Cordyceps a crescer
SHUTTERSTOCK
numa formiga-bala,
um animal frio, o
hospedeiro perfeito.
42 SUPER
«NESTE MOMENTO, NÃO SE
Os fungos estão a
CONHECE NENHUM ORGANISMO ameaçar-nos devido às
QUE ATUE NOS SERES HUMANOS DE alterações climáticas?
FORMA SEMELHANTE AO CORDYCEPS
NOS INSETOS» Q uando o meteorito exterminou os dinossauros, deixou um
mundo em decomposição cheio de composto. Uma festa
para os fungos. «Isso possibilitou a existência de muita matéria
orgânica, onde os fungos proliferam e vivem muito bem», explica
o micologista Javier Diéguez. E os sobreviventes tiveram de en-
frentar os novos reis. A teoria de Arturo Casadevall, professor de
movimentos, fá-la-ão trepar a uma árvore e morder uma medicina na John Hopkins School of Medicine, é que as aves e os
folha; uma vez ancorada, utilizá-la-á como substrato para mamíferos aprenderam a aumentar a temperatura do corpo pre-
frutificar; esporóforos, estruturas cheias de esporos, emer- cisamente para se defenderem dos fungos. «Define muito bem a
girão do seu cadáver; aproveitará a gravidade e o vento e situação, porque não há nada que explique o facto de os mamífe-
lançará novas naves sobre a colónia de formigas para as ros e as aves terem sobrevivido melhor do que outras espécies»,
infetar. Os seus órgãos reprodutores, que emergem como acrescenta. Os seres humanos, juntamente com as aves, con-
antenas da cabeça, «são impressionantes, muito bonitos», seguem regular a sua temperatura acima dos 37 graus Celsius,
diz Carlos Illana, biólogo da Universidade de Alcalá. Da enquanto todos os outros seres vivos não conseguem. Os fungos
morte gerará a beleza. Assim é o seu reino... crescem mal acima dos 34. É por isso que, com exceção de algu-
Se tem acompanhado as notícias, provavelmente já mas espécies, quase não causam problemas aos seres humanos.
ouviu falar de uma série de televisão chamada The Last Só afetam pessoas imunodeprimidas, em tratamento oncológico
of Us. No enredo, baseado num jogo de vídeo, um fungo ou que tenham sofrido queimaduras graves.
do mesmo género Cordyceps sofre uma mutação devido Mas o problema com as alterações climáticas e o aumento das
às alterações climáticas e faz o mesmo aos humanos. E temperaturas é que os fungos podem estar a aprender a de-
segue-se uma pandemia, pois pensávamos que éramos senvolver-se a temperaturas mais elevadas, aspirando depois a
imunes à maioria destes organismos (é por isso que as colonizar os seres humanos, e não temos vacinas para lidar com
empresas farmacêuticas quase não desenvolveram an- eles. Foi o que aconteceu com a Candida auris, uma espécie quase
tifúngicos, pois acreditamos que os fungos crescem mal desconhecida que fez soar o alarme ao multiplicar a mortalida-
acima dos 37 graus em que vivemos confortavelmente). de. Apareceu em vários surtos em África e começa a colonizar os
É um enredo que só em parte é impossível. «Neste hospitais, aproveitando-se do facto de muitos doentes estarem
momento, não se conhece nenhum organismo que atue imunodeprimidos e de ser multirresistente. «Aconteceu uma vez,
nos seres humanos de forma semelhante ao Cordyceps mas a mesma coisa aconteceu com os vírus, houve alertas, até ter-
nos insetos», diz Javier Diéguez, especialista em fungos mos a covid», diz Diéguez. A Candida está a aprender a germinar
parasitas do Royal Botanical Garden-CSIC. a temperaturas mais elevadas, o que explicaria a sua atual expan-
Um fungo não pode transformar-nos em zombies. Para são. «Se os anticorpos nos falharem e o calor não for suficiente
que esta cena de terror se perpetue, foram necessários para nos defender, entraremos numa situação complexa», adverte
milhões de anos de coevolução: existem centenas de Diéguez. E o problema é que os antifúngicos que usamos, as equi-
espécies de Cordyceps, cada uma das quais aprendeu a nocandinas, estão a começar a encontrar resistência. «É por isso
dominar um tipo específico de inseto. que podem ser um perigo potencial, porque estão a sofrer muta-
Os fungos e os artrópodes têm uma estranha dança. ções», conclui Illana.
Conhecem-se desde o início dos tempos. Eles lutam e
usam-se uns aos outros. Se a formiga operária encon-
tra uma companheira infetada, isola-a da colónia, como
num confinamento. Por vezes, cultivam-se uns aos ou-
tros: há térmitas que são agricultoras, criam os fungos, clorofila, e há muitos tipos de fungos», confirma Illana.
alimentam-nos no ninho com um substrato de folhas Temos bolores e fungos que formam cogumelos comes-
mastigadas. tíveis e venenosos. Existem fungos unicelulares, como as
Nós, felizmente, não somos formigas. Mas The Last of Us leveduras. Estes parasitam plantas ou animais, produzindo
tem razão num ponto importante: atualmente, a tempe- micoses nos tecidos; outros decompõem a matéria orgâni-
ratura do nosso planeta está a mudar, e isso não é uma ca, ou entram em simbiose com outros seres.
boa notícia. «Um fungo é um modo de vida», diz Diéguez. Cada
espécie especializa-se em prosperar em diferentes am-
A REALIDADE É QUE OS FUNGOS SÃO PODEROSOS, COMO ALIADOS bientes (há mesmo algumas em vulcões). Crescem sob a
E COMO ADVERSÁRIOS. Vamos ver porquê, mergulhando no forma de filamentos microscópicos chamados hifas, que
seu reino. «São muito antigos, são a origem da vida, são formam os micélios. Libertam enzimas para degradar e
a migração dos organismos do mar para a terra», explica absorver nutrientes. Propagam-se por meio de esporos
Catalina Fernández, bióloga e diretora-geral da Hifas da (estruturas de reprodução sexuada e assexuada). São se-
Terra, uma empresa especializada na venda e investigação dentários (razão pela qual foram estudados em botânica).
de cogumelos medicinais. Tudo os ataca, pelo que aprenderam a defender-se. Es-
Não são animais nem vegetais, embora tenham caraterís- te reino tem alguns dos seres mais pequenos (os fungos
ticas de ambos (mais próximas do animal, de acordo com foram encontrados em células tumorais) e o maior ser
o seu ADN): «É um organismo eucariótico, que não tem vivo. Não é a baleia azul: é um fungo melífero que vive
SUPER 43
ISTOCK
Na imagem,
micélio fúngico
de um cogumelo
branco. Os
fungos crescem
sob a forma de
filamentos
microscópicos
chamados hifas.
DR MORLEY READ
no Oregon (EUA). Tem mais de 2000 anos e cobre quase
900 hectares.
44 SUPER
OS COGUMELOS CRIARAM TAMBÉM ALGUMAS DAS SUBSTÂNCIAS
PSICADÉLICAS MAIS PODEROSAS: AS QUE ALTERAM A CONSCIÊNCIA
Antón Gómez-Escolar, psicofarmacologista, investigador de Carl Sagan, a sua tese afirma que a evolução surgiu por-
e divulgador especializado em substâncias psicadélicas, que organismos diferentes, como as bactérias, produziram
autor do Guia Essencial do Renascimento Psicadélico. simbioticamente, por exemplo, as mitocôndrias. Um lago,
A cravagem, por exemplo, é utilizada para sintetizar o uma floresta, comportam-se, por sua vez, «como um único
LSD. Este fungo parasita causou estragos na Idade Média organismo vivo, tudo está interligado», diz Diéguez.
com numerosas epidemias de ergotismo (alucinações e A proteína que move o nosso corpo foi obtida a partir de
convulsões) ao contaminar o pão de centeio. Mas a psilo- um bife, mas esse bife veio de um fungo. Estamos juntos
cibina, «devido ao seu perfil de segurança», é a favorita neste supraorganismo, debatendo-nos entre destruí-lo,
atual da investigação. Irmã da serotonina, um dos nos- como um Aspergillus no túmulo do Faraó, ou salvá-lo,
sos principais neurotransmissores, pertence à família das como as micorrizas no caminho da vida.
triptaminas. Quando entra no organismo, transforma-se «Todas as espécies são necessárias e, sem esta conce-
em psilocina, que é a substância que atua no cérebro. Esta ção, estamos perdidos», conclui Javier Diéguez. Mas o
molécula poderia ter efeitos terapêuticos em doenças tão curioso é que esta conceção filosófica é muito semelhante
complicadas como a depressão, a perturbação de stress à que um dia um cogumelo alucinogénio sussurrou ao
pós-traumático e a dependência. humano primitivo e animista. e
«O que está a interessar ao mundo da medicina é o
efeito psicadélico, porque é muito particular», explica
Gómez-Escolar. Acredita-se que gera novas vias neuro-
nais (neurogénese). Provoca processos de dissolução do
ego, alterando aquilo a que os neurologistas chamam a
«rede de modo padrão» (DMN, na sigla inglesa). «As Cogumelos medicinais:
evidências sugerem que estes efeitos podem ter grandes
aplicações na psicoterapia em espaços controlados», um benefício esquecido?
conclui Gómez-Escolar.
E sabe-se lá que outras moléculas têm reservadas. Esti-
ma-se que existam entre um e cinco milhões de espécies
de fungos. Para se defenderem, desenvolveram todo o
E xiste uma enorme quantidade de investigação sobre as pro-
priedades medicinais dos cogumelos», explica Catalina
Fernández, diretora-geral da Hifas da Terra. Mas muito desse
tipo de substâncias «com propriedades antivirais e an- conhecimento tem sido relegado para as bibliotecas das universi-
tifúngicas», explica Fernández. dades, ou para a medicina tradicional asiática, sem ser transferido
Desde tempos imemoriais que os tomamos por estes para o mercado. «Ao nível da evidência científica há muita coisa,
efeitos, incluindo o Ophiocordyceps sinensis, outro fungo em quase todos os países. Atualmente, temos cerca de 40 000
parasita das lagartas das borboletas dos Himalaias. Cha- publicações sobre as propriedades específicas dos cogumelos
mam-lhe o «Viagra do Tibete» e, durante cerca de três em diferentes domínios», afirma.
anos, transforma o seu hospedeiro numa superlagarta. «A A investigação está a ser feita especialmente na imunologia e
lagarta tem uma vida melhor, mas quando chega ao fim na sua modulação, uma vez que as suas moléculas podem ati-
do seu ciclo, mumifica-se e o esporóforo cresce na sua var ou inibir a ação do sistema imunitário. Também se trabalha
cabeça», diz Fernandez. no tratamento do cancro, na chamada oncologia integrativa, que
O fungo usará então o vento para se dispersar. E os procura melhorar os resultados das terapias convencionais. «É
pastores vão recolhê-lo, porque descobriram que os seus uma espécie de ação inteligente, por isso se chamam adaptó-
iaques ficavam felizes se o comessem e aumentava o seu genos, porque o que fazem é dar uma resposta que se adapta às
vigor sexual. «O que ele faz é aumentar em 30-40% a necessidades do indivíduo nesse momento, não é como um me-
gestão da molécula APT, que é a fonte de energia celu- dicamento que tem uma resposta unidirecional», diz Fernández. É
lar», acrescenta. como se transmitissem uma parte do seu poder de sobrevivência.
«Podem reduzir a inflamação ou ativá-la, consoante as necessida-
ESTIMA-SE QUE CERCA DE 40% DE TODOS OS PRINCIPAIS PRODU- des do organismo», acrescenta.
TOS FARMACÊUTICOS PROVÊM DE FUNGOS. A nossa esperança E há cogumelos que têm sido tradicionalmente utilizados para to-
de vida seria impensável sem a penicilina. Nos trans- do o tipo de fins. Na China, é possível encontrar até 46 espécies
plantes, utilizamos os seus produtos, imunossupressores diferentes numa ementa de restaurante. Destacam-se pelas suas
como a ciclosporina, para evitar a rejeição. Até os anti- funções neurais, como a juba-de-leão, que atua no eixo intesti-
fúngicos que utilizamos são produzidos por eles. «Cada no-cérebro. Ou como antienvelhecimento, já que o reishi produz
ser vivo contém informações valiosas, muitas vezes o antioxidante mais poderoso da natureza; ou ao nível da ener-
desconhecidas, e é por isso que é importante manter a gia e da saúde sexual e fertilidade, como o Cordyceps sinensis. O
biodiversidade», afirma Diéguez. Polyporus umbellatus é um cogumelo com propriedades drenan-
Mas estamos a entrar num grande período de extinção tes. O shiitake ajuda o sistema imunitário .
em massa sem termos nomeado mais de 10% das espécies «São muitas áreas, são imensas as possibilidades que estamos a
de fungos. Mesmo que estejamos a inalar os seus esporos, abrir, porque no Ocidente só conhecemos cerca de dez ou quinze
ainda não aprendemos a lição do fungo... espécies, mas estamos a falar de milhões, e a realidade é que nem
A teoria endossimbiótica de Lynn Margulis fala sobre as sequer sabemos os seus nomes e apelidos», conclui Fernández.
relações de cooperação da vida. Bióloga americana e mulher
SUPER 45
E S P A Ç O
O espaço não é a
última fronteira,
ainda há muito a
compreender
sobre ele e a
exploração para
desvendar os
seus mistérios
está apenas a
começar.
46 SUPER
ESA
MISTERIOS
ASTRONÓMICOS
Há muitas incógnitas sobre o Universo que ainda não foram resolvidas. Os astrónomos
estão a tentar responder-lhes, ou aproximar-se de uma possível explicação. Questões
como o planeta desaparecido, o crescimento da unidade astronómica ou a formação da
Grande Muralha Hércules-Corona Borealis, que assusta pela sua magnitude. E a chamada
luz de fundo extragaláctica? O espaço ainda guarda muitos segredos.
SUPER 47
E
m fevereiro deste ano, coberta, Bruno Morgado, da Universidade Federal do
astrónomos americanos des- Rio de Janeiro, no Brasil, afirmou: «É muito estranho.
cobriram que Quaoar, um Quaoar tem cerca de 1100 quilómetros de diâmetro
pequeno mundo gelado muito (aproximadamente a distância de Gerona a Cádis) e
para além da órbita de Neptu- ainda não sabemos se pode ser classificado como um
no, tem um anel como os que planeta anão — como Plutão — porque temos dúvidas
rodeiam Saturno. Mas isso se tem uma forma esférica (um pré-requisito para um
não é o mais surpreendente, planeta anão). O que sabemos é que tem uma lua cha-
pois já foram descobertos ou- mada Weywot. Estes dois nomes provêm da mitologia
tros em objetos semelhantes Tongva, um grupo de três tribos que vivem no sul da
do nosso sistema solar: Cha- Califórnia: Quaoar é a força criadora do universo e
riklo, um corpo que orbita o Weywot é o seu filho.
Sol entre Saturno e Úrano, tem dois (e é o objeto ce-
leste mais pequeno a tê-los), e há outro em torno de EM ALGUNS LOCAIS, O ANEL DÁ A IMPRESSÃO DE SER MUITO
Haumea, um objeto na cintura de Kuiper, uma região FINO, com alguns quilómetros de largura, enquanto
atrás da órbita de Neptuno povoada por planetas anões noutros locais se pensa que pode ter até 200 quilóme-
(como Plutão), asteróides e outros corpos rochosos. O tros. Até aqui, tudo normal — claro, tão normal quanto
que é surpreendente é o facto de este anel em torno pode ser para um corpo tão pequeno ter um sistema de
de Quaoar estar localizado onde os cálculos teóricos anéis — mas o que é peculiar é que a sua existência vai
previam que não deveria estar. A surpresa foi tal que contra o que a mecânica celeste diz sobre ele.
o autor principal do artigo que anunciou a sua des- Em 1848, Édouard Roche, um astrónomo francês,
começou a estudar o efeito da gravidade de um plane-
ta nos seus satélites. Descobriu que qualquer material
num raio de 2,44 vezes o raio do planeta nunca po-
PABLO CARLOS BUDASSI
48 SUPER
ASC
Vénus
Urano
Rotação dos
planetas do
Júpiter Saturno Neptuno sistema solar.
Úrano seria o
único a viajar
«deitado».
