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CAPÍTULO

11 ARCADISMO

SUMÁRIO
1. Arcadismo: origem e caracterização 226
2. Arcadismo e literatura no Brasil 226

HABILIDADES
• Apropriar-se do patrimônio artístico de
diferentes tempos e lugares, compreendendo
a sua diversidade, bem como os processos de
legitimação das manifestações artísticas na
sociedade, desenvolvendo visão crítica e histórica.
• Relacionar o texto, tanto na produção como na
leitura/escuta, com suas condições de produção
e seu contexto sócio-histórico de circulação
(leitor/audiência previstos, objetivos, pontos
de vista e perspectivas, papel social do autor,
época, gênero do discurso etc.), de forma a
ampliar as possibilidades de construção de
sentidos e de análise crítica e produzir textos
adequados a diferentes situações.
• Analisar efeitos de sentido decorrentes de
usos expressivos da linguagem, da escolha
de determinadas palavras ou expressões e da
ordenação, combinação e contraposição
de palavras, dentre outros, para ampliar as
possibilidades de construção de sentidos e de
uso crítico da língua.

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E

HAMZABEN/ISTOCKPHOTO.COM
ntre os séculos XVIII e XIX, as artes foram marca-
das pela retomada dos modelos clássicos, da estética
greco-romana e dos elementos mitológicos pagãos: a
arquitetura se encheu de colunas e frontões; a pintura foi
invadida por deuses, ninfas e sátiros; a música e a poesia
foram tomadas pela clareza e simplificação das formas.

LÍNGUA PORTUGUESA
LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS

Fachada do Panteão, localizado em Paris, na França.

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1. ARCADISMO: ORIGEM E CARACTERIZAÇÃO Dos seus amores
Na companhia
O século XVIII foi uma época de importantes avanços
na filosofia e na ciência, com contribuições de Isaac Dirceu passava
Newton, Descartes, Voltaire, entre outras personalida- Alegre o dia.
CAPÍTULO 11

des que assumiram postura racional e experimental.


Em tom de graça
Essa abordagem é característica do Iluminismo, mo-
vimento ideológico que cultuava a razão e o conheci- Ao terno amante
mento científico, preconizando o anticlericalismo, va- Manda Marília
lorizando o progresso técnico e lançando a semente da Que toque e cante.
revolução burguesa e do liberalismo.
A produção cultural da época também foi marcada Pega na lira,
pela valorização do conhecimento e pela clareza das Sem que a tempere,
formas expressivas. Como maneira de combater os A voz levanta,
conflitos do Barroco, criou-se, em Portugal, a Arcádia E as cordas fere.
Lusitana, academia literária que visava resgatar a
simplicidade das obras clássicas e renascentistas. C’os doces pontos
O Arcadismo retomou o antigo espírito clássico — algo A mão atina,
já feito durante o Classicismo renascentista —, motivo E a voz iguala
pelo qual ficou conhecido também por Neoclassicismo.
À voz divina.
O nome “Arcadismo” originou-se de “Arcádia”, antiga
região da Grécia que se fixou, na literatura, como sinô- [...]
nimo de lugar idílico, no qual muitos pastores podiam GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu. In: PROENÇA FILHO,
cantar versos de amor e saudade, acompanhados por Domício (org.). A poesia dos inconfidentes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1996.
uma lira ou uma flauta. A poesia pastoral ganhou for-
ças no Arcadismo, com personagens que vivem amo- No poema lido, é possível notar alguns traços da
poesia clássica, estabelecidos em oposição ao rebusca-
res em meio às paisagens calmas do campo.
mento do Barroco, escola anterior ao Arcadismo:
O que havia de mais simples, mais natural, que a vida dos • Ambientação no locus amoenus (lugar ameno),
pastores e a contemplação direta da natureza? [...]. construído por meio da idealização da natureza,
Literariamente, os gêneros pastoris neoclássicos simplifica- descrita como cenário perfeito;
ram as imagens poéticas, por uma contemplação mais sim- • Bucolismo ou pastoralismo, já que o sujeito líri-
ples da paisagem e dos seres [...]. co é um pastor (Dirceu), e sua amada, uma pastora
No Arcadismo, além da [...] exaltação da vida campestre, [...] (Marília), e eles vivem um idílio;
o sentimento amoroso [é] tratado com maior humildade ou, • Uso de linguagem simples, por meio da inutilia
quando não, [com] simplicidade mais acentuada. A poesia truncat, linguagem baseada apenas no essencial,
bucólica se caracteriza por uma delegação poética, a saber, a clara e direta, em evidente combate à sofisticação
transferência da iniciativa lírica a um pastor fictício. verbal do Barroco.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Além das já citadas, outras convenções árcades são
Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007. listadas a seguir.
• Uso alegórico de personagens mitológicas;
Os árcades costumavam transferir a fala poéti-
• Temática do fugere urbem (fugir da cidade), em
ca a um pastor inventado e que, ao contrário dos
que a cidade é mostrada como lugar de sofrimen-
homens do campo de então, não era rústico, e sim
to e corrupção do ser humano;
bem-educado e galante, além de vestir-se com finu-
ra, à semelhança do homem das cidades europeias • Elogio da aurea mediocritas, expressão aproveita-
à época. A natureza era retratada como espaço aco- da do poeta romano Horácio, usada para afirmar
que as situações de equilíbrio são as mais desejadas.
lhedor e alegre. Os cenários dos poemas surgiam da
O termo mediocritas não se traduz como mediocri-
representação da tranquilidade de uma vida rural
dade no sentido pejorativo, mas sugere ponderação,
ideal. Observe essa característica no fragmento de
ausência de excessos, o que inclui renúncia a am-
texto a seguir. bições materiais em função de uma vida tranquila.
Lira XXIII
Num sítio ameno 2. ARCADISMO E LITERATURA NO BRASIL
Cheio de rosas,
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No Brasil, no âmbito das letras, o Arcadismo teve como


