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NÚMERO 311

MENSAL ○ MARÇO 2024

FÍSICA QUÂNTICA ENTREVISTAS


A INVERSÃO ANA MARIA PINTO
DO FLUXO DO TEMPO E CARLOS FIOLHAIS
PSICOLOGIA ARTE NÁUTICA
PODEMOS TER SAUDADE DO QUE CENTRO DE ARTES
NÃO FOI VIVIDO? NÁUTICAS DE VILA
DO CONDE
FILOSOFIA
O DEUS DE EINSTEIN

NEUROCIÊNCIA

MENTES SINCRONIZADAS
QUANDO VIVER JUNTOS CONECTA OS NOSSOS CÉREBROS
ND A
A!
VE R
À AGO

VIVER A HISTÓRIA
COM PAIXÃO

EDIÇÃO BIBLIOTECA
EDIÇÃO BIBLIOTECA EDIÇÃO BIBLIOTECA
SAUDADE NA LITERATURA E ARTE PORTUGUESAS
PORTUGAL ÉPOCA DE OURO DA EXPANSÃO MARÍTIMA

CELTAS GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS

PORTUGAL CELTAS
ÉPOCA DE OURO DA EXPANSÃO MARÍTIMA

Descubra, pela pena de alguns dos


mais conhecidos investigadores
SAUDADE
NA LITERATURA E ARTE PORTUGUESAS
GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS
Mergulhe na Idade do Ferro
e descubra uma das culturas
portugueses, a época de Ouro dos mais fascinantes da Europa, a
Descobrimentos e da expansão Saiba mais sobre o tão celebrado Celta, pelas mãos de grandes
marítima portuguesa. conceito de Saudade espelhado na especialistas.
grande tradição literária portuguesa,
desde há 800 anos.
NotíciasFlix

EDITORIAL

Mentes sincronizadas e silêncios audíveis


C
arl Jung cunhou o termo «sincronicidade» para explicar a simultaneidade de dois acontecimentos
ligados por um significado, mas de uma forma não causal, fora de qualquer correlação e sem fato-
res determinantes. Referia-se a acontecimentos externos que encontram um certo paralelismo com
os processos internos do indivíduo que os vivencia e que, por isso, os perceciona como plenos de significa-
do. O psiquiatra suíço chegou à conclusão de que existe uma ligação íntima entre a pessoa e o seu ambiente
que, em determinadas circunstâncias, provoca uma «atração» que cria acontecimentos coincidentes cheios
de simbolismo e significado, algo como uma manifestação externa do inconsciente coletivo. Hoje em dia,
existem vários estudos científicos que corroboram a sincronia no ritmo e na frequência
das ondas cerebrais de pessoas que, por exemplo, trabalham juntas (é a tal «telepa-
tia», o tal «eu ia dizer isso agora mesmo» que todos nós já experimentámos em algum
momento). A nossa reportagem de capa aborda este tema fascinante, mas não posso
deixar de chamar a atenção para outros: Podemos ouvir o silêncio? é um artigo do cam-
po da neuropsicologia de grande interesse para os nossos leitores, bem como «Animais
Moldados pelas Alterações Climáticas» que nos mostra como a nossa ação sobre o cli-
ma modifica até o corpo dos animais. Um destaque também para o artigo do Centro de
Artes Náuticas de Vila do Conde e para as entrevistas a duas personalidades portugue- Carmen Sabalete,
diretora
sas de especial valor criativo e científico junto da comunidade. Aprecie a leitura! csabalete@zinetmedia.es

Mais SUPER no seu quiosque:


NÚMERO 1 ○ ABRIL 2023

INTERESSANTE

EDIÇÃO BIBLIOTECA EDIÇÃO BIBLIOTECA EDIÇÃO BIBLIOTECA


PORTUGAL ÉPOCA DE OURO DA EXPANSÃO MARÍTIMA
SAUDADE NA LITERATURA E ARTE PORTUGUESAS

CELTAS GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS

JÁ HOUVE UM TSUNAMI
EM PORTUGAL?
Que sermão deu
Santo António
aos peixes?
Que países foram fundados

CELTAS
por ex-escravos?
É legal que a minha renda

SAUDADE
seja revista em concordância
com o IPC?

NA LITERATURA E ARTE PORTUGUESAS


PORTUGAL
ÉPOCA DE OURO DA EXPANSÃO MARÍTIMA GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS 1
Cor nos animais - para
namoriscar ou para
assustar?
Quando é que ocorre o
crime de peculato?

E mais 150 Perguntas e Respostas


Júlio César
tinha um
piercing?

Chefe do Executivo: Marta Ariño


Responsável financeiro: Carlos Franco
GABINETE EDITORIAL Diretor Comercial: Alfonso Juliá
Direção: Carmen Sabalete Abigail Campos, Ivone Pereira, (ajulia@zinetmedia.es)
(csabalete@zinetmedia.es). Pedro Brochado, Ángel L. León, Diretor de Desenvolvimento Empresarial:
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Sumário

84
ASC

REPORTAGENS 50 Animais afetados pelas ENTREVISTAS


8 Anemoia, um conceito de alterações climáticas 22 Ana María Pinto
Como modificam o seu comportamento e tam-
saudade do que não foi vivido bém a sua anatomia para fazer face ao clima. A Arte em conexão com a Natureza.
Esta palavra desconhecida define quando
sentimos falta de um passado irreal. 56 Cadáveres nas sombras 64 Carlos Fiolhais
O tráfico de cadáveres era um negócio A ciência é um desvendar constante dos
16 Mentes sincronizadas muito lucrativo para os bandos mistérios do mundo.
Dependendo dos estímulos auditivos, as organizados.
ondas cerebrais podem ser sincronizadas .
RÚBRICAS
68 Mundos virtuais 6 Falar de ciência
26 Inverter a seta do tempo A realidade virtual pode oferecer os
M. A. Sabadell escreve sobre Avi Loeb.
É possível ir para o passado e para o futuro benefícios psicológicos da experiência real.
em simultâneo?
78 O futuro já cá esteve 62 Tecnocultura
32 O genoma definitivo A ficção científica imaginou aquilo em que Javier Moreno e A morte térmica do gosto.
A sequência de DNA é o que nos torna vivemos.
únicos e irrepetíveis: é o número da vida. 74 Motor
84 Einstein, religião Notícias do setor automóvel por José
38 Podemos ouvir o silêncio? cósmica e ciência Manuel González.
É percetível ou apenas a ausência de som? Para o físico alemão, a criação era o maior
e mais espantoso mistério da ciência. 90 Matrizes e matrazes
44 Centro de Artes Sophie Germain, por E. M.Fernández Aguilar.
Náuticas de Vila do Conde 92 Dançar entre os mortos
Técnicas tradicionais de construção e O culto sagrado do povo Toraja na Indonésia, 98 Lágrimas ou Dilúvios
reparação naval em madeira. que é celebrado no final da colheita. Conto por Óscar Curieses.
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CURIOSIDADE FALAR DE CIÊNCIA...

O CAÇADOR DE EXTRATERRESTRES
TÃO GENIAL QUANTO CONTROVERSO, O FÍSICO NORTE-AMERICANO AVI LOEB ANDA À CAÇA DE
INTELIGÊNCIA E TECNOLOGIA ALIENÍGENAS. E EMBORA AS SUAS TEORIAS POSSAM PARECER
UM POUCO ESTRANHAS, A COMUNIDADE CIENTÍFICA TEVE DE LHE DAR RAZÃO.

Abraham «Avi»
Loeb respondeu à
descoberta de um
objeto em forma
de charuto que
viajava nas
proximidades do
Sol: era um pedaço
da vela solar de
uma nave espacial
extraterrestre.
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vi Loeb é um nome bem co- proximidades do Sol. Os astrónomos co- os astrónomos chamam uma aceleração

A nhecido na comunidade as-


tronómica. É diretor do De-
partamento de Astronomia
meçaram por pensar que se tratava de
um cometa, depois de um asteroide, mas
observações posteriores revelaram que se
não-gravitacional; por outras palavras,
algo estava a mudar a sua velocidade.
Muitas tentativas foram feitas para ex-
da Universidade de Harvard há quase tratava do primeiro objeto celeste cuja plicar esse movimento sincopado, mas
uma década, onde detém a cadeira Frank origem se encontrava fora do nosso sis- nenhuma como a proposta por Avi Loeb
B. Baird de Ciência. Os seus colegas co- tema solar. Batizado de ‘Oumuamua (do e Shmuel Bialy: a culpa era da pressão
nhecem bem a sua carreira brilhante, mas havaiano «explorador»), é um viajante de radiação da luz.
pouco ortodoxa, propondo ideias que interestelar. A União Astronómica Inter-
raiam o extravagante, como a de que as nacional, que atribui nomes aos planetas, A IDEIA DE QUE A LUZ PODE EXERCER UMA
estrelas se deslocam no universo a veloci- asteróides e cometas, teve de inventar PRESSÃO pode parecer-nos fantasiosa,
dades próximas da velocidade da luz. Até uma nova classificação: o Oumuamua le- porque nunca nenhum de nós foi atingi-
2017, essa heterodoxia estava centrada varia a letra I de interestelar e o número do por um raio de sol ao sair à rua, mas
na astrofísica, mas 1 por ser o primeiro do seu género: 1I. é de facto verdade. De facto, as estrelas
em outubro desse Mas o que o tornava tão peculiar não mantêm a sua estrutura em parte devido
ano tudo mudou: os era apenas a sua forma (reminiscente à pressão da radiação dos fotões gerados
nossos telescópios da nave espacial alienígena do roman- no seu centro. Mas como é que a luz do
encontraram um es- ce de Arthur C. Clarke Rendez-vous com Sol pode alterar a trajetória de uma ro-
tranho, pequeno e Rama, que tinha a mesma forma), mas cha espacial? Muito facilmente, responde
pouco luminoso ob- também o facto de o seu movimento ser Loeb: porque ‘Oumuamua não é uma ro-
POR MIGUEL ÁNGEL
jeto em forma de incompatível com as leis da mecânica cha, mas um pedaço de vela solar de uma
SABADELL charuto a viajar nas celeste.’Oumuamua exibia aquilo a que nave espacial extraterrestre.
Físico

6 SUPER
As velas solares (ou solar sailing) são
um método de propulsão baseado na
pressão da radiação. Tal como os barcos à
vela, os fotões de luz impulsionam suave-
mente a nave através do espaço. As velas
são um espelho com grande poder de re-
flexão e devem ser enormes: para trans-
portar um quilo de peso a uma aceleração
de 30 km/h por segundo é necessária uma
vela de um quilómetro quadrado (o tama-
nho do ‘Oumuamua encaixa perfeitamen-
te). Não é um modo de propulsão caro; os
componentes básicos da vela solar estão
nas nossas cozinhas: folha de alumínio e
aquele plástico fino que usamos para em-
brulhar os alimentos.
Obviamente, a comunidade científica
O primeiro objeto
não levou a sua proposta a sério, mas Loeb celeste proveniente do
não desanimou e, em 2019, ele e o seu exterior do nosso
aluno de doutoramento Amir Siraj publica- sistema solar foi
ram que tinham descoberto outro viajante designado por
‘Oumuamua, palavra
interestelar através do catálogo de meteo- havaiana que significa
ritos terrestres da NASA. Em particular, a «explorador».

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sua aposta foi um bólide de meio metro
que entrou na atmosfera da Terra em ja-
neiro de 2014 e foi registado pelo Coman-
do Espacial dos EUA — que monitoriza os mais pesados pelo impacto de raios cósmi- uma caraterística peculiar do genoma do
céus para potenciais ameaças. E o mais cos de alta energia. «É um sinal de viagem bacteriófago X174, um vírus que infeta a
maravilhoso: terá caído perto da ilha de interestelar», diz Loeb. Até o ferro presen- famosa E. coli e é uma estrela da biologia
Manus, na Papua Nova Guiné. Para Loeb, te nestas esférulas é invulgar, com rácios molecular. A peculiaridade é que alguns
foi o primeiro meteorito do género a cair de isótopos diferentes de tudo o que co- dos seus genes estão localizados dentro
no nosso planeta (tanto quanto sabemos). nhecemos na nossa vizinhança cósmica. das sequências de outros genes. Poderá
Mais uma vez, a sua proposta foi recebida ser algo não natural, um produto de in-
com muito ceticismo pelo resto da comu- É AQUI QUE A IMAGINAÇÃO DE LOEB DISPARA: teligências ET? E, se assim for, poderá
nidade científica, que já começava a cha- IM1 poderia ser um meteorito originário haver uma mensagem escondida nos 121
mar-lhe «caçador de extraterrestres». E em de outro sistema solar, mas talvez «este aminoácidos (curiosamente, o quadrado
2022 o Comando Espacial confirmou que se padrão de abundância desconhecido pos- de 11, um número primo) de um desses
tratava de um visitante de fora do Sistema sa refletir uma origem tecnológica extra- genes sobrepostos? Seja como for, Yo-
Solar; primeiro ponto para Loeb. Sem sur- terrestre». Talvez estejamos a olhar para koo e Oshima não conseguiram encontrar
presa, decidiu ir à sua procura. os restos de uma nave espacial de outro uma mensagem extraterrestre. Mas não
planeta! foi a última tentativa. Em 1986, Hiroshi
A 14 DE JUNHO DE 2023, O BARCO SILVER Não pensemos que se trata de um Nakamura procurou exatamente a mesma
STAR partiu PARA A ÁREA ONDE LOEB e a sua desabafo: Loeb não está sozinho nes- coisa nos genes sobrepostos do vírus do
equipa estimavam que poderiam estar os ta história das naves ET. Porque alguns cancro SV40. A partir daí, Nakamura criou
destroços, cerca de 84 quilómetros a norte cientistas tentaram encontrá-las a viajar um mapa do que parecia ser a constelação
da ilha de Manus. E encontrou-os: cinco pelo céu... Como? Procurando o som dos de Eridani...
minúsculos berlindes com cerca de um seus motores. O raciocínio é que, para No entanto, Avi Loeb atreve-se a apon-
milímetro de diâmetro que «tiveram ori- atingirem uma velocidade que é uma fra- tar mais alto e sugere que pode haver
gem em gotículas fundidas da superfície ção da velocidade da luz (a única forma uma nave-mãe extraterrestre a percorrer
do meteorito quando este foi exposto ao de tornar a viagem acessível), têm de o sistema solar e a enviar pequenas son-
imenso calor da bola de fogo gerada pela produzir grandes quantidades de raios das para explorar planetas. Esta é tam-
sua fricção com o ar». De acordo com as gama. No início dos anos 90, as observa- bém a opinião de Sean M. Kirkpatrick, di-
primeiras análises — ainda não publicadas ções efetuadas entre 1978 e 1980 foram retor do Gabinete de Resolução de Ano-
em revistas científicas — estas esférulas estudadas para detetar alinhamentos malias em Todos os Domínios (AARO) do
são compostas por «elementos de fora do «estranhos» de emissões de raios gama Pentágono, que estuda os «Fenómenos
Sistema Solar, nunca antes vistos»: o lan- que revelassem o movimento de uma na- Anómalos Não Identificados» (antigos
tânio e o urânio são 500 vezes mais abun- ve espacial no espaço. OVNI) desde 2022. Loeb lançou o Projeto
dantes do que nas rochas terrestres, e o E se os ET já nos tiverem enviado men- Galileo, que visa desenvolver uma meto-
berílio, que também é centenas de vezes sagens... fisicamente, por exemplo, codi- dologia e ferramentas para detetar naves
mais abundante do que na Terra, é ainda ficadas no DNA de bactérias ou vírus? Os espaciais extraterrestres. Uma primei-
mais importante, pois é produzido por um primeiros a procurá-lo foram os cientistas ra equipa está a trabalhar desde o ano
processo chamado de spallation, em que japoneses Hiromitsu Yokoo e Tairo Oshi- passado no telhado do Observatório da
se desprende dos núcleos de elementos ma, em meados da década de 1970. com Universidade de Harvard. e

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PSICOLOGIA

A anemoia define
o sentimento de
nostalgia de um
tempo que nunca
vivemos e,
portanto, nunca
experimentámos.

8 SUPER
ANEMOIA
OU SAUDADE
DO NÃO VIVIDO
Trata-se de um novo conceito que está a ganhar força na
Internet e nas redes sociais e que começa a atrair a atenção
da comunidade científica. Podemos ter saudades de um
tempo passado que nunca vivemos? Tudo parece indicar
que sim. Estudos recentes, centrados na nostalgia e na
forma como armazenamos as memórias, produzem agora
conhecimentos surpreendentes sobre a interpretação do
passado e a forma como este pode ser manipulado para
uma variedade de objectivos, incluindo a desinformação e
as fake news, armas indispensáveis do populismo.

Texto de ÓSCAR HERRADÓN, jornalista e escritor

A
nemoia é um termo relativamente moderno que
se refere à nostalgia de algo que não vivemos ou
conhecemos, mas que sentimos como uma ex-
periência própria, por vezes muito intensa, por
exemplo, depois de ouvirmos uma música que
nos transporta para um tempo passado ou uma
imagem que nos faz viajar para outro tempo, mas
que nunca aconteceu ou, pelo menos, que nós não
vivemos. Mas o que é que a ciência diz sobre isso?
O termo surgiu pela primeira vez na cultura
anglo-saxónica e, apesar de ser uma palavra não
totalmente aceite pelos dicionários oficiais, foi in-
cluída pela primeira vez por John Koenig no The Dictionary of Obscure
Sorrows, na verdade um dicionário online acompanhado por um canal do
YouTube que começou em 2012 e que recolhe palavras para emoções que até
agora não tinham definição ou termo.
O verbete define-a como «nostalgia de um tempo que nunca conhe-
cerás» e constrói a palavra a partir do grego antigo ánemos (vento) e da
palavra vóos (mente), aludindo à anemose, «a deformação de uma árvore
JON TYSON UNPLASH

por um vento forte que a faz parecer dobrar-se para trás». Também no Ur-
ban Dictionary, um dicionário coloquial que contém a maioria das gírias,
neologismos e expressões populares da língua inglesa, podem ser encon-

SUPER 9
SHUTTERSTOCK
O termo anemoia é construído a partir da palavra grega antiga anemos, vento, e da palavra voos, mente, aludindo à deformação de uma
árvore por um vento forte que a faz dobrar-se para trás.

tradas expressões como: «I get anemoia when I hear ouve música feita por alguém que viveu muito antes de
certain songs for the first time» ou «I feel anemoia nós, talvez 100 anos, faz-nos experimentar muitos sen-
when I see pictures of my brother in high school». timentos».
Nascido sob a proteção das omnipresentes redes so- Há inúmeros exemplos. Outra utilizadora do portal
ciais, é um termo que foi batizado coloquialmente com de vídeos mais famoso do mundo, Christine Jones Bara-
um sentimento nostálgico que não está necessariamen- ka, observa: «A minha vida tem sido definida por este
te relacionado com uma vivência própria ou mesmo sentimento. Desde que me lembro, tenho o desejo de
contemporânea do momento em que vive quem a ex- viver em primeira mão os tempos passados».
periencia. Nas redes sociais e nos vídeos do YouTube, Embora a sua recente cunhagem possa sugerir que
há milhares de testemunhos de pessoas de diferentes não tem relevância, este intervalo de tempo de apenas
idades que afirmam identificar-se com o significado onze anos, na sequência do progresso tecnológico e da
moderno de anemoia. expansão do mundo cibernético, é enorme, e as coisas
estão a evoluir a um ritmo exponencial, pelo que é pro-
SAUDADE CIBERNÉTICA. De acordo com os poucos estudos vável que a anemoia se torne um termo cada vez mais
sobre o assunto, é muito comum que este sentimento comum. De facto, tornou-se muito mais popular com
surja num ambiente específico (num tempo e espaço a ascensão das redes sociais e a divulgação de vídeos
definidos), apesar de a pessoa que o experimenta não restaurados de épocas muito anteriores graças a tec-
ter tido quase nenhuma (ou mesmo nenhuma) relação nologias como a inteligência artificial, cada vez mais
com ele. Pode estar relacionado com um passado, mas presentes nas nossas vidas, tudo como se fosse um filme
também com um tempo futuro e, portanto, imaginário. moderno, com movimentos fluidos, alta resolução e co-
Geralmente gera-se quando, para além de um pensa- res que podem confundir o nosso cérebro.
mento interior, existem estímulos exteriores: muitas Perante tais vídeos, há muitos que afirmam sentir
pessoas afirmam que o experimentam quando ouvem nostalgia desses tempos, apesar de nunca os terem vi-
música ou vêem um vídeo e decidem partilhar as suas vido. Da mesma forma, há vídeos de música futurista
emoções. em que muitos utilizadores da Internet afirmam sen-
Podemos citar como exemplo um vídeo do YouTube tir nostalgia pelo que ainda está para vir, o futuro. No
recuperado pelo jornal peruano La República; é de um entanto, existem poucos estudos sobre este conceito
utilizador que dá pelo nome de Icton e diz: «Tenho esta vanguardista, o que levanta um problema quando se
sensação sempre que ouço música antiga, especialmen- trata de definir a anemoia como um fenómeno cien-
te música clássica. Os sons e as imagens reais podem tífico. Tal como a melancolia, a anemoia poderia ser
viajar no tempo. A ligação que se estabelece quando se universalmente aceite como uma forma específica de

10 SUPER
nostalgia em que entram em jogo vários fatores, en-
volvendo tanto o cérebro — no seu aspeto puramente
fisiológico — como as emoções, embora não saibamos
que disciplinas a devem abordar: sociologia, psicologia,
antropologia ou todas elas em conjunto?

O ENORME (E COMPLICADO) PODER DA NOSTALGIA. Em relação


a esta questão, entramos totalmente num sentimento
universal — a nostalgia — que, no entanto, está forte-
mente enraizado na cultura e nas vivências próprias de
cada pessoa. Embora o homem a sinta desde a antiguida-
de, e certamente os nossos antepassados hominídeos, o
conceito de nostalgia enquanto tal foi cunhado no final
do século XVII pelo médico alsaciano Johannes Hofer
para descrever uma doença semelhante à melancolia
que afetava os soldados suíços nos campos de batalha
quando estavam longe de casa.
O que nos torna suscetíveis a senti-la? De acor-
do com um artigo publicado na Psychology Today,
não é invulgar que as pessoas que se sentem sozinhas
ou insatisfeitas com a sua vida atual tenham maior
probabilidade de recordar o passado com «óculos cor-
-de-rosa». Neste sentido, a ciência deveria estudar se
estas pessoas também são mais suscetíveis de experi-
mentar anemoia.
Na obra reveladora The Future of Nostalgia, a fa-

SONY PICTURES CLASSICS


lecida investigadora russa Svetlana Boym, antiga
professora de Literaturas Eslavas na Universidade de
Harvard, descreveu dois tipos de nostalgia: a refle-
xiva, que olha para o passado com a ideia de que as
coisas mudaram — e algumas para melhor —, e a res- No filme de Woody Allen, Meia-Noite em Paris, um escritor nostálgico
tauradora, que visa recordar um passado idealizado, viaja todas as noites para os anos de 1920 na capital francesa.
ISTOCK

A música e os videoclips levam muitas pessoas a recordar tempos passados e até futuros: a nostalgia do futuro, do que ainda está para
vir. A partilha destes sentimentos nas redes sociais levou a que estes fenómenos se tornassem cada vez mais comuns.

SUPER 11
GETTY

A anemoia, a nostalgia de um passado que não foi vivido, é também utilizada com clara intenção política por grupos que procuram regressar
a um passado de domínio, preponderância e superioridade, considerado melhor do que o atual que se idealiza. Os populismos utilizam esta
saudade de um passado grandioso de orgulho e prosperidade, mesmo que não seja exatamente verdadeiro, para ganhar adeptos.

aquele de que Woody Allen falava em Meia-Noite em consciente, durante a vida quotidiana, para reforçar
Paris e a que se referia como «síndrome da Idade de sentimentos do nosso passado, que nos ajudam a en-
Ouro», um mal que assombra todos os que anseiam frentar o futuro».
por ter vivido noutro tempo, seja a Paris da Belle Épo- Sem dúvida tem aspetos positivos importantes;
que, a Roma de Júlio César ou a Itália renascentista, mas há também o outro lado da moeda. Como defen-
algo muito semelhante à anemoia. O mesmo que dem outros especialistas, embora a nostalgia pessoal
acontece com aqueles que utilizam o passado para fins (centrada na própria vida) possa reduzir a solidão e a
políticos no presente. depressão e, de acordo com alguns estudos, também
Desde a cunhagem de Hofer até meados do século XX, reduza os níveis de citocinas pró-inflamatórias envol-
a nostalgia foi rotulada como uma doença cerebral, mas vidas nos mecanismos da dor, a memória é enganadora
estudos mais recentes concordam que não é sinónimo e muitas vezes mentirosa, o que nos faz reviver o pas-
de melancolia ou depressão, mas sim um recurso es- sado com uma doçura que provavelmente não existiu,
timulante que não só não provoca sintomas médicos, correndo o risco de vivermos neste acreditando que
como, na maioria das vezes, é ativado para os contra- era melhor e não desfrutando do presente, do aqui e
riar. Além disso, a ameaça psicológica gera nostalgia, agora, o único lugar onde nos encontramos, porque o
que é uma fonte de resiliência e bem-estar. passado é uma memória (por vezes falsificada) e o fu-
De acordo com Clay Routledge, investigador da North turo uma quimera.
Dakota State University, nos EUA, e autor do livro Nos-
talgia: A Psychological Resource, publicado em 2015, UMA SÉRIE DE INVESTIGAÇÕES CIENTÍFICAS ESTÁ A ABRIR
a nostalgia é um recurso «que nos dá sentido, funcio- ENORMES POSSIBILIDADES. Tradicionalmente, os psicólo-
na como um escudo contra desafios existenciais e pode gos pensavam que a nostalgia se baseava nas memórias
beneficiar-nos em alturas em que questionamos o sen- das experiências de uma pessoa, mas recentemente,
tido da vida. Representa um reservatório de emoções o filósofo e professor do Centro de Neurociência Cog-
da memória, ao qual podemos aceder conscientemente nitiva da Universidade de Duke, Philippe de Brigard,
e ao qual recorremos continuamente, de forma in- propôs que a nostalgia é mais ampla e inclui os nossos

A nostalgia de um passado melhor é, por vezes, enganadora e não


corresponde à realidade, fazendo com que não desfrutemos do
presente porque ansiamos por algo que não foi realmente assim
12 SUPER
anseios. Ele chegou a essa conclusão a partir de pes-
quisas sobre a memória, que mostraram que ela é um
processo criativo: quando nos lembramos das nossas
experiências, não é como se estivéssemos à procura de
uma gravação do que aconteceu, mas sim como se o
nosso cérebro estivesse a criar uma simulação desses
eventos passados.
Assim, o investigador argumenta que a nostalgia
pode ser baseada em memórias (uma simulação de ex-
periências agradáveis passadas), mas que não tem de
ser realmente assim. Dado o papel da imaginação na
memória, De Brigard argumenta que não é assim tão es-
tranho propor que a nostalgia também se pode basear
em experiências positivas imaginadas. De facto, no seu
ensaio Nostalgia e nacionalismo, o investigador chama
a atenção para o termo em questão, anemoia, e observa

TKM ARCHIVE
que «sentir nostalgia de um tempo que não se viveu pa-
rece ser um fenómeno comum».
De Brigard analisa a condição imaginativa da nostal- Na batalha de Arques, em 1589, os soldados suíços combateram
gia e relaciona-a com o campo da política, acabando por sob as ordens de governantes estrangeiros. Estes soldados
estabelecer uma relação entre o ressurgimento de mo- desenvolveram um profundo sentimento de nostalgia pelo seu país.
vimentos nacionalistas como o slogan trumpista «Make
America Great Again» — a nostalgia de uns EUA me-
lhores, mais imaginados ou sonhados do que reais — ou
o «We want our country back» levantado durante as sobre ciência e tecnologia, Science Focus, que se de-
campanhas do Brexit, «com a nostalgia enquanto fe- bruçou sobre as descobertas reveladoras de Philippe
nómeno agridoce que procura satisfazer um desejo que de Brigard, «este tipo de nostalgia baseada na imagi-
não pode ser realmente satisfeito». Hitler aproveitou nação é suscetível de ser influenciada por histórias e
essa nostalgia do passado «glorioso» da Alemanha para propaganda sobre o passado. Por conseguinte, é muito
dar forma ao nacional-socialismo, com as consequên- provável que tenha lido ou ouvido histórias sobre pe-
cias que todos conhecemos. ríodos ou locais históricos cor-de-rosa. Baseada nessas
Como explica um artigo recente da revista britânica histórias, a sua mente cria uma simulação de como eram

Teorização sobre a origem da nostalgia


E m 1688, o médico alsaciano Johannes Hofer descreveu
pela primeira vez uma doença semelhante à melanco-
lia, cujos sintomas incluíam febre, pulso irregular, languidez
e dores de estômago. Em alguns casos, a doença podia ser
fatal. Aparentemente, só afetava os mercenários suíços que
deixavam as suas casas nos prados alpinos para servir uma
potência estrangeira. Hofer chamou à doença Heimweh ou
«doença do campo», considerou-a psicológica e formulou a
hipótese de que se caracterizava pelo desenvolvimento de um
«pensamento obsessivo sobre o país natal» devido à ausência
prolongada de casa.
Pouco tempo depois, o médico e naturopata de Zurique
Johann Jakob Scheuchzer defende uma origem muito mais
orgânica da doença e teoriza que o sangue dos montanheses
suíços, habituados a uma pressão atmosférica mais baixa na
altitude, se torna mais espesso quando permanecem em alti-
ASC

tudes mais baixas ou em regiões ao nível do mar, o que torna


os suíços de montanha particularmente vulneráveis a desen- O célebre filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau escre-
volvê-la. veu no seu Dictionnaire de la Musique que: «Era proibido
Uma nova orientação foi dada pelo médico de Basileia Theo- tocar, sob pena de morte, essa melodia tão cara aos suíços,
dor Zwinger, que, em 1710, referiu que a saudade de casa era porque fazia chorar, desertar ou morrer os que a ouviam, de
uma doença tipicamente suíça, desencadeada por uma velha tal modo excitava neles o desejo ardente de regressar ao
melodia (Le ranz des vaches) cantada pelos mercenários nos seu país».
Alpes e que os levava a desertar. Uma melodia que era em Para o homem do século XXI, a nostalgia, nas palavras de
tempos cantarolada pelos vaqueiros suíços e que até aparece Alexander Rechsteiner, do Museu Nacional Suíço, «não é
em Heidi, personagem do romance homónimo de Johanna uma doença, mas um sentimento, tal como a angústia ou um
Spiri, que sofria ao ouvi-la. desejo irreprimível de viajar».