SUPER 49
acreditavam. Chamaram-lhe o Nono Planeta. De centímetros quadrados que permitem calcular a dis-
acordo com os seus cálculos, o ponto mais próximo do tância ao nosso satélite com uma precisão de cerca de
Sol é 300 unidades astronómicas (UA, que é definida um centímetro. Um feito e tanto se tivermos em conta
como a distância média da Terra ao Sol) e o ponto mais que a Lua está a 384 000 km de distância de nós.
distante pode ser 700 UA, o que implica que demora Depois de analisar 38 anos de medições de distâncias
entre 10 000 e 20 000 anos a dar uma volta comple- entre observatórios terrestres e estes refletores, James
ta ao Sol. Também deduziram a sua massa e tamanho: G. Williams, do Laboratório de Propulsão a Jato da NA-
10 vezes a do nosso planeta e 2 a 4 vezes o seu diâ- SA, descobriu que a órbita da Lua estava a tornar-se
metro. Estes astrónomos afirmam que este hipotético cada vez mais elíptica. Em 2006, Williams publicou as
planeta, para além de explicar estas particularidades suas contas: a diferença entre o ponto mais distante
orbitais, explica também a estranha dinâmica de cer- e o ponto mais próximo da órbita estava a aumentar
tos planetóides da zona, como Sedna. inesperadamente a um ritmo de 6 milímetros por ano.
Seja como for, encontrá-lo será difícil: primeiro por- Depois de ter em conta outros efeitos, como as fricções
que na parte mais afastada da sua órbita o seu brilho é das marés no interior da Terra e da Lua, Williams des-
indetetável aos nossos telescópios, e segundo porque cobriu que a diferença continuava a ser maior do que o
a região onde supostamente se encontra coincide com esperado — por quase um fator 3.
o plano da Via Láctea; com a quantidade de estrelas Outra questão controversa diz respeito à unidade
de fundo que existem, a sua procura torna-se ainda que os astrónomos utilizam para quantificar as dis-
mais complicada. A única forma de confirmar a sua tâncias no sistema solar: a unidade astronómica (UA).
existência é indiretamente, através do estudo da dis- Estabelecida como a distância média da Terra ao Sol
tribuição orbital de mais corpos na cintura de Kuiper. — 149,6 milhões de quilómetros —é obtida através de
Para piorar a situação, a própria cintura também tem observações de ondas de rádio das posições relativas
o seu mistério: a 50 UA do Sol a população de objetos entre os planetas interiores, atingindo uma precisão
praticamente desaparece (é o chamado penhasco de entre 1 e 10 metros. Isto é feito a partir de observa-
Kuiper). Este facto contraria os modelos teóricos, que tórios de rádio em terra ou por telemetria de sondas
prevêem a existência de um número cada vez maior de espaciais. Por exemplo, os transponders transportados
objetos, e poderá dever-se ao efeito deste planeta ain- para Marte pelas sondas Viking, de 1976 a 1982, e pela
da por descobrir? Pathfinder, em 1997, foram utilizados para este fim.
Mas os mistérios não terminam no nosso sistema Estes dados são depois comparados com as posições
solar. E um deles está mesmo ao virar da esquina, na planetárias calculadas com base nas equações da me-
Lua. Em 1959, a sonda soviética não tripulada Luna-2 cânica celeste e obtém-se o valor da velocidade da luz
— a primeira a aterrar noutro corpo do sistema solar — em unidades astronómicas por dia. Como a velocidade
depois de os astronautas das missões Apollo 11, 14 e 15 da luz é uma constante, basta converter de dias para
terem deixado na superfície lunar poeirenta uma sé- segundos para obter o valor da unidade astronómica
rie de refletores de alumínio, pequenos espelhos de 50 em metros. O valor atualmente aceite é o calculado a
NASA
Titã, a lua de
Saturno. As
vistas foram
criadas utili-
zando 13
anos de da-
dos adquiri-
dos pelo es-
petrómetro
de mapea-
mento visual
e infraverme-
lho a bordo
da nave espa-
cial Cassini
da NASA.
50 SUPER
A UA, a unidade astronómica, não é tão constante como os
astrónomos supõem. Cresce ao longo do tempo na ordem dos
sete metros por século, e não deveria fazê-lo
partir das efemérides D405 do Jet Propulsion Labora- do brilhantes e azuis para provirem destas galáxias
tory (JPL), embora na Europa de Leste se utilizem as primordiais, pois deveriam ser relativamente ténues
efemérides EPM2004 do Instituto de Astronomia Apli- e vermelhas. Tudo o que resta é que provenham de
cada da Academia Russa de Ciências. O valor aceite algo chamado «luz intragaláctica», a luz criada por
pela comunidade astronómica internacional é 149 597 estrelas errantes. Além disso, a luz destas estrelas
870 700 metros. intergalácticas «é igual a toda a luz estelar das galá-
No entanto, a UA pode não ser tão constante como xias», disse Jamie Bock, investigador principal do
os astrónomos supõem. Os dados recolhidos entre CalTech e do CIBER.
1976 e 1997 forneceram a informação necessária para Isto implica que, nos enxames galácticos, pode ha-
estudar os movimentos dos planetas... e surpreen- ver tantas estrelas nas galáxias como fora delas. Se
deram-nos. Em 2004, E. Myles Standish, uma das for confirmada, esta descoberta poderá explicar dois
grandes mentes da dinâmica do sistema solar, afirmou mistérios da cosmologia moderna: a crise da sub-
que a UA parecia aumentar com o tempo. No mesmo produção de fotões (se compararmos a teoria com as
ano, os russos Georgij Krasinsky e Victor Brumberg, observações, há uma quantidade extraordinária de
do Instituto de Astronomia Aplicada de São Peters- luz ultravioleta em falta no Universo) e o problema
burgo, analisaram mais de 200 000 observações e dos bariões em falta. Os bariões são um tipo de par-
concluíram que estava a aumentar a um ritmo de 15 tícula subatómica que inclui os protões e os neutrões,
metros por século. Em 2005, a astrónoma Elena Pit- e a teoria cosmológica prevê que deveria haver muito
jeva, do mesmo instituto, publicou uma análise ainda mais do que vemos atualmente, pelo menos o dobro.
mais pormenorizada de 317 000 observações de 1913 a Serão as estrelas errantes parte da solução para estes
2003. Os resultados da astrónoma, que determinam o puzzles?
valor da UA com uma precisão de um metro, revelam Mas se passarmos para as maiores escalas do
que esta aumenta ao longo do tempo cerca de 7 me- Universo, para os superaglomerados de galáxias, de-
tros por século — e não deveria! paramo-nos com o mistério dos mistérios: a Grande
Fora da nossa mais ou menos tranquila vizinhança Muralha de Sloan. Anunciada em 2003 por astrofísicos
cósmica, temos um fenómeno peculiar, o das estrelas da Universidade de Princeton, tem 1,88 mil milhões de
errantes. Em 2012, os astrónomos da Universidade de anos-luz de diâmetro e está a mil milhões de anos-luz
Vanderbilt (EUA) identificaram um grupo de mais de de nós. A sua dimensão é assustadora: o seu diâme-
675 estrelas em hipervelocidade que escapam à força tro corresponde a 1/60 do Universo visível. E não é a
gravitacional da Via Láctea. E não é só isso. Num ar- maior estrutura conhecida: há a Grande Muralha de
tigo publicado em 2018 na revistaMonthly Notices of Hércules-Corona Borealis, um verdadeiro monstro.
the Royal Astronomical Society, um grupo de astró- Tem mais de 10 mil milhões de anos-luz de compri-
nomos que se propôs encontrar estas estrelas em fuga mento, 7,2 mil milhões de anos-luz de largura e 700
descobriu que a maioria está, na verdade, a entrar na milhões de anos-luz de espessura, e foi descoberta em
Via Láctea. «Em vez de voarem para longe do centro novembro de 2013 pelos telescópios espaciais Swift,
galáctico, a maioria das estrelas de alta velocidade que Fermi, Compton, BeppoSAX e INTEGRAL.
vimos parecem estar a correr em direção a ele», disse
o autor principal Tommaso Marchetti. «Poderão ser COMO PODE EXISTIR UMA ESTRUTURA QUE OCUPA, NO SEU LA-
estrelas de outra galáxia que estão a passar pela Via DO MAIS LONGO, UM NONO DO UNIVERSO VISÍVEL? A verdade
Láctea», acrescentou. é que não existe uma teoria que explique a sua exis-
O mais surpreendente é que a existência destas es- tência. Neste sentido, o astrónomo Jon Hakkila, da
trelas intergalácticas pode ser a explicação para alguns Universidade do Alabama, afirmou: «Não devia estar
mistérios que continuam por resolver. O caminho lá, mas está lá».
foi aberto com a publicação na revista Science, em Esta parede cósmica desafia uma das ideias mais
novembro de 2014, de um trabalho que estudou a cha- queridas dos astrónomos, o Princípio Cosmológico,
mada luz de fundo extragaláctica, ou seja, a soma da que diz que o universo é homogéneo e isotrópico a
luz emitida por todas as estrelas do Universo ao longo distâncias suficientemente grandes. Durante anos,
da sua história. Investigações anteriores tinham dete- os astrónomos acreditaram naquilo a que chamavam
tado flutuações nesta luz que não pareciam provir de grandiloquentemente o Grande Fim: as superestrutu-
nenhuma galáxia conhecida, pelo que se pensou que ras cósmicas desaparecem a distâncias de mil milhões
poderia provir de galáxias primordiais, as mais anti- de anos-luz. Pois bem,a Grande Muralha de Hércules-
gas, cuja luz ainda não tínhamos detetado. No entanto, -Corona Borealis é oito vezes superior a esse limite: é
os resultados do Cosmic Infrared Background Experi- tão grande, complexa e alberga tanta massa que não
ment (CIBER) — que consistiu no lançamento de um há forma de explicar o que faz ali nem como se pode
conjunto de telescópios em 2010 e 2012 especifica- ter formado apenas 3 mil milhões de anos após o Big
mente concebidos para analisar as propriedades desta Bang. Estaremos perante a queda do princípio mais
luz — revelaram que estas flutuações eram demasia- sacrossanto da cosmologia? e
SUPER 51
E N S A I O
Apocalipse
(alegoria) por
Joseph Heintz, o
Jovem. Século XVII.
Kunsthistorisches
Museum, Viena,
Austria.
ASC
52 SUPER
O MILÉNIO E A
MATEMÁTICA
DOS MITOS
«No se detallará/ ni sabrán k(w)ando se levantará el dí(y)a/ del judiçi(y)o
d-akí-(y)a ke verán los/ montes ke se abrán ap(a)lanado»
SUPER 53
Doge Pedro II Oreseolo e seu filho Otão.
Retrato por Domenico Tintoretto (séc. XVI).
ASC
É
um facto que, durante muito ço terá sido o notável incremento do comércio, ligado à
tempo, historiadores e ilustres formação das primeiras comunas do Norte de França, ou
ficcionistas identificaram o à progressiva autonomia dos mercadores lombardos. A
ano mil com um verdadeiro ilustrá-lo, refira-se a grande frequência com que a pala-
momento de pavor coletivo, vra portus surge em textos dos séculos X e XI, na acepção
devido a uma esperada, ou au- de entreposto de mercadorias. Na Flandres e em Ingla-
gurada, iminência do fim do terra, os habitantes do port passam então a receber o
mundo. Hoje em dia, no en- nome de poorter ou portmen, antecipando a designação
tanto, tudo parece indicar que, de uma futura burguesia comercial. É também, a partir
no seio do mundo cristão, um de 992, que o Doge veneziano, Pedro II Orseolo, desen-
tal sentimento de fim terá sido volveu ligações decisivas entre os portos da Laguna e do
bem mais dominante noutras Bósforo, onde uma primeira colónia comercial veneziana
épocas, nomeadamente, por exemplo, nas fronteiras en- se estabeleceria. No final do século XI, a jovem cidade-
tre o século V e VI, ou nos limiares do século XI. -estado tornava-se já numa potência marítima.
Curiosamente, a partir da amálgama de dados disponí- Dominados pela pobreza que grassava na imensa Eu-
veis, na atualidade, é até possível concluir que o ano mil ropa cristã do ano mil, hesitante ainda entre o lustro
acabou por coincidir com uma série de factos, não tanto imperial e a fidelidade dos juramentos feudais, cerca de
terminais, mas antes, dir-se-ia, de recomeço, ou mesmo, quarenta milhões de habitantes pareciam, com efeito,
de alvor de uma nova vida. Um dos sinais desse recome- agora beneficiar de uma progressiva suavização do clima
(o gelo do Ártico derretia-se a grande velocidade por essa
altura) e de uma rápida implementação tecnológica que
se fazia sobretudo sentir nos artefactos, caso dos estri-
bos e ferraduras que subitamente se generalizaram, ou
do arado que passou a dispor de dupla roda e lâminas.
Para todos estes melhoramentos, nos quais também se
incluem diferentes formas de controlo hidráulico, terá
igualmente contribuído a estabilidade que sucedeu às se-
culares invasões do Norte e Leste europeus, dissuadidas
pelas novas áreas subitamente cristianizadas, tais como a
Hungria, a Polónia ou a Rússia meridional do recém-con-
vertido Vladimir (m.1015) e de Jaroslav, o Sábio (m.1051).
Diga-se que é ainda por volta do ano 1000 que uma po-
derosa escola arquitetónica começou a desenvolver-se
na Normandia. A grande abadia de Jumièges, edificada já
entre os anos de 1048 e 1067, terá sido, para W. Lethaby,
o exemplo maior dessa escola, embora o monge Rudolfo
Glaber (uma das raras fontes da época) se tenha referido
expressamente ao renascimento das basílicas, sobretudo
na Gália e em Itália, a partir do «terceiro ano depois do
milénio». Por outro lado, a uniformização da escrita ca-
rolíngea minúscula estaria então na ordem do dia, já que,
depois de implantada entre o Loire, o Reno e os Alpes, vi-
ria também, segundo E. Lowee, a ser adotada, no limiar
ASC
Veneza no séc. XIII. Detalhe de iluminura de documento do séc. XV, Bibliote- do ano mil, por uma Inglaterra a braços com invasões de
ca de Bodleian, Universidade de Oxford. nórdicos (1013) que, por sua vez, terão, na época, atra-
54 SUPER
©TANGO7174 CC BY-SA 4.0
Ruínas da abadia
de Jumièges.
ASC
ASC
prefiguravam já novos tempos de decadência e de guer- Retrato de Otão III (f.24), Evangelhos de Otão III, c. 1000, tinta, ouro, tinta,
ra aberta. As Cruzadas orientais, cujo advento era ainda pergaminho, cada página 33,4 x 24,2 cm (Bayerische Stattsbibliothek,
distante (1095), constituiriam parte dessa guerra, articu- Munique, Clm.4453).
lada com a luta escatológica, de vida ou de morte, que,
na Península Ibérica, muito em breve, se viria a batizar
paradoxalmente por ‘Reconquista’. Entretanto, os ata- de Munique que deixou para a posteridade Otão III, sen-
ques esporádicos iam-se já sucedendo entre o Islão e a tado no seu trono, rodeado de bispos e vassalos, é, nesta
aliança Génova-Pisa (entre 935 e 1011), ou entre Bizâncio medida, um dos ícones interessantes da época. Na ima-
e os Hamdanidas (depois de 975), ou ainda através das gem, o olhar do imperador é fixo, determinado e ocupa
mais variadas incursões e pilhagens como a que atordoou uma posição central, quer face aos capitéis em forma de
Santiago de Compostela, no ano quase milenar de 997. Janus, quer face às suas próprias mãos que ostentam,
Possivelmente pouco alérgico às trevas ocidentais, de um lado, o cetro e, do outro lado, o globo dominado
que, agora, a pouco e pouco, iam clareando, e, porventu- por uma cruz grega. Porventura, tendo até em conta a
ra, imune à memória ainda atual dos séculos de ouro de entente que parece ter desenvolvido com o Papa Silves-
Córdova e de Bagdad, a verdade é que o Papa Silvestre II, tre, Otão III deveria ser um bom conhecedor da famosa
que reinou entre 999-1003, acabaria por reduzir ao mu- Carta profética do monge Adso sobre o Anticristo, on-
tismo total quaisquer alusões a alvoroços milenaristas da de, no ano de 954, se escrevia que o tempo do fim apenas
sua época. Otão III, por seu lado, coroado imperador em haveria de chegar, no momento em que um imperador
Roma, no ano de 996, e movido talvez por um profun- cristão, qual desejado, protagonizasse decisivamente os
do desejo de união de toda a Cristandade (desígnio que acontecimentos derradeiros do mundo:
deixou registado em selos do próprio ano 1000), man- «Alguns dos homens letrados do nosso tempo dizem
dou solenemente desenterrar Carlos Magno que, como que um dos reis dos francos, que virá no fim dos tempos,
afirmou H.Schwartz, «jazia em perfeito estado e plena reconstruirá, outra vez, o Império Romano. Ele será o
piedade com uma cruz de ouro ao pescoço». último dos grandes guias. Depois de governar o seu im-
Ao contrário, por exemplo, do novo e contemporâneo pério, ele virá a Jerusalém e colocará o seu cetro sobre o
monarca cristão de Kiev, o já referido Jaroslav o Sábio, Monte das Oliveiras, em Jerusalém. Isto sucederá no fim
que, nas suas crónicas, pensava viver no ano 6544 depois e será a consumação do império romano e cristão...» (...)
de Adão, Otão III parecia, com tais rituais, querer associar «Este tempo, porém, ainda não chegou...».
a força do número 1000 àquilo que F.Kermode chamou a É possível que Otão III conhecesse esses e outros ape-
«apoteose da era» vivida. A gravura da Staatsbibliothek los da tradição sibilina. No entanto, à época deste quase
SUPER 55
volátil milénio, uma coisa era certa e evidente: no mun-
do, apenas interessavam os sinais, os augúrios, ou os
prodígios. Todas as manifestações da natureza e todos
os presságios do tempo corrente, mais do que factos ob-
jectivos, eram, em primeiro lugar, o próprio discurso de
Deus. Havia, pois, que compreendê-los por trás da nota-
ção matemática do tempo.