De brancos lírios, marco inicial a publicação das Obras (também conhe-
Murtas viçosas; cidas por Obras poéticas), de Cláudio Manuel da Costa,

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em 1768. Seu final foi marcado pela publicação do livro Resolução
Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Maga-
O eu lírico estabelece relação contrastante entre as rochas du-
lhães, datado de 1836, quando se inicia o Romantismo. ras de sua terra natal (Minas Gerais) e seu sentimento terno.
A exploração intensa do ouro em Minas Gerais pro-
piciou o desenvolvimento, no Brasil Colônia, de uma 2. De que maneira o eu lírico apresenta os contrastes do
sociedade mais complexa. Os habitantes das regiões contexto histórico do Arcadismo?
das “minas gerais” começaram a ter contato mais di- Resolução
reto com pessoas de diferentes lugares do país e de Por meio do poema, fica clara a oposição entre a finura do poeta
e a rusticidade do Brasil Colônia — as novas possibilidades cul-
Portugal que por ali circulavam. Além disso, tornou-se
turais e econômicas dadas pela descoberta do ouro, em meio à
comum entre aqueles de situação econômica privile- paisagem ainda rústica.
giada enviar os filhos à Metrópole para estudar. Como
afirma Luiz Roncari, ao lado da rusticidade da roça, o
homem que vivia nas cidades: Além de mostrar as oposições do contexto histórico
do Brasil colonial, o poema de Cláudio Manuel da Cos-
Tornou-se mais urbano, como requeria a vida social das ci- ta revela como os elementos do cenário brasileiro mis-
dades; mais polido, como exigia a cortesia do convívio, do turam-se à concepção árcade trazida de Portugal. Essa
amor e da amizade; e mais culto, pois dispunha de tem- introdução da cor local prenuncia o nacionalismo que
po e recursos para se dedicar ao conhecimento, às artes e terá lugar a partir do Romantismo, servindo, durante
às letras. o Arcadismo, já como traço diferenciador da produção
RONCARI, Luiz. Literatura brasileira: dos primeiros cronistas aos poética do Brasil com relação às obras da Metrópole.
últimos românticos. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2002. p. 183-185. Dessa forma, ficam nítidas duas tendências desse pe-
ríodo: a adoção das convenções neoclássicas europeias,
Não havia, na época, separação expressiva entre a
a exemplo da personificação do amor no soneto lido,
produção literária de Portugal e aquela feita aqui, pois
e a tímida inserção de traços brasileiros nas obras.
quase todos os poetas do Brasil iam estudar em Por-
tugal, tirando de lá a base de seu conhecimento e de O crítico Antonio Candido afirma ser natural, em fa-
seu gosto literário. Foi por meio desse contato que o ses iniciais de uma literatura nacional, a inexistência
Arcadismo português foi transplantado para o Brasil. de um sistema literário organizado, que envolve auto-
res conscientes de sua produção, um público receptor e
uma linguagem e um estilo apropriados. Mesmo sem a
APRENDER SEMPRE referida organização, é possível que despontem obras
de valor, como as de Gregório de Matos, estudadas no
Leia o soneto do poeta árcade Cláudio Manuel da Costa e res-
ponda às questões. capítulo anterior. Para identificar o início da confi-
guração de um sistema literário, é preciso averiguar
LXXIV quando e de que maneira se definiu a continuidade de
Destes penhascos fez a natureza obras e autores com certa consciência de integração
do processo de formação de uma identidade literária
O berço em que nasci! oh quem cuidara
nacional. A esse respeito, no que se refere ao Brasil,
Que entre penhas tão duras se criara Antonio Candido esclarece:
Uma alma terna, um peito sem dureza!
Isso ocorre a partir de meados do século XVIII, adquirindo
Amor, que vence os tigres, por empresa plena nitidez na primeira metade do século XIX. [...] É com
Tomou logo render-me; ele declara os chamados árcades mineiros, as últimas academias e cer-
tos intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras
Contra o meu coração guerra tão rara,
formando conjuntos orgânicos e manifestando, em graus
Que não me foi bastante a fortaleza. variáveis, a vontade de fazer literatura brasileira.
LÍNGUA PORTUGUESA