SUPER 13
GOOGLE ART PROJECT

O barco azul do pintor americano Winslow Homer evoca uma cena idílica no meio da natureza. Certas imagens podem evocar sentimen-
tos de nostalgia relacionados com o passado, com a infância ou com os tempos em que nos lembramos ou acreditamos ter sido felizes.
Esta nostalgia traz-nos à memória cenas ou situações que não teriam surgido se as tivéssemos tentado recordar deliberadamente.

esses lugares ou tempos e depois sente um desejo de os neurocientista japonês Kentaro Oba, no qual «a ativi-
experimentar por si mesmo». O investigador salienta dade em regiões associadas à gratificação e à motivação
que isto é mais provável se estivermos insatisfeitos com foi mais elevada durante a recordação nostálgica».
a nossa situação atual. Oba e os seus colegas da Universidade Metropolitana
As suas conclusões seguem uma linha semelhante de Tóquio mapearam a «nostalgia» através de exa-
aos resultados de um estudo de 2016 realizado pelo mes cerebrais efetuados a estudantes universitários,
aos quais foram apresentadas simultaneamente ima-
gens relacionadas com a sua infância e com elevada
probabilidade de provocar tais sentimentos. As suas
descobertas mostraram a ativação de áreas regulado-
ras da memória e da recompensa, que desempenham
um papel na existência da nostalgia, de acordo com o
psiquiatra e psicanalista David Dorenbaum num in-
teressante artigo publicado no El País Semanal em
outubro de 2020 .
Segundo o autor, e aludindo à investigação acima
mencionada, «a nostalgia gerou espontaneamente
experiências que talvez não fossem capazes de re-
cordar se o tivessem tentado deliberadamente. Do
mesmo modo, as memórias difusas proporcionam
uma dupla gratificação, tanto pela familiaridade co-
mo pela novidade».
Por seu lado, De Briard argumenta no seu ensaio que
a apresentação de um passado nostálgico contraposto
SHUTTERSTOCK

a um presente insatisfatório produz um desinteres-


se emocional que inclina «para a ação política», pelo
A saudade e a nostalgia de tempos passados são mais prováveis que «a política da nostalgia» tem menos a ver com as
de ocorrer se a pessoa estiver insatisfeita com a sua vida atual, memórias de um passado cor-de-rosa e mais com as
provocando um desencontro emocional. da propaganda e da desinformação. Recentemente,

14 SUPER
psicólogos sociais e cientistas políticos começaram a que fantasias da imaginação. Uma estratégia muito co-
perguntar-se se a anemoia poderia estar a desempe- mum em tempos de «direita alternativa» pró-Trump,
nhar um papel na ascensão dos movimentos populistas. de Brexit, dos efeitos do coronavírus ou da crise climá-
De Brigard argumenta que os eleitores populistas mais tica e migratória.
velhos podem ser inspirados por uma nostalgia con- A este respeito, é muito revelador um estudo reali-
vencional, por momentos que viveram efetivamente zado pelas psicólogas sociais Monica Prusiky e Maria
(o que não quer dizer, sublinha, que as suas memórias Lewicka, da Universidade Nicolaus Copernicus na cida-
sejam necessariamente exatas). Mas muitos eleitores de de Torun, na Polónia, que analisou a nostalgia sobre
mais jovens também parecem suscetíveis à propa- como era a vida nos tempos do comunismo, há 25 anos.
ganda baseada na nostalgia, e a anemoia ajuda a dar Foi realizado junto de uma grande amostra de cidadãos
sentido a tudo isto. Tal como qualquer um de nós, esses polacos inquiridos e os resultados revelaram que as
jovens podem estar a sentir uma «nostalgia cor-de- pessoas se sentiam mais nostálgicas se tivessem vivido
-rosa» por lugares e tempos passados, especialmente melhor no passado, se fossem velhas ou se fossem in-
se estiverem a passar por dificuldades nas circunstân- felizes no presente, o que está em parte de acordo com
cias atuais. Por sua vez, podem sentir-se atraídos por a análise de Philippe de Brigard e comprova a fragilida-
políticos que prometem um regresso aos «bons velhos de da memória, lembrando-nos que o passado pode ser
tempos», mesmo que esses dias sejam pouco mais do evocado, mas nunca recuperado. e

Entrevista com o psiquiatra Arturo Osácar


Ibarrola
O termo anemoia, que se refere à nostalgia de algo
que não experimentámos ou conhecemos, não foi
oficialmente aceite, mas a ciência começa a interes-
sar-se por ele. Existe algum fenómeno relativamente
semelhante que a psiquiatria esteja a estudar?
A nostalgia é um sentimento normal e, como tal, não
tem qualquer relevância no campo da psiquiatria,
que se centraria no estudo e tratamento de reações
experienciais anormais, como os fenómenos de des-
realização ou despersonalização que podem ocorrer
em certas perturbações de ansiedade.

A nostalgia é muitas vezes benéfica para a superação


de traumas, mas pode acabar por se tornar negativa?
Quando as emoções ligadas a acontecimentos pas-
sados condicionam as atividades da vida quotidiana,
ASC
estaríamos perante um funcionamento pessoal de-
sajustado que exigiria provavelmente uma atenção vislumbradas; mas como se trata de um comporta-
médica especializada. mento relativamente recente, não é possível avaliar
em profundidade o impacto deste fenómeno ao nível
Qual a razão, a nível psiquiátrico, para o ser humano da interação social.
ter tendência para idealizar o passado?
A memória tende a distorcer o passado, esbatendo o No caso hipotético de a anemoia se tornar cienti-
negativo e privilegiando o positivo, como mecanis- ficamente aceite a longo prazo, poderá representar
mo de adaptação ou de sobrevivência em relação a algum perigo para as pessoas que a experienciam e
episódios dolorosos do passado. que imaginam situações passadas fictícias e chegam
a acreditar que são reais?
Considera que a exposição excessiva à Internet e às Como assinalei na primeira pergunta, a «anemoia»,
redes sociais está a contribuir para a distorção das entendida como um termo novo que tem a sua ori-
nossas memórias e para a formação de um passado gem, segundo o seu autor, no alargamento dos
mais idealizado que não corresponde à realidade? termos que facilitam a expressão poética, não parece
Em caso afirmativo, quais são os riscos envolvidos? ter qualquer relevância no campo psiquiátrico, e não
Na minha opinião, a sobre-exposição a imagens parece que este conceito inclua as pessoas que viven-
virtuais, em detrimento de experiências relaciona- ciam situações imaginárias como reais. É claro que
das com acontecimentos da vida quotidiana, leva a existem pessoas em que este tipo de funcionamen-
um armazenamento predominante na memória de to mental ocorre, sendo que este tipo de fenómenos
memórias de realidades virtuais, em detrimento de corresponderia a um funcionamento psicológico
memórias normais da vida quotidiana, o que é um anormal que teria um impacto importante no fun-
fenómeno cujas consequências negativas podem ser cionamento normal e adaptativo da pessoa.

SUPER 15
N E U R O L O G I A

MENTES
SINCRONIZADAS

As pessoas são
GETTY

capazes de
sincronizar as suas
ondas cerebrais
de acordo com os
estímulos
auditivos que
recebem. Os
intervalos entre o
som e o silêncio
têm um padrão
quase rítmico.

16 SUPER
Durante as conversas e ao trabalhar em equipa, o ritmo das ondas neurais das pessoas
que dialogam, interagem ou colaboram, coordena-se, sincroniza-se fisicamente, fazendo
com que os cérebros do emissor e do recetor de uma conversa ou dos participantes numa
tarefa comum se sincronizem entre si para melhor processarem a informação sensorial.

Texto de HENAR L. SENOVILLA, jornalista

SUPER 17
I
a dizê-lo mas; tu tiraste-mo O estudo, publicado na revista Scientific Reports,
da boca». «Telepatia! Eu es- foi realizado neste centro de investigação basco, cujo
tava a pensar a mesma coisa!» objetivo é desvendar os mecanismos neurocognitivos
São frases feitas, mas a ciência envolvidos na aquisição, compreensão e produção da
descobriu que não deixam de linguagem .
ter um fundo de verdade... Segundo os cientistas envolvidos na investigação, es-
neurológica. Porque foi de- ta sincronia inter-cerebral entre duas pessoas que falam
monstrado que quando duas uma com a outra é um fator-chave para a compreensão
pessoas falam ou trabalham da linguagem e da comunicação interpessoal, uma vez
em equipa, as suas ondas que significaria que as áreas auditivas e visuais, e mes-
cerebrais sincronizam-se e mo as áreas cerebrais responsáveis por questões mais
coincidem. Ou seja, neu- complexas, responderiam a estímulos linguísticos ex-
rónios semelhantes em cérebros diferentes, quando ternos de forma semelhante. Ou, por outras palavras:
ouvem o mesmo estímulo ou se concentram numa ta- através dos estímulos auditivos partilhados entre duas
refa comum, ativam-se ao mesmo ritmo, com a mesma pessoas, seria possível estar «no mesmo comprimento
frequência e, desta forma, podem assimilar melhor de onda».
a informação que estão a receber e dar uma melhor
resposta. Certos tipos de interação social gerariam, MAS COMO É POSSÍVEL QUE OS CÉREBROS DAS PESSOAS SE SIN-
portanto, uma atividade elétrica neuronal ao mesmo CRONIZEM DE ACORDO COM O QUE OUVEM, ajustando os seus
nível que facilitaria uma ligação mais profunda dos cé- ritmos neurais aos estímulos auditivos? «A fala é um
rebros envolvidos na interação. estímulo que se desenrola no tempo, com intervalos de
Esta é a conclusão a que chegaram vários estudos conteúdo e intervalos de silêncio. Esta alternância tem
científicos recentemente publicados em diferentes um padrão quase rítmico, quer ao nível das palavras,
publicações especializadas. Investigadores do Basque quer ao nível das sílabas. O nosso cérebro é sensível
Center on Gognition, Brain and Language (BCBL), ins- a este padrão e investe os seus recursos apenas nos
tituto internacional de investigação interdisciplinar momentos em que há conteúdo no discurso (ou seja,
sobre cognição, o cérebro e a linguagem, demonstra- palavras). Isto também permite estimar, a nível tempo-
ram como as ondas cerebrais de pessoas diferentes se ral, a duração de uma frase e facilita a temporalidade de
sincronizam ao mesmo ritmo e frequência quando estão uma conversa entre dois falantes, o que é definido como
envolvidas na mesma conversa. turn-taking», explica Nicola Molinaro, investigador
SHUTTERSTOCK

Os cérebros das
pessoas numa reu-
nião sincronizam-se
ao mesmo ritmo,
com a mesma fre-
quência, tornando
possível estar «no
mesmo comprimen-
to de onda».

18 SUPER
ASC

Turn-Taking, ou como
saber quando intervir
U ma componente acústica do discurso é a prosódia, que mar-
ca as propriedades sintáticas do que ouvimos (por exemplo,
se a frase que estamos a ouvir é uma pergunta ou uma afirmação)
e as suas propriedades emocionais (se o orador está surpreendi-
do, zangado, etc.). A prosódia também nos permite estimar o que é
mais relevante na mensagem e tem uma temporalidade em baixas
frequências (uma vez a cada 1-2 segundos). A sincronização destas
frequências permite estimar o que é mais relevante na mensagem:
«Quando os cérebros de duas pessoas que estão a falar, estão sin-
cronizados, sentimos quais as palavras a que devemos prestar mais
atenção e somos também capazes de avaliar a componente emo-
cional das frases. Outro aspeto importante é o turn-taking , ou seja,
saber quando uma pessoa acabou de falar para podermos come-
çar a falar. O turn-taking tem um aspeto de coordenação entre os
A imagem mostra os padrões de ativação neural durante o proces- falantes que é facilitado pelos mecanismos de sincronização que
samento da informação da fala dirigida pelo som. As regiões são estamos a considerar», acrescenta Nicola Molinaro, investigador do
ativadas quanto mais atenção prestam à voz do orador. grupo Brain Rhythms and Cognition do BCBL.

do BCBL e, especificamente, do grupo Brain Rhythms


and Cognition do Centro. «As ondas cerebrais de cada
língua ajustam-se ao ritmo do discurso que está a ser
ouvido. Assim, se o discurso for acelerado, observa-se
uma sincronização entre as ondas a um ritmo mais ele-
vado. Por exemplo, as sílabas aparecem em espanhol
5-6 vezes por segundo e as nossas ondas cerebrais, a 5-6
Hertz, sincronizam-se com as sílabas», continua.
Para levar a cabo o estudo que conduziu a estas conclu-
sões, os investigadores do BCBL colocaram, separados
por um ecrã, quinze pares de pessoas que não se conhe-
ciam, garantindo assim que a ligação gerada entre elas
SHUTTERSTOCK

se devia realmente à comunicação estabelecida e não a


fatores anteriores.
Seguindo um guião definido, os pares iniciaram uma
conversa sobre um tema geral e, por sua vez, os par-
ticipantes trocaram os papéis de emissor e recetor.
Utilizando um exame não invasivo que analisa a ativi- O conhecimento desta interação entre dois cérebros
dade elétrica do cérebro — a eletroencefalografia (EEG) através da linguagem permitirá também compreender e
— os cientistas mediram o movimento das ondas cere- analisar aspetos muito complexos da psicologia, da so-
brais em resposta ao som em simultâneo e verificaram ciologia e da psiquiatria, que se baseiam nos mistérios
que as oscilações neuronais ocorriam ao mesmo tempo, da comunicação interpessoal.
ou seja, que a atividade dos seus cérebros se ligava. «Atualmente, o estudo da sincronização neural ao fa-
lar abriu muitas pistas novas sobre o desenvolvimento
A QUE É QUE ESTA DESCOBERTA PODE LEVAR? BEM, PODE FACILI- da linguagem nos bebés e sobre as perturbações do pró-
TAR A APRENDIZAGEM, POR EXEMPLO. A nível académico, nas prio desenvolvimento da linguagem. Estamos a utilizar
salas de aula em que os alunos estabelecem esta sincro- estas medições neurais ou do sistema nervoso para se-
nização de ondas cerebrais com os professores através rem usadas como marcadores de possíveis perturbações
do que ouvem, os padrões de processamento neural da linguagem em idades mais precoces do que se pode
estarão alinhados e, quanto maior for o alinhamento, estimar atualmente. Estamos também a desenvolver mé-
melhor será a aprendizagem. todos de descodificação neural para podermos estimar o

No domínio académico, estabelecer a sincronização entre as


ondas cerebrais dos alunos e dos professores, alinhando-as,
facilitaria uma melhor aprendizagem
SUPER 19
GETTY
Neurociência coletiva
A ciência demonstrou que a atividade neural e o cérebro
são sensíveis às interações entre indivíduos, ou seja, à
atividade social. Por esta razão, a neurociência coletiva inves-
tiga se os cérebros evoluíram principalmente para ajudar os
animais a existirem como parte de um grupo social, para além
da individualidade pura. Desta forma, a disciplina questiona
se a sociabilidade é um passo necessário no caminho para
a inteligência de uma espécie, considerando que o cérebro
provavelmente evoluiu para lidar com a complexidade das re-
lações sociais.

que uma pessoa está a ouvir com base na sua atividade uma sala, durante a qual os investigadores monitoriza-
neural. Isto pode ser útil para sintetizar a fala em pessoas ram a atividade cerebral dos pares criativos e registaram
que perderam esta capacidade após uma lesão cerebral», as trocas visuais que tiveram lugar. Desta forma, os in-
continua Nicola Molinaro, investigador do BCBL. vestigadores observaram que, durante a colaboração,
O próximo passo dos investigadores será testar, uti- os mesmos grupos de neurónios eram ativados em ca-
lizando a mesma técnica e a dinâmica de pares, se os da um dos cérebros dos pares criativos, concluindo que
cérebros de duas pessoas se sincronizam da mesma os dois cérebros que trabalham em conjunto formam
forma quando a conversa tem lugar numa língua não um único sistema neural para a resolução criativa de
materna. problemas. Além disso, se os membros da equipa não
estivessem separados, estavam mais concentrados na
POR OUTRO LADO, QUANDO DUAS PESSOAS COLABORAM NA tarefa e menos distraídos, obtendo um resultado mais
MESMA TAREFA, as regiões críticas dos seus cérebros en- notável.
volvidas no trabalho coletivo também se sincronizam No seguimento deste estudo, devido ao trabalho co-
— de acordo com outro estudo publicado na Neuropho- laborativo, as ondas neuronais beta e gama, que estão
tonics —sugerindo que podemos sincronizar a nossa relacionadas com tarefas de processamento cogniti-
atividade neural quando trabalhamos em grupo. vo elevado, capacidade de aprendizagem e felicidade,
Neste caso, a investigação relatada nesta revista pediu apresentaram um nível de atividade mais elevado. O
a cerca de 40 pares de voluntários que realizassem uma trabalho em conjunto desencadeou, portanto, uma sin-
tarefa conjunta: desenhar virtualmente o interior de cronização entre os cérebros das pessoas envolvidas nas
YASAMAN BAGHEZADEH/MIT

Os neurocientistas do MIT
descobriram que as pessoas
podem melhorar a sua atenção
controlando as suas próprias
ondas cerebrais alfa com base
no neurofeedback que recebem
enquanto realizam uma
determinada tarefa.

20 SUPER
SHUTTERSTOCK
A escuta, o olhar e a
atenção promovem a
compreensão e a liga-
ção com o outro. Ao
contrário, o desacor-
do provoca
desalinhamentos e,
ondas cerebrais ad-
quirem ritmos
diferentes.

regiões temporais superior e média do cérebro, bem

AKESAK
como em partes específicas do córtex pré-frontal do
hemisfério direito do cérebro. E permitiu atingir o es-
tado habitualmente designado por «team flow», uma
situação mental caracterizada por uma sensação de to-
tal imersão e concentração numa atividade.
Na mesma linha, uma investigação anterior da Uni-
versidade da Califórnia em Berkeley, publicada em
2019, analisou a relação entre os cérebros dos morcegos
quando interagem com outros da sua espécie e sugeriu
que é muito provável que, extrapolando os resultados
para a espécie humana, quando as pessoas interagem
umas com as outras, os seus cérebros formam um cir-
cuito fechado dominado por ondas cerebrais de alta
frequência.
A mesma investigação publicada na Neurophotonics
sobre as ligações neuronais entre os cérebros de pes-
soas que colaboram entre si mostrou também que, tal Com a diferença e a discordância, muitas regiões do
como no caso dos estímulos auditivos e do trabalho em cérebro tornam-se hiperativas. As áreas emocionais
equipa, as ondas estavam sincronizadas, sendo esta aumentam a sua atividade. E estruturas como o cór-
sincronização ainda mais forte quando as pessoas que tex pré-frontal, o giro supramarginal esquerdo, o giro
trabalham em pares trocam olhares, evidenciando as- angular e o giro temporal superior apresentam uma ati-
sim a importância da interação visual nos processos de vidade muito intensa e stressante.
colaboração. Muitas partes do cérebro são, portanto, ativadas
O olhar, portanto, permitiria intensificar a ligação de forma extraordinária com a discórdia, e esta mo-
neural, o que pode ser utilizado para explorar melhor bilização extraordinária de todos os nossos recursos
o impacto do cérebro nas expressões faciais e na comu- emocionais, cognitivos e atencionais faz com que nos
nicação verbal. separemos da pessoa com quem nos desentendemos e
as nossas ondas cerebrais se desalinham, adquirindo
OS DESACORDOS, AS DIFERENÇAS E AS DISCUSSÕES DESSINCRO- ritmos diferentes.
NIZAM OS CÉREBROS, ou seja, geram o efeito contrário ao Em suma, podemos afirmar que a partilha da escu-
das conversas, das tarefas de colaboração e dos olhares ta, do olhar ou do compromisso sincroniza os nossos
que facilitam a sincronização cerebral. Porque é que isto cérebros, as nossas mentes, e permite-nos oferecer
acontece? Porque sentir que a pessoa com quem esta- uma melhor resposta ao nosso ambiente, enquanto
mos a falar ou a partilhar uma tarefa tem ideias opostas que, por outro lado, a divergência nos separa, mes-
desafia-nos e as discussões fazem o cérebro dessin- mo neurologicamente, e nos priva da possibilidade
cronizar-se, o que gera grande stress, resultando em de nos compreendermos e de construirmos um nós
exaustão física e mental. melhor. e

SUPER 21
ENTREVISTA

Ana Maria Pinto


A ARTE em profunda conexão com a NATUREZA.

Texto de ELSA REGADAS

C
antora Lírica, com- de de cantar obras maravilhosas como solista, mas ti-
positora, professora, nha também demasiado trabalho para corresponder a
dinamizadora e pro- conceitos musicais de muitos professores diferentes. A
dutora, Ana Maria vontade de dar resposta aos estímulos exteriores en-
Pinto é uma daquelas surdeceu a minha voz interior. Na verdade, este foi um
pessoas que mergu- momento dramático da minha passagem por Berlim,
lha a fundo em cada perder-me no meio de tanta informação! A determi-
projeto que abraça. nado ponto, na universidade, a mente racional ocupou
A voz é o seu princi- demasiado espaço e a minha intuição desapareceu. Es-
pal instrumento de ta vivência foi importantíssima para mim, perder-me
trabalho e o piano o para me reencontrar com a profunda consciência de
seu imprescindível que um professor não pode sobrepor-se à inteligência
apoio. Estudou na natural do aluno. O professor tem que despertar a sua
Universidade das Artes de Berlim e trabalhou com mú- sensibilidade para que possa reconhecer o movimento
sicos e grandes orquestras de alto reconhecimento in- mais puro do aluno e guiá-lo a partir dessa raiz. Depois
ternacional. Ao regressar a Portugal, fez confluir vários desta experiência ficou muito claro para mim que a mi-
ramos de conhecimento artístico num caminho que cul- nha interioridade apelava a um tipo de existência artís-
minou na criação da Novaterra, Associação Cultural Arte tica muito própria, muito para além da expectativa da
e Ambiente, no final de 2016. Esta associação multigera- carreira que me tentavam incutir. Na verdade, fui para
cional tem como principal foco de trabalho as crianças e Berlim porque queria aprender a falar alemão de modo a
os jovens, na educação ambiental pela arte, na senda da poder cantar o Lied quase como nativa, tal qual cantava
proteção do futuro do nosso Planeta! a canção portuguesa. Queria ganhar competências para
cantar com a máxima profundidade a palavra poética,
Viveu durante 7 anos em Berlim, onde estudou na Uni- mas o meu primeiro e último objetivo sempre foi servir
versidade das Artes. O que mais a marcou nesta fase da o Amor Universal através das Artes e jamais um nome
sua vida e em que medida foi determinante para o per- ou uma carreira. Voltei para Portugal sentindo no meu
curso artístico que acabaria por seguir? coração um hino de vitória, certa que o meu caminho
Berlim é um museu ao ar livre onde a história é um fa- de emancipação existencial encontrava em terras lusas
rol para a multi e interculturalidade. Conheci e convi- o solo mais fértil e fiel à minha natureza.
vi com pessoas de todo o mundo e tive a oportunidade
de ver concertos com os melhores músicos do mundo, Regressou então a Portugal em 2012 com um elevado
num lugar onde a expansão é o mote de cada dia! Para conteúdo de inspiração na sua mala. Aquilo a que pode-
uma jovem apaixonada pela arte e pela diversidade, foi ríamos chamar de «esboço» da Novaterra já fazia parte
um autêntico portal! Simultaneamente, a portugalidade «dessa mala» ou a ideia surgiu depois?
entranhou-se na minha consciência A ideia surgiu anos depois, em 2015.
e mostrou-se em todo o seu esplen- A Novaterra é um dos frutos das mi-
dor! Apaixonei-me por Portugal,
pelo seu granito e pelo atlântico,
«O casamento nhas viagens a África, assim como
do meu desenvolvimento espiritual
pelo seu olhar e sorriso! Nos primei-
ros anos ouvia Maria Callas e Amália
entre a amorosidade que me reconectou com a natureza
a um nível muito profundo. No topo
Rodrigues com o mesmo encanto e
urgência, e sentia a poesia portu- portuguesa e a de uma duna na Namíbia vi dois ele-
mentos que se estendiam como um
guesa a correr-me no sangue, na-
morava cada palavra que escrevia, energia telúrica tecido vívido, uma beleza avassala-
dora, areia e água a perder de vista,
cantando J. Brahms completamen-
te rendida às paisagens alemãs ro- africana são os numa extensão que a minha mente
intuitivamente conseguiu abarcar.
mânticas! Goethe abria-me os olhos Foi como uma viagem à lua para
em espanto, H. Hesse e Shoenberg ingredientes do meu mim! Quando voltei a Portugal sen-
abriam brechas no tempo! tia quase claustrofobia depois de ter
Na Universidade tive oportunida- boom criativo» experienciado a imensidão africana!

22 SUPER
O casamento entre a amorosidade portuguesa e a energia
telúrica africana são os ingredientes do meu boom cria-
tivo. A Europa acaba por ser plataforma entre passado e
futuro, dando-me uma estrutura que permite o desen-
volvimento das minhas competências, mas há um ponto
de viragem na vida de cada artista, em que ele é chamado
à sua condição original, a unicidade. Eu encontrei a mi-
nha unicidade porque me perdi de amores pelo Atlântico
português e porque despertei em mim uma energia telú-
rica inefável ao caminhar de pés descalços na Namíbia.
Água salgada e fogo estão na origem da Novaterra, não
consigo viver muito tempo longe do Atlântico mais sel-
vagem, este do norte, e a memória do calor que ferve é o
ingrediente mais que perfeito para as minhas melodias.

«A natureza é o único livro que oferece um conteúdo


valioso em todas as suas folhas». É com esta frase de
Goethe que se apresenta o site NOVATERRA. Como se
traduzem os pilares Artes e Natureza nos 4 coros?
Aos 22 anos de idade li a Paixão do Jovem Wherter de
Goethe, e depois desse romance li todos os outros de uma
assentada! Chorei de amor pela beleza como se estivesse
a chorar de amor por mim mesma, e renasci com as pala-
vras de Goethe tocando na minha vida pela primeira vez
a dimensão do belo que nos abana até aos ossos! A mi-
nha paixão pela música é como uma procura incessante
desta dimensão intemporal que abre caminhos infinitos
dentro da grande esfera do amor! Esta frase é como um
slogan da Novaterra por lealdade a essa experiência que é
semente imperecível dentro de mim. Percebi que o amor
vive de mãos dadas com o belo, e assim se traduzem os
pilares da Novaterra. Os quatro coros são amor em movi-
mento para o despertar da consciência da vida dentro de
um corpo de vida comum: a Mãe Terra.

É nas crianças e jovens que depositamos a esperança de


futuro melhor. De que forma contribuem projetos co-
mo o Coro dos Mensageiros da Natureza para tal e como
se trabalham conceitos como o da ancestralidade e da
espiritualidade nestas novas gerações?
As crianças são mestras pois já trazem consigo um mun-
do repleto de substância naturalmente amorosa. Os
Mensageiros da Natureza brincam a cantar e a dançar.
Não procuro educar, procuro dar espaço à expressão
naturalmente feliz. Profundidade é a dimensão mais im-
portante que devemos cultivar nas nossas vidas; sem ela
não conseguimos reconhecer o que é natural e próprio
da natureza. A nossa sensibilidade é igual ao fluxo de um
rio que deve correr livre, sem margens artificiais impos-
tas. Conceitos como a ancestralidade e a espiritualidade
transmitem-se apenas e só sendo exemplo vivo. A men-
sagem que deixo a todos aqueles que querem ser profes-
sores é: sejam fiéis à vossa voz interior e profundamente
responsáveis. Nada é mais ancestral e espiritual que isto.

A busca da conexão com a Natureza através da Arte deu


também origem a projetos como o Estúdio Jardim e a
Escola Voz da Terra. Fale-nos um pouco sobre cada um
desses projetos.
É um sonho criar e gravar álbuns musicais no meio da
natureza. Sempre que estou perto do mar, e me conecto
«...Não procuro edu-
com uma árvore nascem melodias. É natural. Não exis- car, procuro dar es-
te qualquer esforço ou expectativa, é como respirar. O paço à expressão
Estúdio Jardim é esse espaço onde o diálogo entre a fo- naturalmente feliz...»
ASC

SUPER 23
lha e a célula está vívido, onde o corpo comunga de um sistema. Adoro grandes desafios como cantar uma obra
modo muito sensível com o verde e o vento. Sinto que em 29 línguas diferentes como o Gaudeamus do Maestro
o humano tem em si essa joia que é alquimia, porque Victorino D’Almeida, e adoro transformar a performan-
ele sente a natureza, ela vibra no multiverso! Através da ce numa festa de aldeia onde público e artistas se fundem
imaginação é possível criar mundos dentro de mundos e num só espaço de alegria natural! Onde todos somos um
alargar limites ou criar novas estrelas. O humano é em si Só corpo que canta pelo Bem Maior da Terra!
mesmo um milagre e a natureza reconhece-o chaman-
do-o! Este é um mistério que abraço todos os dias, como Entre a ópera, a oratória e o recital, na sua longa expe-
fonte de estudo e paixão! A Escola Voz da Terra é esta riência em canto lírico, qual foi o seu maior desafio e o
que nutre o humano guardião dos elementos, que dá que mais a marcou até hoje?
voz à estrela dentro da Terra, que sabe cantar o átomo e Desenvolver a minha própria encenação da ópera «La
a galáxia! É um projeto grandioso que deu os primeiros voix humaine» ao longo de 9 meses foi uma experiência
passos nos últimos dois anos onde o intergaláctico se extraordinária e receber no final a saudação do diretor da
casa com o intraterreno, onde o micro e o macrocosmos Universidade de Berlim que disse nunca antes se ter feito
são vistos à lupa dentro do próprio timbre vocal! nada tão impactante no departamento de canto! Cantar
a Missa Solemnis de L.v.Beethoven nos Dias da Música
O estudo e o treino exigido como cantora lírica não a no CCB, foi como subir o monte do Evereste, pois em
demoveu de dedicar (muito) tempo e (boas) energias a termos técnicos é do mais difícil que há. Cantar a obra
uma pluralidade de projetos. Todos são bocadinhos de Gaudeamus em 29 línguas diferentes! Gravar as canções
si que tentam contagiar aqueles com quem se cruza. De de F. Schubert pois são canções que também apresentam
que forma se complementam? uma dificuldade extrema! Enfim, tudo aquilo que é real-
A cantora lírica trabalha numa dimensão individual, na mente desafiante e difícil foi o que mais me marcou como
Novaterra trabalho numa dimensão coletiva. Não é fácil cantora lírica, tudo o que possa aguçar o meu intelecto e
este casamento e tive que encontrar o equilíbrio ao lon- expressão criativa é fonte de paixão!
go dos anos. Dizer não e dizer sim, sentindo que não e
sim são uma só vontade, a de ser fiel à minha missão de A discografia a que tem dado a sua voz vai de interpre-
vida. Quando canto dentro do ramo da música erudita tações de Fernando Lopes Graça e Vianna da Motta a
sinto automaticamente uma verticalização, um género Antero de Quental. Planeia mais algum trabalho disco-
de limpeza, é muito, muito saudável! Porém, onde me gráfico para breve?
sinto verdadeiramente em casa é no grito e na voz mais Tenho grandes planos! Mas todos com música de minha
selvagem e direta, que incita a corrente de alegria, onde autoria. Os Roteiros Músico-Naturais são o grande de-
o tremendo gesto da fusão dentro de um coletivo é capaz safio que abraço a partir de 2024! O primeiro é dedica-
de criar memórias que são faróis para a vida toda! A ale- do ao Trilho Ecológio da Lipor! O meu coração explode
gria é o melhor antídoto para todos os males do mundo. de felicidade com a materialização deste projeto! Tenho
Sinto que a minha expressão multifacetada está ao ser- planos também para a gravação da minha música me-
viço dessa diversidade que se manifesta no nosso ecos- ditativa e de relaxamento, as viagens sonoras. E tenho

«Adoro grandes desafios como cantar uma obra


em 29 línguas diferentes como o Gaudeamus do Maestro
Victorino D’Almeida»
«A música, o
som, a voz, um
gesto puro
acompanhado
de um olhar
puro tem o
poder de abrir
portais para a
criação do
paraíso na
Terra!»
ASC

24 SUPER
A Associação NOVATERRA
um desejo enorme de escrever mais canções dedicadas
ao nosso reino animal! Já escrevi um Cancioneiro dos
Animais, mas quero escrever mais 20 pelo menos! Possa
É na educação pela arte em harmonia com a natureza que a No-
vaterra se inspira para impulsionar as suas dinâmicas peda-
gógicas. Como uma árvore cheia de vida, estende os seus ramos
eu viver muitos anos nesta Terra para conseguir colocar pela diversidade de projetos que em comum têm o amor e o res-
em prática todos os meus projetos, são tantos! peito pelo Planeta Terra e pelo significado de se ser humano.
São quatro os coros que dão vida a uma forte dinâmica multige-
Tem trabalhado com vários maestros de renome e re- racional: os AMAYÔ (coro misto), as MAKAWEE (coro feminino),
centemente com o Maestro Victorino D’Almeida na as KALINDI (coro feminino juvenil) e os MENSAGEIROS DA NA-
obra «Gaudeamus». Que sensações teve ao trabalhar TUREZA (coro de crianças).
em dupla com este Maestro tao mediático? A associação organiza e participa com regularidade em ciclos
O Maestro Victorino D’Almeida é um ser muito puro! de workshops, cursos, palestras, festivais e em grandes concer-
Trabalhar com ele é estar em contacto com a Inocência tos temáticos originais de inspiração indígena, africana, poética
de uma criança que conhece o paraíso! Há uma alegria e meditativa, cruzando as artes com o conhecimento científico e
muito espontânea em si e um génio que pressente em si o meio ambiente.
a utopia! Aceitei o desafio do Gaudeamus como se fosse Entre as suas edições, destacam-se «Planeta Azul, Canções pa-
um presente dos deuses! Cantar a sua música é estar em ra a Mãe Terra» e o Livro/CD «Refúgio, A arte de proteger a Flo-
casa, sinto que a minha voz cresce naturalmente quan- resta», os Livros/Álbuns Musicais «Cancioneiro dos Animais»,
do canta as suas melodias, podendo mostrar a sua bele- «Cancioneiro das Flores», «Imaginário Popular» entre outros
za e profundidade simultaneamente! projetos literários/discográficos. Vale a pena descobrir mais em
https://www.novaterra.com.pt
Este ano, na sequência de parcerias com as mais impor-
tantes orquestras do país, levou a Berlim a obra «Meta-
morfoses de Amor» de Sara Ross com a Orquestra Fi-
larmónica Portuguesa, sob direção de Osvaldo Ferreira. -se no teatro que ele estabelecia a ordem de comporta-
Fale-nos também um pouco sobre essa experiência. mento! Senti a todo o instante integridade, humildade e
Um privilégio e uma ironia. Em 2022 no dia da Europa grandiosidade! Uma lição para a vida! Uma bênção!
cantei a obra Gaudeamus no Coliseu do Porto em que
todas as canções são um autêntico hino à União Euro- Desafiar as emoções do público é algo comum nos seus
peia, todas as canções falam sobre alegria! Em 2023 no concertos e espetáculos. A que outros poderes se alia o
dia da Europa canto uma obra que retrata a personagem poder da música para nos conduzir pelo universo das
mitológica como uma refugiada, mostrando o seu lado sensações?
mais sombrio. Foi o contraste total! Sentir no corpo es- O poder da liberdade e do amor divino! Quantas faces de
sa dualidade foi profundamente real! Cantar em Berlim, nós mesmo existem no amplo campo da existência? A ar-
na Phillharmonie foi também uma belíssima ironia! O te permite-nos romper limites e ancorar estrelas na Ter-
desejo de qualquer cantor é cantar numa sala daquelas! ra! A música é um veículo tão poderoso que pode curar,
Como tudo se organizou para me levar a subir àquele transmutar, elevar, pode ser ascensão e dissolução de
palco parece-me um belíssimo golpe do destino, um traumas, dores e perdas. A música, o som, a voz, um ges-
presente dos céus! O que guardo desta experiência é um to puro acompanhado de um olhar puro tem o poder de
tesouro, subir àquele palco de Berlim foi extraordiná- abrir portais para a criação do paraíso na Terra! Sinto que
rio, mas no meu interior não senti qualquer diferença quando estamos juntos e cantamos somos cocriadores do
entre aquele e outros palcos! Senti-me una. Estava cal- paraíso! De algum modo sinto o fundo do mar e a aurora
ma, segura e simplesmente feliz, com uma sensação de boreal porque lhe canto, esta é uma alegria tão, tão pura!
sobriedade. Estou muito, muito grata ao maestro Os- É uma chave preciosa este canto de amor à Terra, um te-
valdo Ferreira por esta oportunidade! souro que devemos nutrir todos os dias!