E se é verdade que a notação lógica domina, hoje em
dia, a nossa própria ideia orgânica (e até progressiva)
de história, para estes homens, como Adso, Glaber ou
Otão, a história mais não era do que uma lenta e pacien-
te espera pela salvação anunciada. Mais: se alguma vez
existiu impaciência face ao desejado fim escatológico,
e portanto face à salvação final, uma das manifestações
(ou medidas) privilegiadas dessa impaciência foi decerto
o milénio. E, diga-se em abono da verdade, só aqui en-
tre nós, que vários foram os milénios com que essa longa
espera foi contemplada. E não apenas na Cristandade.
Viajemos, pois, um pouco, através de todos eles.
ASC
história). Seja como for, a partir do século II d. C., talvez Papa Silvestre II e a ilustração do diabo de Cod. Amigo. germe. 137,
porque a espera escatológica cristã começasse a tardar, Fólio 216v Martinus Oppaviensis, Chronicon pontificum et
um certo número de escritos patrísticos retoma a tra- imperatorum, 1460.
dição da semana cósmica dos 7000 anos, no sentido de
tentar delimitar as fases e o horizonte último da história
do mundo. Deste modo, entre Adão e Cristo, foram con- formas, com a interpretação literal, ou quase literal, de
sideradas cronologias de cinco fases (Orígenes), seis fases uma alegoria do versículo 20 do texto do «Apocalipse»
(Hipólito), ou mesmo sete fases (Eusébio de Cesareia). que ultima o Novo Testamento:
Estes faseamentos viriam a ser relacionados, de variadas «Em seguida vi um anjo descer do céu tendo na mão a
chave do Abismo, bem como a enorme corrente» (20,1).
«Dominou o Dragão, a antiga serpente — é o diabo, Sa-
tanás — e acorrentou-o por mil anos» (20,2) «Lançou-o
no Abismo, fechou sobre ele os ferrolhos, apôs selos, para
que ele deixasse de desviar as nações, até ao fim dos mil
anos. Após o que deve ser libertado por pouco tempo».
(20,3) «Passados os mil anos, Satanás liberto da sua pri-
são» (20,7) «irá seduzir as nações dos quatro cantos da
terra, Gog e Magog, e juntá-las para a guerra, tão nume-
rosas como a areia do mar». (20,8)
As diferentes interpretações destas passagens con-
duziram ao anúncio de um reino terrestre de mil anos
distintos do reino de Deus (mas onde se faria sentir já a
potência da revelação); ou à ideia de premonição de uma
época futura que separaria a vinda de Cristo do fim; ou
ainda à ideia de que o milénio não poderia ter qualquer
cabimento no tempo e no espaço, constituindo, portan-
to, e tão-só, um modelo espiritual (S. Agostinho).
De qualquer maneira, esta omnipresença do número
mil deve ser explicada. Para além do significado retórico
dos números em geral (na tradição dos textos de Daniel,
por exemplo), o número mil surge na Vulgata cristã, seja
como clara alusão à semana cósmica de 7000 anos, pró-
pria da concepção judaica (helenizada); seja ainda como
alusão às especulações sobre a estadia do primeiro ho-
mem no paraíso (Deus disse a Adão que ele morreria no
dia em que comesse o fruto proibido (Gn 2,17) e, como se
sabe, morreu com a idade milenar de 930 anos). Aliás,
de acordo com uma passagem dos Salmos, a silhueta
simbólica, e não literal, do número mil parce tornar-
-se evidente, já que, aí, metaforicamente, se refere que
ASC
São João Evangelista no Evangelário do Abade Wedricus. «mil anos são» como «um dia para Deus» (Ps 90,4).
56 SUPER
Nos Actos dos Apóstolos (1,7-8), por seu lado, é tam-
bém inequívoco o testemunho que ilustra a necessária
indeterminação dos tempos finais: «Não compete a vós
conhecer os tempos e os momentos que o Pai reservou da
sua autoridade, mas tereis a força do Espírito Santo que
descerá sobre vós». Neste sentido, ao contrário da teoria
milenarista da espera, o reino dos «mil anos» significa-
ria, em última análise, que a própria vinda de Cristo já
constituiria, em si, pelo menos para o crente, uma forma
de acesso espiritual à vida paradisíaca.
No entanto, as interpretações mais literais do Apoca-
lipse cristão levaram certos movimentos a considerar o
milénio como um efetivo reino de mil anos, no início do
qual Cristo desceria à terra para governar com os justos.
Após esse reino, suceder-se-iam a ressurreição geral e o
reino da eternidade. Sobretudo na Ásia Menor, os mon-
tanistas fizeram desta projeção escatológica um dogma.
Estes milenarismos, de acordo com a Patrologia de A.
Cayré, viriam a ser combatidos por Orígenes (séc. III) e
por Dinis de Alexandria (séc. III), no Oriente; por Caius
de Roma (séc. II) e por Santo Agostinho (séc. IV e V), no
Ocidente. Bernard McGinn, autor de Visions of the End
(1979), considerou que os estudos recentes de J. Danié-
lou, ou de A. Luneau, sobre o tema demonstraram que as
ASC
doutrinas milenaristas constituem, sobretudo, «a forma Apocalipse do Lorvão, Visão do Cordeiro e dos Quatro Seres Fl-90.
segundo a qual a cristandade judaica conseguiu traduzir
a doutrina original do regresso de Cristo» à terra.
Independentemente de toda esta polémica teológica, (o chamado ano encarnacional). Embora os historiado-
a própria vastidão da literatura profética sobre o mile- res mais diversos, sobretudo de Alexandria e Bizâncio,
narismo viria provar a persistência do tema, durante tivessem feito flutuar o ano encarnacional entre 5494 e
séculos, pelo menos, «no submundo obscuro da religião 5508 depois de Adão, a verdade é que o pânico milena-
popular» — como frizou N.Cohn. Neste sentido, a adap- rista se foi projetando, com o tempo, para a presumível
tação aritmética da semana cósmica, quer à vinda de data do advento do sexto milénio (o ano 6000). A lógica
Cristo, quer ao anúncio literal do milénio, levaria muitos era simples e rudimentar: entre o ano 6000 e o termo da
exegetas a considerarem que o Exílio teria ocorrido, mais semana cósmica, ou seja, o ano 7000, decorreria o milé-
ou menos, por volta do ano 5000 após Adão e que a vinda nio e, com ele, toda a anunciada torrente dramática de
de Cristo teria, por sua vez, ocorrido por volta de 5500 acontecimentos finais.
SUPER 57
Vários são os textos que traduzem a grande inquietação
deste milénio do sexto dia que teria lugar no limiar, ou no
próprio século VI. Por exemplo, no termo da sua obra sobre
a Vida de S.Martinho, Sulpicius Severus (m.430), escreve:
«Dizia S.Martinho que não podia duvidar-se que o An-
ticristo, criado pelo espírito malino, tivesse já nascido e
que estivesse (até) nos seus anos de infância, esperando
pela idade viril para conquistar o império. Isso, ouvimo-
-lo dizer ao próprio S.Martinho há oito anos: julgai, pois,
como está já próximo este futuro duvidoso»
Na mesma época, no Progresso do tempo (397) de
Quintus Julius Hilarianus, pode ler-se igualmente:
«Tendo em conta os 470 anos que devem contar-se a
partir da Paixão do Senhor, (concluamos que) no dia 24
de março do Consulado de Ceasarius e Atticus, já pas-
saram 369 desses anos. Faltam, portanto, 101 anos para
completar os seis mil. Os seis mil anos não serão comple-
tados antes que dez reis avancem em direção ao (limiar
do) fim do mundo e removam da névoa a filha de Babi-
lónia que continua firme» (referência aos Bárbaros que
então ameaçavam o império romano).
Semelhante tipo de milenarismo iminente, ou de ca-
tástrofe pressentida, surge noutros textos da época,
como, por exemplo, no Livro das promessas e predi-
ções de Deus (atribuído a Quodvultdeus; m. 435) e no
apócrifo bizantino, designado por Revelação de João.
ASC
Curiosamente, na sequência da profecia Sibila Tiburtina O Juizo Final, por Giotto, 1306, Pádua.
(380 d. C.) que criou a figura de um Imperador-salva-
dor dos últimos dias (de acordo com tradições ligadas às
épicas de Alexandre-o-Magno), novas lendas imperiais, texto, são, de início, referidas as tribulações que o adven-
também de cariz apocalíptico, haveriam de aparecer, so- to, já próximo, do milénio prenunciaria:
bretudo no final do século IV e início do século seguinte. «O Senhor diz, ‘ao cabo do sétimo milénio/ Haverá
Uma das mais conhecidas é o Discurso de Jacob de Serug rumores e terramotos em todas as terras/ o pecado e o
(451-521), baseado numa das várias versões, correntes mal invadirão todo o mundo’» e termina com a vitória e
na altura, das Lendas sírio-cristãs de Alexandre. Nesse exortação terrenas de Alexandre sobre o poderoso Anti-
cristo, coadjuvado pela redenção divina final:
«Estas coisas belas fê-las e interpretou-as Alexandre/
E todas elas acontecerão antes desse dia do fim».
Este milénio do sexto dia, a par do, muitas vezes, de-
signado milénio de Alexandre, foram, em grande parte,
obra de notáveis cristãos, como Santo Hipólito (m. 235),
que em Sobre Cristo e o Anticristo, no início do século
III d. C., declarava que os tempos finais não eram tem-
pos iminentes, pois, se Cristo nascera em 5500, ainda
faltariam, pelo menos, dois séculos para o grande drama
pré-salvífico. Contudo, Santo Agostinho tentou acalmar,
a tempo, a fúria com que se desenhava o prematuro mi-
lénio do século VI, ao escrever profeticamente na Cidade
de Deus: «Quando o sexto dia houver passado, depois de
ter soprado o vento que separa, virá o repouso».
A Cidade de Deus, de Santo Agostinho. séculos depois de ter ocorrido — num simulacro de in-
58 SUPER
quietações coletivas imaginárias, propomos, desde já,
uma breve viagem aos critérios que determinaram a
própria contagem, ou cômputo, do ano mil.
Recuemos, para tal, aos anos vinte do século VI, quan-
do o Papa João I pediu a Dionísio o Exíguo (também
chamado David, o Pequeno) que estabelecesse um novo
calendário baseado no nascimento de Cristo. O momento
era propício para tal aventura, já que estava praticamente
passada a época de temor apocalíptico que, como vimos,
havia cruzado o milénio do sexto dia. Dionísio, após mui-
tas consultas e leituras, concluiu que Jesús teria nascido
a 753 A.U.C. (ad urbe condita — data contada a partir da
presumível fundação de Roma, confirmada ou legitima-
da, já há séculos, pelo designado ‘código juliano’).
Nesse sentido, segundo as notações de Dionísio o
Exíguo, Cristo teria nascido a 25 de dezembro de 753
A.U.C., embora o primeiro ano da Cristandade só de-
vesse ser contado a partir do primeiro de janeiro do ano
seguinte, isto é, de 754 A.U.C. (momento da circuncisão
de Jesús, após a sua primeira semana de vida). Acontece
que, por não dispor do número e sobretudo do conceito
de zero (criação indiana e depois islâmica dos séculos
VIII para IX, segundo Stephen Gould), Dionísio esque-
ceu-se de batizar o ano de 754 como ano 0, acabando
antes por designá-lo, para a posteridade, como se fosse
o verdadeiro ano 1.
Esse facto viria criar inusitados embaraços nas passa-
gens festivas dos séculos, sobretudo quando, a partir dos
ASC
anos oitenta do século XVI, com o plano reorganizador Sibila Tiburtina. Xilogravura de Crónicas de Nuremberga.
de Gregório XIII, a cronologia temporal cristã se ajustou
em todo o Ocidente cristão (até aí os anos iniciavam-
-se, na Europa, nos meses mais diversos, sobretudo em março, mas também em janeiro e em setembro). O mais
curioso — e tal constitui um reconhecimento tardio por
parte dos historiadores pós-românticos — é que Dionísio
o Exíguo teve ainda outro engano mais pesado, apenas
provado pelo facto de se saber historicamente que He-
rodes terá morrido a 750 A.U.C. (ou seja, no ano 4 a. C.).
É conhecido — e as fontes histórico-evangélicas são,
nesse ponto, óbvias — que Jesús e Herodes tiveram que
coexistir, em vida, pelo menos durante umas semanas,
razão pela qual o ano 0 real deveria ter sido considerado
quatro anos antes do apontado por Exíguo. Se somarmos
a toda esta demanda aritmética que os anos bissextos,
considerados já no código juliano de 46/45 a. C., nunca
bastaram, para contar — e sobretudo para logicamente
conter — o tempo real ‘que corre’ (em 1582, o desfasa-
mento era já de doze dias o que conduziu a ‘reparações’
em outubro desse mesmo ano, por iniciativa de Gregório
XIII; hoje é-o de 24,96 segundos), concluiremos que o
cálculo do nosso Anno Domini (a partir do nascimento
de Cristo) é, no mínimo, mais do que problemático. Ou,
pelo menos, tê-lo-á sido em tudo, mas mesmo em tudo,
o que aconteceu, ou não terá acontecido, nesse tempo
imaginário de há 999 anos atrás.
É por isso que o ano mil, certamente, nem começou,
ao mesmo tempo, em todo o lado; nem terá sido, em
muitos outros lados ainda, um ano do género «d. C.»,
tal como o entendemos hoje. Mais: a própria designação
da era a. C. / d. C., talvez ainda fosse, na altura do ano
mil, em vastas regiões europeias e não só, concorrente
da primeira de todas as eras cristãs — a ‘era dos mártires’
—, contada a partir da data das perseguições de Diocle-
ciano, dois séculos e meio antes de o próprio Dionísio ter
posto mãos à sua generosa obra de contagem. Por tudo
ASC
Iluminura medieval do massacre dos peregrinos da Cruzada isto, enquanto a memória de todos nós não desenterrar
Popular na Anatólia (1096). novos factos desaparecidos, ou talvez nunca provados, o
SUPER 59
março. Talvez por isso o ano de 1033, que traduzia o mi-
lenário da morte e redenção de Cristo, tivesse ocupado, a
seu tempo, alguns espíritos com a exortação própria dos
grandes momentos da vida coletiva.
Nesta linha de ideias, é curioso constatar o facto de a
memória histórica ter sabido guardar alguns eventos
ocorridos em 1033 (ou próximos dessa data). Decerto
que algo da imaginação milenária os terá associado a avi-
sos ou alvitres divinos. O mais pungente desses factos foi
provavelmente o eclipse de 29 de junho 1033, em pleno
solstício milenar da paixão de Cristo, descrito pelo mon-
ge Rudolfo Glaber como se o mundo, de repente, tivesse
ficado imerso «num vapor cor de açafrão», criando no
«coração dos homens um estupor e terror imensos».
Quem sabe se, também, a fome da Borgonha, do mesmo
ano de 1033, não teria recebido influências de uma tal pe-
nosa ocultação de luz ?