Por mais que eu mesmo conhecesse o dano, CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira.
Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Ed. Itatiaia, 1997.
A que dava ocasião minha brandura,
Nunca pude fugir ao cego engano: Foi com os árcades que nossa literatura começou a
ganhar contornos de um sistema literário, revelando
LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS

Vós, que ostentais a condição mais dura, uma consciência nacional.


Temei, penhas, temei; que Amor tirano,
Onde há mais resistência, mais se apura.
A. Cláudio Manuel da Costa
LXXIV. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/ Cláudio Manuel da Costa nasceu em 1729, em Minas
download/texto/bn000038.pdf>. Acesso em: nov. 2021. Gerais. Descendente de família com posses, foi estudar
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em Portugal, assim como outros escritores brasileiros


1. Explicite a relação que se estabelece, no poema, entre as
da época. Retornou ao Brasil para administrar os bens
penhas (rochas) e o sentimento do eu lírico.
que herdara e atuar como advogado.

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Com o pseudônimo Glauceste Satúrnio, publicou, Nessa passagem, o autor justifica aos leitores a ocor-
em 1768, o livro Obras poéticas, que iniciou o Arcadismo rência, em seu livro, de um estilo ainda próximo do
brasileiro. É lembrado também por um poema épico, cultismo barroco pelo “muito uso das metáforas”: os
Vila Rica, escrito por volta de 1773. No entanto, sua poe- poemas haviam sido compostos quando ele estava em
sia lírica consiste na parte mais consagrada de sua obra. Portugal, período em que o país europeu “apenas prin-
CAPÍTULO 11

Em 1789, foi encontrado morto na Casa dos Contos, cipiava a melhorar de gosto nas belas letras”, ou seja,
ainda não havia adotado as convenções árcades, mas
local onde fora encarcerado após ter sido acusado de
estava em época de transição ao Arcadismo.
participar da Inconfidência Mineira, movimento que se
Assim, apesar de procurar seguir o estilo neoclás-
desenvolveu a partir da divergência de interesses en-
sico, o poeta estava marcado, em sua formação, pelo
tre os colonos, que desejavam expandir seus horizontes
rebuscamento barroco.
no contexto da exploração aurífera em Minas Gerais, e
a Metrópole, que lhes impunha restrições. Ainda hoje, XXVI
não são claras as circunstâncias da morte do autor; al- Não vês, Nise, este vento desabrido,
guns defendem que cometeu suicídio na prisão, outros Que arranca os duros troncos? Não vês esta,
acreditam que foi assassinado antes da chegada dos
Que vem cobrindo o Céu, sombra funesta,
juízes independentes do poder do governador local.
Entre o horror de um relâmpago incendido?