Como surgiu o convite para participar no filme «Casa- Soprano, compositora, maestrina, professora, produ-
nova Variations» com John Malkovitch e como se sentiu tora... Tem mais algum projeto por concretizar ou é no
na personagem de Cecília? caminho de todas estas experiências que reside a magia
A oportunidade surgiu no ano em que voltei a Portugal. da sua realização profissional?
Quando decidi mudar o rumo da minha vida e me des- Quando penso nesta questão sinto o meu corpo a ferver,
pedi da possibilidade de fazer uma carreira em que viajo parece que já sei o meu caminho nos próximos 10 anos
muito, cantando de teatro em teatro, eis que os princi- e há quase uma ânsia de lá chegar por ser tão belo! Dou
pais cantores da atualidade se reúnem em Portugal, no resposta diariamente à vontade do meu coração, tra-
Teatro de S.Carlos, e eu sou a cantora portuguesa esco- zendo sempre a dimensão do sagrado à minha vida, uma
lhida. Jamais me passaria pela cabeça cantar com o Jonas dimensão que vai muito além da cultura, da religião, do
Kaufmann, mas eis que ele própria vem à minha Terra e tradicional, mas que abraço tudo com amor, com mui-
eu canto com ele! Foi muito irónico! Contracenar com to, muito amor! Sou devota da flor como sou do terço
Malkovitch foi uma verdadeira lição de humildade. Eu que minha mãe segurou nas mãos enquanto criança. Os
estava nervosa, com expectativas relativamente à sua artistas têm a missão de unir os fragmentos soltos pelo
personalidade, mas logo no primeiro momento em que mundo, e é isso que estou a fazer a cada dia que passa,
o vi na sala de maquilhagem, o seu sorriso mostrou um a aprender a integrar todos os registos da memória no
ser humano grandioso! Foi gentil, atencioso, ajudou- campo do multiverso. A minha realização profissional
-me a cada passo, deixou-me à vontade conversando é a minha realização de vida, não há diferença entre
comigo acerca da minha experiência, fez questão de me profissional e pessoal para mim, tudo se funde numa só
tecer elogios quanto à minha prestação vocal, e sentia- esfera: a Missão de Amor pela Mãe Terra. e

SUPER 25
M U N D O Q U Â N T I C O

26 SUPER
A INVERSÃO DA
SETA DO TEMPO
Duas experiências de laboratório mostram a sobreposição quântica entre os estados
de um fotão que parece deslocar-se simultaneamente para o futuro e para o passado,
como se o tempo tivesse sido invertido.

Texto de FRANCISCO R. VILLATORO,


físico e professor na Universidade de Málaga

A «física da
UNSPLASH

ordem causal
indefinida» atrai
muitos físicos
quânticos que
afirmam que ela
poderia revelar a
natureza
quântica do
tempo.

SUPER 27
YAAKOV FEIN UNIVERSITÄT WIEN

A Universidade de Viena, em colaboração com a Universidade de Basileia, conseguiu provar o princípio da sobreposição quântica de uma
forma sem precedentes: conseguiram a sobreposição quântica de moléculas complexas compostas por até 40 000 partículas individuais.

I
nverter a seta do tempo é im- o que se chama tempo não é invertido. Apenas se altera
possível, tal como viajar para a ordem em que certas operações são aplicadas a um
trás no tempo. As máquinas qubit, sendo essa ordem controlada por outro qubit. O
do tempo só existem na ficção que é mais fascinante é o facto de permitir uma «cau-
científica. Mas muitas coisas salidade indefinida», a sobreposição quântica das duas
impossíveis na física clássi- ordens causais das operações sobre o qubit.
ca podem ser conseguidas na
física quântica; neste caso, NA FÍSICA QUÂNTICA, HÁ MUITOS FENÓMENOS SURPREENDEN-
usando uma definição correta TES EM QUE A SETA DO TEMPO PARECE INVERTER-SE. O mais
da seta do tempo. A inversão conhecido é a retrocausalidade quântica, que é fre-
quântica da seta causal do quentemente mal interpretada como significando que
tempo é estudada pela cha- o futuro influencia o passado. Na realidade, os resul-
mada «física da ordem causal indefinida», que nasceu tados de uma experiência passada são simplesmente
em 2013 quando o grupo de Giulio Chiribella introduziu reinterpretados utilizando a informação obtida no
o operador quântico SWITCH, também chamado «in- futuro graças a uma «medição quântica com escolha
versor quântico do tempo». Este operador de ordem diferida». Neste último caso, são utilizados dois qubits
elevada (porque atua sobre outros operadores) permite entrelaçados, um que efetua a medição, mas sem que o
trocar a ordem causal das operações efetuadas sobre um resultado seja observado, e outro que se usa no futuro
qubit (bit quântico). Isto inverte uma versão da seta do para observar o resultado da medição.
tempo, a que se baseia na causalidade, em que as causas A ideia teórica da causalidade indefinida consiste em
precedem os efeitos. obter uma sobreposição quântica das relações A causa B
Os físicos quânticos inspiram-se na ficção científica e B causa A. A medição quântica de um qubit modifica o
para inventar nomes apelativos, mas não nos devemos seu estado; se estiver numa sobreposição de dois valores
deixar enganar por eles. Provavelmente já sabe que no possíveis com determinadas probabilidades, após a me-
teletransporte quântico, apesar do seu nome inspirado dição projeta-se para um e apenas um desses valores.
no Star Trek, nada é teletransportado, apenas o esta- Diz-se que A causa B quando, depois de aplicar a ope-
do de um qubit é copiado para outro qubit. Poderíamos ração A a um qubit, se efetua uma medição quântica do
chamar-lhe «cópia quântica», mas chama-se «tele- seu estado antes de lhe aplicar a operação B; e vice-ver-
transporte» porque o estado original do qubit copiado sa, para B causa A. Neste protocolo quântico, um qubit
é destruído no processo. O mesmo acontece com a «in- de controlo é utilizado para determinar que sistema se
versão quântica do tempo», em que, apesar do nome, mede: se valer |0 > medir-se-á A, logo A causará B, mas

28 SUPER
Na prática, não é possível uma experiência de causalidade
indefinida utilizando uma medição quântica, porque
impede a sobreposição das relações de causa-efeito

se valer |1>, então medir-se-á B, pelo que B causará A. O Liu, e uma equipa franco-austríaca liderada por Wal-
que é fascinante na física quântica é que, quando o qu- ther e Strömberg publicaram manuscritos no arXiv
bit de controlo se encontra num estado de sobreposição (ainda não revistos por pares) com as duas primeiras
equiprovável entre |0> e |1>, obtém-se uma sobreposi- realizações experimentais consideradas completas. A
ção de ambas as relações causais; obtém-se uma relação equipa de Chiribella e Liu usa um único fotão para im-
causa-efeito indefinida. plementar os dois qubits: o qubit que percorre os dois
Em física, a teoria é sempre mais fácil do que a expe- caminhos causais está codificado na polarização do
riência. A medição quântica é uma operação irreversível, fotão e o qubit de controlo que determina o caminho
que não pode ser revertida: a partir do estado do qubit a percorrer está codificado no seu momento angular
após a medição, não é possível obter o seu estado ini- orbital. A utilização de um único fotão facilita o ajuste
cial (a distribuição de probabilidades dos seus valores da fase do interferómetro, o que é fundamental para o
possíveis). Na prática, não é possível realizar uma ex- sucesso da experiência. Simplificando, o caminho do
periência de «causalidade indefinida» utilizando uma fotão é dividido em dois caminhos por um divisor de
medição quântica, porque esta impede a sobreposição feixe. No percurso A-M-B, o fotão passa pelo sistema
das relações causa-efeito. Mas a física quântica oferece A, que altera a sua polarização, passa pelo sistema de
uma forma de contornar este problema, utilizando uma medição M e depois passa pelo sistema B, que também
medida quântica com escolha diferida. altera a sua polarização. A outra trajetória B-M-A se-
gue o mesmo caminho mas em sentido contrário, o
FORAM PUBLICADAS VÁRIAS TENTATIVAS DE REALIZAR A EX- fotão passa pelo sistema B, passa pelo mesmo sistema
PERIÊNCIA DE CAUSALIDADE INDEFINIDA com SWITCH de medição M e depois passa pelo sistema A. A traje-
utilizando ótica quântica. Nelas, os qubits são imple- tória escolhida é determinada pelo qubit de controlo.
mentados com os estados dos fotões a atravessar os Finalmente, os dois caminhos são recombinados por
braços de um interferómetro de tipo Mach-Zehnder outro divisor de feixe e os fotões são levados a dois sis-
modificado; além disso, os sistemas A e B são simu- temas de medição capazes de medir o estado separado
lados com dispositivos Simon-Mukunda capazes de dos dois qubits implementados com um único fotão.
implementar uma operação arbitrária num qubit codi-
ficado na polarização de um fotão. Até ao final de 2022, A EQUIPA DE WALTHER E STRÖMBERG UTILIZA UM ESQUEMA MAIS
todas as tentativas foram consideradas incompletas. COMPLICADO, com um interferómetro duplo com fibras
Uma equipa italo-chinesa liderada por Chiribella e óticas para canalizar os fotões; além disso, os sistemas

O interferómetro de Mach-Zehnder
É utilizado em ótica quântica para ilustrar a ideia de que uma partícula parece estar em dois sí-
tios ao mesmo tempo. O esquema do interferómetro de Mach-Zehnder é simples. Um laser
gera um único fotão que é dirigido horizontalmente para um primeiro divisor de
feixe. Com uma probabilidade de 50 %, o fotão encaminhar-se-á na direção
vertical ou continuará na horizontal. Utilizando ambos os espelhos inclina-
dos a 45 graus, a direção vertical torna-se horizontal e a direção horizontal
vertical. Ambos os percursos óticos são ajustados
de modo a coincidirem num segundo separador de
feixes idêntico. Atrás dele, são colocados dois de-
tetores de fotões simples, um na direção vertical e
outro na horizontal.
A ideia de que o fotão é uma partícula leva-nos a pensar que, após o primeiro separador de feixes, o fotão percorrerá um de dois
caminhos possíveis. Qualquer que seja o caminho, ao chegar ao segundo divisor de feixe, voltará a selecionar um dos dois ca-
minhos possíveis. Assim, com uma probabilidade de 50 %, será ativado o detetor vertical ou o detetor horizontal. No entanto, a
dualidade onda-partícula da física quântica diz-nos que o fotão também se comporta como uma onda. A onda do fotão divide-se
em duas no primeiro divisor de feixe, ambas viajam através dos dois braços do interferómetro e combinam-se numa única onda
após o segundo divisor de feixe. Se os dois percursos óticos forem idênticos, a combinação dará origem a um fotão idêntico ao
inicial, ativando assim o detetor horizontal em 100 % das vezes. É este o resultado experimental num laboratório. Quem insiste
em imaginar o fotão como uma partícula só pode explicar o resultado experimental se o fotão estiver a caminho de dois lugares
diferentes ao mesmo tempo. Mas a física quântica diz-nos que o fotão não é uma partícula nem uma onda. E também explica per-
SHUTTERSTOCK

feitamente o funcionamento do interferómetro de Mach-Zehnder.

SUPER 29
GETTY

A ideia teórica da causalidade indefinida consiste em obter uma sobreposição quântica das relações A causa B e B causa A. Quando o
qubit de controlo se encontra num estado de sobreposição equiprovável entre |0 e |1, obtém-se uma sobreposição de ambas as rela-
ções causais.

são duplicados, A-M-B de um lado e A′-M′-B′ do outro. Vamos expor a ideia do jogo através do lançamento de
O qubit codificado na polarização de um fotão pode se- moeda ao ar. Imaginemos que o Eugénio tem duas moe-
guir dois caminhos óticos: o primeiro passa por A-M-B das viciadas, uma que dá cara em 80% das vezes e outra
e depois por B′-M′-A′, a direção para a frente no tempo, que dá coroa em 80% das vezes. O jogo consiste em adi-
e o segundo passa por B-M-A e depois por A′-M′-B′, a vinhar qual a moeda que o Eugénio lançou depois de ver
direção para trás no tempo. O caminho seguido é de- se sai cara ou coroa. Sem fazer nada, tem 90% de hipó-
terminado pelo qubit de controlo que está acoplado a teses de acertar. A versão quântica utiliza uma moeda
circuladores que determinam a direção de propagação quântica e permite-lhe aplicar uma operação quântica à
nas fibras óticas. Finalmente, os dois caminhos são uni- moeda durante o lançamento. Se aplicar um protocolo
dos por um divisor de feixe que direciona os dois qubits de probabilidade indefinida, que lhe permite explorar
para dois detetores para medir o seu estado. Toda esta o «passado e o futuro» da moeda, pode ajustar o qubit
experiência é uma proeza técnica. de controlo de modo a que as moedas viciadas acabem
sempre por mostrar o seu lado mais provável. Ao ver o
A CERTIFICAÇÃO DA INVERSÃO TEMPORAL. Os resultados de resultado, saberá qual a moeda que foi lançada e ganha-
ambas as experiências foram comparados com previsões rá 100% das vezes.
teóricas de simulações em computador; a concordância As duas equipas experimentais implementaram este
alcançada é excelente. No entanto, não é suficiente para jogo quântico como uma certificação. Na experiência
que sejam consideradas realizações completas da «cau- franco-austríaca, o jogo é ganho em 99,45% das vezes
salidade indefinida». No início de 2022, Chiribella e Liu e na experiência italo-chinesa em 99,60% das vezes.
publicaram na revista Communications in Physics uma Em ambos os casos, o valor obtido é muito superior a
forma prática de certificar o resultado deste tipo de ex- 90 % sem vantagem quântica. Na opinião dos autores,
periências. Um jogo quântico que utiliza uma estratégia a implementação da «causalidade indefinida» nas suas
baseada na «causalidade indefinida» como uma vanta- experiências está completa.
gem quântica para ganhar sempre.
A formulação original do jogo baseia-se em brin- A DESIGUALDADE CAUSAL DE TIPO BELL. O Prémio Nobel
cadeiras com interferómetros e medições quânticas. da Física de 2022 foi atribuído a Alain Aspect, John F.

Para certificação da inversão temporal, várias equipas de


investigadores implementaram um jogo quântico
30 SUPER
O dispositivo de Simon-Mukunda
U m qubit (bit quântico) é o sistema quântico mais sim-
ples possível, com apenas dois valores discretos,
sejam eles |0> e |1>. O estado mais geral de um qubit é a
QUANTUM
<LOGIC GATE>

sobreposição quântica α |0> + β|1>, com a condição de


normalização |α|² + | β |² = 1. A medição quântica de um
tal estado resultará num valor 0 com uma probabilidade de
|α|², ou num valor 1 com |β|². O qubit é representado por
um vetor normalizado de duas componentes (α, β). Uma
operação arbitrária aplicada ao qubit corresponde a multi-

SHUTTERSTOCK
plicar este vetor por uma matriz de dois por dois, que seja
unitária e de determinante unidade, uma matriz SU(2).
Na ótica quântica, os qubits são codificados utilizando os
diferentes graus de liberdade de um fotão. Normalmente, é utilizada a polarização linear do fotão; neste caso, são utilizados dois
eixos perpendiculares (horizontal ou vertical) para representar os estados |0> e |1>. Mas também se pode utilizar a polariza-
ção circular (a que se utiliza nos óculos 3D do cinema), o momento angular orbital, o tempo de emissão, ou mesmo a frequência.
Qualquer que seja o método utilizado, são usados diferentes dispositivos óticos para operar sobre estes qubits.
O dispositivo mais simples é uma placa transparente cuja largura é um submúltiplo do comprimento de onda do fotão. Na
maioria das experiências, os fotões são gerados com lasers de infravermelhos, com um comprimento de onda típico de 1546
nanómetros. São mais frequentemente utilizadas placas de meio comprimento de onda (HWP) e de um quarto de comprimen-
to de onda (QWP). Estas placas têm um eixo ótico e podem ser rodadas num determinado ângulo, de modo a que a operação
aplicada ao qubit dependa desse ângulo. Em 1990, Simon e Mukunda mostraram que uma operação SU(2) arbitrária pode ser
aplicada a um qubit codificado por polarização de fotões utilizando uma sanduíche QWP/HWP/QWP/QWP, constituída por uma
placa de meio comprimento de onda entre duas placas de um quarto de comprimento de onda. Isto é conseguido ajustando os
ângulos entre estas placas em conformidade. É surpreendente que um dispositivo tão simples permita operações arbitrárias em
qubits ópticos.

Clauser e Anton Zeilinger pelas suas experiências que


As experiências não conseguiram inverter a seta do tempo,
demonstram que a Natureza viola as desigualdades de uma vez que os fotões percorrem caminhos diferentes do
Bell (que cumpre todas as teorias relativistas clássicas passado para o futuro.
de variáveis ocultas subjacentes à mecânica quânti-
ca). Como se pode imaginar, foi proposto um análogo
a estas desigualdades no domínio da «física de ordem
causal indefinida». Em 2013, foi proposta a desigual-
dade causal de Oreshkov, Costa e Brukner, que não
cumpre qualquer dispositivo quântico que inverta a

SHUTTERSTOCK
seta de tempo causal. Infelizmente, em 2015 demons-
trou-se que o operador quântico SWITCH cumpre com
esta desigualdade. Foram propostas variantes des-
ta desigualdade, mas com o mesmo resultado. Nem
o modelo teórico da «causalidade indefinida», nem
muito menos as experiências efetuadas, provam que a A «FÍSICA DA ORDEM CAUSAL INDEFINIDA» ESTÁ A ATRAIR MUI-
física quântica permite a inversão temporal. De facto, TOS FÍSICOS QUÂNTICOS. Alguns estão tão entusiasmados
ninguém sabe se é possível que a física quântica viole com estas experiências que afirmam sem pudor que po-
estas desigualdades causais. Tudo aponta para o facto dem ajudar a desvendar a natureza quântica do tempo e
de ser impossível. abrir caminho a uma teoria quântica da gravitação; fa-
Este resultado é um duro golpe para a «causalidade lam mesmo de viagens no tempo ou de avanços na física
indefinida». Mas os físicos são pragmáticos e con- dos buracos negros. Outros imaginam futuros computa-
sideram que os operadores SWITCH oferecem uma dores quânticos utilizando portas lógicas reversíveis no
vantagem quântica que pode ser útil na resolução de tempo (embora todas as portas lógicas quânticas já sejam
certos problemas (embora, por enquanto, o único reversíveis pela sua própria natureza). Lamento as más
exemplo conhecido seja um jogo quântico de pouco notícias, mas estas afirmações sensacionalistas são falsas.
interesse prático). Em 2023, foi publicada uma nova As experiências de «causalidade indefinida» são uma
desigualdade, denominada DRF, cujo incumprimento grande ostentação experimental, mas em nenhum caso
permite certificar que a vantagem quântica do opera- conseguem inverter a seta do tempo, porque é impos-
dor SWITCH foi alcançada. O acrónimo DRF alude a sível. Nelas, os fotões percorrem sempre caminhos
«Ordem Causal Definida, Causalidade Relativística e diferentes do passado para o futuro durante o tempo
Livre (Free) de Intervenções». Ainda não se verificou indicado por um relógio no laboratório. Afirmar o con-
que as experiências italo-chinesa e franco-austríaca trário é um abuso de linguagem. Lamento muito, mas
incumprem com a desigualdade DRF, mas atrevo-me inverter a seta do tempo é impossível, tal como viajar
a prever que sim. para o passado. e

SUPER 31
G E N É T I C A

O GENOMA
DEFINITIVO
E OS NÚMEROS DA VIDA
É um dos maiores marcos da investigação: conhecer toda a sequência do
DNA, descobrir o que nos torna únicos e irrepetíveis. Mas esta conquista
científica coloca uma série de desafios que devem ser enfrentados
em conjunto, por toda a sociedade, para que possa gerar benefícios
universais.

Texto de ANTONIO ALARCÓ HERNÁNDEZ,


presidente da Cátedra de Telemedicina, Robótica e Telecirurgia
da ULL. Doutor em Ciências da Informação e Sociologia.
Ex-senador e porta-voz da Saúde.

32 SUPER
A sequenciação do
SHUTTERSTOCK

genoma humano
está a obrigar a
repensar os
cuidados de saúde
a todos os níveis:
organizacional,
administrativo,
científico,
informático, etc.

SUPER 33
«Um otimista vê uma oportunidade Humano, estava interessado nestas «lacunas» e em-
em cada calamidade, um pessimista penhado em completar um dia o trabalho de leitura do
vê uma calamidade em cada oportunidade». genoma completo. A sua curiosidade, e a de outros, le-

M
Winston Churchill. vou à descoberta de genes e de níveis inesperadamente
elevados de variação genética nos centrómeros destas
ais uma vez, estamos a entrar regiões dos 8%.
numa era de grandes reali- Mas o mais importante é que este genoma humano
zações científicas que, para completo e definitivo tem e terá um impacto dire-
muitos, passam despercebi- to na investigação biomédica e ajudará a melhorar os
das e que são fundamentais cuidados médicos dos nossos doentes. Em suma, da
para a humanidade. Estamos humanidade. Com a resolução descrita nas chamadas
a referir-nos à sequenciação zonas «cinzentas», foram identificadas sequências
definitiva, pela primeira vez, que podem estar relacionadas com a síntese de proteí-
de todo o genoma humano. nas que têm relação direta com doenças.
Os chamados «números da Como já publicámos e apresentámos na Tribuna da
vida» são, em suma, os que Câmara Alta (Senado) sob a forma de moções, a ver-
se encontram no genoma de dadeira e obrigatória mudança no modelo de saúde é a
cada um de nós, que é individual, intransmissível e ir- medicina genómica. É necessário desenvolver a Estra-
repetível. tégia Nacional de Medicina Genómica, Personalizada e
Tudo isto é relevante porque, mais de 21 anos após a de Precisão, algo que foi aprovado por unanimidade e
publicação da sequenciação do genoma humano, rea- que representou, de facto, o verdadeiro pacto para a
lizada por duas equipas diferentes — a pública Human saúde de que Espanha necessita.
Genome Project (HGP) e a privada Celera Genomics
—, 8% do genoma humano ainda não tinha sido de- A MEDICINA GENÓMICA, PERSONALIZADA E DE PRECISÃO NÃO
cifrado ou sequenciado, o que significava que uma É UMA OPÇÃO, É UMA OBRIGAÇÃO no âmbito da evidência
parte significativa do DNA permanecia desconhecida. científica, necessária para a prática médica.
Agora, pode dizer-se que está completo, o que cons- O Plano-Estratégia para a Medicina Genómica e de
titui um acontecimento científico importante. Evan Precisão foi o produto de um trabalho sério levado a
Eichler, do Howard Hughes Medical Institute (HHMI) cabo por mais de 56 especialistas ligados aos dife-
da Universidade de Washington (Seattle), sabia-o bem. rentes setores, hospitais, investigadores, sociedades
Este investigador, que participou no Projeto Genoma médicas, universidades, laboratórios, associações de

A sequenciação
do genoma
humano
identificou
sequências de
proteínas que
podem estar
relacionadas
com algumas
doenças.
CREDITO

34 SUPER
ASC

Alguns pontos-chave
l O Genoma Definitivo representa os números da vida, que se
traduzem na prática clínica quotidiana.
l Passaram 21 anos desde que foi publicada a sequenciação
do genoma humano e só agora foram decifradas as suas
zonas cinzentas.
l Estas zonas cinzentas do genoma final podem estar
diretamente relacionadas com doenças.
l A medicina genómica não é uma opção, mas uma obrigação.
l É essencial a implementação de um Plano-Estratégia
Nacional para a Medicina Genómica, Personalizada e de
Precisão.
l A supercomputação e a genómica são um casamento
indissolúvel.
l A designação de Centros Nacionais de Referência (CNR) seria
Evan Eichler é um
investigador do a forma mais sensata de organizar a medicina genómica.
Howard Hughes l Não se pode fazer da saúde política, mas sim política de saúde.
Medical Institute
que estuda a
evolução do
genoma humano,
a sua variação e o
seu papel nas
doenças.
que ajuda a praticar uma medicina baseada na evidên-
cia e, porque não, a sustentabilidade e a equidade do
sistema.

doentes e juristas das diferentes áreas. De referir ainda PORTUGAL, bem como vários outros Estados membros,
que a Fundação Instituto Roche, com um grupo de pe- como a Espanha, por exemplo, foi signatário da decla-
ritos nacionais e internacionais, no âmbito do capítulo ração «Towards access to at least 1 Million Genomes in
sobre os Cuidados de Saúde do Futuro, e após vários the EU by 2022», promovida pela Comissão Europeia
dias de trabalho, fez uma série de recomendações para no âmbito da sua estratégia digital, com o objetivo de
a medicina personalizada e de precisão, nas quais par- fomentar a partilha de dados genómicos e de saúde das
ticipámos ativamente. populações da Europa.
A intenção é beneficiarmos todos do enorme impac-
SEGUNDO O NATIONAL RESEARCH COUNCIL OF THE NATIONAL to clínico e científico associado a esta partilha, tendo
ACADEMIES (NRC-USA), a medicina de precisão consis- em conta que estes abrangem mais de 1 milhão de ci-
te em adaptar o tratamento médico às características dadãos.
individuais de cada doente, ou seja, a capacidade de Em março de 2022 foi apresentado o documento
identificar doentes com diferente suscetibilidade de «Estratégia Nacional para a Medicina Genómica -
sofrer uma determinada doença, na biologia e/ou no PT_MedGen - Desafios e prioridades», preparado pela
prognóstico dessa doença ou na sua resposta a um Comissão nomeada pelo Despacho 5135/2021. Neste
determinado tratamento. Esta identificação é feita documento afirma-se que «Portugal reúne capacidade
através da análise e integração de dados genómicos, e conhecimento para apoiar a implementação da me-
de outras ciências ómicas, de técnicas de imagiologia, dicina genómica a nível nacional. As parcerias entre o
de dados clínicos e do ambiente do doente. Tudo isto Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (IN-
permite aplicar intervenções preventivas ou terapêu- SA) e outras entidades do Serviço Nacional de Saúde
ticas e evitar possíveis efeitos secundários, melhorar (SNS), como os Serviços Partilhados do Ministério da
os tratamentos, reduzir os custos, etc. Em suma, uma Saúde (SPMS) e os serviços hospitalares, a Agência de
mudança de paradigma na forma como os cuidados Investigação Clínica e Inovação Biomédica (AICIB),
médicos são aplicados, incorporando estratégias de várias infraestruturas do Roteiro Nacional de In-
diagnóstico e tratamentos mais eficazes e seguros e fraestruturas de Investigação de Interesse Estratégico
fornecendo soluções para garantir a sustentabilidade (RNIE), como o GenomePT e o BioData.pt, as institui-
do sistema de saúde. ções públicas e privadas de investigação e inovação, as
Mas é essencial procurar soluções para o tornar sus- academias, o Health Cluster Portugal e a indústria, no-
tentável. Por esta razão, a genómica não é uma moda meadamente as pequenas e médias empresas (PMEs),
passageira, mas uma necessidade objetiva do sistema permitem congregar as competências necessárias para

A medicina genómica permite intervenções preventivas e


terapêuticas e melhores tratamentos
SUPER 35
O genoma humano não pode ser patenteado porque é
património da humanidade e deve ser útil a todos

atingir este objetivo. É necessária, no entanto, uma mo a genómica, para que haja uma estratégia nacional
estratégia agregadora que permita tirar partido da ca- clara e evidente,
pacidade instalada e de investimento dedicado para
atingir este objetivo.» A BASE DE DADOS DO GENOMA HUMANO CUSTOU 3 MILHÕES DE
Tendo este documento como base, Portugal can- DÓLARES e demorou 10 anos a ser concluída. Existem
didatou-se de forma bem sucedida ao Programa de 22 000 variantes do código genético. Foi acordado
Apoio às Reformas Estruturais/Instrumento de Assis- a nível internacional que não pode ser patenteado
tência Técnica (PARE/IAT) da Comissão Europeia, que porque é património da humanidade. Dos 20 000
permite financiar apoio técnico para a conceção de re- genes que se exprimem em todas as células da nossa
formas estruturais. economia, são as famosas biópsias líquidas (embora
Em suma, trata-se de trabalhar em conjunto para que apenas 450 estejam relacionadas com o cancro) que
o conhecimento e os avanços da medicina cheguem a nos permitem conhecê-los. Estas já estão a ser uti-
todos os cidadãos, sem distinções sociais, evitando um lizadas clinicamente em 6 tumores diferentes, o que
futuro incerto e tendo como principal objetivo a evi- permitirá «caçar» um cancro com uma gota de san-
dência científica e a sustentabilidade do sistema. gue. Fará alterar o conceito militar das neoplasias e
Pensamos que é importante dizer e transmitir que o mudará o paradigma oncológico. Farmacogenómica.
modelo tradicional de saúde está «esgotado». E, por De um ponto de vista económico, o genoma huma-
isso, somos obrigados a procurar novas aplicações co- no permitiu um retorno de 150 dólares por cada dólar

ESTRUTURA DO DNA E DO RNA

N ucleobases

Pares de bases

Hélice de fosfato
de açúcar

Adenina

Citosina

Guanina

Uracilo

Timina

Ácido desoxirribonucleico Ácido ribonucleico


(DNA) (RNA)

36 SUPER
SHUTTERSTOCK
A genética é também fundamental
para a farmacologia: 30% dos
medicamentos dependem de um
gene para serem mais eficazes.

investido, o que significa que é mais um investimento gar as pseudociências e a indústria. A colaboração
do que uma despesa. público-privada nas realizações da genómica é essen-
Pensamos que a implementação da genómica no cial e as expectativas para o futuro são infinitas, onde a
âmbito de uma estratégia europeia deve ser um dos especialização em genética é uma necessidade na qual
comportamentos a recomendar, utilizando correta- estarão envolvidos médicos, farmacêuticos informá-
mente os conhecimentos sem duplicações. ticos, juristas, filósofos, etc. O desenvolvimento do
Um facto importante a ter em conta é o armazena- sistema genómico exigirá também a criação de novas
mento da informação, que é muito difícil, uma vez que, profissões que não estão atualmente previstas na uni-
praticamente, um genoma utiliza 4 cd’s de armazena- versidade tradicional.
mento, pelo que temos de passar ao super-switching. Por tudo isto, um total de 70 especialistas e académi-
Depois, chegamos ao conceito de banco genómico, pelo cos relacionados com os diferentes ramos profissionais
que estamos a entrar na ética, na bioética e na segurança em torno da medicina personalizada e da informática
jurídica. É importante chegar à genómica preditiva e à analisarão as implicações regulamentares, éticas e or-
procura de grandes coortes, o que nos leva ao Big Data. ganizacionais da aplicação desta disciplina científica,
bem como da engenharia genética, da medicina predi-
30% DOS MEDICAMENTOS QUE UTILIZAMOS DEPENDEM DE UM tiva e da medicina de precisão.
GENE PARA SE TORNAREM MAIS EFICAZES, o que revela a ne- Desde que a sequenciação parcial do genoma huma-
cessidade de um conhecimento correto dos mesmos. É no foi concluída em abril de 2003, a medicina poderá
também importante ter em conta a microbiótica que melhorar consideravelmente e, consequentemente,
é o genoma das bactérias que nos habitam, que tem os cuidados e diagnósticos recebidos pelos pacientes,
aparentemente dois quilos. Um facto a ter em conta na sem esquecer também as medidas que a devem regu-
medicina personalizada e de precisão. lar, evitando desigualdades e a existência de pacientes
Um capítulo muito especial decorrente do estudo da de primeira e segunda classe, bem como medidas or-
genómica é o tratamento integral da doença mental, ganizacionais. Por este motivo, queremos reunir todas
que, como todos sabemos, tem uma importância so- as opiniões de especialistas que nos ajudem a estabe-
cial e médica evidente, devido ao número de cidadãos lecer uma estratégia para a sua inclusão no Sistema
afetados e à sua cronicidade. As alterações genómicas Nacional de Saúde (Espanha).
que lhes estão subjacentes estão a ser estudadas, tanto A aplicação dos conhecimentos atuais e futuros so-
para a abordagem terapêutica como, sobretudo, para a bre genómica poderia, por exemplo, evitar efeitos
abordagem farmacológica. secundários nos medicamentos e melhorar significa-
Para procurar a cumplicidade dos cidadãos, é neces- tivamente a sua eficácia.
sário um plano de divulgação no âmbito do jornalismo Não façamos da saúde política, mas façamos política
científico evidente, que ponha claramente no seu lu- de saúde. Pacto para a saúde. e

SUPER 37
N E U R O P S I C O L O G I A

PODEMOS OUVIR
O
SILÊNCIO?
Entre o som e o silêncio existe um debate filosófico, psicológico e neurológico
com séculos de existência: podemos percecionar o silêncio ou é apenas possível
inferi-lo como a ausência de som? Ouvimos realmente que não há som ou
apenas deduzimos que não o há? As respostas a estas questões parecem estar
cada vez mais próximas.
Texto de ABIGAIL CAMPOS DÍEZ,jornalista

38 SUPER
Todas as religiões e

SHUTTERSTOCK
filosofias de vida
potenciam o silêncio,
uma vez que este
favorece a introspeção e
a meditação. No silêncio,
concentramo-nos
melhor.