Antecedendo o potente eclipse, um grande cometa, sa-
biamente comentado por Adémar de Charbannes e ainda
por Raul Glaber, uns anos antes, em 1014, parecia já pres-
sagiar outros grandes acontecimentos. Ouçamo-los: «O
que contudo é certo, é que, cada vez que os homens vêem
ASC
Natividade, por Giotto Bondonni. produzir-se no mundo um prodígio desta espécie, pou-
co depois abate-se visivelmente sobre eles alguma coisa
de espantoso e de terrível». Esses espantos, porventura,
milénio do ano mil continuará a ser tema nobre para no- teriam coincidido com os combates de estrelas de janeiro
velas. Até porque a história, já o soletrava Ricoeur, é uma de 1023, ou com as bizarras monstruosidades que Glaber
ficção criada pela ordem da modernidade. E isso apesar também soube detalhadamente descrever. No entanto, o
de o milénio do ano mil aparentar o que parece ter, de mesmo monge conseguiu igualmente mostrar, com uma
facto, sido: um frágil milénio. nitidez paradisíaca, que, no advento do milénio da Pai-
xão, tudo, de facto, parecia ter-se modificado:
O MILÉNIO DA PAIXÃO E UM MAR DE PRODÍGIOS. Já dissemos «No ano milésimo depois da Paixão do Senhor, após
que o século XI é um tempo em que o homem olha para a dita fome desastrosa, as chuvas das nuvens acalma-
o mundo como quem tenta sondar os prodígios e ten- ram-se obedecendo à bondade e à misericórdia divina.
tações que se ocultam por trás de um véu. Seria assim O céu começou a rir, a clarear e animou-se de ventos
ainda, aliás, durante séculos, até que, muito mais tar- favoráveis. Pela sua serenidade e paz, mostrava a magna-
de, a razão humana achou por bem encontrar regras nimidade do Criador. Toda a superfície da terra se cobriu
próprias que substituiu às de Deus, na interpretação, já de uma amável verdura e de uma abundância de frutos
sem véu, da coisas da natureza e do tempo. Fosse como que expulsou completamente a privação».
fosse, no âmbito desta semiose divina medieval, o cer- Dir-se-ia que era chegado o «repouso» que S. Agos-
to é que os ensinamentos da revelação cristã atribuíam tinho apontara como contéudo do sétimo e derradeiro
muito mais importância congregadora à Ressurreição e milénio salvador. Foi também em 1033 que se iniciou,
à Crucificação do que à Natividade. A comprová-lo, bas- de modo pioneiro e prefigurador de futuras Cruzadas,
tará constatar a insistência com que, ao longo da Europa, a poderosa onda de grandes peregrinações. O destino
o ano novo se fixava, não em janeiro, mas no final de dessas peregrinações e, depois de 1095, das próprias
cruzadas, era a mesma Terra Santa onde, também em
1033, curiosamente, um terramoto se fez sentir «desde
o mar até Forte Dan, em todas as cidades do Negev e do
Monte a Jerusalém, a Siquém e às suas aldeias, a Tibe-
ríades e suas aldeias, às montanhas da Galileia e a toda
a Palestina»
Os dados são eloquentes ou, pelo menos, falam por si
no sentido de se poder concluir que os prodígios terão
sempre correspondido à singularidade da data milenar
da Paixão cristã, embora, como adiantou U. Eco ou N.
Cohn, os milenarismos, mais do que afrontamentos
teológicos, resultam sobretudo da fúria revolucionária
que se abate nas sociedades, em época de mudança ou
de carência. Deste modo, à magnitude dos prodígios,
ter-se-á unido um tempo de recomeço e reconstrução
que foi o que caracterizou, de facto, o pós-ano 1000,
como já vimos. Terá sido essa, com efeito, a essência do
milénio da Paixão ?
Apenas o tal grande escultor, que é o tempo, poderá,
um dia, a tal responder. Mas, sempre, convenhamos, em
ASC
Representação do Ciclo Metónico de 19 anos. Biblioteca Estadual da Baviera. absoluto e radical sigilo.
60 SUPER
Vista de Jerusalém (Conrad Grünenberg, 1487).
ASC
MILÉNIOS ISLÂMICOS? Numa profecia da minoria mouris- xandre com o despontar histórico do próprio Islamismo,
ca e cristã-nova da foz do Ebro, provavelmente dos anos chegando a traçar analogias com o género milenário pro-
trinta do século XVI, podia ler-se: «No se detallará/ ni fético cristão. Contudo, essas analogias não se ficam por
sabrán k(w)ando se levantará el dí(y)a/ del judiçi(y) aí. Tal como no Cristianismo, também no Islão, a semana
o d-akí-(y)a ke verán los/ montes ke se abrán ap(a) cósmica dos sete milenários preenche o imaginário da
lanado» (não se especificará, nem ninguém virá a sa- escatologia, embora sempre, ou quase sempre, à margem
ber quando será o dia do juízo, daqui até que os montes de disputas ditas teológicas. Neste contexto, refira-se
se tenham aplanado). Esta preciosa metáfora da espera a Taríkh ar-Rusul wa-l-Mulúk (História dos Profetas
escatológica, repetindo metáfora idêntica do Alcorão e dos reis) de at-Tabarí (838/9-923). Na primeira parte
(surata XVIII, 45), é mais atenta à ideia de espaço do que do seu livro, o autor, debatendo-se com a duração do
propriamente ao cômputo temporal. Porventura, es- mundo, afirma: «... foram transmitidas informações,
sa atenção, ou inclinação, islâmica parece refletir uma sob a autoridade do mensageiro de Allâh, que provam a
outra visão da espera pelos tempos do fim que, ao con- veracidade do testemunho, segundo o qual (todo) este
trário do Canon cristão, jamais teria sido filtrada pelo mundo é de seis mil anos». Uns séculos mais tarde, na al-
simbolismo de um qualquer ano mil. No entanto, vários -Muqaddima (Discurso sobre a história universal), Ibn
são os dados que nos permitem pensar de modo inverso. Khaldún (1332-1406) comentou a passagem de at-Tabarí,
Vamos, pois, percorrê-los, um a um, para que possamos afirmando: «at-Tabarí fundava-se numa tradição» que
chegar a uma conclusão menos... aparente. atribui a este mundo a duração de «uma só semana de
Durante o reinado do quinto califa abássida, o famoso todas as semanas do outro mundo». Céptico em relação
Harún ar-Rashíd (764-809), surgiu um texto enigmá- a at-Tabarí, Ibn Khaldún, recorrendo ao Alcorão (Surata
tico designado por Apocalipse de Bahíra. A tradição XXII,47) e a outros canais da tradição (do Sahíh) have-
deste texto (atribuído a um monge cristão que se teria ria de concluir, de acordo com tais cálculos: «o mundo
convertido ao Islão) liga-se ao espírito da profecia cristã duraria (após a emergência do Islão) a metade do sétimo
Pseudo-Metodius (660-680) onde, por sua vez, é imagi- de uma semana (de 7000 anos), ou seja quinhentos anos.
nado um imperador-salvador que, no termo do milénio Uma palavra de Maomé confirmaria esta conta — Deus
de Alexandre, apareceria para pôr cobro à súbita emer- não será incapaz de fazer durar esta nação mais do que
gência islâmica. Como referiu A. Abel, «a vinda dos um meio dia. Deste modo, o mundo existiria desde há
árabes foi apresentada, no Apocalipse de Bahíra, como 5500 anos, anteriores ao Islão».
no Metodius, enquanto reflexo de um dos acontecimen- Nos Apocalipses populares, escritos durante séculos e
tos catastróficos que preparariam o fim do mundo». A séculos, em terras islâmicas, a história surge, de facto,
profecia islâmica inicia-se com uma visão de tipo danie- dividida em sete diferentes milénios, homólogos aos sete
lítica e termina com uma série de predições escalonadas, planetas que, por sua vez, a afetam. Deste modo, a cada
precisamente, a partir do ano 1050 de Alexandre, de milénio corresponderia sempre um planeta, uma língua
acordo com a ordem das premonições milenares do pró- e até uma forma de escrever. A criação de Adão, neste
prio Metodius cristão. quadro, remontaria ao primeiro dos milénios e o último
A profecia de Bahíra relaciona, pois, o milénio de Ale- ao advento da revelação de Maomé. Na profecia conhe-
SUPER 61
ASC
O jovem Muhammad conhece o monge Bahira. De Jami’ al-Tawarikh («A História Universal» ou «Compêndio de Crônicas») escrito por Rashid
AI-Din e ilustrado em Tabriz, Pérsia, ca. 1315. Biblioteca da Universidade de Edimburgo.
cida por Apocalipse de Ka’b al-Ahbâr (séc. XIII), o sexto tudo, os turcos possuíam profecias de teor idêntico, uma
século do Islão é, com efeito, descrito como o termo da delas, curiosamente, com o nome latino — Vaticinium
revelação e como «cumprimento da perfeição». Na tra- Infidelium Lingua Turcica, e onde a mesma «maçã ver-
dução de A. Abel, o pequeno poema que fecha uma outra melha» era agora identificada com Roma).
profecia milenarista, a Síhat al-Búm (séc. XIII), anuncia Para além do milénio alexandrino, da semana cósmi-
explicitamente, para o último ano do derradeiro milénio ca, dos apocalipses populares e do próprio milenário da
(999 após a Hégira), uma catástrofe generalizada sobre Hégira, o Islão produziu ainda um outro significativo
todas as cidades da Palestina, bem como a decadência e modelo milenar que, aliás, viria a ter muita importância
abdicação dos cristãos (no quadro do modelo islâmico da no Ocidente cristão. Trata-se, naturalmente, do cômpu-
conversão universal que deverá preceder a era escatoló- to astrológico. Além da tradição das chamadas Tábuas
gica da salvação). de Toledo, de az-Zarqâlí, foi sobretudo a tradução do
Esta tradição profética milenarista-popular está, se- Kitâb al-Qirânât (Livro das conjunções astrais) de Abú
gundo M. Sánchez Alvarez, profundamente relacionada Ma’shar (Albumassar; sec. IX) que viria a estar na base
com a existência de tradições (hadíth) de caráter apó- de muitas profecias sobre o fim do mundo, no fim do sé-
crifo, relativas à quantificação «milenária da Hégira». A culo XII e inícios do século seguinte, no mundo cristão
autora situa-as num contexto onde a produção profética (nomeadamente, o cômputo de 960 anos, por cada gran-
mourisca ibérica igualmente se incluiria. Esta tradição do de conjunção astral, atraiu inevitavelmente conteúdos
milénio da Hégira (622) parece vislumbrar-se também, milenaristas). Abú Ma’shar é citado, no Ocidente, entre
segundo estudos recentes de A. Bouchard, na própria outros, por Roger Bacon (m.1292), para concluir que a lei
postura guerreira da dinastia Sa’dí marroquina face aos de Maomé não poderia durar mais do que 693 anos, e,
portugueses. Embora haja autores que denunciam a im- mais tarde, pelo Bispo de Barcelona, Martín García (1441-
portância teológica do ano 1000 no Islão, caso de M. García 1521), que calculou uma duração para o Islão de 875 anos,
Arenal, a verdade é que existem textos proféticos de ori- fazendo mesmo coincidir a data fatídica de 1492 e a da
gem cristã que jogam com o próprio milenário da Hégira, conjunção astral de 1524 com o destino dos mouriscos
tentando assim manipular aquilo que, decerto, seria uma (cristãos-novos ibéricos). Os mesmos cálculos de Abú
verdadeira tradição islâmica (pelo menos de cariz popu- Ma’shar levariam, no final do século XII, Jirâsh b. Ah-
lar-tradicional). É o caso dos oráculos de «Leão o Sábio, mad, em obra composta para o vizir Nizâm al-Mulk (m.
combinados com os presságios do milénio da Hégira» 1092), a propor que, entre a emergência do Islão e o fim
e de uma profecia turca anónima, editada em 1545/6, e do mundo duraria o tempo correspondente a uma grande
atribuída a um personagem de nome Barthélem Georgie- conjunção astral, adicionado de um século. Esta opi-
vitch. Em ambos os textos se estabelece uma ligação entre nião, assente num verdadeiro milenarismo astrológico,
o milénio da Hégira e a conquista da «maçã vermelha», havia já sido determinada, por coincidência espantosa,
interpretada, no original, como sendo Constantinopla. no início do século VIII, por um astrólogo bizantino, de
K. Setton estudou o texto atribuído a Barthélem Georgie- nome Teófilo, que atribuiu ao «império muçulmano» a
vitch e assinalou: a profecia «demonstra que os cristãos duração do que, na tradição persa-samânida, também já
acreditavam deter o monopólio das profecias de guerra correspondia à amplitude da grande conjunção astral, ou
que anteviam a destruição do Império Otomano». Con- seja, 960 anos.
62 SUPER
ASC
Batalha de Karbala, óleo sobre tela de Abbas Al-Musavi, ca. final do dia 19 – início século XX.
Como se vê, os milenarismos, no campo islâmico, mo- partir das Cruzadas ocidentais (1017) e orientais (1096), a
bilizaram a tradição (hadíth), os apocalipses populares, guerra escatológica islamo-cristã se tornou, no essencial,
os cômputos alexandrinos ou da Hégira, para além da uma guerra entre profecias. Ou seja, não apenas entre re-
irradiação das notações astrológicas (tal como aconte- velações proféticas distintas, mas sobretudo entre textos
ce nas profecias do famoso Manuscrito 774 da Biblioteca que se cruzavam, enxertavam ou manietavam, na senda
Nacional de Paris). Tal como no Ocidente, tudo isto pa- de um triunfo rápido, simultaneamente terrestre e divino
rece passar-se à margem das ortodoxias, embora estas, (de certa forma, noutra escala, antecipando o atual papel
sempre que o necessitaram, não se tenham esquecido de dos média, na sua relação com o jogo político).
forjar premonições para melhor controlarem o destino e Nesta verdadeira guerra profética, o número mil, em-
manipularem os inimigos. A verdade é que, pelo menos, a bora nem sempre fundado num versículo da Vulgata, foi,
com toda a certeza, um autêntico ator. Um bravo e in-
contestado ator desse grande relato profético da história
que parecia nunca ter fim. Do mesmo modo que, hoje em
dia, o ano mil não parece, de facto, ter-se ainda extin-
guido dos desejos que povoam a nossa ávida e, às vezes,
tormentosa imaginação. e
ASC
SUPER 63
C I Ê N C I A
No seu papel de
neurotransmissor,
a oxitocina
aumenta a ligação
às crias em
algumas espécies,
mas noutras
aumenta a
agressividade e a
rivalidade para
ISTOCK
com elas.
64 SUPER
A oxitocina é a
hormona do
amor?
A oxitocina é muito importante no
parto e essencial na amamentação.
Produzida tanto por mulheres como por
homens, foram-lhe atribuídas funções
primordiais como a criação de laços
afetivos e sociais. Um artigo publicado
na revista Neuron tenta agora retirar-
lhe alguns dos seus méritos.
SUPER 65
AGE
M
uitas das funções do corpo Em suma, os investigadores não negam, pelo me-
humano são uma resposta nos por completo, a importância da oxitocina na sua
natural ao estímulo das hor- função fundamental, a amamentação, mas fazem-
monas, substâncias químicas -no em outros aspetos que até agora eram tidas como
que dizem às células como certos, como a criação de laços de casal, parentais e
se devem comportar. Qua- sociais. Uma conclusão a que Asunción López-Cal-
se todos os nossos órgãos as derón Barreda, professora de Fisiologia da Universidade
produzem, embora a maioria Complutense de Madrid, responde com ceticismo: «A
provenha do sistema endó- oxitocina facilita o parto, mas pode haver partos sem
crino. Quatro delas partilham oxitocina, ao passo que na lactação ela é essencial, pe-
a virtude de nos fazer felizes: lo menos nos humanos e também nos roedores». Se a
a dopamina, a oxitocina, a lactação ocorreu de facto nos animais da experiência,
serotonina e as endorfinas. No entanto, uma delas, a esta professora recorda que, por vezes, como explicam
oxitocina, acaba de ver alguns dos seus méritos retira- os próprios autores, «quando se fazem manipulações
dos por um estudo publicado na revista Neuron. genéticas, podem desenvolver-se vias alternativas que
O estudo, realizado com ratazanas da pradaria, afirma desempenham as funções das vias que se tentaram neu-
que a oxitocina não é necessária para estabelecer laços tralizar. Assim, talvez, nas ratazanas, a oxitocina possa
duradouros com um parceiro e cuidar de crianças. Para atuar ativando outros tipos de recetores que não os que
chegar a esta conclusão, os investigadores bloquearam foram neutralizados.
os recetores de oxitocina destes pequenos animais, co-
nhecidos pela sua tendência para a monogamia. Isso
não impediu que as fêmeas dessem à luz e amamentas-
sem as crias, mas reduziu a libertação de leite, o número
de crias que chegavam vivas ao desmame e o tamanho
das que chegavam ao desmame. Além disso, no que diz
respeito aos laços afetivos, o artigo afirma que as rata-
zanas criaram os filhos como se não tivessem o recetor
da oxitocina bloqueado.