ARTE Não vês a cada instante o ar partido


Dessas linhas de fogo? Tudo cresta,
BRASIL VITA FILMES

CIC FILMES

Tudo consome, tudo arrasa, e infesta,


O raio a cada instante despedido.

Ah! não temas o estrago, que ameaça


A tormenta fatal, que o Céu destina
Vejas mais feia, mais cruel desgraça:

Rasga o meu peito, já que és tão ferina;


Verás a tempestade, que em mim passa;
Conhecerás então o que é ruína.
COSTA, Cláudio Manuel da. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000040.pdf>.
Acesso em: nov. 2021.
Assista aos filmes Inconfidência mineira, de 1948, dirigido por
Carmen Santos, e Tiradentes, o mártir da Independência, de 1977, VOCABULÁRIO
dirigido por Geraldo Vietri. São obras de produção nacional que
retratam importantes fases históricas do Brasil, auxiliando a Desabrido: violento.
compreender o contexto em que se manifestaram alguns ex- Despedido: lançado.
poentes da nossa literatura. Ferino: cruel.

Cláudio Manuel da Costa revela, em sua obra, a tran- Nesse soneto, evidenciam-se traços barrocos, como
sição do Barroco para o Arcadismo. De sua vivência no uso do hipérbato, ou seja, da inversão da ordem direta
ambiente europeu, trouxe o gosto pelo cultismo, no en- da oração: “Tudo cresta,/ Tudo consome, tudo arrasa, e
tanto, posteriormente, adotou o estilo simples neoclássi- infesta,/ O raio a cada instante despedido.”. Além dis-
co, como o próprio autor afirma no prefácio de seu livro: so, a paisagem é diferente do locus amoenus árcade, já
que é marcada por tempestade e escuridão: “Não vês
[...] Pudera desculpar-me, dizendo que o gênio me fez pro- esta,/ Que vem cobrindo o Céu, sombra funesta,/ Entre
pender mais para o sublime: mas, temendo que ainda nes- o horror de um relâmpago incendido?”.
te me condenes o muito uso das metáforas, bastará, para
te satisfazer, o lembrar-te que a maior parte destas Obras APRENDER SEMPRE
foi composta ou em Coimbra, ou pouco depois, nos meus
primeiros anos, tempo em que Portugal apenas principiava 1. No soneto XXVI, de Cláudio Manuel da Costa, com o que se
a melhorar de gosto nas belas letras. A lição dos gregos, compara a tempestade?
franceses e italianos, sim, me fez conhecer a diferença sen- Resolução
sível dos nossos estudos e dos primeiros mestres da poe- A terrível tempestade, com seus raios e pavores, é comparada
ao estado em que se encontra o eu lírico, tomado pelos efeitos
sia. É infelicidade que haja de confessar que vejo e aprovo
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devastadores do amor, causados nele por Nise. A caracterização


o melhor, mas sigo o contrário na execução.
da situação vivenciada pelo eu poético revela que o amor tem
Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/
maior poder de destruição do que o fenômeno natural.
download/texto/fs000040.pdf>. Acesso em: nov. 2021.

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Em grande parte de seus sonetos, para exprimir me- o “pátrio rio”, o rio da terra natal, é rodeado por pai-
lhor os sofrimentos do pastor Glauceste, provocados sagem diferente daquela idealizada pelo Arcadismo
pela recusa amorosa de sua pastora, Cláudio Manuel europeu.
da Costa faz uso da comparação entre os sentimentos
Leia a posteridade, ó pátrio Rio,
do eu lírico e a natureza que o rodeia.
Em meus versos teu nome celebrado;
É na natureza que o pastor vai buscar os termos de com-
Por que vejas uma hora despertado
paração para ilustrar ou realçar os seus estados de âni-
mo. Já vimos que o espaço da poesia arcádica é o campo, O sono vil do esquecimento frio:
onde vive o pastor que, apesar da aparente rusticidade ou
Não vês nas tuas margens o sombrio,
simplicidade dos costumes, é capaz dos mais requintados
Fresco assento de um álamo copado;
versos. Já vimos também que tanto esse espaço como o
homem, pastor, são convencionais, artificialmente criados Não vês ninfa cantar, pastar o gado
e idealizados, sem nenhuma correspondência com a reali- Na tarde clara do calmoso estio.
dade dura da vida pastoril. Tal espaço é pensado e encena-
do como uma oposição à vida na cidade, cujos termos são Turvo banhando as pálidas areias
todos negados e reprovados [...] Nas porções do riquíssimo tesouro
RONCARI, Luiz. Literatura brasileira: dos primeiros O vasto campo da ambição recreias.
cronistas aos últimos românticos. São Paulo: Edusp, 1995.
Que de seus raios o planeta louro
No soneto XXVI, anteriormente apresentado, a na-
Enriquecendo o influxo em tuas veias,
tureza é representada de forma ameaçadora, contudo,
em muitos outros poemas, ela reproduz o ideal árcade, Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.
a exemplo do que ocorre no texto a seguir. COSTA, Cláudio Manuel da. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Antologia
dos poetas brasileiros coloniais. São Paulo: Perspectiva, 1979.
XIV