SUPER 39
O
som é a sensação ou impressão de vista cognitivo (se simplesmente julgamos ou inferi-
produzida no ouvido por um mos que há silêncio, quer dizer, por via da razão).
conjunto de vibrações que se Teorias proeminentes defendem que os sons são os
propagam através de um meio únicos objetos da experiência auditiva e que, por-
elástico, como o ar ou a água. O tanto, o encontro com o silêncio é cognitivo e não
silêncio, por outro lado, é um percetivo. Este debate manteve-se durante muito
estado em que não há som ou tempo no plano teórico. Mas recentemente uma equi-
em que não se ouve nenhuma pa multidisciplinar da Universidade Johns Hopkins
voz. Ambas as definições, in- decidiu dar um passo em frente para tentar resolver
cluídas no Dicionário Oxford, esta controvérsia com provas empíricas. E a conclu-
estão despojadas de qualquer são foi clara: o silêncio é efetivamente percebido e
conotação filosófica. não apenas inferido. O resultado da sua investigação
No entanto, se pensarmos que o silêncio ou o som foi recentemente publicado na prestigiada revista
não é o mesmo para todos os seres, o debate insta- Proceedings of the National Academy of Sciences
la-se. É perfeitamente possível que um ser humano (PNAS) com o título The Perception of Silence (A per-
nonagenário não se aperceba de um motor de auto- ceção do silêncio).
móvel ao longe, mas um cão ouve-o perfeitamente.
Mas, além disso, se a mesma circunstância tivesse OS INVESTIGADORES CONCEBERAM SETE TESTES PARA DISCER-
ocorrido quando a pessoa tinha 20 anos, ela poderia NIR SE O SILÊNCIO PODE GERAR AS MESMAS REAÇÕES CEREBRAIS
ter percebido esse mesmo motor distante... embora QUE UM SOM. Um total de 1000 pessoas participaram
ainda não tão claramente como o cão. Pode, portan- nestas sete experiências — lideradas por Rui Zhe Goh,
to, deduzir-se que o som e o silêncio são sensações doutorado em Filosofia e Psicologia no Departamento
subjetivas relacionadas com o que o ouvinte é capaz de Ciências Psicológicas e do Cérebro da Universidade
de perceber. Johns Hopkins — utilizando «ilusões de silêncio».
Mas será que só ouvimos o som ou também podemos Na chamada ilusão «um é mais», os participantes ou-
ouvir o silêncio? O debate é entre o ponto de vista per- viram dois sons curtos separados seguidos de um único
cetivo (se ouvimos positivamente o silêncio) e o ponto som longo. Os participantes perceberam que o ruído

PNAS
A Experiências 1-3
Experiências 4-6
(Deformação baseada no
Experiências 7
(Um é mais) (Ilusão estranha)
silêncio)

Evento
Um tom
sonoro
Standard vs vs
(som de base)
Dois Puro
Um tom agudo vs Tom baixo
tons silêncio

Um Silêncio
silêncio incorporado
vs Estranho
Silêncio vs Quatro silêncios vs
silêncio
Dois Puro
silêncios silêncio

Restaurante Ruído branco


B C
Verificação dos
auriculares
Pressão

Fase de imersão
Parque infantil Mercado Comboio
Distância
Sinal do canal direito
Sinal do canal esquerdo
Sinal de ambos os canais

A experiência realizada por investigadores da Universidade Johns Hopkins concluiu que o processo auditivo trata os momentos de
silêncio da mesma forma que o som. Assim, o nada e as experiências de silêncio também podem ouvir-se.

40 SUPER
ISTOCK
O ouvido
percepciona a
experiência do
som, bem como a
experiência da
ausência de som.
O silêncio
também é
percepcionado e
não apenas
inferido.

As experiências quotidianas de silêncio são também reais e


não apenas inferências da falta de experiência auditiva

único era mais longo do que os dois tons curtos juntos,


embora a duração total fosse a mesma.
Noutro teste, ouviram um ruído ambiente que simu- Neve insonora
lava o barulho de restaurantes, mercados e estações de
comboios movimentados. Este ruído era abruptamente
interrompido por silêncios estruturalmente idênticos
aos sons. Em todos os casos, os silêncios provocaram
A imagem de um forte nevão induz uma sensação de calma.
Porque é que tudo parece calmo quando há um forte ne-
vão? Para além de as pessoas se abrigarem das intempéries nas
distorções temporais. suas casas, o que pode ajudar a reduzir a agitação do ambiente,
Outra experiência foi a chamada «ilusão estranha». não se trata certamente de uma perceção romântica de uma pai-
Os participantes ouviram em simultâneo dois sons di- sagem branca. Na realidade, a neve atua como um verdadeiro
ferentes, um órgão em tom agudo e uma mota em tom amortecedor sonoro.
grave. De seguida, houve quatro silêncios em que o ór- Graças à sua porosidade, a neve absorve as ondas sonoras, que
gão parou e os participantes apenas ouviram o motor. deixam de ser refletidas ou propagadas como seria o caso em cir-
Finalmente, houve um quinto «silêncio estranho» em cunstâncias normais. A morfologia dos flocos, com a sua forma
que o motor foi desligado e o órgão continuou a tocar. hexagonal, retém o som nos espaços entre eles.
Os ouvintes pensaram erradamente que o intervalo só Para que isto aconteça, a queda de neve deve ter sido intensa e
do órgão era mais longo. ter criado vários centímetros de espessura. Ao derreter, o efeito
desaparece.
SURPREENDENTEMENTE, O QUE ESTE TRABALHO SUGERE É QUE
O «NADA» É ALGO QUE TAMBÉM SE PODE OUVIR. Os autores
concluem que o processamento auditivo trata os mo-
mentos de silêncio da mesma forma que trata os sons.
«As experiências de silêncio são comuns na nossa vi-
da quotidiana. Pensemos na nossa experiência quando
passamos de uma rua barulhenta para um local sosse-
gado ou quando ouvimos uma pausa dramática durante
uma palestra. Acreditamos que os nossos resultados
fazem justiça a estas experiências quotidianas de silên-
cio, mostrando que são experiências reais e não meras
inferências da falta de experiência auditiva», explica
Rui Zhe Goh, autor principal do estudo, em resposta à
Super Interessante. «Os momentos de silêncio também
SHUTTERSTOCK

podem ter um grande impacto em formas de arte como


a música e o teatro. Os nossos resultados sugerem que

SUPER 41
o poder do silêncio artístico resulta, em parte, do facto auditiva, como no processamento da fala e da música,
de existir uma experiência real de silêncio. Esperamos mas não resolveram o grande debate teórico sobre a
que os nossos resultados incentivem as pessoas a pres- perceção real do som versus a consciência cognitiva
tar mais atenção e a apreciar melhor os momentos de do som. O que este estudo nos aporta é que as repre-
silêncio nas suas vidas», acrescenta. sentações de eventos auditivos criadas na ausência
Os resultados da equipa de investigação mostram de conteúdo acústico podem ser percepcionadas»,
que «os sons não são os únicos objetos da audição e afirma o Dr. Faustino Núñez Batalla, presidente da
que também podemos ouvir o silêncio», afirma Rui Comissão de Audiologia da Sociedade Espanhola de
Zhe Goh. «Mais especificamente, os nossos resultados Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço
provam que a segmentação de eventos auditivos, um (SEORL-CCC).
processo anteriormente conhecido por segmentar a
entrada auditiva contínua em sons discretos, também SERÁ QUE O SER HUMANO É CAPAZ DE PERCECIONAR O SI-
funciona em períodos de silêncio. Por outras palavras, LÊNCIO ABSOLUTO, como o que ocorreria num contexto
os períodos de silêncio também podem ser segmenta- de ausência total de estimulação acústica? Esta é uma
dos pelo sistema auditivo em eventos, da mesma forma questão que ainda não foi respondida. «No entanto, há
que os sons o são. que ter em conta que não é possível obter um silêncio
absoluto do ponto de vista fisiológico, dado que um
O ESTUDO PUBLICADO NA PNAS ESTABELECE UMA NOVA FORMA DE organismo vivo está constantemente a produzir sons
ESTUDAR A PERCEÇÃO DA AUSÊNCIA. Mas a porta está agora internos, como a circulação do sangue, a respiração ou
aberta para muitas outras investigações. Por exemplo, as otoemissões acústicas geradas pelo ouvido interno»,
para responder a outras questões como a de saber se po- adverte o Dr. Núñez Batalla, médico do departamento
demos ouvir silêncios que não são precedidos de sons, de Otorrinolaringologia do Hospital Universitário Cen-
«uma grande questão que planeamos abordar em tra- tral das Astúrias.
balhos futuros», acrescenta o especialista. A procura do silêncio absoluto foi e continua a ser o
Para já, a investigação mostra que o silêncio interca- objetivo de numerosas empresas que criaram câma-
lado entre sons (como a pausa entre palavras, o espaço ras anecóicas, ou seja, espaços construídos com um
entre uma batida de palmas e a seguinte ou entre no- isolamento acústico total. Uma dessas empresas é a Mi-
tas musicais) é tratado pelos centros nervosos como crosoft. O edifício 87, a sua sede em Redmond, alberga a
uma verdadeira perceção. «Esta descoberta ofere- sala que em 2015 ganhou o recorde mundial do Guinness
ce uma visão alternativa à interpretação tradicional para a sala mais silenciosa do mundo, com um nível de
segundo a qual o silêncio é apenas uma experiência ruído de fundo de -20,6 decibéis. Para efeitos de com-
cognitiva associada à ausência de som. Apoia o que paração, um sussurro tem 30 decibéis e uma respiração
alguns filósofos defendem, que ouvir o silêncio não normal tem 10. O espaço em questão é um bunker em
é apenas uma incapacidade de ouvir o som, mas uma forma de cubo construído com várias camadas de betão
perceção real. Muitos trabalhos já tinham salientado e aço. Não está aberto ao público e é utilizado para a in-
a importância das pausas e dos espaços na perceção vestigação de novas tecnologias.
PIXABAY

O silêncio
absoluto não
existiria do ponto
de vista
fisiológico, uma
vez que os
organismos vivos,
incluindo o
homem, estão
constantemente a
emitir ruídos.

42 SUPER
MICROSOFT

GETTY
O silêncio tem grandes benefícios emocionais,
A câmara anecóica da Microsoft, Edifício 87, construída na sua sede em permite a regeneração do cérebro, o reforço da
Redmond, é sem dúvida a sala mais silenciosa do mundo. memória e uma melhor expressão da criatividade.

É EVIDENTE QUE O SILÊNCIO AFETA O CÉREBRO. Numa pes- nais? «A ausência de ruído ou de estímulos auditivos,
soa que vive em silêncio absoluto desde o nascimento, especialmente externos, tem quase o mesmo efei-
devido a um problema de audição, o córtex cerebral to que o repouso, e permite-nos purificar os nossos
não desenvolve as redes neuronais que suportam fun- pensamentos e emoções, pensar sobre nós próprios
ções tão importantes como a linguagem falada. «Este para reafirmar a nossa identidade, uma forma de
desenvolvimento só ocorre durante um período relati- compreender a vida e a nós próprios; e é uma gran-
vamente curto de tempo em que há plasticidade neural de companhia para desenvolver as capacidades de
(primeiros anos de vida), após o qual já não é possível autoconhecimento, sabedoria e cura», diz José Elías,
construir a infraestrutura neural da linguagem no cór- licenciado em Filosofia e Letras, secção de Psicologia,
tex, que é ocupado por outras funções, como a visual. psicólogo da saúde especializado em hipnose e terapia
A janela de tempo em que a plasticidade neural está do humor. O especialista defende que o silêncio per-
presente é a que é utilizada para fornecer ao cérebro mite que o cérebro se regenere, que a criatividade se
informação auditiva através de aparelhos auditivos ou expresse melhor, que a memória se fortaleça e que a
implantes cocleares numa idade precoce», diz o Dr. construção de si próprio se desenvolva.
Núñez Batalla. De acordo com estudos efetuados no Centro de In-
Mas o que acontece ao cérebro no caso do silêncio vestigação de Terapias Regenerativas de Dresden
absoluto que ocorre noutra altura da vida, após o de- (Alemanha), há processos cerebrais que só ocorrem em
senvolvimento da linguagem? Neste caso, a privação silêncio. A instituição realizou pesquisas com ratos que
auditiva não afeta as redes neuronais do córtex auditivo recebiam duas horas de silêncio por dia. Conseguiram
primário, uma vez que estas se desenvolvem durante o desenvolver novas células no hipocampo (neurogéne-
período de plasticidade neuronal dos primeiros anos se), uma área associada ao controlo da ansiedade, da
de vida. «Assim, haverá uma memória auditiva que memória e da orientação espacial. Os investigadores
pode ser usada para restaurar efetivamente a função teorizaram que isto poderia dever-se ao facto de o cé-
auditiva com um implante coclear. Sem esta rede neu- rebro entrar num estado de alerta altamente sensível
ral desenvolvida por estímulos auditivos nos primeiros quando o silêncio ocorre, uma vez que não está habi-
anos de vida, o implante coclear seria completamente tuado a ele.
ineficaz». «O cérebro não descansa, quando dormimos ou fi-
camos calmos, em ambos os casos ocorrem processos
QUASE TODAS AS RELIGIÕES E FILOSOFIAS DE VIDA APOIAM O SI- complementares aos de quando estamos ativos, reali-
LÊNCIO NAS SUAS PRÁTICAS E LOCAIS DE CULTO, uma vez que zando uma tarefa genérica de purificação, analisando a
facilita a concentração e a introspeção. Na antiguidade, informação de todo o dia, descartando o não relevante e
era associado ao sagrado e ao transcendental. Talvez por organizando o relevante», explica Elías. «Por todas es-
isso, o filósofo escocês Thomas Carlyle tenha dito: «O tas razões, é bom aprender a praticar o silêncio durante
silêncio é o elemento em que se formam todas as gran- alguns minutos todos os dias, para ter uma melhor qua-
des coisas». lidade de vida e melhorar a nossa saúde física, mental e
Então, será que o silêncio tem benefícios emocio- emocional», conclui. e

SUPER 43
N Á U T I C A

Pormenor da
Sala do Risco,
Exposição
«Com o Risco
se faz um
Barco».

CENTRO DE
ARTES NÁUTICAS
DE VILA DO CONDE
O projeto terá como missão o estudo, investigação e divulgação das
temáticas associadas às técnicas tradicionais de construção e reparação
naval de madeira de Vila do Conde, bem como perspetivar o seu futuro,
através de abordagens contemporâneas, evitando assim que se percam.

Texto de IVONE PEREIRA E TEIXEIRA / PEDRO BROCHADO ALMEIDA

44 SUPER
ASC
Lugre «Outiz»,
Início século XX.

D
esde tempos imemoriais que a trução e do desenvolvimento, tarefas gigantescas, se
Humanidade se sente atraída atendermos ao estado de letargia instalado e ao acentua-
pelo mar e, há muitos sécu- do atraso económico de que o país, então, dava mostras.
los, que pensou em dominar Depois dos navios destinados ao comércio e com a ex-
os oceanos, caminhar sobre pansão das rotas de pesca da Terra Nova, os estaleiros
ele em busca de novos ho- de Vila do Conde ganham novo alento com a construção
rizontes, ir ao encontro de de Lugres e Patachos, até ao primeiro quartel do século
outras terras, outras gentes, XX. Durante a 2ª Grande Guerra Mundial, o país passa
novas riquezas. Em resposta a por grandes dificuldades económicas.
como fazê-lo, nasce a arte da
construção naval, surgem os DISSO SE RESSENTE A CONSTRUÇÃO NAVAL, que chega a um
primeiros barcos e marinheiros. estado quase deplorável. Porém, terminada a guer-
A proximidade entre o oceano Atlântico e o rio Ave, ra, a construção naval em Vila do Conde ganha novo
desde cedo, dotou Vila do Conde de condições extraor- alento com a construção de embarcações para a Pesca
dinárias ao desenvolvimento da indústria naval, a qual Costeira. A melhoria da situação verificada nos anos
assumirá um papel de relevo na fábrica da Expansão 1970 vai acentuar-se na década de 1980, mercê dos
Marítima. Os séculos XV e XVI foram o tempo áureo subsídios concedidos pela Comunidade Europeia para
da urbe, assistindo-se a um crescimento demográfico e a construção de novas embarcações destinadas à Pes-
mercantil, visível, ainda hoje, no edificado urbano de ca Artesanal Costeira, embora tenha de considerar-se
cariz económico, comercial, defensivo e religioso. que tal melhoria não se processou linearmente, devido,
No decurso do longo período compreendido entre os principalmente, ao critério adotado pela Administração
séculos XVII e XVIII, a atividade marítima em Vila do
Conde já revelava sinais evidentes de enfraquecimento,
fruto da conjuntura desfavorável, a vários níveis, em
ASC

que o país se encontrava. Chantiers Franco-Portugais,


Disso se ressentiram os estaleiros vilacondenses, anos 20, século XX.
que viram a sua situação drasticamente agravada com
a concorrência espanhola, ao ponto de poder conside-
rar-se este período como marcante da primeira grande
crise cíclica na história da sua prestigiada atividade.
Durante a primeira metade do século XIX, associado à
situação de instabilidade promovida pelas invasões na-
poleónicas e pela Revolução Liberal, o país mergulhará
numa grave crise económica, com reflexos naturalmen-
te negativos a nível social, fazendo estremecer o sólido
e multissecular relacionamento entre os portugueses e
o mar.
Na segunda metade do século XIX, reinstala-se a paz
no reino, o que vem alimentar o pensamento da recons-

SUPER 45
Central na atribuição dos financiamentos destinados à embarcações de pesca de redes de emalhar.
renovação da frota pesqueira. Há ainda a considerar, A elevada idade dos mestres carpinteiros, os cons-
na fraca procura da construção naval nacional em ma- trangimentos legais à construção de barcos de madeira
deira, nesta época, a forte concorrência espanhola, que e a falta de formação técnico-profissional dos jovens,
apostará na utilização do aço e da fibra, permitindo a são as circunstâncias mais ameaçadoras à continuidade
construção de barcos mais duradouros e de maiores di- desta arte.
mensões, para além do fácil acesso ao crédito através de A transmissão do conhecimento ainda se proces-
uma política concertada entre o Estado, os estaleiros, os sa através da observação direta dos trabalhos, da
armadores e os Bancos. comunicação oral entre mestres e aprendizes, através
da transmissão geracional da profissão e da prática diá-
ATUALMENTE, EM VILA DO CONDE, permanecem em ativida- ria da atividade.
de quatro grupos empresariais ligados à indústria de Urge desenvolver ações no sentido de inverter es-
construção naval, estando três sedeados na margem ta tendência, que possibilitem a adequada salvaguarda
esquerda do rio Ave, na freguesia de Azurara, a saber: deste conhecimento, preservando-o, multiplicando-o e
BARRETO E FILHOS LDA., SICNAVE LDA. e SAMUEL E alargando-o a novas gerações. Com este propósito, pre-
FILHOS LDA. Na área compreendida dentro do porto tendem preservar-se também as práticas socioculturais
da Póvoa de Varzim, mas ainda no concelho de Vila do de uma comunidade profissional e as bases de uma cultu-
Conde, encontra-se o estaleiro IRMÃOS VIANA, LDA. ra marítima portuguesa, a que a história de Vila do Conde
Apesar dos constrangimentos impostos à atividade e da sua comunidade se ligam intrinsecamente.
da pesca, seus principais clientes, e das dificuldades Considerando a previsão de que as reparações de
na adaptação à utilização de novos materiais na cons- embarcações de madeira tendem a aumentar progres-
trução dos barcos, os estaleiros geram uma atividade sivamente, até pela ausência de estaleiros com escala
económica de interesse local e persistente significado empresarial no país, crê-se que poderá estar, num futuro
económico, em grande medida fruto da elevada quan- próximo, assegurada a continuidade dos históricos esta-
tidade de reparações efetuadas, em curso e em carteira, leiros navais de Vila do Conde. A Frota de Pesca Costeira
na sua maioria em embarcações de madeira. Nacional entre os 12 e os 28m de comprimento é, maio-
O processo de reparação e obras de manutenção das ritariamente, constituída por embarcações de madeira.
embarcações ocorre durante todo o ano, verificando-se, Para além das embarcações de pesca existe um mer-
no entanto, uma maior incidência, nos meses de janeiro cado real e potencial para o exercício desses saberes
a abril, em embarcações relacionadas com a atividade aplicados à construção naval em madeira, a construção
marítimo-turística (do rio Douro) e em embarcações da de réplicas de embarcações históricas, como caravelas e
pesca da sardinha, devido ao período de defeso. Desde naus. A persistência, em Vila do Conde, do domínio das
finais de junho a setembro, a atividade concentra-se em técnicas ancestrais foi posta à prova, com a construção,

Vista aérea dos estaleiros


navais, anos 1980, século XX.
ASC

46 SUPER
Carpinteiros navais
(Henrique Viana e
aprendiz), anos 1980,
século XX.

ASC
nos anos 1990 e 2000, de réplicas de caravelas e naus, A Câmara Municipal de Vila do Conde pretendendo
embarcações em circulação ou destinadas a programas afirmar uma identidade que se quer viva na participação
de musealização, que ligam os estaleiros de Vila do Con- do futuro do seu território e na construção do imagi-
de às novas economias do mar, incluindo as indústrias nário nacional, determinou a proteção e valorização
criativas e o turismo cultural. de uma das marcas identitárias do concelho com mais
No âmbito de uma política de memória que alimenta relevância socioeconómica, assumindo compromissos
hoje Turismo e Indústrias Culturais, este mercado reve- públicos, bem como a consolidação de protocolos de
la-se algo de muito promissor. colaboração com os responsáveis pelos estaleiros navais
Veja-se o que ocorreu com a construção das réplicas das de Vila do Conde.
caravelas Bartolomeu Dias, em 1987, Boa Esperança em Complementarmente, em 2016, foi efetuado o pedido
1989, Vera Cruz em 2001, bem como com a construção da de inscrição no Inventário Nacional do Património Cul-
réplica da Nau Quinhentista de Vila do Conde, em 2006, tural Imaterial (INPCI). Estes processos de inscrição são
que regista uma média de 40 000 visitantes por ano. exigentes e morosos, mas a determinação para alcançar
Em suma, a construção naval em madeira constitui o objetivo teve o seu culminar no despacho de inscrição
para a comunidade de Vila do Conde e particularmente da manifestação «Técnicas de construção e reparação
para os seus carpinteiros navais, um elemento funda- naval em madeira de Vila do Conde» no INPCI, com a
mental da sua identidade. data de 12 de novembro de 2021.

O PEDIDO DE INVENTARIAÇÃO DAS «Técnicas de Construção


e Reparação Naval em Madeira de Vila do Conde» no
INPCI é justificado porque as técnicas de construção e
reparação naval de madeira de Vila do Conde são execu-
tadas, ainda hoje, e apesar do contexto de crise, segundo
as melhores normas de construção e reparação de em-
©LFDM,ARQUITETURA E DESIGN

Pré-Projeto Maquete 3D
-Nova área expositiva
Alfândega Régia-Museu de
Construção Naval.

SUPER 47
©LFDM,ARQUITETURA E DESIGN

barcações de madeira de médio e grande porte. Vila do O projeto assume uma vocação em rede, capaz de
Conde é, assim, hoje um dos poucos locais do mundo fazer construir articulações, estabelecer parcerias e
onde esta técnica ainda permanece viva e é usada com de forjar cumplicidades em torno das diferentes áreas
poucas alterações nos saberes e técnicas ancestrais. temáticas que se propõe a abordar – dos desportos náu-
Neste contexto, é imperioso desenvolver ações no ticos à construção naval, passando pelas dimensões da
sentido de inverter esta tendência, que possibilitem a formação e da educação, entre outras.
adequada transmissão deste conhecimento, para novas Neste sentido, foi criada uma ampla rede de parcei-
gerações de artistas de uma arte nobre e rara. Com isto ros multinível que inclui 15 diferentes parceiros, de
se pretendem preservar também as práticas sociocultu- âmbito local, e 2 parceiros internacionais noruegueses,
rais de uma comunidade profissional e as bases de uma mobilizados para o projeto em função do seu know-how
cultura marítima portuguesa, tão cara e tão enraizada técnico e expertise ao nível da preservação e valorização
em Vila do Conde. das técnicas de construção naval tradicional em madeira.
É, pois, deste desiderato que emerge a ideia de criar No plano de envolvimento e sensibilização da co-
um Centro de Artes Náuticas em Vila do Conde, projeto munidade educativa e pedagógica, incluem-se cinco
que encontra na valorização e preservação das técnicas, parceiros ligados ao universo educativo (Agrupamento
conhecimentos e saberes-fazer associados à construção de Escolas Dr. Carlos Pinto Ferreira, Agrupamento de
naval tradicional de madeira a sua principal justificação Escolas D. Pedro IV, Agrupamento de Escolas D. Afon-
e motivação. so Sanches, Agrupamento de Escolas Frei João e Escola
Assim, com o apoio financeiro resultante da can- Secundária José Régio) e do parceiro Centro de Forma-
didatura apresentada ao Programa CULTURA, ção Desportiva Náutica Frei João de Vila do Conde. Com
financiado pelos EEA Grants, designadamente pela o Centro de Artes Náuticas procurar-se-á dar novo
Islândia, Liechtenstein e Noruega, num montante má- impulso às iniciativas municipais de sensibilização
ximo de financiamento de 750 000 €, com taxa de patrimonial já implementadas em contexto de sala de
financiamento de 85%, a Câmara Municipal de Vila do aula. O objetivo é ampliá-las e potenciá-las através da
Conde reúne condições para a criação do projeto Centro intensificação das atividades, da produção de novos ma-
de Artes Náuticas. teriais pedagógicos, da realização de visitas de estudo
Em termos espaciais o Centro de Artes Náuticas ocu- aos estaleiros navais, ações de formação teórico-prática
pará duas áreas distintas, mas muito próximas entre em contexto de oficina, etc. Por outro lado, pretende-
si, correspondentes ao polo 1 – área Oficinal e Centro -se alargar o programa pedagógico municipal de prática
Formativo, localizado na Praça de José Régio e o Polo 2 desportiva náutica do CFDN Frei João de Vila do Con-
– área expositiva relacionada com o saber-fazer, loca- de, e alargá-lo a toda a comunidade educativa da rede
lizada na Alfândega Régia-Museu de Construção Naval. pública municipal, procurando-se, deste modo, refor-
Os conteúdos da nova área expositiva centrados nas çar a ligação dos mais jovens a estas atividades. Ainda
técnicas de construção naval de madeira quinhentista, nesta componente educativo-pedagógica, refira-se os
terão, inclusive, um duplo uso, ou seja, serão elementos contributos do Hardanger og Voss, um dos parceiros
museográficos para o público em geral do núcleo mu- noruegueses, no desenho do programa de atividades do
seológico Alfândega Régia-Museu de Construção Naval, Serviços Educativo do Centro de Artes Náuticas.
convertendo-se, por sua vez, em instrumentos de tra- No plano antropológico, histórico e museológico do
balho e de formação para um público especializado. projeto, destaca-se a existência de protocolos de coope-
ração institucional já estabelecidos com os 6 parceiros
A ALFÂNDEGA RÉGIA-MUSEU DE CONSTRUÇÃO NAVAL, a Nau incluídos no consórcio do projeto: Sicnave - Indústria
Quinhentista e a Casa do Barco, cujo discurso expositi- de Construção e Reparação Naval, Lda.; Barreto & Fi-
vo se debruça sobre as técnicas de construção naval em lhos, Lda.; Irmãos Viana, Lda.; Samuel e Filhos, Lda.,
madeira atuais, funcionarão em estreita articulação. Associação Vila Chã - Pesca - Museu do Mar; e Associa-
O polo 1 – área Oficinal e Centro Formativo será ain- ção dos Ex-Marinheiros da Armada de Vila do Conde. As
da um novo centro de recursos para o território neste atividades preconizadas pretendem sobretudo reforçar
domínio, através da sua área oficinal que permitirá o esta colaboração, envolvendo estes parceiros na com-
desenvolvimento de outros serviços e valências para a ponente de recolha antropológica associada às Artes e
cidade e região. Técnicas da Construção Naval Tradicional de Madeira

48 SUPER
de Vila do Conde, articulando-se com o desenho e im- do território através de atividades desportivas e náu-
plementação do Programa Museológico e do Projeto ticas em permanência; promover novas iniciativas de
Museográfico da nova exposição. As artes e técnicas da turismo fluvial e marítimo; fomentar ações inovadoras
construção e reparação naval de madeira terão no Cen- de empreendedorismo cultural e de turismo urbano
tro de Artes Náuticas um espaço cultural e educativo histórico.
fundamental para a sua compreensão e estudo. Por último, há que salientar que, para além dos 17
No plano da capacitação e formação, registe-se que a parceiros inscritos em consórcio, o projeto do Centro
inclusão no consórcio de parceiros como o FOR-MAR de Artes Náuticas reúne o apoio de um conjunto de
- Centro de Formação Profissional de Pescas e do Mar entidades (IEFP, Texas A&M University, DRC-N, Do-
que, conjuntamente com os cursos técnico-profissio- caPesca, Autoridade Marítima Nacional e APPA-VC)
nais do Agrupamento de Escolas Afonso Sanches , da que, a nível local, regional, nacional e internacional,
Escola Secundária José Régio e da Escola Profissional se têm mobilizado no apoio deste empreendimento,
de Vila do Conde, procurarão implementar uma oferta por nele reconhecerem a relevância deste equipamento
de formação profissional em carpintaria naval, com a no processo de valorização e preservação do patrimó-
realização da componente de estágio na área oficinal do nio cultural costeiro e por ali identificarem um grau
Centro de Artes Náuticas. relevante de inovação enquanto centro de recursos for-
Na partilha e/ou cruzamento de saberes e conhe- mativos, científicos e económicos para a região e o país.
cimentos, destaque-se a valência de acolhimento de Concluindo, o futuro Centro de Artes Náuticas de Vi-
residências e intercâmbios de profissionais e técnicos, la do Conde terá como missão o estudo, investigação e
explorando diversas abordagens à construção naval divulgação das temáticas associadas às técnicas tradi-
tradicional de madeira. O Stiftelsen Engøyholmen Kys- cionais de construção e reparação naval de madeira de
tkultursenter, parceiro norueguês, irá aportar ao Vila do Conde, inscritas no INPCI, procurando contri-
projeto o seu know-how técnico e experiência, parti- buir para a compreensão e divulgação da identidade do
cipando no desenho e implementação de um programa território e reforçar junto da população local um senti-
de residência e formação internacional com intercâm- mento identitário e de pertença relacionado com estas
bio de artífices, práticas e saberes de carpintaria naval Artes e Técnicas, bem como perspetivar o seu futuro,
entre Portugal e a Noruega, com estadias em Vila do através de abordagens contemporâneas, evitando assim
Conde e Stavanger, resultando na construção de 2 em- que se percam. e
barcações utilizando artes e técnicas tradicionais de
construção naval em madeira. Uma das embarcações
será a «catraia», sob a responsabilidade construtiva da
Associação Vila Chã - Pesca - Museu do Mar.
No plano de fomento da atratividade (lúdica, despor-
tiva e histórica) para o território, registe-se a inclusão
Informações
no consórcio do projeto de três importantes parcei-
ros locais (Vila do Conde Kayak Clube, Associação dos
Ex-Marinheiros da Armada de Vila do Conde e Clube
A apresentação pública do Centro de Artes Náuticas de Vila
do Conde está prevista para o final de fevereiro de 2024.
Para mais informações:
Fluvial Vila-condense) que, mobilizando diferentes https://www.facebook.com/profile.php?id=61553016932938
públicos para este projeto municipal, representam https://www.instagram.com/cdan.portugal?igsh=MXZ6amxo-
também três eixos fundamentais da missão do Centro c3prZm92NQ==
de Artes Náuticas, ou seja, potenciar o desenvolvimento

Panorâmica Alfândega
Régia-Museu de Construção
Naval e Nau Quinhentista,
Início século XXI.
ASC

SUPER 49
Z O O L O G I A

ANIMAIS
MOLDADOS PELAS
ALTERAÇÕES
CLIMÁTICAS

50 SUPER
A nossa ação sobre o clima não só tem um grande impacto no nosso modo de vida, como
também afeta os animais. Já foi observado que os animais, em consequência do aumento
das temperaturas ou da falta de chuva, modificaram o seu corpo para se adaptarem ao
clima do futuro. É uma luta pela sobrevivência, modificar-se para sobreviver num planeta
mais hostil.