AGE
parentais e sociais.
66 SUPER
Tratamento do
autismo
H á correntes de investigação que estão a experimentar a
utilização de oxitocina administrada por via intranasal a
pessoas com perturbações do espetro do autismo (PEA). Es-
tes estudos, que contradizem o publicado na revista Neuron,
atribuem grande importância à hormona para conseguir a inte-
gração social destas pessoas.
No artigo «Refining oxytocin therapy for autism: context is key»,
A oxitocina tem origem publicado na revista científica Nature Reviews Neurology, Char-
no hipotálamo, é les L. Ford e Larry J. Young, do Departamento de Psiquiatria e
segregada pelas mães
Ciências do Comportamento da Universidade Emory, em Atlanta
no momento do parto e
durante a amamentação. (Geórgia, Estados Unidos), explicam que a oxitocina, aplicada
por via intranasal, «facilita a aprendizagem social, mas não pro-
AGE
Córtex sensoriais
PVN
Hipotálamo Núcleo arqueado
Axónio neuronal
magnocelular
SON Amígdala
Axónio neuronal
magnocelular
Libertação axonal
Libertação dendrítica
Oxitocina endógena
Diferentes
estudos
demonstraram
que o uso
ocasional da
hormona é Secreção de oxitocina Hipófise
estimulante, para a periferia posterior
enquanto o seu
uso crónico é
inibidor.
cém-nascido, razão pela qual desempenha um papel produzam oxitocina; de facto, os homens também se-
fundamental na ligação com o bebé, sendo a sua missão gregam esta hormona. Durante o coito, a presença de
facilitar a propagação da espécie». oxitocina aumenta em ambos os sexos; no homem,
A outra grande missão da oxitocina como hormona, favorece a saída dos espermatozóides e a secreção da
embora não fundamental, é facilitar o parto. Libertada próstata durante a ejaculação e, na mulher, facilita o
naturalmente, provoca a contração da musculatura ute- transporte dos espermatozóides no útero e nas trom-
rina e contribui para o desencadeamento e a progressão pas, como refere López-Calderón.
do processo. Sánchez-Dehesa fala de estudos segundo os Segundo Sánchez-Dehesa, esta substância, no seu
quais «um ambiente calmo e adequado para a paciente faz papel de neurotransmissor, serve para aumentar o ape-
com que a libertação desta substância seja mais adequada go à prole em algumas espécies, mas ao mesmo tempo,
e, assim, o parto é encurtado». No entanto, em 10% dos diz, «noutras aumenta a agressividade e a rivalidade
casos, tem de ser utilizada sob a forma de medicação pa- com ela, porque tem o efeito contrário ao que tem na
ra induzir o parto, embora advirta que «não é necessário fêmea». Até ao aparecimento do estudo da Neuron, a
utilizá-la em todos os partos, pois não é uma substância ciência tinha aceite que a oxitocina estava envolvida em
inofensiva e pode ser prejudicial em alguns casos». comportamentos como a memória social, que é a capa-
cidade de os animais reconhecerem um indivíduo do
A SUA IMPORTÂNCIA EM DOIS PROCESSOS NATURAIS TÃO PRÓ- mesmo grupo e de criarem laços com a mãe e o pai. Ve-
PRIOS DA MULHER não significa que apenas as mulheres rificou-se que os níveis de oxitocina são mais elevados
nas fêmeas do que nos machos. Noutras espécies, como
explica o médico, «o macho tem menos apego porque o
nível de oxitocina após o nascimento de uma cria é mais
No estudo, os baixo ou indetetável».
investigadores Quando há uma maior libertação de oxitocina, e se
bloquearam os este estudo não for corroborado por outros estudos
recetores de posteriores, continuará a considerar-se que há mais
oxitocina das apego à parceira e menor possibilidade de poligamia.
ratazanas da A favor deste argumento, Sánchez-Dehesa sublinha
pradaria. que nos homens «aumenta mais durante a primeira
fase do enamoramento, a excitação sexual, a ereção e
a ejaculação».
68 SUPER
Monogamia humana
Quando há uma maior
libertação de oxitocina, há uma U m dos responsáveis pela atribuição da designação de hor-
mona do amor à oxitocina foi um estudo da Universidade
de Bona, na Alemanha, publicado em novembro de 2013 na re-
maior ligação ao parceiro e vista Proceedings, da Academia Nacional de Ciências dos EUA,
intitulado «Oxytocin enhances brain reward system responses in
ISTOCK
Por outro lado, López-Calderón explica que o com-
portamento humano «é influenciado por muitos
fatores, e os estudos comportamentais que se fazem
em animais não influenciam necessariamente os seres
humanos. Porque a educação e a cultura, por exemplo, são monogâmicas, e as dos prados, que o são, é que têm
também têm influência. E o efeito da oxitocina na cria- mais oxitocina».
ção de laços só foi testado até agora em crianças autistas. Não é raro, em ciência, que sejam publicados
Para a bióloga Sue Carter, uma das pioneiras no estu- trabalhos com conclusões diferentes, ou mesmo con-
do da oxitocina, outros fatores também desempenham traditórias, o que se deve, na maioria dos casos, a
um papel importante. Em «Sex, love and oxytocin: two diferenças no desenvolvimento experimental. Por
metaphors and one molecule», publicado na revista exemplo, a inibição da hormona na idade adulta pode
Neuroscience & Biobehavioral Reviews, ela parte do dar resultados diferentes do que se for feita na descen-
princípio de que seria mais fácil determinar o papel des- dência, da mesma forma que a aplicação da hormona
ta hormona na monogamia se ela atuasse sozinha, mas de forma pontual é estimulante, enquanto o seu uso
há muitas moléculas e sistemas neuronais que susten- crónico a torna inibidora.
tam a sociabilidade dos indivíduos. A cientista, uma das Em todo o caso, é surpreendente que o estudo que
mais ativas no estudo do efeito da oxitocina nos laços pretende privar a oxitocina do seu papel no amor e
sociais, afirma que as ratazanas da pradaria que rece- noutras virtudes, como a empatia, tenha sido realiza-
bem doses extra são mais sociáveis e criam laços mais do em ratazanas da pradaria, os mesmos animais que
rapidamente. foram utilizados para estabelecer que esta hormona
A hipótese, como refere López-Calderón, é que «a servia para algo mais do que para ajudar o parto e a
diferença entre as ratazanas das montanhas, que não amamentação. e
SUPER 69
B I O L O G I A
DANÇAI,
DANÇAI...!
Um estudo recente indica que a dança complexa que as abelhas usam para comunicar
não é inteiramente inata, mas também transmitida culturalmente.
70 SUPER
E
m 1973, o cientista australiano
Karl von Frisch ganhou o Pré-
mio Nobel por ter descoberto
que as abelhas dançam para
comunicar às suas companhei-
ras a localização das fontes de
alimento. Ao abanarem o ab-
dómen, conseguem transmitir
informações sobre a direção, a
distância e até a qualidade das
flores que as rodeiam.
Um novo estudo publicado
na revista Science mostrou que este comportamento
não é totalmente inato. Para não cometerem erros, as
abelhas mais jovens precisam de observar as mais expe-
rientes na pista de dança. Isto significa que as abelhas,
tal como nós, as aves ou outros animais, têm um sis-
tema de comunicação baseado na aprendizagem social.
Qual é a vantagem para as abelhas de terem de apren-
der a dançar? À primeira vista, pode parecer muito mais
útil nascer com esse conhecimento. Para resolver esta
questão, precisamos de começar por compreender co-
mo é que estes animais transmitem informação através
da sua dança.
Esta tarefa não é fácil por duas razões. Em pri-
meiro lugar, obriga-nos a fazer o exercício de nos
colocarmos na mente de um ser muito diferente, com
capacidades mentais que nos faltam. A segunda é que,
surpreendentemente, as abelhas têm um dos sistemas
de comunicação mais complexos do reino animal.
SUPER 71
As abelhas sentem a gravidade e sabem quando estão Curiosamente, ao longo do tempo e com a prática,
a subir ou a descer na colmeia. Quando dançam, des- as abelhas foram retificando os seus erros de ângulo,
locam o abdómen, posicionando-o num determinado mas nunca corrigiram os erros de distância. Por exem-
ângulo em relação à linha vertical. Este é o ângulo em plo, elas costumavam indicar que o alimento estava
que a fonte de alimento está localizada em relação à mais longe do que realmente estava. Assim, é na co-
posição do sol. Por exemplo, quando uma abelha dan- municação à distância que elas realmente precisam da
ça com o abdómen virado para baixo, está a indicar às aprendizagem social, o que tem uma razão de ser.
outras que, para encontrarem o néctar, têm de voar Se juntarmos abelhas de colmeias distantes, é pouco
na direção oposta à do sol. Se as pistas de dança forem provável que se entendam, porque cada uma tem um
colocadas na horizontal, as abelhas que vivem em col- dialeto diferente. As diferenças residem no sistema de
meias verticais deixam de poder indicar a direção do medição da distância, uma vez que a relação entre o
alimento. Isto confirma que a referência gravitacional tempo das danças e a distância que codificam nem sem-
é necessária para estes insetos. A duração do tempo de pre é a mesma. Por exemplo, para algumas espécies, um
oscilação indica a distância. Quanto mais longe estiver o segundo pode ser equivalente a um quilómetro e para
alimento, mais tempo dura. Finalmente, quando a fonte outras a um quilómetro e meio.
de alimento é muito boa, repetem a sua dança mais ve- Isto é compreensível porque as abelhas habitam am-
zes do que se for de má qualidade. bientes muito diferentes. As que vivem em locais com
Executar esta dança com precisão não é fácil para as flores menos abundantes precisam de cobrir espaços
abelhas. Na escuridão total e numa superfície irregular, maiores. O tamanho do mundo em que as diferentes
têm de o fazer sob o olhar atento das suas companheiras. abelhas navegam varia, pelo que faz sentido que o seu
É por isso que podem, por vezes, cometer erros de cálcu- sistema de medição também varie.
lo, tanto na indicação do ângulo como da distância. A aprendizagem da língua permite que as abelhas se-
jam flexíveis e se adaptem a diferentes ambientes. De
OS INVESTIGADORES CRIARAM DOIS TIPOS DE COLÓNIAS DE acordo com James C. Nieh, um dos autores do estudo,
ABELHAS JOVENS no estudo da Science. Uma era cons- «as abelhas privadas de um professor podem nunca ter
tituída exclusivamente por indivíduos que dançavam corrigido os seus erros de distância porque adquiriram,
pela primeira vez e que nunca tinham visto outros a por si próprias, um dialeto diferente».
dançar. A outra continha abelhas de todas as idades,
de modo a que as mais inexperientes pudessem ver as SABER COMO FUNCIONA A DANÇA PERMITIU-NOS DESCOBRIR QUE
adultas a dançar. Quando chegou a altura de dançar, as ESTES ANIMAIS APRENDEM UNS COM OS outros e têm dialetos.
abelhas da primeira colmeia conseguiram fazê-lo, mas Apenas uma das abelhas é responsável pela postura de
cometeram muito mais erros do que as jovens abelhas todos os ovos. Chamamos-lhe «rainha», mas este nome
da segunda colmeia, tanto na comunicação da direção pode ser enganador, pois ela não toma qualquer decisão.
como da distância. Isto significa que as abelhas têm in- O poder pertence às abelhas operárias, pois são elas que
formação codificada nos seus genes sobre como dançar, saem da colmeia e conhecem melhor o ambiente.
mas aperfeiçoam a sua técnica observando outros indi- Um dia, um estudante de pós-doutoramento de Karl
víduos experientes. von Frisch, Martin Lindauer, deparou-se com um en-
xame de abelhas à saída do laboratório. O seu professor
tinha recentemente descoberto a dança destes animais,
pelo que conseguiu detetar que havia alguns indivíduos
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As abelhas sentem a
gravidade e sabem quando
estão a subir ou a descer
na colmeia
72 SUPER
As abelhas escolhem democraticamente
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Lindauer descobriu que estes insetos não só usam a a abelha melífera europeia (Apis mellifera). Inicialmen-
dança para indicar onde está a comida, mas também a te, as abelhas não conseguiam orientar a sua dança na
localização dos locais de nidificação. Mas isso foi apenas escuridão total, mas a aquisição desta capacidade per-
o começo. Continuou a observar a colmeia, anotando in- mitiu-lhes nidificar em cavidades onde a colmeia está
formações sobre a dança de cada abelha, e descobriu que mais protegida. Para além disso, estas espécies também
elas escolhiam democraticamente a sua próxima casa. produzem sinais auditivos quando dançam.
No início, centenas de abelhas saem para explorar, As abelhas evoluíram a partir de um tipo de vespa
vasculhando todos os cantos e recantos do ambiente em quando os dinossauros dominavam a Terra, há cerca de
busca do local mais adequado para se instalarem. Têm 130 milhões de anos. Estas abelhas primitivas prova-
em conta fatores como a humidade, a luz, o tamanho e velmente ainda não dançavam. O registo fóssil sugere
a temperatura. Quando regressam à colmeia, cada abe- que as primeiras danças ocorreram na Europa há cer-
lha anuncia o seu esconderijo preferido através de uma ca de 30 milhões de anos, em resultado das alterações
dança e a campanha eleitoral começa. climáticas. As temperaturas globais baixaram e a Euro-
Os exploradores visitam os sítios indicados pelos seus pa tornou-se mais quente. Estas alterações alteraram a
companheiros e, pouco a pouco, fazem a sua escolha. distribuição dos recursos, encorajando as abelhas a co-
Com o tempo, a variedade de propostas diminui e al- municar a sua localização.
gumas tornam-se predominantes. Quando a maioria No entanto, esta é apenas uma hipótese. Alguns au-
das abelhas concorda com a sua dança, a decisão está tores propuseram outra: a dança pode ter evoluído
tomada. Em poucos minutos, abandonam a colmeia e originalmente para permitir que as abelhas selecionas-
dirigem-se para o local escolhido para construir uma sem um local de nidificação e só mais tarde foi reutilizada
nova casa. para a procura de alimentos. É difícil explicar como é
que um enxame pode mudar de casa sem comunicar.
A EVOLUÇÃO DA DANÇA. Todas as abelhas fazem esta dança Outras espécies de insetos sociais, como algumas ves-
tão particular, mas também existem diferenças entre as pas, precisam de comunicar a localização dos ninhos
espécies para além dos dialetos. A Apis florea, vulgar- através de feromonas, mas não fontes de alimento.
mente conhecida como abelha asiática, não consegue Uma última possibilidade é que a dança tenha evo-
utilizar a gravidade como referência, pelo que dança em luído simultaneamente em ambos os contextos. Se
colmeias horizontais construídas em ramos de árvores. tanto os ninhos de alta qualidade como as fontes de
Indica a direção da fonte de alimento simplesmente alimento representam recompensas para as abelhas e
apontando com o abdómen. são processados de forma semelhante nos seus cére-
A forma mais complexa de dança é realizada por espé- bros, a dança pode ter sido usada em ambos os casos
cies que constroem as suas colmeias em cavidades, como logo que apareceu. e
SUPER 73
ENTREVISTA
74 SUPER
ANDRÉ
CARRILHO
Um sério caso de sucesso internacional
Entrevista de ELSA REGADAS
Q
uando andava na esco- Em que momento da sua
la secundária, já sentia o vida se apercebeu que po-
apelo para desenhar, mas deria viver deste tipo de
não sabia se poderia fa- profissão, sendo esta uma
zer disso profissão. Certo área não muito simples de
é que já lá vão mais de 30 ter sucesso em Portugal?
anos a construir prestígio, Resumidamente, que pas-
não apenas em Portugal, sos principais marcaram o
mas também em Espanha, seu percurso?