Quem deixa o trato pastoril amado VOCABULÁRIO


Pela ingrata, civil correspondência,
Álamo: árvore comum na Europa.
Ou desconhece o rosto da violência, Estio: verão.
Ou do retiro a paz não tem provado. Pátrio Rio: Ribeirão do Carmo, em Mariana.
Planeta louro: Sol.
Que bem é ver nos campos trasladado Por que: para que.
No gênio do pastor, o da inocência! Riquíssimo tesouro: ouro.
E que mal é no trato, e na aparência
Nesse soneto, o eu lírico mostra que, em vez de
Ver sempre o cortesão dissimulado! árvores europeias (como o álamo), ninfas e o locus
Ali respira amor sinceridade;
amoenus, há o ouro, que enriquece as terras de Minas
Gerais. Assim, aproxima da realidade colonial o Arca-
Aqui sempre a traição seu rosto encobre; dismo transplantado da Europa para o Brasil.
Um só trata a mentira, outro a verdade.
Não será excessivo acrescentar que, enquanto a maioria
Ali não há fortuna, que soçobre; dos poemas pastoris, desde a Antiguidade, tem por cenário
Aqui quanto se observa, é variedade: prados e ribeiras, nos de Cláudio há vultosa proporção de
montes e vales, mostrando que a imaginação não se apar-
Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!
tava da terra natal e, nele, a emoção poética possuía raízes
LÍNGUA PORTUGUESA

COSTA, Cláudio Manuel da. XIV. In: Poemas de Cláudio Manuel da autênticas [...]
Costa. Introdução, seleção e notas de Péricles Eugênio
da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1966. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 9. ed.
Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia Limitada, 2000, v. 1. p. 85.
Diversos poemas de Cláudio Manuel da Costa evi-
denciam identificação do poeta com os elementos da É por isso que o autor recorre com frequência à
LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS

paisagem nativa, o que, segundo Antonio Candido, imagem da pedra, da rocha, do cenário rochoso das
talvez tenha relação com um traço constante em sua minas de ouro, como se buscasse um alicerce, um pon-
obra, “o relativo dilaceramento interior, causado pelo to de referência, que encontra na própria terra.
contraste entre o rústico berço mineiro e a experiência
intelectual e social da metrópole, onde fez os estudos B. Tomás Antônio Gonzaga
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superiores e se tornou escritor” (Formação da literatura Tomás Antônio Gonzaga nasceu no Porto, em Portu-
brasileira. 9. ed. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia, gal, mas passou a infância na Bahia, onde estudou em
2000, v. 1. p. 86.). Leia o soneto a seguir e observe como um colégio de jesuítas. Era filho de um magistrado

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brasileiro e seguiu os passos do pai, indo estudar na Envolvido com a Inconfidência Mineira, o poeta foi
cidade portuguesa de Coimbra e, posteriormente, preso e teve os bens confiscados. No cárcere, escre-
exercendo a magistratura em Beja, também em Portu- veu a segunda parte de Marília de Dirceu. Os versos
gal. Com quase 40 anos regressou ao Brasil para exer- inspiraram-se nas perdas materiais de Tomás Antônio
cer funções jurídicas. Aqui escreveu sua obra, que se Gonzaga, bem como na destituição do cargo judiciário
CAPÍTULO 11

organiza em poesia lírica e satírica. e no esvaimento da influência política e social. Disfar-