Texto de ANGEL LUIS LEÓN PANAL, biólogo e divulgador

Os «outros»
habitantes da Terra,
animais e plantas,
também sofrem as
consequências das
alterações
climáticas nas suas
rotas, na sua
alimentação e até
ISTOCK

na sua morfologia.

SUPER 51
P
ara acompanhar as mudanças A nossa primeira paragem é em Israel, onde a mor-
provocadas pelo aquecimento fologia de várias aves tem sido subtilmente esculpida
global, é necessário desven- pelo aquecimento global. Uma equipa de investigação
dar uma teia de efeitos, a fim da Universidade de Tel Aviv analisou cerca de 8000
de identificar corretamente os aves conservadas no Museu Steinhardt de História Na-
diferentes atores envolvidos e tural, pertencentes a cerca de 100 espécies, incluindo
os seus respetivos papéis. A pintassilgos, cegonhas, gaios, corujas e perdizes.
personagem principal, a hu- Conseguiram cobrir um período de 70 anos, de 1950
manidade, perturbou o clima a 2020, durante o qual os corpos de mais de metade
ao libertar quantidades con- destas espécies sofreram uma mudança constante.
sideráveis de gases com efeito Mais concretamente, registaram uma diminuição
de estufa. Provavelmente já da massa corporal ou um aumento do comprimento
sabe o que aconteceu: aumento das temperaturas, de- do corpo, em correlação com um ambiente cada vez
gelo, subida do nível do mar, acidificação dos oceanos, mais quente.
fenómenos meteorológicos extremos e uma longa lis- Para compreender o mecanismo subjacente a este
ta de consequências. Perante este cenário, a biosfera fenómeno, é necessário recuar no tempo. O biólogo
também está a reagir e fornece-nos outro conjunto alemão Carl Bergmann estabeleceu em 1847 que, quan-
de provas, como uma primavera mais precoce, aves a do os animais endotérmicos (que produzem calor)
migrarem mais cedo ou espécies marinhas a mudarem vivem num clima frio, tendem a ser maiores do que os
de casa. seus parentes em regiões mais quentes. Isto deve-se
ao facto de, nas criaturas pequenas, a relação entre a
AQUI, ABORDAREMOS OUTRAS EVIDÊNCIAS, COMO A ALTE- área de superfície e o volume ser maior e, por conse-
RAÇÃO DO TAMANHO, DA FORMA E DA COR DE DIFERENTES guinte, ocorrer uma perda de calor mais significativa.
ANIMAIS devido às alterações climáticas, cuja exis- O oposto é verdadeiro para os animais de grande por-
tência tem sido geralmente ignorada . É interessante te. A regra de Bergmann, para além de explicar esta
notar que, desde o século XIX, a ciência dispõe de relação, permite-nos fazer uma previsão relacionada
uma série de ferramentas, ou melhor, de regras, com a crise atual: alguns animais irão reduzir o seu ta-
através das quais podemos decifrar o que está a acon- manho, facilitando assim a regulação do calor, face ao
tecer. Vamos fazer uma viagem à volta do mundo para aumento das temperaturas.
as conhecer.
HÁ MAIS EXEMPLOS EM QUE AS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS E A
REGRA DE BERGMANN ANDAM DE MÃOS DADAS. Em 2021, foi
publicado um estudo que revelou como a nossa in-
fluência chegou até às regiões pristinas da Amazónia.
Investigadores da Louisiana State University desco-
briram que o tamanho das aves não migratórias no
sub-bosque da Amazónia diminuiu nos últimos 40
anos. Neste estudo, analisaram as medidas de cerca
de 15.000 aves pertencentes a 77 espécies, cuja massa
corporal diminuiu em correlação com condições mais
quentes e uma diminuição da quantidade de chuva.
No entanto, nesta viagem, devemos evitar uma abor-
dagem generalizada das diferentes regras, uma vez que
existem muitas excepções ao longo do caminho. Por
exemplo, em ambientes urbanos ocorre um fenómeno
conhecido como ilhas de calor. Este termo refere-se a
temperaturas mais elevadas nas cidades devido à ativi-
dade humana e a diferentes infra-estruturas.
De acordo com a regra de Bergmann, as espécies en-
dotérmicas deveriam diminuir nestas zonas. Mas um
estudo científico, como o realizado por uma equipa do
Museu de História Natural da Flórida, mostrou que há
outros fatores em jogo. Este estudo analisou milhares
de dados de comprimento e massa corporal de mais
O aquecimento de 100 espécies de mamíferos dos EUA, recolhidos ao
alterou a morfologia longo de 80 anos. Descobriram que a urbanização está
de muitos animais.
a incentivar o crescimento de roedores, musaranhos,
Em ambientes mais
morcegos e outros mamíferos. Embora as selvas de
quentes, aves como
os pintassilgos betão sejam ambientes hostis para a vida selvagem, os
STEINHARDT MUSEUM OF NATURAL HISTORY

registaram uma animais que se conseguem aventurar nelas beneficiam


diminuição da massa da abundância de alimentos, abrigo e ausência de pre-
corporal e um dadores, o que os leva a crescer mais do que os seus
aumento do congéneres rurais.
comprimento.
VEJAMOS AGORA UMA SEGUNDA REGRA. Os apêndices, como
as orelhas dos mamíferos ou os bicos das aves, de-

52 SUPER
Altura=0,5 m
Massa=2 kg
Galápagos

A=0,7 m
M=5 kg
Argentina

KAREN FRYDRNS
A=1,2 m
M=40 kg
Antártica

De acordo com a regra de Bergmann, à direita, as espécies variam


em morfologia consoante a temperatura. Os animais endotérmicos,
aqueles que produzem o seu próprio calor, os que vivem num clima
frio, como os pinguins, tendem a ser maiores do que outros da
mesma espécie que vivem em zonas mais quentes. Nos animais

UNIVERSTIY ARCAN
mais pequenos, a relação entre a área de superfície e o volume é
maior e, consequentemente, há uma maior perda de calor.

sempenham um papel importante, mas muitas vezes e uma diminuição da precipitação. Mais uma vez, é
subestimado, na regulação do calor corporal. Em 1887, de salientar que este quadro não pode ser extrapola-
o zoólogo americano Joel Asaph Allen tomou cons- do para todos os casos. Por exemplo, vários estudos
ciência desta questão e desenvolveu a chamada regra encontraram reduções na massa corporal e no cresci-
de Allen, segundo a qual a forma do corpo dos animais mento do comprimento das asas em aves migratórias
endotérmicos varia consoante o clima. Assim, em cli- na América do Norte. Mas, neste caso, a hipótese mais
mas mais quentes, as espécies têm apêndices maiores, provável sugere que as asas maiores podem ser uma
de modo a terem mais superfície para dissipar o calor. compensação para a perda de tamanho, a fim de fazer
Portanto, no contexto do aquecimento global, pode- face à migração.
mos prever que haverá uma mudança na morfologia de
alguns animais, e de facto é isso que tem acontecido. PASSEMOS A UMA TERCEIRA REGRA. Em 1833, o zoólogo
Um dos exemplos mais frequentemente citados re- alemão Constantin L. Gloger propôs a chamada regra
mete-nos para a Austrália, onde, entre 1871 e 2008, os de Gloger, que pode ser resumida da seguinte forma:
bicos do periquito-variegado (Psephotellus varius), entre os animais endotérmicos, encontraremos uma
da cacatua gang-gang (Callocephalon fimbriatum), coloração mais escura em ambientes quentes e hú-
do periquito-de-dorso-vermelho (Psephotus hae- midos. No entanto, ao contrário das outras regras, as
matonotus) e da rosela-vermelha (P. haematonotus) causas subjacentes continuam a ser objeto de debate
aumentaram entre 4 e 10 %. académico. A explicação mais amplamente apoiada ar-
O esquilo terrestre do Cabo (Xerus inauris), um gumenta que os animais escuros se camuflam melhor
roedor que habita as regiões áridas da África do Sul,- em locais quentes e húmidos porque há mais vege-
também pode ser mencionado aqui. Uma investigação tação, o que produz sombra abundante; enquanto a
efetuada na Universidade de Manitoba mostrou que, falta de humidade, mas com temperaturas igualmente
durante um período de 20 anos, as suas patas traseiras elevadas, leva a um cenário completamente diferen-
se alongaram e as costas encurtaram. Estas altera- te, em que a roupa clara é favorecida. Com base nisto,
ções, relacionadas com a regra de Allen e a regra de podemos prever duas situações num contexto de aque-
Bergmann, respetivamente, estavam correlaciona- cimento global. Nas regiões onde se prevê um aumento
das com um aumento da temperatura de mais de 2°C das temperaturas e uma diminuição da precipitação,

Em climas mais quentes, os animais têm apêndices maiores


para assim poderem dissipar o calor, como o esquilo do Cabo,
que tem patas traseiras alongadas
SUPER 53
A temperatura também influencia a cor dos animais: em zonas
com temperaturas mais elevadas e precipitação reduzida, os
animais «vestirão» de tons mais claros

como na Amazónia, as cores claras serão favorecidas. cada vez mais quentes e húmidas, o que se enquadra
Por outro lado, em áreas que se tornarão mais quentes na regra de Gloger. Noutro local, no sul de França, as
e húmidas, como as florestas boreais, podemos assistir penas dos chapins-azuis (Cyanistes caeruleus) foram
a uma tendência para cores mais escuras. registadas como tendo um aspeto azul e amarelo me-
É difícil encontrar provas que relacionem as altera- nos intenso após quase 15 anos de verões mais quentes
ções climáticas e a aplicação da regra de Gloger, tendo e secos. No entanto, este facto foi associado à menor
em conta os múltiplos fatores envolvidos. Esta hipó- disponibilidade de alimentos, devido à seca e à perda
tese foi proposta para compreender, pelo menos em de vegetação.
parte, o que aconteceu às corujas do mato (Strix aluco)
na Finlândia. Estas aves têm uma plumagem acinzen- ATÉ AGORA FALÁMOS DE ANIMAIS ENDOTÉRMICOS. MAS E OS
tada (clara) ou acastanhada (escura). O primeiro tipo ECTOTÉRMICOS, OU SEJA, AQUELES que dependem do am-
de coloração é muito útil como camuflagem durante biente externo para controlar a sua temperatura? Aqui
os períodos frios, quando a neve é abundante. No en- estamos num terreno mais complexo, pois a respos-
tanto, de acordo com um estudo publicado na Nature ta dependerá do grupo taxonómico em questão, bem
em 2011, durante um período de 50 anos, a popula- como de outras variáveis. A regra da temperatura-ta-
ção de corujas castanhas cresceu devido a condições manho, proposta pelo ecologista David Atkinson em

A ratazana da
Gâmbia (Cricetomus
gambianus) é um
dos maiores
roedores
conhecidos.
Caracteriza-se pelas
suas grandes
bochechas, nas
quais pode
transportar uma
grande quantidade
de alimentos, pode
atingir um metro de
comprimento e é
extremamente
suscetível ao frio.

SHUTTERSTOCK

54 SUPER
Já foi detetado que,
em resposta ao
aquecimento
global, a cor da
libélula europeia é
agora muito mais
clara do que era há
um século.

PXPHERE
1996, afirma que, nestes organismos, o tamanho do turo. De facto, já se verificou que a cor das libélulas
corpo dos adultos torna-se mais pequeno à medida europeias, no seu conjunto e em resposta ao aqueci-
que aumenta a temperatura em que se desenvolvem os mento global, é mais clara do que era há um século.
jovens. A causa está nas condições quentes, que ace- Durante décadas, as regras de Bergmann, Allen,
leram o seu metabolismo, levando-os a amadurecer Gloger, temperatura-tamanho ou a hipótese do me-
mais cedo. Se aplicarmos esta regra, podemos esperar, lanismo térmico, entre outras, foram utilizadas para
por exemplo, que os insetos diminuam de tamanho explicar o tamanho, a forma ou a cor dos animais. An-
numa Terra mais quente. Um estudo, realizado no tes faziam parte do debate académico ou do conteúdo
Parque Natural Sierras de Cazorla, Segura y Las Vil- de curiosidades científicas. Agora servem para de-
las (Jaén), confirmou esta previsão ao constatar que monstrar que as alterações climáticas já começaram.
a massa corporal de várias espécies de abelhas solitá- Em última análise, também põem em cima da mesa
rias diminuiu significativamente entre 1990 e 2023. No uma realidade perturbadora: os seres humanos estão
entanto, outro estudo, publicado em 2022, depois de a moldar os nossos vizinhos terrestres a um nível que
analisar as coleções do Museu de História Natural de não poderíamos ter imaginado.
Londres, concluiu que algumas espécies de borboletas Serão estas alterações o resultado de uma evolu-
britânicas estão a crescer em resposta às alterações cli- ção rápida ou fazem parte da resiliência das espécies?
máticas. Pensa-se que este facto está relacionado com Serão estas capazes de se adaptar a um mundo em
o aumento da disponibilidade de vegetação, o alimen- mudança ou estarão a correr contra o tempo, a cami-
to das lagartas. nho da extinção? O que acontecerá aos ecossistemas
quando a forma do corpo dos animais for significativa-
FINALMENTE, PODERÍAMOS ACRESCENTAR UMA OUTRA REGRA mente alterada? Poderão as flores contar com insetos
que influencia diferentes tipos de organismos, nomea- reduzidos, cuja capacidade de transportar pólen estará
damente os ectotérmicos. A hipótese do melanismo literalmente diminuída? A tarefa de responder a estas
térmico indica que, nas regiões frias, é mais provável questões está nas mãos da ciência. Cabe-nos a nós
encontrar colorações escuras, o que tem uma explica- construir um horizonte otimista, em que a evidência
ção simples: o preto absorve mais radiação solar. Esta das alterações climáticas seja considerada uma coisa
ideia prevê que os insetos mudem o seu aspeto no fu- do passado. e

SUPER 55
A N T R O P O L O G I A

O tráfico de
cadáveres, para
fins médicos ou
arqueológicos,
ocorre em muitas
partes do mundo.
Na foto, um
huasquero, ou
antigo ladrão de
sepulturas, com
um crânio
humano em
Nazca, no Peru.

56 SUPER
CADÁVERES
NA

SOMBRA A necessidade da medicina estudar o corpo


humano criou um frutuoso mercado para a venda
de cadáveres. Era um negócio tão lucrativo que
havia quem passasse do roubo ao assassínio para
fornecer aos médicos o seu objeto de estudo nas
aulas de anatomia. Muitos assassinos acabaram
na forca, tornando-se os protagonistas dessas
ilustrativas aulas.

Texto de EUGENIO M. FERNÁNDEZ AGUILAR,


físico e divulgador científico
GETTY

SUPER 57
N
o antigo Egito, a prática da recuperar os restos humanos dos maoris que foram
mumificação era comum e ilegalmente levados do país no século XIX.
altamente valorizada, sendo
tomadas medidas para pro- A UTILIZAÇÃO DE CADÁVERES PARA FINS ARTÍSTICOS TEM SI-
teger os corpos mumificados DO UMA QUESTÃO CONTROVERSA E POLÉMICA AO LONGO DA
e assegurar a sua preservação HISTÓRIA DA ARTE. Não se sabe se houve ou não artistas
no Além. O roubo de cadá- que dissecaram cadáveres para melhorar a sua arte.
veres era considerado um Mas a utilização de cadáveres pode ficar fora de con-
crime grave. Na cultura mao- trolo e os artistas podem continuar a ser uma mera
ri, os restos mortais humanos anedota. É o caso dos chamados «ressuscitadores».
eram considerados sagrados Os «ressuscitadores» eram pessoas que exumavam
e deviam ser tratados com o cadáveres para os vender a médicos e estudantes de
maior respeito. O roubo de cadáveres tampouco era medicina nos séculos XVIII e XIX. Esta prática devia-
permitido considerando-se um ato desonroso e des- -se à grande procura de cadáveres para estudo nas
respeitoso para com os antepassados e a comunidade. escolas de medicina, mas a lei da altura só permitia
O respeito pelos mortos continua a ser muito impor- a dissecação dos corpos de criminosos executados.
tante na cultura maori atual. Os maori têm uma forte Na Grã-Bretanha do século XIX, o roubo de cadáve-
ligação aos seus antepassados e ao seu legado, pelo res era um crime comum, pelo que, perdoem-me a
que os restos mortais humanos são considerados sa- terminologia, abria a porta a um nicho de mercado.
grados e devem ser tratados com o devido respeito. O E este é o lado gentil da história: está prestes a ou-
Museu de História Natural da cidade de Estugarda, na vir o outro lado, o mais macabro. Os ressuscitadores
Alemanha, devolveu uma cabeça maori mumificada eram muitos, mas vamos concentrar-nos apenas
aos seus descendentes na Nova Zelândia. A cabeça, co- em dois, dois Guilhermes, dois irlandeses: William
nhecida como «Toi moko», havia sido adquirida pelo Burke e William Hare. A maior parte dos corpos uti-
museu em 1879 e fazia parte da sua coleção de objetos lizados nas escolas de medicina eram roubados de
de culturas não europeias. A devolução foi efetuada na campas ou retirados ilegalmente de hospitais. Mas
sequência dos esforços do governo neozelandês para os Guilhermes tinham uma particularidade.

Na imagem, a
cabeça
mumificada
chamada «Toi
Moko» é devolvida
a uma delegação
neozelandesa em
junho. O crânio
estava guardado
no Museu de
História Natural de
Estugarda.
GETTY

58 SUPER
A venda de
corpos era
habitual a
médicos e
estudantes de
medicina. Na
imagem,
Lição de
Anatomia do
Dr. Nicolaes
Tulp, de
Rembrandt.

ALBUM
Os Williams não só exumaram cadáveres, como os

MARY EVANS PICTURE LIBRARY / AGE


produziram. É uma forma suave de dizer que come-
teram vários assassínios para fornecer cadáveres ao Na imagem,
Dr. Knox. O médico fechava os olhos e preferia não gravura que representa
o roubo de um cadáver
saber de onde vinha tanto material cadavérico. Burke
pelos chamados
e Hare começaram a fornecer cadáveres à Faculdade «ressuscitadores».
de Medicina de Edimburgo em 1827, depois de um in-
quilino da sua pensão ter morrido e terem decidido
vender o seu corpo. William Hare, ao chegar a Edim-
burgo, casou-se com Margaret Laird, que geria uma
pensão. Burke também se hospedaria nessa pensão Os Williams, Burke e Hare,
e acabaria por se tornar amigo de Hare. O primeiro
corpo, vítima ou não, foi roubado para ser vendido matavam por asfixia rápida e
e o caixão foi cheio de terra. A partir daqui começou
uma série de assassinatos que marcariam a história da
criminologia britânica. Um total de 16 pessoas mor-
eficaz. Daí o termo burking, que
reram entre 1827 e 1829 em circunstâncias que deram
origem a um termo, burking. Este método consiste
consistia em matar alguém sem
em matar uma pessoa quase sem deixar rasto. Hare
segurava o pobre infeliz por trás e Burke tapava-lhe deixar quase nenhum rasto
as narinas enquanto o polegar lhe fechava a boca. A
asfixia era rápida e eficaz. Suspeita-se que poderiam
ter matado ainda mais pessoas, utilizando o método
burking. mas tal nunca foi provado. Após a detenção de Bur-
ke e Hare, Laird tornou-se uma testemunha-chave no
O MODUS OPERANDI DE BURKE E HARE CONSISTIA EM PRO- julgamento de Burke. Ela testemunhou sobre a forma
CURAR PESSOAS SOLITÁRIAS E EMBRIAGADAS NAS RUAS DE como Burke tinha assassinado a sua vítima e ajudado a
EDIMBURGO, frequentemente mulheres ou sem-abrigo, transportar o corpo para a casa dos médicos. O seu tes-
e levá-las para a sua pensão para as assassinar. Tam- temunho foi fundamental para a condenação de Burke.
bém mataram um menino de 12 anos. Os assassinatos Em troca do seu testemunho, Laird recebeu imunidade
foram descobertos em novembro de 1828, quando a e não foi processada pelo seu envolvimento nos crimes.
polícia encontrou o corpo de uma mulher no quarto Tornou-se uma figura pública, sofreu uma tentativa
dos inquilinos, na sequência de uma queixa de outro de linchamento e teve de abandonar a cidade. Alguns
hóspede. viam-na como cúmplice dos assassínios, enquanto ou-
Burke e Hare foram presos e levados a julgamento. tros a viam como uma vítima das circunstâncias, que
Hare foi usado como testemunha do Estado e Burke foi tinha sido manipulada por Burke.
condenado à morte por assassínio. Foi enforcado em
28 de janeiro de 1829 e o seu corpo foi entregue — iro- SITUAÇÕES SEMELHANTES SURGIRAM AO LONGO DA HISTÓRIA,
nicamente — aos cirurgiões da Faculdade de Medicina POR EXEMPLO, COM OS ASSASSINOS DE CHICAGO. Na década
de Edimburgo para ser dissecado. Mas havia uma ter- de 1890, Herman Mudgett, também conhecido como
ceira pessoa. Era Margaret Laird, a proprietária da H. H. Holmes, e Benjamin Pitezel juntaram-se para co-
Log’s Lodging House, em Edimburgo, onde Burke e meter uma série de assassínios em Chicago e noutros
Hare estavam hospedados. Conta-se que Laird poderá locais dos Estados Unidos. Estes assassinatos tinham
ter estado envolvida nos assassinatos de Burke e Hare, como objetivo obter corpos para vender a uma escola

SUPER 59
de medicina local. Herman Mudgett, médico e farma- ça. Enquanto estava na prisão, Holmes concebeu um
cêutico de profissão, construiu um hotel em Chicago, esquema para obter o dinheiro do prémio do seguro
conhecido como o «Hotel dos Horrores», concebido de vida do seu cúmplice, Benjamin Pitezel. O plano
especificamente para matar as suas vítimas. O ho- original consistia em apresentar um cadáver anónimo
tel estava cheio de quartos armadilhados, passagens como sendo o de Pitezel, mas Holmes mudou de planos
secretas, escadas que não levavam a lado nenhum e e acabou por matar Pitezel. Holmes foi denunciado por
outras características que dificultavam a fuga das víti- um antigo companheiro de cela e acabou por confessar
mas ou o pedido de ajuda. os assassínios. Após a sua detenção, a polícia desco-
O verdadeiro ideólogo era Mudgett, pois Pitezel não briu que o hotel de Holmes era utilizado para a tortura
passava de um vigarista que Mudgett tinha debaixo de e execução das suas vítimas, tendo encontrado câma-
olho e que o ajudava em muitas das suas malfeitorias. E ras herméticas, um forno suficientemente grande para
a Pitezel não correria bem o negócio. Após o fim da Fei- conter um corpo humano e cubas de ácido.
ra Mundial de Chicago, o hotel de Holmes começou a No julgamento, uma testemunha descreveu como
sofrer uma queda nas rendas, o que o levou a incendiar Holmes o tinha contratado para descarnar cadáveres
o último andar do edifício para reclamar um prémio por 36 dólares cada. Holmes foi condenado à morte e
de 60 000 dólares à sua seguradora. No entanto, a enforcado em 1896. Acredita-se que Mudgett e Pitezel
companhia conduziu uma investigação e descobriu tenham matado pelo menos 27 pessoas, embora ape-
o esquema. Holmes fugiu para o Texas, onde aplicou nas nove vítimas tenham sido confirmadas.
golpes, foi preso e posteriormente libertado sob fian-
TEMOS UM TERCEIRO CASO DE CADÁVERES NA SOMBRA. JOHN
BISHOP E THOMAS WILLIAMS ERAM DOIS «RESSUSCITADORES»
que atuavam em Londres na década de 1830. No en-
tanto, Bishop e Williams aperceberam-se de que havia
uma grande procura de corpos frescos para venda, o
que os levou a começar a assassinar pessoas para ob-
ter mais cadáveres para vender, incluindo um bebé. É
possível que tenham morto entre 12 e 14 pessoas. Por
outro lado, estima-se que possam ter roubado mais de
mil corpos.
Os assassinatos de Bishop e Williams foram desco-
bertos depois de um dos seus cúmplices, John May, ter
sido preso e confessado o seu envolvimento no crime.
ASC

Em cima, Pitezel e Mudgett, mais


conhecidos por H. H. Holmes.
Em baixo, o chamado «hotel dos
horrores» em Chicago,
especialmente concebido para
matar as suas vítimas.
GETTY

60 SUPER
Os chamados «The
London burkers »,
John Bishop,
Thomas Williams e
James May. Na casa
pertencente a
Bishop, foram
encontrados vários
corpos, em
diferentes estados
de decomposição.

ASC
May levou a polícia à casa dos assassinos em Nova Sco-
tia Gardens, em Londres, onde foram encontrados os
corpos de várias vítimas. A casa pertencia a Bishop e
crê-se que Williams vivia com ele na altura dos homi-
cídios. Foi descrita como um local escuro e imundo,
com cadáveres em vários estados de decomposição,
partes de corpo dissecadas e instrumentos de disse-
cação espalhados por todo o lado. A polícia encontrou
também vários contentores cheios de ácido, que pare-
ciam ter sido utilizados para eliminar os restos mortais
das vítimas.
Após a sua captura, Bishop e Williams foram julga-
dos e condenados pelos seus crimes. Foram enforcados
juntos na prisão de Newgate, a 5 de dezembro de 1831.
Após a execução, os seus corpos foram entregues a ci-
rurgiões para dissecação pública e demonstrações de
anatomia.

A MAIORIA DOS CORPOS UTILIZADOS PARA INVESTIGAÇÃO MÉDI-


CA E CIENTÍFICA É OBTIDA LEGALMENTE hoje em dia através
de programas de doação de corpos ou de indivíduos
que consentiram na doação do seu corpo após a morte.
Os programas de doação de corpos são concebidos pa-
ra garantir que os direitos dos dadores são respeitados
ASC

e que os corpos são tratados com dignidade e respei-


to. O primeiro dador de cadáveres documentado para Gravura de Andrea Vesalius, pai da anatomia moderna.
a ciência foi um italiano chamado Andreas Vesalius,
em 1564. Vesalius era um médico, anatomista e fisio-
logista que é considerado o pai da anatomia moderna.
Segundo consta ordenou que, após a sua morte, o seu o primeiro doador conhecido do seu corpo à ciência.
corpo fosse dissecado para que o pudessem estudar e Diz-se que, no seu testamento, deixou instruções
aprender mais sobre a anatomia humana. A dissecação para que o seu corpo fosse dissecado para que os
do corpo de Vesalius foi realizada por um aluno, o mé- médicos pudessem aprender mais sobre a anatomia
dico belga Jan Steven van Calcar, e as suas descobertas humana. No entanto, não há provas definitivas de que
foram publicadas num livro chamado De humani cor- S. Francisco de Sales tenha sido o primeiro doador do
poris fabrica, em 1543. corpo à ciência, e a maioria dos registos históricos
Mas há alguns relatos que sugerem que São Fran- sugere que Andreas Vesalius foi o primeiro doador
cisco de Sales, um santo católico do século XVII, foi documentado. e

SUPER 61
CURIOSIDADE TECNOCULTURA

A MORTE TÉRMICA DO GOSTO


A INDIFERENCIAÇÃO É A CARACTERÍSTICA DAS CRÍTICAS DOS
UTILIZADORES DOS PRODUTOS CULTURAIS, AVALIAÇÕES
SEGUNDO UM PADRÃO COMUM. MAS PODEMOS DEIXAR-NOS
GUIAR POR ELAS NA ESCOLHA DE UM LIVRO OU DE UM FILME?

Por vezes, somos guiados pelas avaliações dos


utilizadores quando queremos escolher algo, e
SHUTTERSTOCK

essa escolha nem sempre coincide com o nosso


gosto, aliás, por vezes é completamente contrária.