Brasil, França, Repúbli- Quando andava na esco-
ca Checa, China e EUA, la secundária costumava
onde os seus trabalhos dizer que queria era de-
continuam a conquistar senhar. Mas não sabia se
admiradores. isso podia ser uma pro-
Conta com mais de uma centena de prémios e distinções fissão. Descobri o Design
em ilustração, cartoon editorial, animação e caricatura, gráfico antes de entrar na
entre os quais o Gold Award for Illustrator’s Portfolio universidade e foi nesse curso que entrei para a FBAUL.
pela Society for News Design (EUA), um dos mais pres- Mas no 12º ano comecei a trabalhar em jornais, em Ma-
tigiados prémios de ilustração do mundo. cau, como cartunista, e continuei essa atividade durante
O trabalho de André Carrilho também pode ser aprecia- o curso já em Lisboa, até chegar à conclusão que ou uma
do em conceituados jornais e revistas com que colabora coisa, ou outra. Percebi que conseguia viver da ilustração
regularmente como, por exemplo, o New York Times, de imprensa em 1996, com 22 anos, quando comecei a
The New Yorker, Vanity Fair, New York Magazine, In- trabalhar n’O Independente. Depois um premio interna-
dependent on Sunday, NZZ am Sonntag, Harper’s cional em 2001, nos EUA, abriu-me as portas do mercado
Magazine, Diário de Notícias e New Statesman. internacional, e comecei a trabalhar para o Independent
Os dois livros infantis a que recentemente deu texto e on Sunday em Londres e o New York Times nos EUA.
cor foram ambos galardoados e os seus projetos e re-
conhecimento internacional não parecem dar sinais de Que nomes considera seus ídolos, influências ou refe-
abrandamento, conforme apurámos nesta entrevista... rências na área?
Hugo Pratt, Ralph Steadman, Quino, Sempé, Angeli,
Desenhador, ilustrador, caricaturista, artista plástico... R. Crumb, Chris Ware, Charles Burns, João Abel Manta,
há alguma definição concreta para o que faz ou é um Alberto Breccia, Cassio Loredano e muitos mais.
pouco de tudo?
É um pouco de tudo, dentro das artes gráficas. Ultima- Por falar em influências: como vê a entrada da Inteli-
mente ando a designar-me artista gráfico. Ilustrador gência Artificial na sua área de atividade?
não me envergonha, mas já não abarca tudo o que faço. Neste momento, sem pânico, mas com cautela, com
SUPER 75
«...dirigiu-se diretamente às que tem ao criar estes livros infantis, que mensagens
subjacentes aproveita para transmitir?
ondas e disse «eu tenho Acho que por ser cartunista tenho a tendência a que
tudo o que faço tenha uma qualquer relevância para
cuidado, senhor mar!» Eu além do meramente lúdico. Não quer dizer que obras
lúdicas tenham algum defeito, o defeito é meu que
gostei da frase e do nome lhes acrescento sempre um propósito mais social, de
consciencialização. Na prática acabo sempre por pen-
Senhor Mar, e partiu daí» sar no que quero dizer, no efeito que quero que o livro
tenha, e isso passa por ter uma mensagem definida.
Cada livro tem uma, até agora. O primeiro é sobre o
uso da tecnologia, o segundo é sobre o respeito pelo
curiosidade e pouco deslumbramento. Acho que a maior meio ambiente.
parte das conversas sobre AI pecam por algum histe-
rismo e falta de foco no que interessa. Por exemplo, a Das exposições coletivas e individuais em que já partici-
minha experiência pessoal é que são ferramentas pouco pou, qual a que mais o marcou e porquê?
interessantes e até muitas vezes contraproducentes para A última individual que fiz, na Galeria Artur Bual na
produzirem imagens finais, mas podem perfeitamente Amadora, o ano passado, foi uma de que me orgulho.
ser introduzidas em algumas fases do «workflow» ar- Porque senti que tinha um corpo de obra, acumulado ao
tístico, de modo a facilitarem a vida aos artistas, sem longo de anos, que já se pode mostrar e causa impacto.
desvirtuarem o produto final. Podem acabar com o tra-
balho a muita gente, mas podem potenciar o trabalho Habitualmente o que mais o motiva a pegar nas tintas e
de outros, como em todas as revoluções tecnológicas. no papel? A realidade e as pessoas que observa ou prefe-
Estou a esperar para ver, experimentando, testando e re vaguear pelo universo do imaginário?
refletindo do meu lado. Eu ligo sempre os dois, para mim são complementares.
Nem sei se a realidade existe fora de uma interpretação
Depois de a obra do escritor inglês George Orwell ter que recorra ao nosso imaginário. Talvez pegue nas tin-
entrado em domínio público no início de 2021, lançou tas para fugir a estas questões metafísicas, ou para as
mãos ao trabalho e (re)criou a obra-prima «1984» com resolver. O ato de desenhar é algo real e concreto, o que
42 ilustrações que exprimem a sua interpretação deste daí sai ou o que o motiva não sei se é.
que é um dos mais importantes romances do século XX.
Foi mais prazer ou mais responsabilidade? Qual foi até hoje o projeto que mais se orgulhou de con-
Começou por ser prazer e lá para o fim bateu-me a cretizar e porquê?
responsabilidade. O «problema» foi um que todos os Os meus dois livros infantis para a Bertrand. Porque o
artistas querem ter: a Bertrand deu-me carta branca. E efeito que têm nas crianças é mais mensurável e con-
lá para o fim senti que se a coisa não corresse bem, só sequente. Uma criança ou gosta do livro ou não, não
me tinha a mim para culpar. E isso pode ser avassalador. depende do que um galerista diz, do que uma critica no
Sou um dos meus piores críticos. Mas passado algum jornal recomenda, do que eu acho ou deixo de achar.
tempo, ganho distância e relaxo. E aqui acho que ficou E se gostam, vivem o livro com uma intensidade que
um livro de que me orgulho. não encontro noutro tipo de obra visual. Invejo muito
a música pela relação que estabelece com os ouvintes,
O seu mais recente livro «Senhor Mar», granjeado com que acho que as artes visuais nunca conseguem rivali-
medalha de ouro na categoria de livro ilustrado, nos zar. Mas um livro nas mãos de uma criança que gosta
EUA pela Society of Illustrators, nasceu por inspiração dele aproxima-se disso.
de um momento vivido com a sua filha. Pode contar-
-nos o que se passou? Nas suas colaborações regulares em conceituadas pu-
Estava na praia e a minha filha blicações, quando lhe pedem determinado projeto com
de três anos, como sempre, que- prazos concretos, como estrutura o seu pensamento,
ria lançar-se às ondas. Eu estava começa a desenhar e logo se vê, ou planeia os traços an-
a explicar-lhe que as ondas pa- tecipadamente?
reciam divertidas, mas que era Nunca começo a desenhar espontaneamente, preciso
preciso ter cuidado. Repeti tan- sempre de um plano prévio, uma ideia mais ou menos
to que ela devia respeitar o mar concreta do que vou fazer.
que ela às tantas dirigiu-se di-
retamente às ondas e disse «eu Como lida um artista com a falta de inspiração quando
tenho cuidado, senhor mar!» lhe é solicitado um projeto específico e com prazos cur-
Eu gostei da frase e do nome Se- tos? Alguma vez sentiu o chamado «síndrome da folha
nhor Mar, e partiu daí. em branco»?
Já senti isso, mas mais quando era mais novo. Tal como a
O seu primeiro livro, «A me- mão, a cabeça também se treina. Um profissional acaba
nina com os olhos ocupados» por ter tanto medo de faltarem ideias como de se rom-
já tinha sido distinguido com o per um tendão num dedo. Pode acontecer, mas é raro.
Prémio Nacional de Ilustração
e editado internacionalmente. Em 2022, foi convidado a criar uma banda desenhada
Além da paixão que se percebe para o «Gorillaz Art Book», o livro comemorativo dos
76 SUPER
«O poder do cartoon é um pouco como um canhão que nunca
conseguimos apontar bem, e às vezes explode-nos na cara.
Mas é um poder real»
20 anos da banda Gorillaz, em que participam vários ar- e às vezes explode-nos na cara. Mas é um poder real.
tistas internacionais. Já era fã da banda? Como foi essa
experiência? Podemos dizer que, especialmente em tempos como os
Era grande fã da banda. Foi uma experiência um pouco nossos, em que se acumulam os extremismos, um cari-
surreal, que só pude apreciar depois de concluir o tra- caturista livre é uma profissão de risco(!). Alguma vez
balho. O Jamie Hewlett foi desde cedo uma influência, pensa nisso? Sente-se de alguma forma condicionado,
desde as BD’s da Tank Girl, e vê-lo a seguir-me no Ins- pelo medo, ou pela responsabilidade?
tagram e a convidar-me para o livro foi uma honra. Normalmente sinto-me mais condicionado por mim
próprio. Mas depende do país. Em Portugal sinto bas-
Até que ponto considera que a ilustração e a caricatura tante liberdade, mais do que noutro sítio no mundo. De
têm o poder de mexer ou até revolucionar conceitos so- qualquer maneira a caricatura fisionómica está a perder
cialmente pré-estabelecidos? lugar na cultura, em todo o mundo. E o cartoon edito-
Desde os atentados do Charlie Hebdo que acho que o rial também, pelo menos tal como o conhecíamos no
humor, a caricatura e o cartoon têm imenso poder. Os séc. XX. As razões são complexas, desde o modelo de
assassinos podiam ter atacado instituições governamen- negócio imposto pelas redes sociais, a uma psique es-
tais, de segurança, responsáveis políticos, mas atacaram pecífica online virada para a curadoria individual das
pessoas que fazem desenhos, porque sentiram que dese- nossas vidas e às bolhas ideológicas em que vivemos. A
nhos eram uma ameaça real. Agora, até que ponto é que indignação vende, e é fabricada por algoritmos. E por
os artistas conseguem controlar e mobilizar o poder que vezes o humor leva por tabela.
os desenhos podem ter, não sei. Por experiência própria,
não consigo prever com grande certeza quando uma obra E até onde vai a sua imaginação? O que se imagina a
minha vai ter repercussões junto do publico. E nunca sei fazer daqui a cerca de 10 anos? Que grande projeto gos-
se um livro vai vender. O poder do cartoon é um pouco taria de concretizar até lá?
como um canhão que nunca conseguimos apontar bem, Talvez uma série de animação, ou uma novela gráfica. e
SUPER 77
F I C Ç Ã O C I E N T Í F I C A P O S I T I V A
SOLARPUNK
COMO APRENDEMOS A
AMAR O FUTURO
Na ficção «solarpunk»,
os seres humanos
superaram as alterações
SHUTTERSTOCK
78 SUPER
Este movimento pode salvar o futuro. Não pretende imaginar, quer atuar.
Nos seus cenários recriados, o esforço tecnológico já não está centrado
no crescimento económico, mas na criação de tecnologias eficazes para
resolver os problemas causados pelas alterações climáticas. Uma visão
positiva, reflexiva e ecológica do amanhã.
SUPER 79
D
epois de ter destruído o mun- MAS NÃO SE TRATA APENAS DE IMAGINAR FUTUROS POS-
do milhões de vezes e de ter SÍVEIS, TRATA-SE DE AJUDAR A CRIÁ-LOS. Porque o
sugerido utopias bizarras «solarpunk» é um subgénero da ficção científi-
e tiranias tecnocráticas, a ca, sim, mas pretende ir mais além. É também uma
ficção científica está a desen- proposta artística e urbanística, que se alia a certas
volver um pequeno núcleo componentes estéticas e dá ênfase ao ativismo. «O
de histórias «solarpunk»: “solarpunk” é, ao mesmo tempo, uma visão do fu-
exploram a sustentabilidade turo, uma provocação reflexiva, um modo de vida
ambiental, criticando o capita- e um conjunto de propostas realistas para alcançar
lismo predatório e imaginando esse futuro», lê-se num manifesto. «Precisamos de
possibilidades de recursos re- soluções, não de avisos», acrescenta. «Soluções para
nováveis e de inclusão radical. vivermos confortavelmente num mundo sem com-
Servem estas palavras, retiradas da introdução de uma bustíveis fósseis, para gerirmos a escassez de forma
compilação brasileira de narrativas «solarpunk», para equitativa e partilharmos a abundância, para sermos
apresentar este movimento. A compilação tem um título gentis uns com os outros e com o planeta que parti-
sugestivo: Como aprendi a amar o futuro. E é precisa- lhamos». Nesta procura de transformar a ficção em
mente disso que trata este conceito, que combina arte realidade tangível, por exemplo, o grupo de reflexão
e literatura, política e ambientalismo. O otimismo está alemão Ellery Studio, imbuído da filosofia ecoativista
na sua raiz mais profunda. «Basta de imaginar futuros do «solarpunk», desempenha um papel importante.
distópicos ou pós-apocalípticos», parecem clamar os Aí, cientistas e criadores visuais ou literários, ONG
autores destas e de outras histórias do género. Em vez e organizações educativas trabalham lado a lado,
disso, propõem um mundo que encontrou a solução pa- reunindo propostas para um futuro sem carbono e
ra o problema das alterações climáticas. Nas palavras de solidário: «Antecipar, compreender e agir: nós mol-
Alejandro Rivero-Vadillo, investigador do Departamen- damos o futuro», lê-se no seu site. Algo semelhante
to de Filologia Moderna da Universidade de Alcalá e um está a acontecer no Centro para a Ciência e a Ima-
dos poucos autores que, a partir do meio académico, se ginação da Universidade do Estado do Arizona, nos
interessou pelo fenómeno: «As ficções “solarpunk” que Estados Unidos. O centro reúne escritores e artistas
recorrem a estéticas multifacetadas e heterogéneas e a com engenheiros, cientistas e tecnólogos: «O centro
mensagens ecológicas, procuram visualizar futuros em funciona como uma rede de ideias arrojadas e um mo-
que a humanidade conseguiu ultrapassar (ou, pelo me- tor cultural para um otimismo ponderado», descreve
nos, sobreviver) as instabilidades climáticas geradas pela no seu site. Poderia ser uma declaração de princípios
hiperindustrialização planetária». para qualquer texto «solarpunk», e alguns dos seus
ASC
Cientistas, escritores e
artistas juntam-se para
imaginar um futuro otimista,
moldando-o com propostas
de solidariedade, ecologia
e reflexão.
80 SUPER
membros, como o escritor Andrew Dana Hudson,
«Cli-fi» ou ficção
aderem inequivocamente ao movimento. Sunshine científica climática, um
State, que poderíamos traduzir por O Estado do Sol,
é a sua primeira história inscrita no género. E serve emaranhado de géneros
para explicar o prefixo «solar» que acompanha o
movimento. Há uma referência óbvia à energia solar:
renovável, gratuita e facilmente explorável. Há quem
encontre referências atuais em movimentos existen-
O aquecimento global e as suas consequências fazem parte do
discurso quotidiano. Aparece na imprensa, em conversas in-
formais ou em estudos académicos... e a literatura não podia ficar de
tes, como o de Porto Rico, na sequência do furacão fora. Chamada «cli-fi» ou ficção científica climática, alberga uma lon-
Fiona, que causou grandes estragos no ano passado. ga lista de subgéneros que quase parecem uma piada: do «biopunk»
Os cidadãos mobilizaram-se para promover a utili- ao «Trumppunk» (sim, por causa de Trump). Mas todos eles tocam
zação da energia solar para fazer face à escassez... e, em temas muito sérios. Aqui estão alguns dos mais difundidos:
nesse processo, «desafiar a política colonizadora dos ● «Cyberpunk». Este é provavelmente o «pai» de todos os outros
atuais sistemas energéticos», como resume Stacey subgéneros. Autores como Philip K. Dick e William Gibson são
Balkan, professora assistente de Literatura Ambiental frequentemente citados como fontes de inspiração. Propõe um
e Ciências Humanas na Florida Atlantic University, futuro distópico como crítica aos nossos tempos atuais.
num artigo intitulado «Can solarpunk save the ● «Steampunk». Outro estilo pessimista com conotações nii-
world?» Dá o exemplo de uma organização que sur- listas: não há solução. Neste caso, olha para o passado para
giu na ilha, chamada Queremos Sol: «Procura uma questionar o presente; especificamente para a época vitoriana,
sociedade baseada não na escassez e na hierarquia, quando o vapor ainda era a principal fonte de energia. Alguns
mas na abundância e na igualdade». Uma frase que consideram A Máquina do Tempo, de H.G. Wells, como um texto
define na perfeição o lado mais político do movimen- «steampunk».
to «solarpunk»: a solidariedade aliada a um discurso ● «Smogpunk». Outro subgénero, menos difundido do que os
anticapitalista e contra as energias não renováveis. dois anteriores. Partilha com eles a resignação de quem não vê
Há mais exemplos: a empresa Verne Global, por seu saída. O termo inglês smog refere-se à nuvem baixa de dióxido
lado, apoia a transição, inerente ao «solarpunk», de carbono, fuligem, fumos e poeiras em suspensão que se for-
para uma energia cem por cento renovável. Ou a em- ma sobre as grandes cidades ou centros industriais. Há quem
presa americana Open Source Ecology, que partilha diga que é o mundo que nos espera se o «solarpunk» não agir
os desenhos das máquinas industriais que desenvolve com rapidez suficiente.
através do código aberto. Porque a ideia de comuni- ● «Hopepunk», ou o «punk da esperança». Tem muito em co-
dade é vital para o «solarpunk». Opõem-se muitas mum com o «solarpunk» e está cheio de personagens que lutam
vezes à figura do herói chamado a salvar o mundo: é o por uma mudança positiva e uma resposta comunitária aos
coletivo e a soma das ações — reais, imediatas — que grandes desafios do presente e do futuro.
conseguirão mudar as coisas.