Participou da Inconfidência Mineira e acabou preso çadas sob a exterioridade racional dos versos, as ima-
e conduzido à Ilha das Cobras. Passados três anos, foi gens (por exemplo, de sítio e gado) revelam um drama
degredado para Moçambique, onde obteve alta posição de fundo biográfico. Nessa parte da obra, o autor fala
administrativa e casou-se com Dona Juliana de Masca- de si, e Marília surge como um pretexto, uma ocasião.
renhas, filha de um rico mercador de escravos. Foi tam- Assim, ele expressa, por meio de Dirceu, sua solidão e a
bém em Moçambique que faleceu, por volta de 1810. saudade que sente de Dorotéia/Marília, mas o foco cen-
tral está em si mesmo. Leia, a seguir, uma das liras da
B.1. Poesia lírica segunda parte de Marília de Dirceu.
Toda a produção lírica de Tomás Antônio Gonzaga tem Lira XV
como tema o amor do pastor Dirceu por Marília. O eu
lírico discorre sobre o sentimento amoroso de ma- Eu, Marília, não fui nenhum vaqueiro,
neira racional e contida, despojada dos exageros que, Fui honrado pastor da tua aldeia;
posteriormente, marcarão o Romantismo. Essa his-
Vestia finas lãs e tinha sempre
tória de amor, apresentada no livro Marília de Dirceu,
é inspirada no romance do próprio autor com Maria A minha choça do preciso cheia.
Dorotéia de Seixas, sendo Dirceu, portanto, o pseudô- Tiraram-me o casal e o manso gado,
nimo adotado pelo poeta. Nem tenho, a que me encoste, um só cajado.
Descendente de família rica, Dorotéia, adolescente
de 16 anos chamada de Marília nos poemas de Tomás Para ter que te dar, é que eu queria
Antônio Gonzaga, teve a oposição da família quanto De mor rebanho ainda ser o dono;
ao seu relacionamento com o poeta, por ele apresentar Prezava o teu semblante, os teus cabelos
diferente condição social e cerca de 40 anos de idade.
Ainda muito mais que um grande trono.
Agora que te oferte já não vejo,
CORREIO DO BRASIL

Além de um puro amor, de um são desejo.

Se o rio levantado me causava,


Levando a sementeira, prejuízo,
Eu alegre ficava, apenas via
Na tua breve boca um ar de riso.
Tudo agora perdi; nem tenho o gosto
De ver-te aos menos compassivo o rosto.

Propunha-me dormir no teu regaço


As quentes horas da comprida sesta,
Escrever teus louvores nos olmeiros,
Toucar-te de papoilas na floresta.
Julgou o justo céu, que não convinha
Selo postal em homenagem a Maria Dorotéia de
Seixas, a quem Tomás Antônio Gonzaga destinou Que a tanto grau subisse a glória minha.
o pseudônimo Marília em sua obra.

Ah! minha Bela, se a fortuna volta,


A primeira parte de Marília de Dirceu é composta de Se o bem, que já perdi, alcanço e provo,
poemas escritos antes da prisão de Tomás Antônio Por essas brancas mãos, por essas faces
Gonzaga. Neles, evidenciam-se o louvor à beleza de
Te juro renascer um homem novo,
Marília, a corte amorosa feita à amada, a tentativa do
eu lírico de mostrar seu próprio valor, a fim de provar Romper a nuvem que os meus olhos cerra,
que merece a atenção de Marília, e os projetos de vida Amar no céu a Jove e a ti na terra!
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conjunta harmoniosa e feliz. Além disso, nesses versos é


possível notar a ansiedade de um senhor com cerca de 40 Fiadas comprarei as ovelhinhas,
anos de idade no contexto do amor por uma adolescente. Que pagarei dos poucos do meu ganho;