á nos aconteceu a todos. Que- TODOS OS DIAS SÃO PUBLICADOS ARTIGOS devemos ir demasiado depressa numa

J remos ir a um restaurante ou
ver uma série e deixamo-nos
levar pelas críticas do Google
que enaltecem as possibilidades de de-
cisão das massas. Será que as massas
podem tomar decisões mais corretamen-
questão tão espinhosa.
Os estudos acima referidos centram-se
no problema da escolha entre várias pos-
ou do Filmaffinity. Ou do Goodreads, se te do que um perito? Será que existe sibilidades. No entanto, não é arriscado
estivermos à procura de informações sobre uma sabedoria oculta no social, inatin- extrapolar a teoria da decisão económi-
um livro. Depois descobrimos que aquele gível para o indivíduo? Aí reside, sem ca ou política para o caso das escolhas
restaurante, aquela série ou aquele livro dúvida, um dos mistérios da sociologia, culturais: que restaurante escolher, que
que as pessoas classificaram como exce- uma das chaves que nos permite distin- série, que livro, que filme... Devemos dar
lente é medíocre, ou mesmo mau, para guir o seu terreno do da psicologia. Se credibilidade a essa numeração, a este
nós. Ou o contrário. Em qualquer um des- Adam Smith acreditava na mão invisível número frio que resume a avaliação de
tes casos, quando comparamos a nossa do mercado que conseguia equilibrar as um destes produtos culturais, ou devemos
experiência e ficamos surpreendidos com variáveis económicas e o egoísmo dos antes prescindir dele e ouvir apenas as
o desacordo entre a seus atores, estes novos sociólogos ar- avaliações dos especialistas?
nossa apreciação e a mados com as ferramentas da estatística Pode ser motivo de estupefação e sur-
de outros consumido- parecem chegar a conclusões semelhan- presa constatar que restaurantes ou livros
res, surge a inevitável tes. Muitos concluem que as decisões com pouco valor têm o mesmo ou maior
questão: somos nós que emanam do julgamento ou da opi- peso na Internet do que outros que ofe-
ou são eles? A culpa nião geral estão muito próximas das que recem uma cozinha mais elaborada ou um
pode não ser nossa poderiam ser tomadas por um perito, maior conteúdo artístico (no caso dos
POR JAVIER
nem dos outros (ou o que significa que, a partir de agora, livros). Estou perfeitamente consciente
MORENO só em parte). podemos prescindir deste último? Não de que a ambição (literária ou culinária)
Matemático e escritor

62 SUPER
mo (e ainda mais se for cultural) quase que os não especialistas são mais emo-
nunca são representativas; pelo contrá- tivos, o que tem um impacto na disper-
rio, são bastante tendenciosas. E isto, são das suas avaliações (classificações
como veremos, por várias razões. A pri- extremas, positivas ou negativas). As
meira é que o nicho de leitores (para avaliações dos peritos, no entanto, ca-
dar um exemplo simples) de A Sombra racterizam-se por uma menor dispersão
do Vento (4,3 no Goodreads), de Carlos do que as dos amadores, bem como por
Ruiz Zafón, e de Volverás a Región (3,5 uma maior extensão e complexidade do
no Goodreads), de Juan Benet, não é conteúdo.
de modo algum o mesmo, tal como não
é o mesmo o do restaurante que serve SABEMOS QUE OS PERITOS TENDEM A CEN-
porções abundantes e suculentas que o TRAR-SE EM PRODUTOS CULTURAIS de com-
do utilizador do restaurante com uma plexidade média e/ou elevada, enquanto
estrela Michelin. Um olhar desatento os não peritos tendem a centrar-se em
sobre a classificação poderia ditar que produtos mainstream. É um facto óbvio
A Sombra do Vento é melhor do que Vol- que é mais fácil satisfazer o gosto do não
verás a Región (para continuar com o especialista (que, como já dissemos, cor-
exemplo anterior). E não, não é verdade. responde normalmente à sua satisfação
Nem o contrário é necessariamente ver- com uma avaliação positiva) do que o
dadeiro. Tudo depende dos parâmetros do especialista (menos pródigo nas suas
que se utilizam para avaliar o livro em avaliações, condicionadas à insatisfação
causa. Ninguém duvida que A Sombra do e não o contrário). Não é de estranhar,
Vento é um produto cultural de entrete- portanto, que a comparação entre um
nimento e que cumpre perfeitamente a produto cultural mainstream e outro, di-
sua função. Em contrapartida ,Volverás gamos, mais sofisticado, seja quase sem-
a Región não é um livro escrito para en- pre favorável ao primeiro.
treter, tal como entendemos habitual- Depois de tudo o que foi dito, é mais
mente essa palavra. Neste último caso, do que necessário rever a forma como
abordamos as avaliações. De facto, é o
método que muitos de nós seguimos,
PARA QUE O ESTUDO um equilíbrio entre a opinião da massa
de utilizadores e a dos especialistas. A
ESTATÍSTICO simples expressão de um número decimal
está, como vemos, longe de representar a
SEJA VÁLIDO, A qualidade de um produto.
Em física, conhece-se como morte tér-
AMOSTRA DEVE SER mica o facto de que o universo colapsará
devido a um máximo de entropia (desor-
REPRESENTATIVA dem) onde a energia se distribui unifor-
memente. Se alguma coisa caracteriza es-
se estado da matéria, é a indiferenciação.
nem sempre corresponde aos resultados. trata-se de uma obra que satisfaz um Não haverá estrelas, nem planetas e, cla-
Parece razoável que a pretensão seja jus- elevado padrão literário, sendo por isso ro, nem vida. Podemos utilizar esta previ-
tamente punida pelos utilizadores. Neste mais difícil de digerir do que a primeira. são das leis da termodinâmica como uma
caso, não há nada a objetar. Trata-se ape- É normal, portanto, que muitos leitores metáfora para descrever a forma como
nas de chamar a atenção para o facto de o considerem difícil de digerir e aban- apreciamos os nossos produtos culturais.
os consumidores terem frequentemente donem a sua leitura. Não é justo nem Com efeito, se, como observámos, a esca-
uma abordagem desprevenida e acrítica razoável que os dois produtos culturais la que utilizamos para medir a qualidade
das avaliações de que estamos a falar. entrem numa relação de concorrência destas produções for indiferente ao ob-
Apenas os mais informados contrastam (comparação das suas classificações no jetivo que os seus autores estabeleceram
as boas críticas com as más para obterem Goodreads, por exemplo), uma vez que para si próprios, se continuarmos a pensar
uma imagem completa do produto em que os parâmetros em que cada um se baseia que todos os livros ou todos os filmes
estão interessados. não são mensuráveis. podem ser comparados pelo simples facto
A segunda razão (tendenciosa) é que de os utilizadores os poderem avaliar com
HÁ UMA REGRA BÁSICA EM QUALQUER ES- nem toda a gente tem a mesma propensão uma bitola comum (de uma a dez ou de
TUDO ESTATÍSTICO: se quisermos dar cre- para deixar uma crítica numa plataforma uma a cinco estrelas), se renunciarmos
dibilidade aos resultados do estudo, a ou rede social. Vários estudos demons- aos critérios dos especialistas, capazes de
amostra deve ser representativa, ou tram que os clientes satisfeitos escrevem distinguir categorias e de enunciar uma
seja, deve refletir de alguma forma o avaliações de produtos mais curtas e mais opinião autorizada (controversa, como
espetro variado da população a que se frequentes do que os especialistas, sendo qualquer juízo baseado em argumentos),
destina o estudo. Não é difícil perceber as opiniões destes últimos quase sempre então viveremos condenados à indiferen-
que as amostras de utilizadores que dão reduzidas aos casos de insatisfação. Além ça, a uma noite cultural em que todos os
a sua opinião sobre um bem de consu- disso, estes estudos mostraram também gatos são pardos. e

SUPER 63
ENTREVISTA

«Tenho esperança de

ASC
que da observação
do céu venham
grandes novidades
para a Terra, como
aliás sempre
aconteceu.»

64 SUPER
Carlos Fiolhais
A ciência é um desvendar constante dos mistérios do mundo.

Texto de ELSA REGADAS

C
arlos Fiolhais foi pro- no Biocant, em Cantanhede, na área do genoma humano.
fessor de Física na Uni- Tem extensa colaboração na imprensa, rádio e televisão.
versidade de Coim- Ganhou diversos prémios, de que se destacam: Prémio
bra (UC) tendo obtido União Latina de tradução científica (1994); Globo de
o grau de Doctor Rer. Ouro de Mérito em Ciências da SIC (2004); Prémio Ino-
Nat. em Física Teóri- vação do Fórum III Millennium (2005), Prémio Rómulo
ca em Frankfurt am de Carvalho da Universidade de Évora (2006); Prémio
Main, Alemanha. Pu- BBVA - Real Sociedade Española de Fisica para o melhor
blicou cerca de 70 artigo pedagógico de Física no espaço ibero-americano
livros de História e (2012); Grande Prémio Ciência Viva – Montepio (2017);
Divulgação Científi- Prémio José Mariano Gago da Sociedade Portuguesa de
ca. Realizou investiga- Autores (2018); Medalha de Mérito Científico do Mi-
ção em Física da Maté- nistério Para a Ciência, Tecnologia e Ensino Superior
ria Condensada, Ensino das Ciências e História das Ciên- (2012); Ordem do Infante D. Henrique (2015).
cias. É autor de mais de 200 artigos científicos, um dos
quais com mais de 24.000 citações (sendo o autor mais Após a licenciatura em Física, na Universidade de
citado em Portugal) e centenas de artigos pedagógicos e Coimbra, doutorou-se em Física Teórica na Universida-
de divulgação. Criou o programa doutoral em História de Goethe, na Alemanha. Tendo em conta a sua paixão e
das Ciências e Educação Científica das Universidades de dedicação à escrita, chegou a pensar em escolher a área
Coimbra e Aveiro.  Criou o portal Mocho. Dirigiu a revis- de Letras em vez da Física?
ta Gazeta de Física. Foi Diretor do Centro de Física Com- Não, a Física sempre foi a minha paixão. Desde o tempo
putacional da UC, onde instalou o maior computador na- do liceu, sempre me interessei pela escrita e por letras e
cional para cálculo científico, no Centro de Informática artes, mas uma pessoa de ciências pode continuar a in-
da UC, onde ligou a UC à Internet e publicou as primeiras teressar-se por essas áreas. Na Alemanha ensinei Portu-
páginas web, e da Biblioteca Geral da UC, onde, entre guês e Literatura Portuguesa tanto a filhos de emigrantes
2004 a 2011, concretizou vários projetos relativos ao livro como a alemães adultos. E, tendo à mão a grande biblio-
e à leitura, designadamente a criação dos repositórios di- teca da universidade, li numerosas obras literárias em
gitais Estudo Geral e Alma Mater. Presidiu ao Conselho português. Hoje sou fruto das leituras que fiz. E sou um
Científico do European Physical Journal. Foi consultor comprador compulsivo e leitor devoto de livros, de vá-
de programas científicos para os canais de televisão SIC rios tipos. Atualmente coordeno as Conversas Almedina
e RTP e para o Museu de Ciência da UC. Foi responsável em Coimbra, por onde têm passado grandes escritores.
pelo Programa de Conhecimento da Fundação Francisco
Manuel dos Santos, onde criou a rede Global Portugue- Em 1998 fundou o Centro de Física Computacional da
se Scientists - GPS. Fundou e dirigiu o Rómulo – Centro Universidade de Coimbra, onde foi montado o maior
de Ciência Viva da UC. Foi co-fundador e administrador computador português para cálculo científico. Conte-
da startup de biotecnologia Coimbra Genomics, sediada -nos como foi essa experiência numa época em que se

«O público interessa-se, mas tem faltado atenção dos


governantes pela cultura científica. Os políticos usam a ciência
como uma flor na lapela e não reparam que ela está murcha»
SUPER 65
davam os primeiros passos na computação em Portugal. sairei:/Homem moderno, / Antigo serei (…) Com mais
A Física Computacional precisa de grande poder de cál- tempo terei tempo (…)» Tenho desde então usado o
culo. E nós, como não tínhamos dinheiro, começámos meu tempo para ler e escrever mais. E vou a muitos
por juntar vários computadores baratos para fazer um sítios onde me convidam. Agora pedem-me para falar
supercomputador. Quanto juntámos cem chamámos- sobre inteligência artificial. Faço por ser moderno antes
-lhes Centopeia: cada um deles era uma «pata» e eram de ser antigo.
precisas todas para andar. Mais tarde comprámos um
supercomputador a que chamámos Milipeia. Demos as- Em que ponto está a divulgação científica em Portugal?
sim os primeiros passos portugueses na supercomputa- Como é, para além do meio académico, a recetividade
ção, colocando as máquinas ao dispor da comunidade de público nacional relativamente a temas científicos?
científica do país. Passámos também a ser os represen- José Mariano Gago, meu saudoso amigo, percebeu que
tantes nacionais nos organismos europeus dessa área. o desenvolvimento da ciência e tecnologia entre nós
Mas, apesar do que andámos, Portugal está muito longe precisava do alargamento da cultura científica. Fundou
dos locais do topo, resultado do baixo investimento em a Ciência Viva, uma agência para o fomento dessa cul-
ciência. tura, mas ela tem estado estagnada nos últimos anos.
Há muito poucas ideias e falta foco nos grandes desa-
Houve algum cientista, autor ou educador que tenha fios que confrontam a sociedade como o da inteligên-
exercido influência significativa na sua carreira e abor- cia artificial. Os meios audiovisuais, como a televisão
dagem à Ciência? Se sim, como é que ela se manifesta no e a rádio pouca atenção dão à ciência. A RTP tem um
seu trabalho? papel que não está a cumprir. Dei os meus contributos
A minha referência como cientista sempre foi Einstein. com os programas Original é a Cultura, na SIC, e Ciência
Entrei para Física fascinando pelas suas experiências Pop, na Rádio Observador, mas infelizmente acabaram.
mentais. Mais tarde, no tempo do doutoramento, fi- Valha-nos a imprensa, entre as quais revistas como a
quei fascinado com Carl Sagan, o maior divulgador de Super Interessante. Tenho uma secção aos domingos
ciência de sempre. Quanto a educadores, distingo, en- no Correio da Manhã. E dirijo há dez anos a coleção da
tre nós, Rómulo de Carvalho, que foi o poeta António Ciência Aberta, da Gradiva, onde tenho procurado pu-
Gedeão. Montei em Coimbra uma biblioteca de cultura blicar bons livros. O público interessa-se, mas tem fal-
científica em sua homenagem. tado atenção dos governantes pela cultura científica. Os
políticos usam a ciência como uma flor na lapela e não
Quando, em 2021, a sua palestra “História da Ciência na reparam que ela está murcha.
Universidade de Coimbra” encerrou oficialmente a sua
carreira de docente, que outros planos profissionais ti- Que desafios se colocam atualmente a um divulgador
nha já para o seu futuro? científico que não se colocavam há cerca de 40 anos?
O dia da última aula foi apenas o primeiro dia do res- A grande diferença, para além da necessidade de res-
to da minha vida. Citei o poema «Tempo» de Vitorino ponder a grandes desafios da humanidade que a própria
Nemésio, que deu a sua última aula, 50 anos antes da ciência e tecnologia colocou – a inteligência artificial,
minha: «A tempo entrei no tempo, /sem tempo dele as alterações climáticas, a moderna biomedicina -, con-

«Portugal está
muito longe
dos locais do topo,
resultado do baixo
investimento em
ciência.»
ASC

66 SUPER
«O grande perigo da inteligência artificial é a sua capacidade de
intoxicação do público a uma escala nunca vista. É preciso
regulá-la para manter a democracia»
siste no facto de hoje dispormos desse poderoso instru- estaremos mais perto de desvendar o enigma do que
mento que é a Internet. Ela mudou tudo: mudou a ciên- preenche as galáxias e do que acelera a expansão do
cia, mudou a cultura, mudou a nossa vida. O Carl Sagan Universo?
hoje estaria no mundo dos podcasts e do Youtube. Para Sim, a ciência é um desvendar constante dos mistérios
além, claro, de estar nos livros, que são eternos. do mundo. Com a sonda Euclides faremos um melhor
mapa do céu, que nos poderá revelar mais sobre es-
Com a internet, o acesso à informação especializada sa matéria e essa força desconhecidas, a que damos os
tornou-se mais próximo de todos. Que balanço faz, re- nomes de matéria escura e de energia escura. Tenho
lativamente às vantagens e desvantagens da informação esperança de que da observação do céu venham gran-
online no domínio do conhecimento científico? des novidades para a Terra, como aliás sempre acon-
As vantagens superam claramente as desvantagens. A teceu.
ciência passou a ser cada vez mais aberta, no sentido
de os seus conteúdos estarem disponíveis a todos. Pelo A capacidade de formar jovens em Portugal é cada vez
menos é essa a tendência. Contribuí para ela ao criar na mais elevada, mas não há respostas profissionais sufi-
Universidade de Coimbra os repositórios digitais Alma cientemente motivadoras para os manter no país. A
Mater e Estudo Geral. Mas sei bem que, tendo crescido a emigração de pessoas qualificadas em Ciências preocu-
informação, cresceu também a desinformação. O gran- pa-o ou é algo que considera natural?
de perigo da inteligência artificial é a sua capacidade de Preocupa-me muito. Um dos motivos por que saí antes
intoxicação do público a uma escala nunca vista. É pre- do limite obrigatório foi o de contribuir para dar mais
ciso regulá-la para manter a democracia. oportunidades aos mais novos. Mas os «mais novos»
que têm entrado nos quadros das universidades são
Como, na sua opinião, podemos melhorar a educação poucos e não são nada novos. Este é um dos maiores
científica, tanto nas escolas como na sociedade em ge- dramas do país: não estamos a dar oportunidades aos
ral? Que principais obstáculos precisamos de superar jovens mais qualificados. Eles podem ter futuro lá fora,
nesse sentido? se emigrarem, mas nós temos muito pouco futuro sem
A educação científica deve começar o mais cedo possí- eles. O nosso futuro depende da confiança que deposi-
vel e pela via experimental: é preciso saber «agarrar o tarmos nos jovens. O discurso político tem passado ao
mundo» pelas mãos ainda no jardim de infância e no lado desta questão.
1.º ciclo do básico. Mais tarde, é preciso continuar a
entusiasmar para a ciência e, para isso, precisamos de Em que áreas da ciência pensa que será mais provável,
professores entusiastas. Infelizmente, o governo tem nas próximas décadas, encontrar novos desafios para a
desconsiderado os professores, tendo a profissão deixa- humanidade?
do de ser atraente. É preciso urgentemente valorizar a Eu não sou adivinho. Mas atualmente já temos desafios
profissão docente! Quanto à educação científica infor- que cheguem. Enumerei três: se nos oferece oportuni-
mal, são precisas ajudas públicas – porque a ciência é dades fantásticas, a inteligência artificial também apre-
um bem público – no mundo da imprensa, que está a senta perigos claros; temos de resolver o problema do
viver uma grande crise. sobreaquecimento do planeta, passando a usar energias
alternativas; e temos de usar com cuidado meios for-
Criou e dirige o «Rómulo» - Centro de Ciência Viva da midáveis que a medicina tem à sua disposição, como a
Universidade de Coimbra. Fale-nos um pouco sobre os possibilidade de edição genética. Confio na inteligência
mais atuais projetos nesse âmbito. humana. Gostava de confiar mais na bondade humana.
Criei, mas já não dirijo, porque saí da Universidade e era
preciso uma presença constante. Mas tenho muito or- Entre as mais de seis dezenas de livros que escreveu,
gulho do trabalho que lá fiz durante 13 anos. Criámos lá quais recomendaria aos nossos leitores e porquê?
uma mediateca de mais de 40 000 volumes, muitos ofe- O meu primeiro livro, Física Divertida (Gradiva), foi,
recidos por mim, e por lá passaram os maiores nomes de longe, o mais vendido, tendo sido traduzido lá fora.
da cultura portuguesa, debatendo os grandes temas. Conto que apareça em breve uma nova edição, incluin-
Disseram-me que o Ciência Viva alijou o centro, o que do num só volume também a Nova Física Divertida.
significa que alijou a cultura científica nacional. A ig- Gosto muito também da História da Ciência em Portugal
norância é muito atrevida. Temos em Portugal em car- (Arranha-Céus), da qual foi feita uma tradução recente
gos de decisão política gente com muito pouca cultura, para mandarim. E, continuando na História (a História
gente muito ignorante. É preciso continuar a espalhar ensina-nos muito!), gostei muito de fazer com os histo-
a cultura científica, mas haverá sempre inimigos dela, riadores José Eduardo Franco e o José Paiva, a História
alguns bem instalados. Global de Portugal (Temas & Debates). Dou uma novi-
dade: estou a trabalhar numa História Global da Ciência
Energia escura e matéria escura, dois dos maiores mis- em Portugal, que vai divulgar o papel que Portugal teve
térios que intrigam cientistas - com a missão Euclides na história da ciência no mundo… e

SUPER 67
T E C N O L O G I A

CREDITO
GETTY

68 SUPER
QUE TORNAM A NOSSA EXISTÊNCIA MELHOR
A realidade virtual é uma tecnologia que está a ser cada vez mais investigada e
utilizada em psicoterapia e noutras aplicações. Descobriu-se que, quando imita a
natureza, recebemos alguns dos mesmos benefícios que da experiência real.

Texto de JAVIER RADA, jornalista científico e cultural

magine-se a viver no corpo de ou-


tra pessoa durante algumas horas.
Ser negro, asiático ou caucasia-
no, ser baixo ou alto, ser homem
(se fores mulher) ou o contrário.
Imaginem, por exemplo, encarnar
o corpo de uma mulher na Cidade
do México, e andar pelas suas ruas
sendo assediado todos os dias, sen-
tindo o mesmo nojo. Ou que está
numa floresta, ouvindo o coro dos
pássaros ao amanhecer, relaxando no esplendor do
verde, e que o faz durante um confinamento, fecha-
do num apartamento de cinquenta metros quadrados,
dentro de uma prisão, ou numa longa viagem — porque
não — a Marte. Imagine também que esta hipotética
viagem a Marte pode ser feita a partir da sala de estar
da sua casa. Ou que sofra de fobia de pombos (chama-
-se colombofobia), e que seja obrigado a enfrentá-los,
pombos que nessa experiência se multiplicarão, serão
milhares, rodea-lo-ão e, depois, depois de os enfren-
tar, os pombos da sua cidade até lhe parecerão coisa
pouca...
Imaginem que... basta, deixemos de imaginar, por-
que esta tecnologia, na realidade (virtual), vai para além
da imaginação. Tem um potencial enorme, que ainda é
difícil de calcular. Os psicólogos clínicos, por exemplo,
parecem estar encantados com as suas possibilidades,
como a fada madrinha que acaba de encontrar um es-
pelho mágico...
Existem já numerosos estudos em muitos domínios
sobre a utilização da realidade virtual (RV), tanto tera-
pêuticos como experimentais. Há várias décadas que se
investiga o que acontece ao ser humano quando a ela é
exposto, como reage e qual o seu impacto psicológico e
fisiológico.

SUPER 69
Hoje em dia, parece inconcebível que um piloto
aprenda num Boeing real. Precisamente, esta tecnologia
começou no setor militar para formar os seus pilotos.
Entrar num caça e despenhá-lo por causa de um erro de
principiante custava milhões, e o Tio Sam não gostava
disso.

A INVESTIGAÇÃO APONTA PARA AINDA MAIS LONGE: A RV É CA-


PAZ DE IMITAR A NATUREZA. Estas experiências imersivas
podem transmitir alguns dos benefícios da experiência
real... Florestas que não são florestas e que, no entanto,
ajudam a curar, a baixar o ritmo cardíaco ou a fadiga
cognitiva, por exemplo.
FRASCA

E tudo isto acontece por causa do cérebro, pela for-


Os simuladores de voo são salas de aula imersivas que até têm movimento, ma como foi concebido ao longo de milhares de anos
permitindo sentir turbulência e ventos cruzados. de evolução. É o grande psiconauta (que navega em
diferentes camadas ou dimensões da realidade), o
conjurador que joga com as probabilidades (mais in-
teressado no exequível do que no real), e age sempre
Os resultados são impressionantes. As questões fi- como um boina verde: pronto para a ação em todos os
losóficas que emergem após cada imersão, antigas, mundos/ambientes que lhe são apresentados, sejam
poder-se-ia dizer eternas (o mito da caverna de Platão, eles físicos, sintéticos ou oníricos.
ou o samsara, o mundo como ilusão, dos hindus, ou, É sobretudo prático: mais vale confundir as riscas da
mais recentemente, a Matrix do filme). Um novo medo zebra do que as do tigre. Quando se está imerso num am-
transporta-nos, por sua vez, para a ficção científica: até biente virtual, «todas as investigações realizadas indicam
onde pode ir esta tecnologia, como posso saber se esta que a pessoa reage exatamente da mesma forma que se
realidade é uma simulação ou não? estivesse no mundo real», explica Luis Valero, professor
A realidade virtual já está a ser utilizada com sucesso de psicologia e coordenador do Laboratório de Realidade
em psicoterapia, no tratamento de perturbações (é eficaz, Virtual e Multimédia da Universidade de Málaga.
por exemplo, com fobias). É utilizada na aprendizagem de Somos um organismo com um cérebro que se desen-
competências, como quando os pilotos de avião apren- volveu para reagir e mover-se em qualquer ambiente.
dem a operar o avião a partir do solo, num simulador, ou Não importa se aquela pedra virtual que cai na nossa
os cirurgiões aprendem a operar num corpo modelo. direção é real ou não, ou se o arranha-céus de onde nos

Realidades híbridas e nova regulamentação


E stamos a viver continuamente, e cada
vez mais, em mundos híbridos», diz a
psicóloga Rosa Baños. Comunicamos via
vel, dado o avanço da tecnologia. «É urgente
regulamentar todas estas manipulações
da realidade que as tecnologias nos permi-
dades, devem ser limitadas? Se temos uma
tecnologia que pode aumentar a empatia por
outras pessoas e seres vivos, será que de-
Zoom, WhatsApp, e podemos saudar-nos tem tornar tão fidedignas, tão realistas, que ve deixar de ser utilizada? Será que a nossa
no metaverso. Saltamos de uma realidade o nosso cérebro não consegue distinguir», realidade alguma vez será completamente
para outra. Plataformas onde podemos ver salienta. São uma faca de dois gumes que le- substituível, em que, se acariciarmos um ga-
os rostos uns dos outros e ouvir-nos, como vanta muitas questões. Servem para enganar, to programado, por exemplo, esse gato nos
se estivéssemos em pessoa. Com a realida- mas também nos ajudam a ser melhores. Se oferecerá o mesmo que o verdadeiro? Esta
de aumentada, fundimos elementos reais dispusermos de tecnologias que facilitam às pergunta é muito complicada de responder,
com virtuais através dos óculos. A imersão pessoas lidar melhor com acontecimentos neste momento, não temos uma resposta»,
também funciona com vídeos de 360 graus, traumáticos ou com os seus medos e ansie- conclui Baños.
que são mais baratos e mais acessíveis. «É
verdade que ainda faltam muitas coisas nes-
tas relações, como o contacto físico, o toque,
etc., mas estamos a trabalhar nisso também,
para termos realidades cada vez mais inte-
gradas», diz Baños. Quando a tecnologia
avançar nesta integração, estas realidades
poderão ser capazes de fazer fotocópias
perfeitas porque o nosso cérebro não se
engana, vive nessa realidade. «A questão
é que se realizem os processos metacog-
nitivos necessários para que saibamos em
que realidade estamos em cada momento»,
acrescenta. Por isso, considera que deve ser
ISTOCK

regulamentado, e o mais rapidamente possí-

70 SUPER
O contacto com a natureza através
dos mundos virtuais proporciona-
nos os mesmos benefícios que a
natureza real, o descanso
cognitivo e o relaxamento

inclinamos com os nossos óculos de realidade virtual,

USA ARMY
sem qualquer corrimão, só existe num código progra-
mado. A vertigem não é virtual, e o cérebro adapta-se
porque «afinal, o que recebemos da realidade são im- As experiências virtuais são também utilizadas pelos militares pa-
pulsos fotoelétricos», explica Valero. ra simular espaços de batalha e missões especiais.
A cadeira real é feita de átomos e moléculas. A cadei-
ra virtual é feita de processos digitais. E o cérebro só se
preocupa com a sua sobrevivência, não está para aborda- som do rio ou do mar. Ouve-se um melro ou uma gai-
gens platónicas (isso fica para a metacognição, ou seja, a vota. Eles voam ao longe no céu... Mas não existem. Foi
capacidade de refletir sobre os processos de pensamento, um programador que os criou. Esse céu que também
quando se senta no sofá e bebe um copo de vinho). nos acalma é um conjunto de pixéis. Vê-se através dos
Isto confere a esta tecnologia um poder de simulação óculos, ouve-se nos auscultadores. Até podemos chei-
que crescerá à medida que o seu desenvolvimento pro- rar esse mar ou floresta, se usarmos fragrâncias (como é
gride até que, talvez, como especulam alguns filósofos feito nos sistemas mais experimentais). Até se pode to-
da mente, como David Chalmers, não sejamos capazes car num objeto, se se utilizarem luvas hápticas (táteis).
de distinguir entre o mundo real e o mundo programa- «Uma das utilizações é criar ambientes muito relaxan-
do; alguém terá de nos avisar que este sonho é apenas tes que já associamos, por exemplo, a uma floresta ou a
um sonho dentro de outro sonho, como no poema de uma praia», diz Valero. Como toda a recreação virtual ti-
Calderón... ra partido da nossa experiência prévia com esses espaços,
Pensemos no caso da natureza virtual: plantas, flo- as experiências mostram que os resultados são imediatos.
restas, espaços abertos, montanhas, mares, vales, céus Quanto mais estímulos se acumulam (visão, som, tato,
azuis. «Já temos uma história com estes estímulos. E o cheiro), de acordo com estes estudos, mais o indivíduo é
que fazemos com a realidade virtual é tirar partido des- atraído para a experiência, mais «sentido de presença»
sa história», diz Valero. — como lhe chamam os cientistas — tem a pessoa.
«Através dos mundos virtuais podemos conseguir
UMA FLORESTA PODE SER UM LUGAR DE PAZ OU UM LUGAR AS- uma grande parte das vantagens de estar em contacto
SUSTADOR, DEPENDENDO DA NOSSA EXPERIÊNCIA ANTERIOR. A com a natureza para o bem-estar emocional e psicológi-
cor vermelha, por exemplo, está associada ao sangue. co, como o descanso atencional que os espaços abertos
«Não é a cor em si que produz um efeito, mas as asso- provocam, o descanso cognitivo», explica Rosa Baños,
ciações que fizemos», acrescenta Valero. doutorada em psicologia e professora da Universidade
Colocamos os óculos de realidade virtual no quarto de Valência, uma das pioneiras em Espanha no estudo
e um vale aberto estende-se à nossa frente. Ouve-se o do impacto psicológico desta tecnologia.
GETTY

SUPER 71
PRASANTH SASIKUMARINTER

A imagem A mostra a sincronia cerebral que ocorre no mundo real


e a imagem B no mundo virtual. Na realidade virtual, o cérebro
responde como aprendeu no mundo real.

SHUTTERSTOCK
Isto significa que uma paisagem vegetal virtual
também nos ajuda, embora de momento não pos-
sa substituir o mundo físico (que é perfeito, o modelo A realidade virtual proporciona-nos experiências semelhantes às
principal), e nem (de momento) é essa a ideia, pelo me- da vida real ou outras experiências que nunca poderiam
nos no campo da psicologia clínica. acontecer na vida normal.
A ideia é ver como a realidade virtual pode ser in-
tegrada com o mundo real, para construir camadas
complementares, pontes bidirecionais, para conseguir reais», conclui Baños. De tal forma que a possibilidade
impactos psicológicos positivos. «Tem diferentes po- de tratar com êxito uma fobia é muito elevada com este
tencialidades, e a mais difundida e investigada é a que e outros métodos.
tem a ver com a simulação do mundo, fazendo fotocó- Hoje a tecnologia ainda é rudimentar em comparação
pias perceptivas do que nos rodeia», diz Baños. com o modelo real, a experiência da árvore viva é muito
Sabemos que viver rodeado de espaços verdes tem be- superior. «Embora a tecnologia esteja a avançar muito,
nefícios muito claros e bem estudados para a nossa saúde há um ponto de distinção, não é tão rápida ou tão imer-
e capacidades cognitivas, reduzindo, por exemplo, as siva como muitas vezes se faz crer, há uma barreira, há
taxas de morte prematura ou de doenças cardiovascu- uma distinção entre uma coisa e outra», diz Valero.
lares. «Quando substituímos um ambiente percetivo Mas submerjamos-nos um pouco mais neste enga-
por outro, mesmo que seja um ambiente simulado por no percetivo. Todos os dias, você próprio recorre, de
computação gráfica, o nosso cérebro responde ao que algum modo, à realidade virtual. Sempre que sonha,
aprendeu sobre como deve responder no mundo real», entra num mundo percetivo e emocional que não cor-
explica Baños. E mais — e é isto que dá poder a esta tec- responde ao mundo em que se encontra quando acorda.
nologia — responde em ambas as direções. Durante o sono, só existe a realidade onírica. O so-
nho é diferente da realidade virtual, porque se está num
O QUE APRENDEU NO MUNDO REAL APLICA-SE AO MUNDO VIR- estado alterado de consciência, como quando se toma
TUAL, e o que aprende no mundo virtual pode ser levado uma substância psicadélica. Mas «os neurónios conti-
para a realidade material. Os psicólogos podem pro- nuam a disparar, nunca param, e se acordarmos e nos
gramar e moldar as experiências à sua medida. «Se lembrarmos do último minuto, é porque foi real para
virmos um rato virtual e tivermos medo ou nojo do nós», diz Valero.
rato, reagiremos da mesma forma, fisiologicamente, Outra aplicação da realidade virtual é a interação com
comportamentalmente, emocionalmente, como se o mundos que não são fotocópias, mas mundos modela-
rato fosse real», diz Baños. O coração fica acelerado, dos, deformados, mundos novos. «Permite-nos fazer
sente-se ansioso. coisas que seriam implausíveis e impraticáveis na vida
Se atravessarmos uma ponte alta e estreita, tentare- real», explica Baños. E o nosso cérebro, como já deve ter
mos agarrar os lados, mesmo que não existam lados. adivinhado, o soldado das percepções, continuará a agir
Não importa se isso acontece num ecrã de computa- mesmo perante o mais implausível. «E não há apenas a
dor ou mesmo na imagem plana de um filme (com o possibilidade de habitar outro mundo, mas de habitar um
qual nos entusiasmamos e até gri- corpo, e isso é tremendamente interessante», acrescen-
tamos, naquilo a que se chama ta Baños. Também se produz uma ilusão. «Acabamos por
«suspensão da realidade»). nos convencer de que esse corpo virtual é nosso. Tem um
«E se aprendermos a gerir potencial brutal, porque se pode experimentar o mundo
esse medo com aquele rato como uma pessoa com uma deficiência física, de
virtual, a aprendizagem no uma raça diferente, de uma altura diferente,
mundo virtual também ou com capacidades diferentes», diz ele.
se transfere para o Isto facilita um grande campo de
mundo real, quando aprendizagem e o desenvolvimento da
encontramos os ratos empatia. Os psicólogos sabem que
uma das fontes de conhecimento
dos seres humanos é a aprendi-
Fisiológica e emocionalmente, responde-se zagem por modelação. Desde
da mesma forma a uma experiência em o primeiro machado de pedra,
realidade virtual que no mundo real. aprendemos observando os ou-
ISTOCK