ASC
Na imagem, uma
recriação da Fleet
Street de Londres
transformada pela
natureza, com zonas
privilegiadas para
peões e bicicletas.
SUPER 81
Um «solarpunk» imagina novos futuros em oposição ao
colapso ambiental e trabalha para os criar. O futuro em que
acreditamos será aquele que iremos habitar
O MOVIMENTO NASCE ONLINE E ENCONTRA O SEU MEIO NA- contos. A primeira antologia foi publicada no Brasil
TURAL DE PARTILHA DE IDEIAS E PROJETOS, com uma forte em 2012, com o título Solarpunk: Histórias ecológi-
componente DIY, o do it yourself (faz tu mesmo). cas e fantásticas em um mundo sustentável, outras
A pegada digital do conceito permite-nos traçar têm títulos como Sunvault: Histórias de Solarpunk
algo como uma arqueologia do mesmo nas suas vá- e Eco-Speculation. A editora deste título, Phoebe
rias facetas. Há uma referência precoce a ele num Wagner, uma ativa promotora do movimento e forte
site político chamado República das Abelhas, cujo defensora das suas implicações políticas, apelou há
autor propõe, já em 2008, um conceito então novo: alguns anos a autores deste tipo de histórias para que
«solarpunk», que ele opõe ao género de fantasia co- enviassem as suas narrativas; as selecionadas fariam
nhecido como «steampunk». Imagina um mundo parte da coleção de histórias Almanaque para o An-
alternativo onde o vapor e outras tecnologias da era tropoceno. Nos seus termos de referência, dizia-se:
vitoriana não foram substituídas pelo petróleo. «O «Um “solarpunk” imagina novos futuros à sombra
“solarpunk”», diz o seu autor anónimo, «também e em oposição ao colapso ambiental, e depois traba-
combina tecnologia nova e antiga, mas as suas ideias lha para criar esses futuros. Um “solarpunk” não se
não precisam de ser imaginárias. E eu espero um dia limita a ter ideias e crenças; um “solarpunk” entra
viver num mundo «solarpunk». Seriam precisos em ação». E acrescentou: «Não se trata do Woods-
seis anos para que um primeiro esboço de manifesto, tock do novo milénio. Entre as suas figuras mais
ou as Notas para Um Manifesto, como lhe chama o conhecidas encontra-se o escritor canadiano Cory
seu autor, Adam Flynn, fosse publicado noutro si- Doctorow. No seu livro Walkaway, este escritor de
te. É uma proposta para um futuro pós-hierárquico ficção científica imagina um mundo onde os «cami-
e pós-capitalista. Isso é bom. Como género literário, nhantes» se afastam da sociedade (e do trabalho, da
assume também a forma de uma série de coleções de família ou da propriedade) para conceberem e impri-
Manifesto Solarpunk
E m outubro de 2019, é publicado um
manifesto assinado pela «Comuni-
dade Solarpunk», inspirado no primeiro
correta de fazer «solarpunk». De facto, di-
ferentes comunidades em todo o mundo
adotam o nome e as ideias e constroem
culturas, religiões, capacidades, sexos,
géneros e identidades sexuais.
12. O «solarpunk» é a ideia de a humani-
projeto de manifesto escrito por Adam nichos de revolução autossustentável. dade alcançar uma evolução social que
Flyn em 2014 e noutros textos proemi- 6. O «solarpunk» dá ênfase à sustenta- abraça não apenas a mera tolerância,
nentes na Internet. É demasiado longo bilidade ambiental e à justiça social. mas uma compaixão e aceitação mais
para ser reproduzido (pode ser lido em 7. O nosso futuro passa pela reutilização completas.
www.re-des.org), mas aqui ficam algu- do que já temos e, se necessário, pela 13. A estética visual do «solarpunk» é
mas chaves: sua transformação para outra utilização. aberta e evolutiva. Os ambientes cons-
1. Somos «solarpunks» porque o otimis- Imagina que as «cidades inteligentes» truídos do «solarpunk» inspiram-se nos
mo nos foi retirado e estamos a tentar são substituídas por uma cidadania in- princípios do novo urbanismo ou do no-
recuperá-lo. teligente. vo pedonalismo e na sustentabilidade
2. Somos «solarpunks» porque as úni- 8. O «solarpunk» reconhece a ficção ambiental.
cas outras opções são o negacionismo científica, não apenas como entreteni- 14. O «solarpunk» prevê um ambiente
ou o desespero. mento, mas também como uma forma construído adaptado de forma criati-
3. Na sua essência, o «solarpunk» é de ativismo. va para, entre outras coisas, aproveitar
uma visão de um futuro que incorpo- 9. O «solarpunk» quer opor-se aos ce- os ganhos solares utilizando diferentes
ra o melhor que a humanidade pode nários de uma Terra moribunda, de um tecnologias. O objetivo é promover a
alcançar: um mundo pós-escassez, fosso intransponível entre ricos e po- autossuficiência e a vida dentro dos li-
pós-hierárquico e pós-capitalista, on- bres e de uma sociedade controlada por mites naturais.
de a humanidade se vê como parte da corporações. Não daqui a centenas de 15. No «solarpunk», parámos mesmo a
natureza e a energia limpa substitui os anos, mas agora mesmo. tempo de abrandar a lenta destruição
combustíveis fósseis. 10. O «solarpunk» tem a ver com a cul- do nosso planeta. Aprendemos a usar
4. O punk no «solarpunk» tem a ver com tura maker da juventude, com soluções a ciência com sabedoria para melho-
rebelião, contracultura, pós-capitalismo, e redes de energia locais, com formas rar as nossas condições de vida como
descolonialismo e entusiasmo. de criar sistemas autónomos que fun- parte do nosso planeta. Já não somos
5. O «solarpunk» engloba uma multipli- cionem. Trata-se de amar o mundo. senhores. Somos cuidadores. Somos
cidade de táticas: não existe uma forma 11. A cultura «solarpunk» inclui todas as jardineiros.
82 SUPER
VICENT CALLEBAUT
VICENT CALLEBAUT
Para o «solarpunk» e o seu eco-otimismo, o futuro é verde e urbano. Nas cidades, coexistem grandes edifícios cobertos de jardins verticais,
painéis solares nos telhados, etc. Os seres humanos partilham o espaço com a natureza, com outros animais e plantas.
mirem eles próprios as necessidades da vida a partir jardins verticais e painéis solares nos telhados, por
de materiais abandonados e convenientemente reci- exemplo. Um futuro onde as bicicletas convivem com
clados, criando as suas próprias roupas, alimentos ou a alta tecnologia e os seres humanos partilham o am-
abrigos. O que começa como uma pequena iniciativa biente com outros animais e plantas, mas também
torna-se, ao longo da história, num movimento cres- com micróbios, fungos... Cidades multiespécies é,
cente que ameaça o sistema capitalista... que procura precisamente, o título de outra antologia de histórias
destruí-lo. «Walkaway lembra-nos que o mundo «solarpunk» (é fácil encontrá-la em formato eletró-
que escolhemos construir é o mundo que iremos ha- nico, tal como as restantes compilações mencionadas
bitar», nas palavras de Edward Snowden. neste artigo): entre os protagonistas das suas histórias,
um pássaro curioso que descobre o prazer da jardina-
OS SEUS ADEPTOS EVITAM O PESSIMISMO INERENTE AO SEU gem juntamente com um adolescente, uma borboleta,
PRIMO E ANTECESSOR, O CYBERPUNK. Fazem-no por vá- um rato ou um mamute. «Porque é que nós, huma-
rias razões. Por um lado, acreditam que este último nos, pensamos que podemos ou devemos enfrentar a
foi fagocitado pelo sistema. Pelo sistema capitalista, crise ecológica sozinhos?», lê-se na introdução. «O
entenda-se. Lembremo-nos: estamos a falar de punk, conceito de multiespécie defende que só podemos
em suma. Trazem no seu ADN o discurso antissistema. realmente compreender o mundo se olharmos para a
Mas esqueçamos os brasões e os chapéus de couro. A forma como os seres humanos e as outras formas de
estética «solarpunk» inspira-se na Arte Nova e no vida estão mutuamente relacionados.» Uma afinidade
Arts and Crafts. Inspira-se na natureza destes mo- que depende muitas vezes da utilização da tecnologia,
vimentos artísticos do final do século XIX e início por exemplo, para traduzir as emoções e as memórias
do século XX e acrescenta-lhes tecnologia do século das pessoas e das outras espécies. No debate entre a
XXI... e de um futuro imaginário, claro. A ciência e a filia e a fobia da tecnologia, o fenómeno «solarpunk»
tecnologia são, para este movimento, aliadas na luta está claramente entre as primeiras. O investigador
contra as alterações climáticas. Não promovem uma Alejandro Rivero-Vadillo, da Universidade de Alcalá,
inversão — como fazem subgéneros relativamente re- explica-o nestes termos, num artigo publicado no ano
lacionados, como o «steampunk» — mas um grande passado na New Pacific Review: «Estes novos imagi-
salto em frente para um mundo onde a tecnologia e nários especulativos pretendem representar espaços
a solidariedade conseguiram inverter os efeitos do em que os esforços produtivos globais deixam de se
Antropoceno na atmosfera e no ambiente. Enquanto centrar no crescimento económico que carateriza o
outras ficções especulativas imaginam um futuro do capitalismo tardio e se orientam para a criação de tec-
tipo Blade Runner — sombrio, poluído e dominado nologias eficazes que resolvam os problemas derivados
por uma tecnologia inimiga da liberdade —, no eco-o- das alterações climáticas». Sustentabilidade aliada ao
timismo deste movimento, o futuro é verde. E urbano. progresso tecnológico, mudança social com a soli-
Propõem uma utilização criativa dos ambientes exis- dariedade como núcleo ativo... e que o «solarpunk»
tentes: grandes edifícios com fachadas cobertas por salve de facto o mundo. e
SUPER 83
C R I M I N O L O G I A
Os spree killers
SHUTTERSTOCK
são definidos
pelo FBI como
«máquinas de
matar». Depois
de uma vítima,
procuram outra,
não deixando
passar muito
tempo entre um
assassínio e o
seguinte.
84 SUPER
SPREE
KILLERS
O LABIRINTO MENTAL DO
ASSASSINO FRENÉTICO
Embora possam ser
mentalmente perturbados,
estes assassinos em série estão
bem conscientes do alcance
das suas ações. Quais são
as verdadeiras motivações
destes indivíduos, porque é que
matam, e será possível prever
um comportamento comum a
todos eles?
SUPER 85
D
escritos pelo FBI como má- com a avó, comprou uma arma em Albacete e, em 20
quinas de matar devido ao de outubro de 2012, foi ter com Almudena, que estava a
alcance e à frieza com que passear com uma amiga.
atuam, os spree killers, ou Quando a menor se recusou a acompanhá-lo, segun-
assassinos frenéticos, são ca- do ele, para falar, disparou 15 vezes contra ela e, na sua
pazes de matar por dinheiro, fuga pelas ruas de El Salobral, disparou contra outro vi-
sexo ou simplesmente por zinho, Agustín Delicado, que também morreu. E depois
raiva em ataques rápidos e de ferir o avô da rapariga, barricou-se na quinta da fa-
violentos. Podem agir durante mília, onde guardou várias armas de fogo. Cercado pela
minutos, horas ou dias, per- Guardia Civil e depois de o negociador ter tentado que
correndo zonas que conhecem Alfaro se rendesse, abandonou a quinta no segundo dia
bem e partindo do princípio de que serão abatidos pela e suicidou-se com um tiro na cabeça.
polícia num confronto final. Juan Carlos Alfaro é o que em criminologia se define
«Tudo o que fiz, tal como a minha gente, foi fazer-te como spree killer ou assassino frenético, uma categoria
o melhor que pude, porque te achei uma boa pessoa, e criminal muito pouco estudada, dada a sua escassa ca-
sempre senti que toda a gente tinha sido injusta contigo suística e porque a maioria deles acaba por se suicidar
e eu só te queria fazer sentir bem». Com estas linhas, ou deixar que a polícia os mate, o que é conhecido como
que fazem parte de uma carta mais longa, Juan Carlos «suicídio por polícia».
Alfaro, um mecânico desempregado de 39 anos, tentou
trazer de volta para o seu lado Almudena, uma rapariga O PRIMEIRO ESTUDO CIENTÍFICO APROFUNDADO SOBRE ELES TE-
de 13 anos com quem se envolveu romanticamente du- VE INÍCIO EM 1978, quando Robert Ressler e John Douglas,
rante oito meses no bairro de El Salobral, em Albacete. então agentes da Unidade de Ciências do Comportamen-
A relação nunca foi bem recebida pela família da ra- to do FBI (Federal Bureau of Investigation), obtiveram
pariga e Alfaro, consciente dos problemas legais que financiamento do Departamento de Justiça dos Estados
poderia causar, obrigou-a a assinar o seguinte texto: «Eu, Unidos para continuar as entrevistas que já estavam a
Almudena Márquez, de 13 anos de idade, consinto volun- realizar em privado, nas prisões, com vários assassinos
tariamente em manter relações sexuais com Juan Carlos condenados. O título do estudo era Projeto de Investi-
Alfaro». Alguns meses antes, tinha pedido, sem sucesso, a gação sobre a Personalidade Criminal e o objetivo era
mão da rapariga à avó e à pessoa que cuidava dela. compreender as motivações e os comportamentos de
Finalmente, a rapariga deixou Alfaro e ele começou a vários assassinos, incluindo violadores sádicos, assas-
assediá-la, ao ponto de a ameaçar de morte em frente de sinos em série, homicidas familiares, líderes de cultos
vários vizinhos. E assim o fez. Depois de uma discussão destrutivos....
EFE
ASC
EFE
86 SUPER
Assassinos em massa
A lém dos serial killers e dos spree kil-
lers, há uma terceira categoria de
assassinos múltiplos, os chamados as-
assassinos em massa não explodem,
não atuam a partir de uma chama as-
sassina incontrolável. Pelo contrário,
pessoas com um longo historial de frus-
tração e fracasso. São pessoas solitárias,
socialmente isoladas, que estão tão de-
sassinos em massa. Os seus ataques planeiam o seu ataque com dias ou mes- sequilibradas por um acontecimento
ocorrem sobretudo num único local de mo meses de antecedência, preferindo da vida, como um divórcio ou um des-
crime, como um liceu, uma universidade armas de fogo, às quais têm fácil acesso, pedimento, que não conseguem lidar
ou uma discoteca. Neste caso, tendem para causar o maior número possível de com ele, decidindo morrer matando as
a matar aqueles que culpam pelas suas vítimas. O que têm em comum com os pessoas que culpam pelos seus infortú-
próprias misérias, sendo a vingança spree killers é a tendência para se sui- nios. São casos como o assassinato de
o seu motivo habitual. Pode ser uma cidarem no final do ataque. Segundo 28 pessoas na escola primária de Sandy
vingança específica, se atacar alvos pré- Leyton, «porque estão conscientes de Hook, em 2012; o atentado na ilha no-
-selecionados; uma vingança de classe, que a sua situação não vai melhorar e rueguesa de Utoya, que fez 77 mortos
se for dirigida a um grupo específico; ou veem a sua agressão como o último ato em 2011, perpetrado por Anders Breivik;
uma vingança contra o mundo, se sele- das suas vidas». Para este investigador ou o mais recente massacre na escola
cionar as vítimas indiscriminadamente. e outros especialistas, como o crimino- primária Robb, em Uvalde, em 2022, em
Como cita o antropólogo social Elliott logista Jack Levin e o sociólogo James que 21 pessoas foram mortas e outras
Leyton no seu livro Human Hunters, «os Alan Fox, os assassinos em massa são 17 ficaram feridas.