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E dentro em pouco tempo nos veremos sem figuras de linguagem ou inversões sintáticas.
Senhores outra vez de um bom rebanho. Assim, a produção de Gonzaga é totalmente afastada
Para o contágio lhe não dar, sobeja
do Barroco, ligada à maneira árcade de fazer poesia.
Que as afague Marília, ou só que as veja. Se a poesia de Cláudio Manuel da Costa representa ainda
o trânsito da velha poesia [barroca] para a nova poesia de
Se não tivermos lãs e peles finas, gosto neoclássico [...], a poesia de Tomás Antônio Gonzaga
Podem mui bem cobrir as carnes nossas realiza com soltura e desprendimento o novo “estilo sim-
As peles dos cordeiros mal curtidas, ples”. Despojando-se dos artifícios da linguagem engenho-
E os panos feitos com as lãs mais grossas. sa dos culteranos [...], o poeta procura agora aquilo que ele
entende por “naturalidade”: a expressão clara e perfeita-
Mas ao menos será o teu vestido
mente inteligível, desprovida de enigmas e obscuridade,
Por mãos de amor, por minhas mãos cosido. que flui dentro de uma linha melódica suave. O ritmo poé-
tico lembra o som singelo da flauta dos pastores e pastoras
Nós iremos pescar na quente sesta
nos campos amenos da Arcádia.
Com canas e com cestos os peixinhos:
RONCARI, Luiz. Literatura brasileira: dos primeiros
Nós iremos caçar nas manhãs frias cronistas aos últimos românticos. São Paulo: Edusp, 2002.
Com a vara enviscada os passarinhos.
Para nos divertir faremos quanto APRENDER SEMPRE
Reputa o varão sábio, honesto e santo.
1. Assinale o trecho de Marília de Dirceu que compõe a segunda
parte da obra.
Nas noites de serão nos sentaremos
a. “Nesta triste masmorra,
C’os filhos, se os tivermos, à fogueira:
De um semivivo corpo sepultura,
Entre as falsas histórias, que contares, Inda, Marília, adoro
Lhes contarás a minha, verdadeira. E tua formosura.
Amor na minha ideia te retrata;
Pasmados te ouvirão; eu, entretanto,
Busca, extremoso, que eu assim resista
Ainda o rosto banharei de pranto. À dor imensa, que me cerca e mata.”
b. “Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
Quando passarmos juntos pela rua, Que viva de guardar alheio gado,
Nos mostrarão c’o dedo os mais pastores; De tosco trato, de expressões grosseiro,
Dos frios gelos e dos sóis queimado.
Dizendo uns para os outros: Olha os nossos
Tenho próprio casal, e nele assisto;
Exemplos da desgraça, e são amores. Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Contentes viveremos desta sorte, Das brancas ovelhinhas tiro o leite
E mais as finas lãs, de que me visto.
Até que chegue a um dos dois a morte. Graças, Marília bela,
GONZAGA, Tomás Antônio. Obras completas. Edição crítica de Manuel Graças à minha estrela!”
Rodrigues Lapa. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957.
c. “Ornemos nossas testas com as flores,
Nessa lira, o pastor Dirceu dirige-se à sua amada E façamos de feno um brando leito;
Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
Marília, lamentando a perda de sua situação prós-
Gozemos do prazer de sãos amores.
pera. Depois, começa a imaginar como seria bom se Sobre as nossas cabeças,
conseguisse retomar a antiga riqueza, podendo viver Sem que o possam deter, o tempo corre;
feliz ao lado de Marília. Sobre esse fragmento, Antonio E para nós o tempo que se passa
Candido observa: Também, Marília, morre.”
LÍNGUA PORTUGUESA

d. “A minha bela Marília


A tonalidade geral do discurso corresponde a essa simpli-
Tem de seu um bom tesouro;
cidade do assunto. Há nela uma limpidez reforçada pela Não é, doce Alceu, formado
ordem expositiva clara e direta, com raras e moderadas in- Do buscado
versões sintáticas [...]. [Há também] a ausência impressio- Metal louro;
LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS

nante de linguagem figurada: não há uma só imagem, os É feito de uns alvos dentes,
60 versos são feitos com palavras usadas no sentido mais É feito de uns olhos belos,
despojadamente próprio. De umas faces graciosas,
De crespos, finos cabelos;
CANDIDO, Antonio. Na sala de aula. São Paulo: Ática, 2009.
E de outras graças maiores,
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Os versos de Tomás Antônio Gonzaga diferem bas- Que a natureza lhe deu:
Bens, que valem sobre a terra
tante dos de Cláudio Manuel da Costa (que contêm tra-
E que têm valor no céu.”
ços barrocos), por apresentarem linguagem simples,