72 SUPER
Realidade virtual
na terapia
N ão estamos interessados em imitar a realidade o melhor possí-
vel, mas em gerar experiências que ajudem a melhorar a vida»,
diz a psicóloga Rosa Baños. O objetivo da psicologia clínica não
é criar realidades indiferenciadas, mas conseguir regular as emo-
ções negativas, enfrentar problemas como os derivados da imagem
corporal. As aplicações são múltiplas no campo da terapia, e tam-
bém podem ser feitas de forma controlada, com o terapeuta a ter
controlo sobre tudo o que o paciente vê e experimenta na imersão.
Tratar alguém com vertigens em alturas reais, por exemplo, pode ser
perigoso. «Este tipo de terapia funciona muito bem em neuroreabi-
litação, com pessoas com lesões neurológicas, motoras, etc.», diz
Baños. Há provas incontestáveis no caso das fobias e da ansieda-
de. Permite que o indivíduo seja exposto a situações em que não
se atreveria num ambiente real. «Torna a tarefa muito mais fácil»,
tros a fazer coisas. A equipa de Baños realizou um estudo explica o psicólogo Luis Valero. Para curar uma fobia, é utilizado um
na Cidade do México, onde colocou trinta e cinco ho- procedimento de exposição progressiva. Este pode ser efetuado
mens em corpos virtuais de mulheres, utilizando vídeos de diferentes formas e, por vezes, recorre-se ao relaxamento e ao
de 360 graus, e submeteu-os ao assédio que as mulheres mindfulness. «Trata-se de colocar o indivíduo perante os estímulos
sofrem na Cidade do México. «Os resultados mostraram que teme», acrescenta Valero. Funciona com todos os tipos de fo-
mudanças que se refletiram num aumento da empatia e bias, como agorafobia, fobia de altura, fobia de voar, etc. Também é
numa diminuição da atitude machista e violenta dos par- utilizado para a ansiedade e a depressão. «Numa situação real, não
ticipantes», concluiu a investigação. se pode levar um doente a uma escada do oitavo andar e dizer-lhe
Durante a pandemia, a sua equipa também distri- para olhar para baixo, ele não vai deixar», diz. Mas com a realida-
buiu óculos de realidade virtual às pessoas para ver que de virtual, pouco a pouco, a pessoa adapta-se a esse sentimento
efeitos tinha a exposição a uma natureza virtual quan- de ansiedade. Ao fazê-lo progressivamente, a pessoa vê que nada
do éramos obrigados a ficar em casa. «Enviámos-lhes acontece, porque a ansiedade «é uma resposta evolutiva que temos
auscultadores muito baratos através da Amazon e uma para nos defendermos», segundo Valero. Nas fobias, ao evitar essa
ligação online para que se pudessem ligar a vídeos de ansiedade, ela retroalimenta-se e mantém-se ao longo da vida se
360 graus», diz Baños. Todas as pessoas que experi- não for tratada. «Em questão de sete ou oito sessões com realidade
mentaram mostraram benefícios. Em situações difíceis, virtual, a pessoa vê que pode enfrentar os pombos ou uma altura e,
o contacto com a natureza fictícia aumentou as emoções a partir daí, o próximo passo é enfrentar o pombo de verdade», diz
positivas. O mesmo aconteceu com uma experiência em Valero. É também utilizada em situações de stress pós-traumático
que Baños participou em Moscovo, simulando as condi- ou em situações de perda, expondo os pacientes a ambientes cal-
ções de confinamento de uma viagem a Marte, e em que mos, idílicos, relaxantes, com sons suaves, onde são encorajados a
programaram ambientes virtuais com espaços abertos. expressar as suas emoções. Está a ser investigado na esquizofrenia,
por exemplo, para se poderem adaptar às vozes que ouvem, apren-
A QUESTÃO SUBSEQUENTE É SABER SE EXISTE ALGO NA NOSSA dendo que elas não estão fora da sua cabeça, e assim poderem
REALIDADE QUE NÃO POSSA SER IMITADO PELA REALIDADE VIR- ignorá-las. É utilizado na regulação emocional e na imagem corporal
TUAL, se os cientistas encontraram uma ligação imutável. (fazendo, por exemplo, com que as pessoas que negam o seu corpo
Teoricamente, não haverá limites quando a tecnologia se exponham a ele). É também utilizada na gestão da dor, praticando
avançar, mas para Baños é absurdo perguntar se estas movimentos de reabilitação. «Em suma, a RV funciona muito bem, a
realidades podem ser melhores do que a realidade fí- sua aplicabilidade é tremenda», conclui Baños.
sica. «Seria absurdo se eu vivesse num parque natural
e, em vez de ir ao parque, pusesse óculos de realidade
virtual para ver esse mesmo parque. Nunca devemos
encará-la como algo que a vai substituir, mas sim como
algo que a vai complementar ou que me vai ajudar nas
circunstâncias em que não posso aceder a ela», conclui.
As pessoas que viram o primeiro comboio filmado pelos
irmãos Lumière ficaram aterrorizadas: pensavam que o
comboio as ia atropelar. Hoje em dia, ninguém sai a correr
do cinema quando vê um comboio no ecrã, mas a tecnolo-
gia continua a avançar. E isto adquire um significado mais
profundo nestes tempos de crise climática. Seria absurdo,
como diz Baños, apostar numa Amazónia sintética en-
quanto destruímos a verdadeira. Seria absurdo deixar de
nos abraçarmos para o fazermos num metaverso. «A rea-
lidade virtual não vai substituir esse contacto físico, essa
relação humana, porque tem um certo limite», acrescen-
GETTY

ta Valero. Pelo menos por enquanto. e

SUPER 73
EXPLORER MOTOR

QUANDO A ELETRIFICAÇÃO NÃO É


INCOMPATÍVEL COM A DESPORTIVIDADE
O CUPRA FORMENTOR E-HYBRID, O PRIMEIRO SUV ELETRIFICADO DA EMPRESA ESPANHOLA,
É PROPOSTO EM DUAS VERSÕES DE 204 CV E VZ DE 245, QUE CONFEREM AO MODELO
UMA ETIQUETA AMBIENTAL DE EMISSÕES ZERO, PERMITINDO UMA CONDUÇÃO ALTAMENTE
EFICIENTE SEM PERDER O CARÁTER DINÂMICO QUE TÃO BEM O DEFINE.

om linhas muito desportivas e um desenvol- o nível de acabamento VZ. Motorizações plenas de desem-

C vimento exclusivo, o CUPRA empenhou-se em


criar um modelo eletrificado com elevado de-
sempenho, o comportamento verdadeiramente
penho e eficiência. São capazes de atingir os 0-100 km/h
em cerca de 7 segundos e uma velocidade máxima de 210
km/h, com uma elevada eficiência, conseguida, em parte,
desportivo típico da marca, um amplo equipamento e ca- graças à bateria de iões de lítio de 13 kWh, que lhe per-
paz de ostentar uma caraterística muito procurada atual- mite ostentar a cobiçada etiqueta ambiental de emissões
mente. Referimo-nos ao primeiro SUV eletrificado da mar- ZERO. De facto, a sua tecnologia avançada permite-lhe
ca espanhola, o Formentor e-Hybrid, que chama a atenção armazenar energia suficiente para uma autonomia elétrica
à primeira vista pela sua traseira, pelas linhas esculpidas de até 59 quilómetros, por exemplo, nos 204 cv. A bateria
do capot com o emblema CUPRA ao centro e pelo seu pode ser recarregada em apenas 3 horas e 33 minutos com
difusor traseiro com dois frisos de cor cobre. E esta pele um carregador de parede de 3,6 kW, ou em pouco menos
de lobo, cheia de caráter no exterior, esconde um motor de 5 horas com uma tomada doméstica de 2,3 kW .e
igualmente potente. Com dois níveis de potência à esco-
lha: 204 cv (150 kW) e 245 cv (180 kW), este último com

74 SUPER
A versão de 204 cv do FORMENTOR
E-HYBRID está disponível a partir
de 300 euros por mês com Cupra
MyRenting. Para além desta tarifa
atrativa, os clientes podem ainda
beneficiar dos descontos próprios da
marca, bem como do Plano MOVES III.

O SUV PLUG-IN DA CUPRA oferece uma


vasta gama de equipamento de série.
Destacam-se os faróis full LED, o ecrã de 10
polegadas e o painel de instrumentos digital
de 10,25 polegadas, o controlo climático
de três zonas, o carregador de telemóvel
sem fios, os sensores de estacionamento
traseiros, o volante aquecido em pele com
patilhas de mudança de velocidades e o
sistema Full Link para ligar o seu smartphone
através do Android Auto e do Apple Car
Play. O Formentor inclui as mais avançadas
tecnologias de segurança, incluindo de série o assistente de travagem de emergência com deteção
de peões e ciclistas, o Lane Assist, o Travel Assist, que permite uma condução semi-autónoma de
nível 2, e o reconhecimento de sinais, entre outras funcionalidades. Além disso, um ecrã maior de
12 polegadas e o assistente de estacionamento automático, entre muitos outros, estão disponíveis
como opções por um custo reduzido graças aos pacotes simplificados.

AS SUAS DIMENSÕES são 4450 mm


de comprimento, 1830 mm de largura
e 1510 mm de altura. Esta última é
fundamental, uma vez que a altura
está algures entre um automóvel
de passageiros e um SUV, e oferece
excelentes dimensões de habitáculo.
A distância entre eixos de 2680 mm
traduz-se num espaço significativo
para as pernas dos ocupantes
traseiros. A bagageira tem uma
capacidade de 345 litros.

SUPER 75
EXPLORER MOTOR

UM AUTÊNTICO
TODO-O-TERRENO
EM FORMA DE SUV
O TORRES É O NOVO SUV da SsangYong
com um estilo robusto e pormenores que
lhe conferem um aspeto todo-o-terreno.
É o que se pode ver, por exemplo, nas
suas volumosas jantes, numa frente com
uma distinta grelha de 6 elementos verti-
cais ou na traseira hexagonal que lembra
a cobertura de uma roda sobresselente.
Oferece igualmente um elevado nível
de conforto para as viagens em família
e está apto a enfrentar situações de
condução off-road com uma distância ao
solo de 195 mm e ângulos de ataque, de
saída e ventral. Destaca-se ainda pelos
seus 839 litros de espaço para bagagens
que, com a segunda fila de bancos total-
mente rebatida, alcança os 1662 litros. Es-
tá disponível com 163 cv a gasolina, GPL
e, em 2024, 100 % elétrico. Preço: a partir NOTA: 4,49
de 31 000 euros.

UM SÍMBOLO DO LUXO MODERNO


O RANGE ROVER SPORT É UMA briedade inigualável. Com uma autonomia Range Rover Sport SV, por sua vez, leva o
OBRA-PRIMA concebida para aqueles que elétrica de até 121 quilómetros, o Range conceito de luxo moderno à sua expressão
procuram constantemente ultrapassar os Rover Sport PHEV, em particular, permite máxima. No topo da gama encontra-se o
seus limites, desafiar-se a si próprios e realizar até 75 por cento das viagens diá- novo Range Rover Sport SV com um motor
conquistar novos horizontes; um design rias com energia elétrica. Estão também V8 bi-turbo de 635 cv, o mais potente da
que une uma modernidade deslumbrante disponíveis dois modelos híbridos plug-in história da série, cujo novo sistema de
e um refinado requinte, com tecnologia com uma autonomia elétrica ainda maior. suspensão «6D Dynamics» elimina vir-
de ponta e conetividade otimizada. A sua Além disso, está a ser oferecida pela pri- tualmente toda a oscilação. Preço: a partir
presença é marcante graças a uma so- meira vez uma versão de sete lugares. O de 104 050 euros.

NOTA: 4,87

76 SUPER
DESEMPENHO E DESIGN EMOCIONAL
PARA O NOVO CORSA
COM O SEU NOVO VISUAL, o Opel Corsa apresenta o painel de instrumentos com
“ A MINHA OPINIÃO

A EURO7, TALVEZ NÃO


SEJA APENAS UM SIMPLES
a assinatura Vizor da Opel e o cockpit totalmente digital, que é agora oficialmente
o mais atrativo do seu segmento de mercado. Em concreto, os designers torna- ADIAMENTO
ram o best seller dos automóveis pequenos ainda mais elegante e moderno. A RECEBEMOS RECENTEMENTE A NOTÍCIA
caraterística mais marcante é a sua grelha, os faróis LED nas laterais e, na traseira, DO ADIAMENTO da polémica lei Euro7. A
o nome Corsa aparece agora com confiança no centro da porta da bagageira. O informação, que se espalhou como um
Corsa também apresenta um ambiente moderno e agradável no interior. O desta- rastilho, anunciava o adiamento por dois
que aqui, tanto a nível visual como técnico, é o cockpit totalmente digital opcional anos de uma lei que foi e continua a ser
com o novo sistema de infoentretenimento. A bordo, o novo ecrã tátil de 10 pole- uma dor de cabeça para os fabricantes
gadas e a alavanca de velocidades e o volante em pele vegan apresentam um de- de automóveis, devido à dificuldade ou
sign mais dinâmico, em linha com as últimas tendências. Como o Corsa Electric, impossibilidade de atingir os níveis de
está disponível em dois níveis de desempenho: com 136 cv e uma autonomia até poluição previstos na lei.
354 quilómetros, e agora com 156 cv e até 402 quilómetros de prazer de condu- Nós, profissionais, sempre fomos claros
ção sem emissões. Preço: a partir de 17 400 euros. quanto à necessidade de cuidar do nosso
planeta. Isto significa reduzir a zero a po-
luição causada por qualquer dispositivo
que faça parte da mobilidade humana.
Mas esta utopia estará longe de ser uma
realidade se não for levada a cabo de
mãos dadas com a indústria, a sociedade
e as realidades subjetivas de cada um dos
agentes que compõem este tabuleiro de
xadrez. A China não ajuda em nada, nem
com a sua gestão da poluição, nem muito
menos com a sua alegada ajuda, que traz
NOTA: 4,43 para o mercado automóveis com os quais
é difícil competir em termos de preço e de
desempenho. Por outro lado, o Reino Uni-
do não hesitou em adiar o fim do veículo
de combustão pelo menos até 2035.
O PRIMEIRO SUV DA POLESTAR Já perdi a conta ao número de vezes que
reiterei a minha defesa do veículo elétrico
ESPANHA ACOLHEU A APRESENTAÇÃO OFICIAL do Polestar 3, o primeiro SUV do como um dos principais atores da mobi-
fabricante. Neste veículo aerodinâmico com 517 cv de potência e até 610 km de au- lidade no século XXI. Este traz consigo a
tonomia, o minimalismo escandinavo combina-se com os ingredientes básicos de necessidade indiscutível da possibilidade
um veículo utilitário desportivo para definir o conceito de SUV na era elétrica. Entre de recarregar o automóvel. Atualmente,
os muitos destaques está o teto de abrir panorâmico feito de vidro laminado de as infra-estruturas estão, sem dúvida, a
alta tecnologia, que reduz a radiação ultravioleta, o brilho e o calor. Também a sua avançar, mas estão a crescer devido aos
amplitude. Os objetos pequenos podem ser arrumados atrás de uma rede prática esforços dos particulares, deixando as
no painel lateral esquerdo. O volume total atrás dos bancos traseiros, do chão ao grandes cidades numa má posição.
tejadilho, é de 597 litros, dos quais 90 litros estão sob o piso da bagageira. Preço: a Nunca conseguiremos atingir emissões
partir de 92 900 euros. zero se os planos para lá chegar não
forem realistas, nem com a indústria
automóvel nem com a sociedade. O
planeta precisa de corridas de longa dis-
tância maduras e homogéneas que, sob
a mesma linguagem, consigam salvar e
proteger esta casa comum que os seres
humanos têm a sorte de partilhar.

José Manuel González,


coordenador da secção Motor.
N

NOTA: 4,74

SUPER 77
F I C Ç Ã O C I E N T Í F I C A

Muitos cientistas
construíram o futuro
porque antes foram
capazes de sonhar
com ele. E para isso
contribuiu a ficção
SHUTTERSTOCK

científica e as suas
propostas do que
estava por vir.

78 SUPER
Muitas das coisas que estamos a viver hoje já foram imaginadas
por autores de ficção científica. Mas agora, numa sociedade hiper-
especializada, estamos a perder o poder de previsão, a menos que
colaboremos e voltemos a funcionar como uma «mente de colmeia».

Texto de GISELA BAÑOS, física teórica especialista em ficção científica

SUPER 79
TKM ARCHIVE

Darko Suvin
cunhou o
termo nóvum

ARCHIVE COLLECTION
para designar
a ideia
especulativa
em que se
baseia a
ficção
científica.

Norbert Wiener, o pai da


cibernética, estabeleceu 4
fases desde que uma ideia
nasce até que permeia a
sociedade.

É
curioso como, numa altura em história não pode existir, e 2) usa ciência que deve ser
que a inovação é um valor em plausível e verosímil, mesmo que por vezes se mova
alta, provavelmente se esteja a nos limites.
inovar menos do que nunca... O primeiro elemento chama-se nóvum, cunhado
pelo menos se olharmos pa- pelo crítico jugoslavo Darko Suvin no final dos anos 70
ra o nosso contexto científico do século XX, e a sua principal caraterística é que, ao
e tecnológico da perspetiva contrário da fantasia, tem de ser de natureza não sobre-
de um leitor regular de ficção natural. Como o descreve Farah Mendlesohn, é aquilo
científica; um género literário que diferencia o mundo real do mundo da narrativa. O
em que, se escavarmos, mes- segundo é o que, juntamente com o anterior, nos per-
mo superficialmente, tudo mite diferenciar a ficção científica da fantasia científica.
está já inventado. Mesmo o que No caso desta última, mesmo quando se retira toda a
habitualmente se apresenta como uma ideia original. decoração científica, a história pode continuar a ser
Alguns poderão objetar que trazer a ficção cientí- contada sem alterações substanciais. A que tem real-
fica para aqui é batota, porque, afinal de contas, são mente o potencial de prever, de criar, de inovar... é a
histórias completamente inventadas, muitas delas até primeira. Mas, primeiro, situemo-nos no contexto.
inverosímeis. Aparecem raios da morte, sistemas de
teletransporte, extraterrestres... Em alguns romances, A REVOLUÇÃO DA CIÊNCIA E DA FICÇÃO. Na década de 1950,
até se pode viajar mais depressa do que a velocidade quando as revoluções científicas e tecnológicas que
da luz ou, o que é ainda mais louco, no tempo! E a ino- lançaram as bases do mundo moderno estavam a che-
vação, a verdadeira inovação, é limitada pelas leis da gar ao fim, Norbert Wiener (1894-1964) — conhecido
física. Isto tem alguma razão, mas não é tudo. como o pai da cibernética — refletiu sobre as condi-
Um dos grandes fardos que a ficção científica sem- ções que devem existir para que uma ideia nasça e
pre carregou foi precisamente esse: o de ser rotulada depois se materialize. Os exemplos também não lhe
como tal o que na realidade não é. Também não é fácil faltaram, pois pôde testemunhar em primeira mão a
de definir — os críticos e teóricos literários estudam- maior parte das descobertas, bem como as grandes
-na há décadas e ainda não chegaram a um acordo. transformações pelas quais o mundo passou desde o
No caso vertente, vou citar Stanley Schmidt, editor final do século XIX até à Segunda Guerra Mundial. A
da revista Analog Science Fiction and Fact entre eletricidade, a aviação, a energia atómica, as comu-
1978 e 2012, porque ele usa um par de «regras» que, nicações, os computadores e uma incipiente corrida
embora não sejam infalíveis e admitam numerosas espacial começavam a ganhar forma, para não falar
nuances, funcionam bastante bem: 1) A ficção cien- do desenvolvimento da física moderna com o advento
tífica baseia-se numa ideia especulativa sem a qual a da mecânica quântica e da teoria da relatividade. Nes-

A ficção científica baseia-se numa ideia especulativa sem a qual


a história não pode existir, e usa ciência que deve ser
plausível e verosímil, mesmo que por vezes se mova nos limites
80 SUPER
Quando a ficção científica falha
U m comentário frequente sobre as pre-
visões da ficção científica é o facto de
não termos carros voadores ou pranchas flu-
Outro erro comum é o paradoxo de, ao ex-
trapolar, o fazer a partir de uma época que
pouco terá a ver com as vindouras em termos
de contexto sociocultural, por exemplo, ou, o
meu preferido: partir do princípio de que os
seres humanos não vão cometer parvoíces.
tuantes. Tal como existem estudos sobre as
razões pelas quais a ficção científica acerta,

SHUTTERSTOCK
também existem estudos sobre as razões pe-
las quais falha tantas vezes.
Uma das razões é, por vezes, o seu otimismo
exagerado: governos que não hesitam em
investir em I&D para o bem dos cidadãos, o
pressuposto de que qualquer nova tecno-
logia substituirá imediatamente a anterior
— isto é muito claro, por exemplo, no caso
dos livros eletrónicos, que estão connosco há
décadas e o papel ainda não desapareceu —
ou terá a mesma utilidade em vez de valorizar
novas — veja-se a Internet, que tantas vezes
foi imaginada como uma «enciclopédia ga-
lática» e que hoje é quase mais utilizada para
ver memes.

te contexto, Wiener salientou que qualquer inovação, cessos industriais, etc. —. A terceira implica que haja
desde o nascimento da ideia até ao momento em que uma comunicação contínua entre aqueles que detêm
permeia e transforma a sociedade, segue um processo os conhecimentos teóricos em qualquer domínio, por
em quatro fases. exemplo, os cientistas e os filósofos, e aqueles que têm
A primeira é óbvia, trata-se do nascimento da pró- os conhecimentos práticos para os executar, como
pria ideia, que, aliás, deve ser registada por algum meio os artesãos e os engenheiros. Por último, deve existir
para começar a influenciar o ambiente intelectual e de um sistema socioeconómico que promova e disponi-
conhecimento da época em que nasce. A segunda é a bilize os avanços, para que acabem por ser adotados
existência de materiais e recursos, bem como o desen- e transformem o nosso modo de vida. Em princípio,
volvimento de técnicas, que permitam a sua realização este parece ser um processo mais do que lógico e muito
— não faz sentido, por exemplo, tentar fabricar um coerente com as circunstâncias do tempo de Norbert
computador moderno sem qualquer conhecimento de Wiener. E também com as nossas, se pensarmos bem.
física do estado sólido, a disponibilidade de materiais Mas qual é o papel da ficção científica em tudo isto?
semicondutores, o desenvolvimento de certos pro- Não é difícil de perceber: é o primeiro passo.
ASC

ARCHIVE COLLECTION

Em cima, John W. Campbell, editor da prestigiada Astounding Science Fiction,


uma revista de ficção científica para a qual Asimov e outros escritores famosos
contribuíram. À direita, uma ilustração de Guerra dos Mundos, de Wells.

SUPER 81
Um dos períodos mais inovadores da história da Gernsback (1884-1967) e, por outro, John W. Campbell
humanidade coincidiu, curiosamente, com o período (1910-1971) — o artífice do que viria a ser conhecido
de maior desenvolvimento da ficção científica. Não se como a Idade de Ouro da ficção científica, entre as
trata de uma coincidência e, embora nos limitemos décadas de 1930 e 1950, aproximadamente —. Para
aos EUA, é um fenómeno que também foi estudado ambos, em termos gerais, a ficção científica era quase
noutros países como, por exemplo, a antiga URSS e uma forma de ver o mundo, o passo prévio à ciência
a China. A ficção científica como género literário, e e uma ferramenta cujo objetivo era preparar-nos para
agora também como género audiovisual e cultural, se um futuro que se aproximava a uma velocidade cada
abordada de forma correta, pode tornar-se uma das vez maior.
melhores incubadoras de ideias que existem.
Esta abordagem está intimamente relacionada com SE HÁ UMA IDEIA POPULARMENTE ASSOCIADA À FICÇÃO CIEN-
a visão dos editores que marcaram o caminho da fic- TÍFICA É A DE QUE ELA «PREVÊ» O FUTURO, QUANDO, NA
ção científica ocidental moderna; por um lado, Hugo VERDADE, NEM SEQUER O TENTA FAZER. O que faz é inter-
pretar o presente, por vezes de forma correta, por
vezes de forma incorreta, e por vezes, poder-se-ia
mesmo dizer, de forma aleatória. Há mesmo quem de-
fenda que não é que a ficção científica «preveja», mas
As três grandes eras da que, como já «imaginou tudo», é normal que, estatis-
ticamente, acabe por acertar em alguma coisa. Outra
ficção científica anglo- forma de ver a questão é pensar que a ficção científica
apenas oferece possibilidades, muitas, de facto, e nós
saxónica no século XX apenas escolhemos quais as que se materializam. Não
se trataria, portanto, de previsões, mas de profecias

A ficção científica é, sem surpresa, filha do seu tempo. Nor-


malmente, o que vem à mente de qualquer pessoa quando
pensa em ficção científica é a Idade de Ouro, a era de Isaac Asi-
que se auto-realizam. Seja como for, a verdade é que
este género tem vindo a sonhar, a avisar, a inventar e
a surpreender há mais de quatro séculos. Mas concen-
mov, Arthur C. Clarke e Robert A. Heinlein. Foi a era do otimismo tremo-nos na sua história mais recente.
tecnológico, dos heróis que salvam o mundo, dos prodígios Já no início do século XIX, quando mal tinha no-
científicos, da conquista das estrelas. Mas no final dos anos 50, a me — o termo «ficção científica» enquanto tal só se
perspetiva mudou. popularizaria na década de 1920, embora tenha sido
Durante as décadas de 1960 e 1970, uma nova geração de es- cunhado por William Wilson em 1851 —, falava-se de
critores, com raízes no Reino Unido, começou a reivindicar temas um tipo de literatura capaz de lidar com os desafios
mais sociais e humanistas, parafraseando J. G. Ballard, a centrar- que a ciência colocava e da importância que poderia
-se mais no «espaço interior» do ser humano e menos no «espaço ter no progresso da humanidade. As histórias, sem
exterior». Este período é conhecido como a New Wave, à qual considerar o género a que pertenciam, incluíam nos
pertencem, para além do próprio Ballard, autores como Ursula K. seus enredos toda a efervescência científico-tecnoló-
Le Guin, Philip K. Dickens, Robert Silverberg ou Joana Russ. gica do momento, tentando ir além das possibilidades
O cyberpunk, iniciado por William Gibson e Bruce Sterling, com a da época.
chegada do computador pessoal e o desenvolvimento da infor- Por exemplo, o problema das velocidades infinitas
mática, tomou conta dos anos 80 e construiu o seu discurso em dos corpos em movimento, um campo de debate cien-
torno do novo mundo industrial, capitalista e informacional, dan- tífico desde que Maxwell desenvolveu as suas equações,
do origem a toda uma revolução cultural que, até hoje, o próprio que estabeleciam um limite para as ondas eletromag-
sistema que criticavam engoliu. néticas, apareceu em Tachypomp de Edward Page
O curioso é que, na interpretação que faziam dos factos que viam, Mitchell em 1874, trinta anos antes do desenvolvi-
todas estas épocas tinham uma espantosa percentagem de acerto. mento da relatividade especial. H. G. Wells, por outro
lado, já falava de buracos de minhoca em O Extraordi-
nário Caso dos Olhos de Davidson — e usava o símile
de ligar dois pontos numa folha de papel fazendo um
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buraco através dela — duas décadas antes de a relati-


vidade geral ser publicada. Ele estava simplesmente a
tentar pensar em várias dimensões, como Einstein fez.
Nada aconteceu por acaso. Cada época fornece o seu
terreno fértil e, depois, os melhores cérebros, quer
nas ciências quer nas humanidades, interpretam os
acontecimentos, chegando muitas vezes às mesmas
conclusões, mas por um caminho diferente.
Os exemplos são inúmeros, e aqui ficam alguns,
como os fatos pressurizados que aparecem em The
Skylark of Space — escrito entre 1915 e 1921, publicado
a partir de 1928 — de E. E. «Doc» Smith, engenhei-
ro químico e pai da space opera, quando o primeiro
Wiliam Gibson e Bruce modelo, o escafandro estratonáutico de Emilio Herre-
Sterling, autores do romance ra Linares, só chegaria em 1935. Talvez não houvesse
The Differential Machine. qualquer ligação entre os dois, mas as circunstâncias
históricas — o desenvolvimento da aeronáutica — le-
varam-nos a imaginar a mesma coisa. A construção

82 SUPER
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ALLEN ANDERSON

OPEN CULTURE
ABEBOOKS
Muitos dos grandes cientistas modernos nunca leram ficção científica. No entanto, durante o desenvolvimento do Projeto Manhattan em
Los Alamos, as histórias da revista Astounding Science Fiction eram discutidas na cafetaria e Albert Einstein assinava a revista.

dos primeiros computadores durante a Segunda buído — trata-se de prever o engarrafamento, não o
Guerra Mundial foi certamente o que levou Murray carro. Mas é impossível fazê-lo sem um contexto eco-
Leinster a imaginar, em 1946, A Logic Called Joe, ou nómico, social, cultural... para além de um contexto
seja, uma espécie de Internet, com o equivalente aos científico.
servidores de hoje e ideias muito atuais sobre a pri- Mas esta relação também funciona ao contrário; nem
vacidade dos dados e as suas consequências. Outros, sempre é a ficção científica que bebe da ciência. É raro
como Robert A. Heinlein, também tiveram uma taxa que pessoas que participaram em alguns dos grandes
bastante elevada de visões bem sucedidas ao imaginar marcos tecnológicos da história, como Alan Turing,
o telemóvel — Datein Eternity (1953) — ou o aspirador Leo Szilard, Carl Sagan, Joseph Engelberger, até Elon
robótico — Doorto Summer (1956) — o que não é de Musk... não tenham tido uma relação muito próxima
estranhar, uma vez que ele era engenheiro e, no caso com este tipo de literatura, como leitores e até escri-
do aspirador, tinha lido um artigo na revista Scientific tores. Em Los Alamos, durante o Projeto Manhattan,
American que mencionava as «tartarugas» robóticas as histórias da revista Astounding Science-Fiction, de
Elmer e Elsie, criadas por W. Grey Walter, nas quais se John W. Campbell, eram lidas e discutidas na cafetaria
inspirou. A ficção científica nem sempre está na van- — até Albert Einstein a assinava. O mesmo acontecia
guarda, mas, se pensarmos bem, faz todo o sentido, com os Laboratórios Bell em meados do século XX, o
dadas as mesmas indicações: a imaginação tem mais berço do transístor. Construíram o futuro porque fo-
asas e menos limitações do que a ciência. ram capazes de o sonhar previamente. E fizeram-no
com a ajuda da ficção científica.
UM FUTURO ESQUECIDO. Em retrospetiva, não há segredo: O presente que estamos a viver foi escrito há mais de
os sinais estavam por todo o lado, bastava saber vê-los, cem anos e, no entanto, já não somos capazes de imagi-
mas é precisamente isso que é difícil. Em parte porque nar nada para lá de apenas mais alguns. E, o que é mais
a hiper-especialização profissional do presente — ine- grave, a nossa arrogância levou-nos a colocar-nos aos
vitável, de facto, devido ao volume de conhecimento ombros dos gigantes que nos precederam e a esque-
existente — só nos torna mais sábios quando colabora- cer todas as ideias que estão à nossa espera, agora que
mos, comunicamos uns com os outros e funcionamos o contexto nos permite concretizá-las, remontando a
em modo de «mente de colmeia», algo que não cos- Wiener. O século XIX já sonhava com a utopia a que
tuma acontecer num mundo hiper-competitivo como temos renunciado; a Idade de Ouro, com quase toda a
o nosso. No entanto, estabelecer as ligações necessá- nossa tecnologia; a New Wave, infelizmente, começou
rias entre os diferentes ramos do conhecimento a nível a acordar e a avisar-nos e, finalmente, o cyberpunk,
individual exige exatamente o contrário: saber tudo matou a civilização moderna com uma overdose de in-
e quanto mais, melhor. Esta é a caraterística comum formação. E hoje? Hoje talvez seja a altura de, em vez
a todos os que conheciam o futuro. Uma caraterística de olharmos para o presente para tentarmos chegar ao
que se está a perder cada vez mais. futuro, olharmos para o passado para tentarmos, pri-
No final, como disse Norbert Wiener e Isaac Asimov meiro, salvar o nosso presente. Tudo o que estamos a
— e não Frederick Pohl, como lhe é geralmente atri- viver hoje já foi imaginado nessa altura. e

Os fatos pressurizados, a Internet e os telemóveis já tinham


sido imaginados nos primeiros anos do século XX. E é lógico,
uma vez que a imaginação tem mais asas do que a ciência
SUPER 83
F I L O S O F I A

ASC

84 SUPER
RELIGIÃO CÓSMICA
E CIÊNCIA
Para o físico alemão, não havia maior mistério do que o da criação,
ao ponto de chegar a dizer que «quem não se admira ou não se
maravilha está morto». O seu Deus é a obra da Natureza, e não um
que recompensa ou castiga aqueles que criou, uma religião cósmica
que ele aspira a compreender através da ciência.