Como conta Ressler no seu livro Serial Killers, a elemento-chave é a ausência de arrefecimento emocio-
condição que lhes foi imposta por James McKenzie, nal, pois é isso que diferencia o spree killer do serial
diretor-adjunto do FBI, era a de contar com a participa- killer, uma vez que este último também mata duas ou
ção de «universidades e hospitais de primeira classe». mais pessoas em eventos distantes entre si no tempo,
E assim foi. Orientados pela Dra. Ann Burgess, profes- mas no seu caso com um período de arrefecimento.
sora de Enfermagem Psiquiátrica de Saúde Mental na Este é entendido como o desaparecimento do impulso
Escola de Enfermagem da Universidade da Pensilvânia e do agressor para matar, o que lhe permite voltar às suas
diretora-adjunta dessa especialidade no Departamento tarefas quotidianas até sentir novamente o impulso.
de Saúde e Hospitais de Boston, conceberam um ques- Nos spree killers não existe esse arrefecimento emocio-
tionário de 57 páginas para ser preenchido após cada nal, pelo que a sua ativação homicida permanece latente
entrevista na prisão. «Descrevemos a metodologia de na sua mente, sempre à procura da próxima vítima. Por
cada crime e o cenário correspondente, e estudámos esta razão, o FBI define-os como «máquinas de matar».
e documentámos o comportamento antes e depois da O que desencadeia o seu humor homicida é ainda
agressão», explica John Douglas no seu livro Mindhun- desconhecido, mas tem sido apontado que os assassi-
ter (Editorial Presença, 2023). nos múltiplos são afetados por um acontecimento da
Após três anos de investigação, durante os quais vida que é comum a todos nós, mas que eles interpre-
entrevistaram 36 reclusos e analisaram dados de 118 ví- tam como traumático e insuperável, seja um divórcio,
timas, publicaram as suas conclusões em dois livros que um desgosto, uma traição... Aquilo a que Robert Ressler
continuam a ser uma referência para a compreensão da
mente criminosa: Sexual Homicide: Patterns and Mo-
ASC
SUPER 87
GETTY
GETTY
Em cima, à
ASC
esquerda, a casa
de Gianni Versace
(à direita) em
South Beach,
Miami. Em baixo,
à esquerda,
Andrew Cunanan,
o assassino do
estilista italiano. À
direita, o atirador
de Maryland, John
Allen Muhammad,
momentos antes
de ser condenado
GETTY
à morte.
chama «stressores pré-crime». «As pessoas normais graças à documentação deixada em casa pelo assassino,
sabem como lidar com estes problemas e fazem-no com a polícia começou a procurá-lo. Entretanto, Cunanan
a ajuda de um conjunto de recursos aprendidos duran- dirigiu-se para Chicago, onde, a 4 de maio, torturou e
te o desenvolvimento normal da personalidade. Nos matou o magnata do imobiliário Lee Miglin, outro an-
potenciais assassinos, porém, estes padrões são defei- tigo cliente. O corpo foi amarrado e amordaçado numa
tuosos, tal como os mecanismos mentais para lidar com cadeira e esfaqueado várias vezes no peito e na gargan-
os acontecimentos stressantes», escreve Ressler. ta. Depois de preparar uma refeição e tomar um duche,
o assassino roubou o carro de Miglin, o que permitiu à
SEM DÚVIDA, UM EXEMPLO CLARO DE UM ASSASSINO FRENÉTI- polícia localizá-lo. Mas isso não foi suficiente para o im-
CO FOI ANDREW CUNANAN. O seu nome está associado ao pedir de matar o vigilante do cemitério, William Reese,
assassínio do estilista Gianni Versace, embora o seu per- só para lhe roubar o carro, pois Cunanan soube que a
curso homicida tenha começado vários meses antes. polícia tinha identificado a matrícula.
Oriundo de uma família humilde, Cunanan era um Durante várias semanas, conseguiu passar despercebi-
jovem muito inteligente, mas também mentiroso e mani- do na zona gay de South Beach (Miami), até que, a 16 de
pulador, que nos seus tempos de estudante universitário julho, esperou que o estilista Gianni Versace saísse de ca-
manifestava abertamente a sua homossexualidade. Con- sa para o matar com dois tiros à queima-roupa na nuca.
sumidor habitual de drogas, sempre quis pertencer a uma Uma semana depois, Cunanan suicidou-se a tiro dentro
classe social elevada, à qual teve acesso através de relações de um barco-casa quando foi encurralado pela polícia.
sexuais com homens milionários que lhe pagavam os seus
vícios e um elevado nível de vida. No entanto, Cunanan EM CUNANAN, ENCONTRAM-SE OUTRAS DAS PRINCIPAIS
nunca conseguiu ou quis ter uma vida normal ou man- CARATERÍSTICAS DO SPREE KILLER, DEFINIDAS PELO FBI: co-
ter uma relação sólida e, pouco a pouco, os seus amantes metimento de múltiplos homicídios num curto espaço
abandonaram-no, cansados das suas mentiras. de tempo, conhecimento pela polícia da identidade
Em 27 de abril de 1997, Cunanan invadiu a casa de Jef- do agressor desde o primeiro crime, comportamen-
frey Trail, um ex-militar e seu antigo cliente sexual, em to de fugitivo, ocultação em zonas que conhece bem e
Minneapolis, e matou-o à martelada. Escondeu o corpo suicídio final. Quanto ao motivo, parece que os crimes
num guarda-roupa, embrulhado num tapete, e espe- de Cunanan foram motivados principalmente por vin-
rou pela chegada do seu parceiro, um homem chamado gança contra homossexuais pertencentes a uma classe
David Madson, alegado amigo de Cunanan que se tor- superior, embora tenha havido alguns homicídios de
nou a sua segunda vítima mortal. O corpo de Madson mera oportunidade, como o cometido contra o vigi-
foi encontrado na margem do lago Rush a 3 de maio e, lante do cemitério. Nos spree killers, os motivos dos
88 SUPER
ASC
Nos spree killers, geralmente,
a primeira vítima é escolhida
e as restantes chegam de
forma aleatória
Abdelhuajed
assassínios são variados, incluindo o lucro, o sexo ou a Fatdar, o jovem
simples raiva. marroquino que se
refugiou em
O que distingue o caso de Cunanan é a seleção das
Espanha e matou
vítimas. Quase todas eram conhecidas de Cunanan, várias pessoas.
ao passo que a norma dos assassinos frenéticos é que a
primeira vítima seja escolhida e as seguintes chegam ao
acaso ou porque são pessoas que atrapalham a sua fuga,
sejam conhecidos ou desconhecidos.
Por esta razão, os spree killers são também designa- sonazition and Concurrent Instrumental Violence, que
dos por assassinos itinerantes, sendo comum utilizarem não se deve dar tanto ênfase à questão do arrefecimento
veículos para cometerem os seus crimes em locais dis- emocional, mas sim ao facto de os ataques serem rea-
tantes. Nestes casos, o assassino segue um itinerário lizados em locais diferentes, com pouco ou nenhum
previamente planeado, em maior ou menor grau, que tempo entre eles, e corresponderem a um único evento.
pode deixar em aberto em função dos acontecimentos. O criminologista Alberto Pintado também defende a
Em 2 de outubro de 2002, um homem foi morto a ti- utilização de definições mais simples, como a que cons-
ro nos subúrbios de Wheaton, Maryland. Inicialmente, ta no seu livro Análisis criminológico de los asesinos
considerou-se a hipótese de uma tentativa de assal- en serie: «Assassinos itinerantes, ou spree killers,
to ou de ajuste de contas, mas no dia seguinte, quatro seriam aqueles que cometem vários homicídios num
outras pessoas foram mortas em circunstâncias idênti- curto espaço de tempo, sem necessidade de um período
cas, todas em zonas distantes de Maryland, alvejadas à de reflexão, deslocando-se de um local para outro pa-
distância e enquanto realizavam atividades quotidianas ra perpetrar os seus crimes, sem ter de escolher as suas
como abastecer o carro ou ir aos correios. Soou o alarme vítimas».
de um possível assassino errante. A questão é que, se assim fosse, seria muito difícil ca-
E assim foi. Os ataques e as mortes continuaram du- talogar casos como o de Abdelhuajed Fatdar Nali, um
rante todo o mês de outubro, causando terror em zonas marroquino que chegou a Espanha com apenas 14 anos,
de Maryland, Virgínia e Washington DC. Até ao dia 24 através de centros de acolhimento. De Zamora foi parar a
do mesmo mês, quando a polícia prendeu os autores, Salamanca, depois de ter sido expulso por mau compor-
John Allen Muhammad, 42 anos, e o seu filho adotivo tamento do centro da ONG Mensajeros de la Paz, onde se
Lee Boyd Malvo, 17 anos. encontrava. Vivendo mal em apartamentos partilhados e
Durante esse mês, os dois viajaram numa carrinha traficando droga, em 23 de fevereiro de 2003 atacou na
que Muhammad tinha adaptado para poder disparar a rua o padre Juan José Gómez, cujas causas ainda não fo-
partir do interior com a sua espingarda de atirador fur- ram esclarecidas. Levou o corpo para o seu apartamento
tivo, para o que tinha sido treinado durante o serviço e escondeu-o num armário, com as mãos e os pés atados
militar na Guerra do Golfo. Seguiram uma rota planeada e a cabeça coberta por um saco de plástico, o que indicia
por Muhammad, o que lhes permitiu causar 10 mortes e que o padre ainda estava vivo nessa altura.
três feridos. No entanto, nenhuma das vítimas se colo- Depois de vaguear sem destino, chegou a Zamora a 2
cou no seu caminho e ambos sobreviveram à detenção, de março, onde, na madrugada de 4 de março, entrou
talvez por terem sido apanhados a dormir no seu veícu- na sede da ONG Mensajeros de la Paz, graças à chave que
lo numa área de serviço. ainda tinha na sua posse, e atacou a educadora María Au-
xiliadora Vázquez, a quem tinha jurado matar devido a
E, NO ENTANTO, NEM TODOS OS SPREE KILLERS TÊM SEMPRE AS desentendimentos anteriores. O seu corpo foi encontrado
MESMAS CARATERÍSTICAS. Por isso, alguns autores falam na cave do edifício, amordaçado e amarrado. Uma vez na
da possibilidade de se falar em híbridos com os serial rua, pediu a um amigo que lhe emprestasse um carro para
killers e até de serial killers que acabam por se trans- fugir, mas como não o conseguiu, apanhou um táxi, cujo
formar em spree killers na sua forma de atuar. Entre condutor esfaqueou no pescoço para roubar o veículo.
as questões que são discutidas está o tempo que deve A polícia prendeu-o minutos depois, quando se
decorrer entre um crime e outro. Se o intervalo for de despistou nas imediações da catedral. De acordo com
minutos ou horas, é muito provável que não exista um a sentença proferida pelo Tribunal Provincial de Za-
período de arrefecimento; o problema surge com inter- mora, Fatdar não sofria de qualquer doença mental
valos de tempo de dias ou mesmo semanas, em que é que o impedisse de ter consciência dos seus atos. Isto
difícil provar que o criminoso manteve uma ativação também é comum nos spree killers, porque, embora
emocional constante e inalterada que o levou a matar. muitos tendam a alegar distúrbios mentais, os exames
Assim, para evitar possíveis confusões, investigado- psiquiátricos mostram que estavam perfeitamente
res como Matt DeLisi e Glenn Walters defendem, em conscientes do alcance das suas ações e que agiram em
artigos como Multiple Homicide as a Function of Pri- conformidade. e
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A R T E
90 SUPER
Phyllis e Caravaggio
ASC
em A Arte de Milo
Manara (2023).
MODELOS
NA
HISTÓRIA
DA
ARTE
Por detrás das obras dos maiores artistas está a história dos seus
modelos, por vezes amantes, prostitutas ou esposas. Muitas foram
verdadeiras musas que, para além da sua beleza, inspiraram as
obras mais representativas da história da arte. Elas encarnavam
virgens, heroínas, deusas, santas e personagens mitológicas.
Plutarco ofereça
outra explicação
igualmente plausí-
vel, afirmando que
se trata de uma simples
alcunha que se refere à
cor azeitonada da sua
pele, que coincide com
o tom castanho-azei-
tona destes anfíbios.
Durante as festas
eleusinas, Phryne
costumava tomar
um banho ritual no
mar, mostrando-
-se nua para todos
verem; e a tradição
diz que a sua con-
templação inspirou
Apeles a pintar a
sua famosa Afro-
dite Anadiómena
(Vénus emergindo
Cópia romana da
Afrodite de Cnido
(séc. IV a. C.); o
ASC
original de
Praxiteles foi
posado por Friné,
uma famosa
hetaira da Grécia
antiga.
92 SUPER
Friné diante do Areópago (1861), de Jean-Léon Gérôme. Friné é o
arquétipo da Afrodite grega e da Vénus romana, um exemplo de
beleza clássica.
ASC
ASC
SUPER 95
ASC
ASC
SUPER 97
ASC
ASC
aquela que é conhecida como a «profissão mais antiga À esquerda, Camille Clau-
do mundo». Comecei este texto citando Phyllis, uma del e Auguste Rodin em A
das prostitutas que, juntamente com outras colegas de Arte de Milo Manara, ao
profissão, como Anna Bianchi, serviram de modelos centro, Suzy Solidor e Ta-
para Caravaggio. Mas há muitas mais: as protagonis- mara de Lempicka em A Ar-
te de Milo Manara. A cantora
tas do quadro Les Demoiselles d’Avignon (1907), de
foi modelo de vários artis-
Pablo Picasso, eram as trabalhadoras de um bordel da tas, incluindo Lempicka,
rue Avinyó . Pablo Picasso, Bra-
O sempre corrosivo George Grosz reflete a mes- que, Dufy, Fujita e
quinhez e o declínio da sociedade alemã antes do Picabia. À direita,
nazismo, utilizando como modelos as prostitutas que a escultura O Bei-
encontrava nos bordéis mais sórdidos que ele próprio jo (1882) de Au-
ASC
frequentava, etc.. guste Rodin, para
a qual Camille Claudel foi
MULHERES PINTORAS E MODELOS. Gostaria de terminar es- também modelo. A escultora serviu também de mo-
delo para várias figuras de A Porta do Inferno.
te artigo com uma breve referência às mulheres que,
sendo elas próprias artistas, posaram como modelos
para outras, ou que utilizaram modelos femininos para
os seus trabalhos .
Sem dúvida, o caso mais notável é o de Artemisia Gen-
tileschi, que, com a ajuda de um espelho, posou como permanece sob o olhar míope de Rodin que, de mui-
modelo para as suas próprias obras, incluindo telas to perto, perscruta cada centímetro dos seus corpos
tão conhecidas como Judite decapitando Holofernes entrelaçados». Manara segue também o grupo de es-
(1620-1621), ou o seu Autorretrato como alegoria da pecialistas que acreditam que o modelo da Vénus ao
pintura (1630). Espelho de Diego Velázquez (1647-1651) não é outro
Outra artista que posou foi a escultora Camille senão a pintora romana Flaminia Trivio, razão pela
Claudel. Foi o modelo de várias figuras femininas em qual ele a retrata a trabalhar num desenho a carvão.
A Porta do Inferno (1880-1917) de Rodin, em cuja rea- Para terminar este texto, gostaria de citar o caso de
lização participou também como artista. É também o Suzy Solidor, a famosa cantora que adorava posar e que
modelo da famosa escultura O Beijo (1882) . exibia os seus melhores retratos em público durante
Milo Manara evoca a criação desta escultura com uma os seus concertos. Ela foi pintada por artistas como
ilustração soberba acompanhada destas palavras: «Ca- Pablo Picasso, Georges Braque, Raoul Dufy, Fujita,
mille Claudel posa nua nos braços de um jovem tão nu OthonFriesz, Picabia e Van Donghen, e por uma mu-
como ela, os seus lábios pousados nos dele, enquanto lher, Tamara de Lempicka. e
98 SUPER
O QUE VEIO PRIMEIRO,
A GALINHA OU O OVO?
5,50 €
(Cont.)
x(4B4CD7*KKMOKT( +”!z!%!”!@
NÚMERO 303
MENSAL ○ JULHO 2023
ENTREVISTA
NUNO MAULIDE
A QUÍMICA ORGÂNICA
SEM COMPLEXIDADE
PÁG. 42
GUERRA
PORTUGAL NA
1ª GUERRA MUNDIAL
PÁG. 80
TECNOLOGIA
SERÁ QUE ALGUMA
VEZ VEREMOS A
FUSÃO NUCLEAR A
FUNCIONAR?
PÁG. 36
HISTÓRIA
A ÚLTIMA NOITE
DE GIACOMO
CASANOVA
PÁG. 88
CRIMINOLOGIA
PORQUE É QUE
AS CRIANÇAS
MORFOLOGIA
MATAM?
PÁG. 74
GALÁCTICA
N.º 303
PORTUGAL NA
QUE FORMA TÊM AS GALÁXIAS E PORQUÊ? 1ª GUERRA MUNDIAL
39 E/ano 19 E/ano