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E tomando, na fina porcelana,
e. “Eu vivo, minha bela, sim, eu vivo
Nos braços do descanso e mais do gosto: O mate saboroso, quando escuto
Quando estou acordado, De grossa artilharia o rouco estrondo.
Contemplo no teu rosto,
De graças adornado; O sangue se congela, a casa treme,
CAPÍTULO 11

Se durmo, logo sonho e ali te vejo. E pesada porção de estuque velho,


Ah! nem desperto nem dormindo, sobe A violência do abalo despegada
A mais o meu desejo!”
Resolução Da barriguda esteira, faz que eu perca
Os versos mostram que o eu lírico escreve preso em masmorra, A tigela esmaltada, que era a coisa
local em que se lembra, com saudade, de Marília. Que tinha, nesta casa, de algum preço.
Alternativa correta: A
Apenas torno em mim daquele susto,
Me lembra ser o dia em que o bom chefe,
Há, ainda, a terceira parte de Marília de Dirceu, que,
embora sendo a última do livro, não apresenta indí- Aos seus auxiliares, lições dava
cios de ter sido escrita pelo autor na sequência da se- Da que Saxi chamou pequena guerra.
gunda parte. Sobre ambas, Antonio Candido observa: Amigo Doroteu, não sou tão néscio,
São impressionantes a firmeza e a sabedoria reveladas nas Que os avisos de Jove não conheça.
liras da prisão [segunda parte]. Nem um momento de des- Pois não me deu a veia de poeta,
moralização ou renúncia; sempre a certeza da sua valia, a
Nem me trouxe, por mares empolados,
confiança nas próprias forças. Um dos melhores critérios
para constatarmos a inautenticidade da falsa III Parte é A Chile, para que, gostoso e mole,
precisamente o desalento e a lamúria que a envolvem, tão Descanse o corpo na franjada rede.
em contraste com a fibra dos demais poemas. Nasceu o sábio Homero entre os antigos,
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 9. ed.
Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia, 2000, v. 1. p. 120.
Para o nome cantar, do grego Aquiles;
Para cantar, também, ao pio Eneias,
B.2. Poesia satírica Teve o povo romano o seu Vergílio:
Além dos poemas líricos, creditam-se a Tomás Antônio Assim, para escrever os grandes feitos
Gonzaga as Cartas chilenas, de cunho satírico. Por terem
circulado de forma anônima e sido atribuídas a diferen- Que o nosso Fanfarrão obrou em Chile,
tes poetas, houve, durante muito tempo, dúvida quanto Entendo, Doroteu, que a Providência
a seu verdadeiro autor. Pesquisas concluíram, com base Lançou, na culta Espanha, o teu Critilo.
na análise do estilo das cartas, serem de Tomás Antônio
GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas chilenas. Disponível em:
Gonzaga. As Cartas chilenas consistem em 13 epístolas na <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/
forma de poema. Seus versos são decassílabos brancos, ua000293.pdf>. Acesso em: nov. 2021.
encadeados por meio de estrofação livre. Os textos dessa
As cartas, que circularam entre 1787 e 1788, apre-
obra ridicularizam Luís da Cunha Meneses por seus des-
sentam forte tom de crítica ao governo de Meneses,
mandos como governador da capitania de Minas Gerais.
visto pelo autor como autocrático e recheado de cor-
Os nomes verdadeiros são substituídos: Minas Gerais,
rupção, nepotismo, abuso de poder e tirania, em uma
Vila Rica e o governador são chamados, respectivamen-
linguagem direta e convidativa, que atrai o leitor e o
te, de Chile, Santiago e Fanfarrão Minésio; sob o pseudô-
deixa interessado em saber mais sobre os atos do go-
nimo Critilo, Tomás Antônio Gonzaga escreve as cartas
vernador e sobre problemas do cenário político e so-
para Cláudio Manuel da Costa, denominado Doroteu.
cial da época. Os estudos que concluíram a autoria das
CARTA 9a Cartas também indicaram que Gonzaga foi bastante
influenciado em sua escrita pelas Cartas persas, de
Em que se contam as desordens que Fanfarrão obrou
Montesquieu, publicadas em 1721, no mesmo formato
no governo das tropas.
epistolar e que usa o recurso de falar sobre um lugar
Agora, Doroteu, agora estava e pessoas fictícias para criticar a realidade social e os
Bamboando, na rede preguiçosa abusos da Igreja e do Estado na França.

Anotações
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