Texto de SEBASTIÁN GÁMEZ MILLÁN, filósofo

SUPER 85
E
m que medida é que um espí-
rito rigorosamente científico,
que explica os fenómenos da
realidade de forma natural
segundo o princípio da cau-
salidade, é compatível com a
crença em Deus? Esta última
não exige que se abrace a fé
para receber a graça, enquan-
to os filósofos e os cientistas,
como afirmou Jorge Wagens-
berg, só têm fé na dúvida? Ao
contrário da fé, a ciência, para ser uma disciplina tão
sujeita à crítica, à replicação e ao progresso, não precisa
de ser comprovada e contrastada empiricamente?
Freud ironizava que a humanidade tinha feito gran-
des progressos ao receber três feridas narcísicas, todas
pelas mãos das ciências: primeiro, ao aceitar, com a
descoberta do heliocentrismo por Copérnico, que o ser
humano não ocupa o centro do universo; segundo, com
a descoberta de Darwin de que não somos algo divino, à

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imagem e semelhança de Deus, mas sim animais dentro
da evolução das espécies; terceiro, com a descoberta do Albert Einstein, fotografado a tocar violino num concerto de
psicanalista de que não é a razão, mas o inconsciente, beneficência na sinagoga de Cranienburgerstreet, em Berlim,
que governa a nossa vida. em 1930.
Se não há contradição, há pelo menos uma tensão
quase irresolúvel entre ciência e fé, simbolizada duran-
te a modernidade em casos como o de Giordano Bruno,
queimado vivo na fogueira pela Inquisição, ou o caso ririam a verdade de Deus, outros prefeririam a busca
mais popular, mas menos trágico, de Galileu. Parece interminável da verdade.
que, se fosse possível escolher, enquanto uns prefe-
PANTEÍSMO: DEUS COMO NATUREZA Que lugar ocupava Deus
na mente de Albert Einstein? Ele é um dos maiores cien-
tistas da história — talvez a par de Newton e Darwin — e
certamente o cientista mais popular do século XX. De
acordo com um dos seus biógrafos, C. P. Snow, «a sua
fase religiosa não durou muito tempo. Mais uma vez,
adotou a sua própria forma de pensar e, aos doze anos,
abraçou a forma de descrença religiosa cósmica que lhe
iria durar toda a vida. Usava a palavra Deus com tanta
frequência que, por vezes, induzia as pessoas em erro.
Desde a sua infância possuía um profundo sentimento
religioso: mas quando falava de Deus não queria dizer o
que um crente religioso entende por esta palavra. Como
ele próprio disse na sua maturidade: «Acredito no Deus
de Espinosa, que se revela na harmonia de tudo o que
existe, e não num deus que se ocupa do destino e das
ações dos homens».
Deus» é o conceito com que se abre e ao qual dedi-
ca a primeira das cinco partes da Ética, demonstrada
segundo a ordem geométrica de Baruch Espinosa (1632-
1677), talvez o filósofo racionalista mais consistente de
todos os tempos. De facto, Espinosa está apenas a ir à
raiz e a reformular, numa perspetiva naturalista ou
substancial monista e determinista, a abordagem de
Descartes, quando este dividiu a realidade em três tipos
Para o filósofo racionalista de origem de substâncias: substância infinita, Deus; substância
judaico-portuguesa, Baruch Espinosa extensa, os corpos; substância pensante, o eu ou a alma.
JEWISH MUSEUM

(1632-1677), Deus seria uma Natureza Espinosa entende Deus como uma Naturata naturans
criadora não criada.
non naturata, uma «Natureza criadora não criada».

«Acredito no Deus de Espinosa, que se revela na


harmonia de tudo o que existe», disse Albert Einstein
86 SUPER
Assim, Deus é identificado com a Natureza (Deus si- essas inúmeras cadeias de causas que determinam a vida
ve natura). Nas palavras de Fernando Savater, «no e a história é uma forma de libertação. Daí que Espinosa
universo tudo faz parte de uma substância única e sin- fale, no final da Ética, do amor intelectual a Deus, isto
gular, tudo o que existe é uma só e única substância, a é, à Natureza, da qual provimos, pela qual somos como
que se pode chamar Deus ou Natureza. Dos infinitos e somos e que nos determina em todos os momentos.
inconcebíveis atributos dessa substância, conhecemos «Conhecer Deus, como salientou Vidal Peña, não é
apenas dois: o pensamento e a extensão». Cada um des- refugiar-se no regaço da recompensa dos nossos sa-
tes atributos manifesta-se de formas diferentes, através crifícios, nem esperar que o futuro traga a anulação de
de ideias e ações, nos campos do pensamento e da ex- toda a alienação, mas «permanecer muito consciente
tensão, respetivamente, que se intercomunicam, mas de si mesmo e das coisas», sabendo que a salvação não
não há hierarquia. está num outro mundo, nem num mundo melhor, mas
Savater acrescenta que «muitos dos sofrimentos do no que existe». Não é de admirar que Espinosa tenha
homem provêm da sua propensão para formar ideias sido classificado de ateu, porque identifica Deus com
inadequadas sob o domínio da imaginação, que mistura a natureza; de materialista, porque nega a distinção
caprichosamente as ideias de vários corpos, sem respei- substancial entre alma e corpo; e de imoralista, porque
tar a paciente concatenatio causal que garante a clareza rejeita a moral de inspiração religiosa.
do entendimento. Uma dessas ilusões da imaginação é a
liberdade». A doutrina de Espinosa, pela qual foi no seu RELIGIÃO DO MEDO, DA MORAL E CÓSMICA. Einstein considera
tempo excomungado como herege, caluniado e tacha- que a origem das crenças não se encontra tanto na razão
do de ímpio, é uma forma de panteísmo determinista. E como nos sentimentos: «Tudo o que o homem imagina e
Einstein está de acordo. realiza serve para o libertar dos sentimentos de necessi-
Trata-se de uma conceção que põe em causa a liberda- dade e para aliviar os seus sofrimentos. É preciso ter isto
de e a responsabilidade do ser humano nas suas ações, em conta se quisermos compreender os movimentos es-
pois, segundo Espinosa, o homem acredita-se livre pirituais e o seu desenvolvimento».
porque ignora as causas que determinam o seu compor- Distingue três tipos de religiões que são fruto da
tamento. No entanto, conhecer a necessidade que rege evolução ou do progresso, embora as realizações hu-

Para Einstein, tudo o que é feito pelo

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homem serve para o libertar dos seus
sentimentos de necessidade e para
aliviar o seu sofrimento.

SUPER 87
manas não sejam irreversíveis nem definitivas, pelo ca» não tem este conceito antropomórfico de Deus.
que podem ser «mistas». A primeira é a «religião do «Os génios religiosos de todos os tempos eram ad-
medo», que surge com o homem primitivo devido a miráveis graças a esta religiosidade que não conhecia
emoções elementares: «medo da fome, dos animais dogmas nem um deus concebido à maneira do ho-
selvagens, da doença, da morte». Mais tarde surgiu a mem». Entre esses génios, menciona hereges como
«religião moral». Einstein vê a transição da primeira Demócrito, Francisco de Assis e Espinosa. Einstein su-
para a segunda «nas Escrituras Sagradas do povo ju- gere que a religião cósmica é eticamente mais elevada e
deu, embora as religiões de todos os povos civilizados, civilizada do que as anteriores: primeiro, porque opera
especialmente as do Oriente, sejam em essência reli- sob a hipótese da causalidade; e segundo, porque não
giões morais». atua «por medo do castigo e esperança de uma recom-
Ao contrário das duas anteriores, a «religião cósmi- pensa após a morte».
NASA / ESA

Para Einstein, a religião cósmica não só não se opõe à ciência, como é um dos seus maiores impulsionadores, já que seu maior
estímulo é a pesquisa científica. Por outro lado, ele divide as religiões em três tipos: a «religião do medo» do homem primitivo, a
«religião moral», cujo trânsito ele percebe nas Escrituras Sagradas do povo judeu, a Torá (abaixo à esquerda) e a religião cósmica, que
opera sob a hipótese da causalidade e que incentivou os cientistas a investigarem coisas como a mecânica celeste.
GETTY

ASC

88 SUPER
Ciência e religião
Atribui-se a Galileu a ideia de que, enquanto a ciência nos diz a ver com o sentido da vida. A ciência não tem nada de signi-
como é o céu, a religião diz-nos como chegar ao céu. O biólogo ficativo a dizer sobre isso, tal como a religião não tem nada de
Francisco José Ayala defendeu que a ciência e a religião não significativo a dizer sobre os fenómenos naturais. Os problemas
são incompatíveis: a ciência preocupa-se em explicar os pro- surgem quando a religião ou a ciência interferem num domínio
cessos naturais através de leis. A religião, por outro lado, tem em que não têm autoridade.
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RELIGIÃO CÓSMICA E CIÊNCIA. Paradoxalmente, a religião ciência. Quem não o conhece, quem não se admira e se
cósmica, longe de se opor à ciência, é, segundo Eins- maravilha, está morto».
tein, um dos seus principais estímulos: «A religiosidade Na mesma linha, o filósofo da ciência Jesús Moste-
cósmica é o maior estímulo para a investigação cientí- rín defende que «a ciência sem mística corre o risco de
fica (...) Que fé profunda na racionalidade do universo continuar a ser uma mera ginástica metodológica. O mis-
construído, e que desejo de compreender, mesmo que ticismo sem ciência degenera facilmente em auto-engano
apenas uma pequena parte da razão que revela este e superstição. Só a suculenta conjunção do conhecimento
mundo, deve ter animado Kepler e Newton a conseguir científico com o sentimento místico nos permite aspirar a
desvendar o mecanismo da mecânica celeste com o tra- alcançar esse estado de exaltação lúcida e plenitude vital
balho solitário de tantos anos!» em que consiste a comunhão com o Universo».
É costume pensar-se que, à medida que as ciências Einstein não acreditava «num Deus que recompensa
avançam, o mistério e o encanto do mundo diminuem. e castiga os seres por ele criados (...) Nem quero nem
Mas eu encontro uma lógica mais vivificante e fecunda posso pensar que o indivíduo sobrevive à sua morte cor-
em decifrar a natureza e, ao mesmo tempo, não deixar poral, que as almas fracas alimentam tais pensamentos
de reconhecer o mistério da criação. Segundo Einstein, por medo ou por egoísmo ridículo. Basta-me o mistério
«o mistério é a coisa mais bela que nos é dado sentir. É da eternidade da Vida (...) com a aspiração honesta de
a sensação fundamental, o berço da arte e da verdadeira compreender até a mais pequena parte de razão que po-
demos discernir na obra da Natureza».
Por isso, não nos deixemos enquadrar por rótulos que
«O mistério é a coisa mais nos conduzem a becos sem saída: é possível ser ateu e
ao mesmo tempo religioso, materialista e espiritua-

bela que nos é dado a sentir. lista.... Einstein era «profundamente religioso», mas
religioso sem institucionalização religiosa, religioso

É a sensação fundamental, sem um Deus pessoal, panteísta e determinista, daí a


sua célebre frase: «Deus não joga aos dados», ou seja,
o «acaso» não existe. Usamos este termo onde acaba
o berço da arte e da o conhecimento e começa a ignorância, na ausência de
descoberta de outras leis secretas que tecem e destecem
verdadeira ciência» a Natureza ou Deus. e

SUPER 89
CURIOSIDADE MATRIZES E MATRAZES

SOPHIE GERMAIN E O ÚLTIMO TEOREMA DE FERMAT


A LEITURA DE UM LIVRO SOBRE A HISTÓRIA DA MATEMÁTICA DESPERTOU NELA A PAIXÃO PELOS
NÚMEROS, TENDO QUE SE DISFARÇAR DE HOMEM PARA OS ESTUDAR. AS SUAS ABORDAGENS
MATEMÁTICAS INOVADORAS ABRIRAM NOVOS CAMINHOS NESTA CIÊNCIA.

o ano do seu nascimento, dissuadi-la. Mas ela estava determinada

N acendia-se a chama da
Revolução Americana.
Apenas treze anos
e não desistia.

SOPHIE GERMAIN NUNCA CASOU


mais tarde, o mesmo fogo re- E foi o pai que, ao longo da
volucionário foi aceso na sua carreira, financiou a sua
sua própria terra, com o investigação e apoiou os
início da Revolução Fran- seus esforços para se jun-
cesa. No meio destes tar à comunidade mate-
ventos de mudança, mática. Durante muitos
Sophie Germain entrou anos, este foi o único
em cena e, em muitos incentivo que recebeu.
aspetos, transportou Não havia matemáti-
consigo o espírito de cos na família que lhe
ALBUM

revolta que a rodeava pudessem apresentar


desde a sua chega- as ideias mais recen-
da ao mundo. Sophie tes e os seus tutores
Germain nasceu a 1 recusavam-se a levá-la
de abril de 1776, fi- a sério. Mas em breve
lha de um comerciante, tudo iria mudar.
Ambroise-François Ger- Em 1794, foi fundada
main. No mesmo ano em em Paris a École Polyte-
que descobriu o seu amor chnique, uma academia de
pelos números, a Bastilha excelência destinada a for-
foi tomada de assalto. Embora mar matemáticos e cientistas
o seu pai fosse financeiramente para a nação. Teria sido o local
bem sucedido, os membros da fa- ideal para Germain desenvolver
mília de Sophie não pertenciam à as suas capacidades matemáticas,
aristocracia. Se tivesse nascido na alta exceto que se tratava de uma institui-
sociedade, o seu estudo da matemática ção reservada apenas a homens. A sua
poderia ter sido mais bem aceite desde timidez natural impediu-a de desafiar as
o início. Embora as mulheres aristocráti- Arquimedes tinha passado a sua vida autoridades da academia, pelo que optou
cas não fossem ativamente encorajadas em Siracusa a estudar matemática com por estudar secretamente na École, assu-
a estudar matemática, esperava-se que relativa tranquilidade, mas quando tinha mindo a identidade de um antigo aluno
tivessem conhecimentos suficientes so- quase 80 anos a paz foi perturbada pela da academia, Monsieur Antoine-August
bre o assunto para poderem discuti-lo se invasão do exército romano. Reza a len- Le Blanc. Tudo corria como planeado, até
surgisse numa conversa. da que, durante a invasão, Arquimedes que o supervisor do curso, Joseph-Louis
estava tão absorto a estudar uma figura Lagrange, não pôde continuar a ignorar
O ACONTECIMENTO QUE MUDOU A SUA VIDA geométrica na areia que não respondeu a absoluta correção das respostas de Le
ocorreu um dia, quando estava a explorar ao chamamento de um soldado romano. Blanc aos exercícios. Eram soluções ver-
a biblioteca do pai e se deparou com a Como resultado, foi trespassado por uma dadeiramente engenhosas. Lagrange, um
História da Matemática de Jean-Étienne espada. Germain concluiu que, se alguém dos maiores matemáticos do século XIX,
Montucla. O capítulo que lhe cativou a podia estar tão absorvido por um pro- pediu um encontro com o enigmático
imaginação foi o ensaio de Montucla so- blema geométrico que o levava à morte, aluno e Germain foi obrigado a revelar
bre a vida de Arqui- então a matemática devia ser a discipli- a sua verdadeira identidade. Foi então
medes. O relato das na mais cativante do mundo. Começou que Lagrange ficou espantado e encanta-
descobertas de Ar- imediatamente a ensinar a si própria as do por conhecer a jovem e se tornou seu
quimedes era certa- bases da teoria dos números e do cálculo mentor e amigo - finalmente, as portas
mente interessante, e passou horas à noite a estudar os tra- da matemática abriram-se para ela!
mas o que realmente balhos de Euler e Newton. No entanto,
despertou o seu fas- este súbito interesse por uma matéria APESAR DOS OBSTÁCULOS SOCIAIS, A SUA
POR EUGENIO MANUEL
cínio foi a história considerada pouco feminina preocupou PAIXÃO E DETERMINAÇÃO LEVARAM-NA A EX-
FERNÁNDEZ AGUILAR, da sua morte. os pais, que tentaram desesperadamente PLORAR áreas como a teoria dos números
Físico

90 SUPER
Sophie Germain
começou a inte-
ressar-se pela
matemática ao
conhecer a his-
tória de Arqui-
medes, que foi
morto pelo golpe
de uma espada
romana quando
estava absorvido
por um problema
geométrico.
ALBUM

A SUA CORAGEM E DETERMINAÇÃO ABRIRAM CAMINHO PARA AS


FUTURAS GERAÇÕES DE MULHERES NA CIÊNCIA, PROVANDO QUE A
PAIXÃO E O TALENTO PODEM ULTRAPASSAR QUALQUER BARREIRA

e o último teorema de Fermat. As suas Um cancro da mama pôs termo à sua de mulheres na ciência, provando que
ideias abriram novas perspectivas e ca- vida em 1831, quando tinha 55 anos de a paixão e o talento podem ultrapassar
minhos na matemática, especialmente idade. No entanto, trabalhou até ao fim qualquer barreira. Apesar das dificuldades
na descoberta de ligações entre diferen- dos seus dias. Sophie Germain deixou um que enfrentou, o seu contributo continua
tes tipos de números primos. Além disso, legado duradouro no mundo da matemá- a inspirar investigadores e estudantes
o seu enfoque em problemas matemáti- tica ao desafiar as restrições de género e em todo o mundo, recordando-nos que
cos mais gerais influenciou a forma co- ao perseverar num campo dominado pelos o amor pelo conhecimento e o desejo de
mo as questões matemáticas e a ciência homens. A sua coragem e determinação aprender são forças poderosas capazes de
eram abordadas. abriram caminho para as futuras gerações ultrapassar qualquer obstáculo. e

SUPER 91
V I A G E N S I N S Ó L I T A S

Os cadáveres dos defuntos do povo Toraja são retirados das

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suas sepulturas, vestidos com roupas novas, recebem a sua
comida e bebida preferidas e são tratados como se
estivessem vivos, num ritual sagrado.

DANÇANDO ENT
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92 SUPER
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CREDITO
RE OS MORTOS
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O povo Toraja, na Indonésia, desenterra os seus defuntos


durante um dia para lhes devolver a vida e os apresentar
aos novos membros da família. Um culto sagrado celebrado
no final das colheitas.

Texto de JAVIER LEÓN


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CREDITO

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Os defuntos são
vestidos com roupas
novas e pregados a
estacas para os
manter de pé.

L
embro-me de uma manhã Numa praça alongada, ladeada por várias casas-barco
enevoada do mês de julho. típicas dos Toraja, as tongkonan (construções de ma-
Acordei com muito frio na deira que lembram a proa de um barco), reparei numa
pensão barata onde estava fila de caixões abertos. À sua volta, dezenas de habitan-
alojado. Era a terceira vez que tes locais vestidos com trajes tradicionais caminhavam
viajava pelo território Toraja silenciosamente e observavam atentamente o conteúdo
e ainda me surpreendia com dos caixões.
aquelas gélidas madrugadas.
Estava na ilha de Sulawesi, TONGKONAN, AS CASAS TRADICIONAIS DOS TORAJA. Juntei-me
no arquipélago das Molucas, à procissão de curiosos e o Gunadi teve de me segurar
muito perto do equador; mas para que eu não desmaiasse com o choque repentino.
o território deste estranho Ali, naquele lugar, estavam reunidos mais de cinquenta
povo de costumes ancestrais situa-se num planalto a cadáveres, estendidos em caixões rudimentares, encos-
quase mil metros de altitude e a temperatura é muito tados às paredes das casas, pregados a paus no chão ou
mais amena do que no resto da tórrida ilha de Sulawesi, segurados por pessoas que os percorriam pelas ruas da
uma das maiores de toda a Indonésia. aldeia e falavam com eles como se estivessem vivos.
Partimos de mota de Rantepao, a capital deste território Idosos, crianças, jovens, homens, mulheres, ricos,
selvagem e acidentado, percorrendo estradas danificadas pobres .... a orgia da morte exibia-se com uma crueza
envoltas numa exuberante vegetação tropical. Passando macabra, sem qualquer pudor ou recato. A humidade
por campos de arroz em socalcos, chegámos à pequena tropical deve ter acelerado a decomposição dos corpos,
aldeia de Batutumonga. Fui acompanhado por Gunadi, mas os Toraja são embalsamadores exímios e, recor-
um jovem local taciturno que, por algumas rupias, acei- rendo a métodos tradicionais, conseguiram travar o
tou guiar-me pelas terras do seu misterioso povo. processo de putrefação e os defuntos conservavam
Quando chegámos àquela aldeia solitária, situada no ainda uma pele fina, parecida com pergaminho e ama-
cimo de uma montanha, senti um arrepio na espinha. relada. No entanto, não conseguiram camuflar todos os
Tinha esperado tanto tempo por esta oportunidade e estragos da morte e os rostos das múmias mostravam
ansiava tanto pela experiência que estava prestes a viver as horríveis caretas da morte que desfiguravam as suas
que era inevitável um intenso estado de agitação. Talvez feições e lhes davam um aspeto horrível.
fosse o efeito da sugestão, talvez fossem os meus pró- Caminhei com espanto entre os cadáveres, sem acredi-
prios receios, mas parecia-me que o local emanava uma tar na cena a que assistia; receando que a minha presença
atmosfera rarefeita e carregada; uma atmosfera opressi- pudesse perturbar os habitantes locais que guardam com
va que se acentuava à medida que percorríamos as ruas tanto zelo esta cerimónia proibida até há bem pouco
daquela desgraciosa vilória. tempo a qualquer estrangeiro. No entanto, quase não re-

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pararam em mim, simplesmente
ignoraram-me e todos se ata-
Os cadáveres Fui testemunha privilegiada
do ritual Ma’Nene, uma tradição
refavam ocupados a arrumar os
restos gastos dos seus defuntos.
são passeados ancestral que se perde nas bru-
mas do tempo e através da qual
Alguns levantavam os corpos e
trocavam as suas roupas esfar- pelas ruas da algumas aldeias que compõem
o grupo étnico Toraja, espe-
rapadas e andrajosas por trajes cialmente os Baruppu do norte
recém-comprados; outros con- aldeia e tratados remoto, retiram os seus entes
versavam com os cadáveres como queridos das suas sepulturas,
se fossem um familiar que não como os vivos passeiam-nos pela aldeia, ves-
viam há anos, oferecendo-lhes tem-nos, contam-lhes as suas
cigarros, bebidas e até dançando histórias, levam-nos às suas an-
com eles; e os restantes, com pincéis, pulverizavam os tigas casas, apresentam-nos aos novos membros do clã
corpos com uma camada gelatinosa de tinta misturada familiar, dançam com eles e, durante um dia, partilham
com formaldeído para polir os mortos, de modo a que a sua existência tal como deve ter sido quando eram vi-
pudessem recuperar parte da sua aparência em vida. Um vos. Trata-se de um culto sagrado que tem lugar no final
cheiro nauseabundo pairava no ar: tive de me cobrir com das colheitas e apenas em anos muito especiais. Nesta
uma máscara que tinha trazido para a ocasião, e assim cerimónia, que para um ocidental parece tão sombria,
aguentei estoicamente, fascinado e enojado, todo o ritual as múmias dos mortos regressam do túmulo para visitar
macabro que se desenrolava diante dos meus olhos. os seus entes queridos, e tanto os vivos como os mortos
partilham um dia de reencontro, alegria e consolo que
TRÊS CADÁVERES MUMIFICADOS ESTÃO DE PÉ COM PAUS IN- não se repetirá durante anos.
SERIDOS ENTRE OS SEUS RESTOS MORTAIS. Estava a assistir Um pouco mais recuperado da primeira impressão,
a uma das cerimónias mais insólitas do planeta. Uma depois de contemplar silenciosamente a cena que me
cerimónia que eu procurava há muito tempo e que nas pareceu tão dantesca, tomei coragem para dar uma
minhas duas viagens anteriores a Sulawesi não tinha volta pela aldeia (parecia um cenário improvisado da
conseguido presenciar. A terceira vez, depois de uma série The Walking Dead); e acompanhado pelo meu
pesquisa minuciosa que me levou a percorrer todo o guia, que também serviu de intérprete com o seu inglês
território Toraja, foi uma vitória. Os habitantes locais particular, comecei a conversar um tanto constrangi-
foram evasivos quando lhes perguntei sobre o assunto. do com os habitantes locais que, sem muitas dúvidas,
Não queriam que os estrangeiros se imiscuíssem nos responderam às minhas perguntas. Conscientes de que
seus costumes mais secretos, mas eu fui teimoso, não uma cerimónia destas poderia parecer bizarra para um
desisti e, depois de muito trabalho de campo, visitando ocidental, esforçaram-se por me fazer compreender
dezenas de aldeias e falando com os seus habitantes, fui que se tratava de um culto para fortalecer os laços com
convidado para tão sagrada e macabra cerimónia. os seus mortos; um ritual festivo e alegre que, por sua

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Os mortos do povo
Toraja são enterrados
em grutas, no alto de
penhascos, em buracos
nas montanhas e, por
vezes, as crianças em
árvores.

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vez, servia para garantir que,
nos anos futuros, as suas co-
Os defuntos, muito O culto dos antepassados, tal co-
mo noutras culturas primitivas,
lheitas e arrozais não seriam
arruinados por pragas e vermes presentes na vida das continua vivo entre os Toraja e,
embora atualmente a maioria
que os assolariam subitamen- seja cristã, é verdade que estas
te. Acreditavam firmemente pessoas, protegem crenças animistas continuam
que, ao trazer os mortos para profundamente enraizadas en-
fora da sepultura, os seus espí- culturas e arrozais tre todos os membros do clã. É o
ritos protegeriam as colheitas que na sua língua se designa por
e afastariam as pragas maléfi-
cas. Toda esta tradição parece
das pragas malignas aluk tudolo; algo que se poderia
traduzir por «caminho dos an-
remontar a dois séculos atrás, tepassados».
quando um caçador mítico, Quando o sol estava prestes a
Pong Rumasek, descobriu um corpo em decomposição pôr-se, os mortos regressavam aos seus caixões após as
numa árvore da floresta. Prontamente, retirou o cadá- despedidas sentidas dos seus familiares e, em procis-
ver da árvore, limpou-o, secou-o e enterrou-o numa são, toda a aldeia se dirigia para a floresta para que os
gruta próxima. A partir daí, a boa sorte chegou à terra cadáveres pudessem continuar o seu descanso eterno
do caçador e seguiram-se anos de bonança e colheitas nas cavernas escuras onde estão enterrados. Os Tora-
magníficas, que os habitantes atribuíram à boa ação de ja, na sua relação particular com a morte, para além
Pong Rumasek. Desde então, emulando o seu compa- da cerimónia Ma’Nene, têm muitas outras particu-
triota e perpetuando a tradição, os habitantes locais laridades funerárias que fazem deles um povo muito
retiram os mortos das suas sepulturas, voltam a jun- singular. Os cadáveres são enterrados em grutas, no
tá-los, lustram-nos, mudam-lhes a roupa e esperam cimo de penhascos, em buracos na montanha e, por
que, em troca, os seus mortos vigiem as colheitas do vezes, as crianças são enterradas na copa de certas ár-
além-túmulo e a boa sorte se espalhe pelas terras altas vores. Mas o que é realmente excecional é o facto de os
dos Toraja. funerais não se realizarem no momento da morte. O
defunto tem de partir para a outra vida depois de um
ALGUNS DOS CADÁVERES EXPOSTOS TINHAM SIDO ENTERRADOS funeral sumptuoso com centenas de convidados, ban-
HÁ MAIS DE VINTE ANOS, segundo me disseram, e outros quetes luxuosos, muito álcool e o abate de búfalos, um
mais recentemente, mas todos continuavam a interagir animal com o qual têm uma ligação especial. Quanto
com a comunidade e ainda faziam parte da vida da aldeia. mais rico for o defunto, mais caro deve ser o funeral e,
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Os Toraja são exímios


embalsamadores e,
por vezes, polem o
cadáver com tinta
misturada com
formaldeído para lhe
dar um aspeto mais
brilhante.

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Os cadáveres
participam em todos os
eventos da comunidade
Toraja como forma de
criar laços com ela.

por vezes, são sacrificados até cinquenta búfalos numa funtos mais recentes os pertences valiosos que levam
brutal orgia de sangue. consigo para a sepultura. Na minha segunda viagem a
Mas para realizar estes funerais dispendiosos, a famí- estas terras, nas entranhas de uma montanha remota,
lia do falecido tem de gastar uma enorme quantidade enquanto visitava um destes cemitérios subterrâneos,
de dinheiro que não tem na altura da morte do seu en- deparei-me com dois rapazes a profanar a sepultura de
te querido. Guardam esse dinheiro durante anos e, por um potentado local, sob o meu olhar atónito.
vezes, até décadas, entre a altura da morte e o funeral. Mergulhado nestas reflexões, recordando antigas
Entretanto, o cadáver permanece mumificado na ca- aventuras das minhas viagens por Tana Toraja, deixei
sa da família, geralmente na sala de estar. Aí repousa a aldeia de Batutumonga com o meu guia e regressei à
num caixão aberto e participa em todas as tarefas quo- longínqua cidade de Rantepao. No caminho, recordei
tidianas dos seus familiares. Oferecem-lhe comida, a cerimónia a que tinha assistido e senti-me profun-
tabaco, os visitantes vêm apresentar-lhe os seus respei- damente feliz. Alguns poderiam chamar-me louco por
tos, partilham com ele as últimas notícias da aldeia, e gostar de um ritual destes.
só é considerado como verdadeiramente morto quando No Ocidente, tentamos eliminar a morte das nossas
se realiza o seu funeral e é depositado numa gruta pro- vidas, como se ela não fizesse parte da nossa existên-
funda nos recantos mais profundos da floresta. Durante cia. Queremos que os atos fúnebres sejam cada vez mais
este período, os artesãos toraja esculpem uma efígie de apressados, cada vez mais estranhos para nós, que o de-
madeira do defunto, conhecida por tau tau, que vestem funto desapareça da nossa vista o mais depressa possível.
com as suas roupas, prendem-lhe madeixas do seu pró- Até nos despedimos dos nossos entes queridos de uma
prio cabelo e acompanham o defunto até ao seu lugar de forma pouco digna, sem a despedida que eles merecem.
descanso eterno. Na nossa sociedade, os mortos tornaram-se um incómo-
do de que temos de nos livrar o mais depressa possível.
EM TODO O TERRITÓRIO TORAJA (uma extensão de 2000 Mas para os Toraja, o culto da morte permanece muito
km² povoada por quase meio milhão de habitantes) vivo; persiste nas suas tradições profundamente enrai-
é possível visitar dezenas destas grutas que albergam zadas e as pessoas relacionam-se com os seus mortos
estes estranhos locais de enterro. Algumas delas, as durante gerações, cultivando a sua memória e dando-
mais antigas, são enormes ossários onde se amontoam -lhes a despedida que merecem .Por vezes, até os tiram
milhares de crânios e ossos, numa verdadeira ode à da sepultura, dançam com os eles e preparam-nos para
morte. Outras grutas são secretas ou inacessíveis para reavivar mais intensamente a sua memória.
que os profanadores de cadáveres não roubem aos de- E eu pude ser testemunha de tudo isso. e

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C O N T O

LÁGRIMAS
OU DILÚVIOS
velho esperava-me há anos na margem do lago. A lua cheia

O permitiu-me avistá-lo depois de sair do último caminho da


floresta. Quando me aproximei dele, lentamente, incerto e
com uma certa mistura de veneração e medo, vi que era
exatamente como o tinha imaginado: um octogenário magro e barbudo
do Oriente, vestido com uma velha túnica esverdeada que balançava ao
vento. O homem permanecia ereto e impassível, como se fosse uma escul-
tura de alabastro, perante o imenso lençol de água acariciado pela brisa
e pelos raios de luar.

«Chegaste finalmente», declara com


confiança e sem olhar para mim.
«Lamento», respondo-lhe.
«Lamentas o quê?», pergunta ele.
Eu não sabia como responder à sua pergunta
e um silêncio envolveu-nos, calmo para ele
e tenso para mim. Depois continuou:
«Querias falar comigo sobre a tua dor e que eu
te aconselhasse. Mas diz-me primeiro: porque
demoraste tanto tempo?» «Não sei».
«De que tinhas medo?»

Nesse momento, uma enorme carpa saltou da água, pairou no ar du-


rante um instante e voltou a entrar. Ambos fingimos que não a vimos
nem ouvimos. Ele continua a olhar para o horizonte. Depois acrescentou:

«Só podes lavar a tua dor se chorares toda


a água do lago. Vais fazê-lo?».
«Faço», afirmei solenemente.
«Terás de atravessar o lago e ser o lago, percebes?
Suponho que sabes o que quero dizer...» «Sim. Eu sei.
«Está bem. Sê.»

Ficámos em silêncio absoluto diante daquela superfície cristalina mar-


moreada por brevíssimas luzes brancas durante um tempo indeterminado.
O vento soprava cada vez mais forte sobre nós à medida que a noite
avançava. Quando finalmente senti a sua mão pegar na minha, virei-me
para ele, mas ele tinha desaparecido. Foi então que começou a chover
nos meus olhos. e
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POR ÓSCAR CURIESES,


escritor

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A QUÍMICA ORGÂNICA
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PORTUGAL NA
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PÁG. 80

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PÁG. 36

HISTÓRIA
A ÚLTIMA NOITE
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PÁG. 88

CRIMINOLOGIA
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MORFOLOGIA
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PÁG. 74

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N.º 303

PORTUGAL NA
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