Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
PRÉ-HISTÓRIA ENTREVISTA
PENÍNSULA IBÉRICA, ALDA AZEVEDO
O REFÚGIO HUMANO NA ERA PENSAR O FUTURO COM
GLACIAR EUROPEIA BASE NA DEMOGRAFIA
SAÚDE
CURAR COM BACTÉRIAS
PRÉ-HISTÓRICAS?
ZOOLOGIA
ICTIOSSAUROS,
OS LEVIATÃS
DO PASSADO
HISTÓRIA
D. JOÃO II
DE PORTUGAL
NEUROCIÊNCIA
PORQUE É QUE VEMOS
FANTASMAS
MECANISMOS
CEREBRAIS
COMO FUNCIONA A MENTE HUMANA
ND A
A!
VE R
À AGO
VIVER A HISTÓRIA
COM PAIXÃO
EDIÇÃO BIBLIOTECA
EDIÇÃO
BIBLIOTECA
CELTAS GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS
PORTUGAL ORIGENS DE UMA NAÇAO
PALEOARTE
VALE DO CÔA
Território de
memória
GRUTA DO ESCOURAL
Marco do paleolítico
no Alentejo
MISTÉRIO
Stonehenge e outros
santuários megalíticos
PALEOARTE
Conheça a formação de Portugal
como Nação através de grandes
historiadores: conhecerá os
CELTAS
GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS
Onde e quando surgiu
o nosso impulso artístico
A arte acompanha o ser humano
desde os tempos mais remotos, ao
longo da sua evolução. O que é que
protagonistas, os momentos Mergulhe na Idade do Ferro e descubra os artistas das cavernas pretendiam
decisivos, os desafios e as bases uma das culturas mais fascinantes alcançar com as suas pinturas? O
do futuro império. da Europa, a Celta, pelas mãos de que é que elas simbolizam?
grandes especialistas.
NotíciasFlix
SE DE I CT OC RI IÓA NL
INTERESSANTE
AFONSO
HENRIQUES
CELTAS GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS
e o nascimento de
PORTUGAL ORIGENS DE UMA NAÇAO
Portugal
O MILAGRE DE
OURIQUE
PALEOARTE
ou o mito nacional
de sobrevivência
D.DINIS, A
VALE DO CÔA
Território de JÁ HOUVE UM TSUNAMI
EM PORTUGAL?
memória
CONSOLIDAÇÃO
DO TERRITÓRIO GRUTA DO ESCOURAL
e afirmação Marco do paleolítico
da identidade no Alentejo Que sermão deu
Santo António
EXPANSÃO MISTÉRIO aos peixes?
PORTUGUESA: Stonehenge e outros
Que países foram fundados
CELTAS
as primeiras décadas santuários megalíticos por ex-escravos?
É legal que a minha renda
PALEOARTE
seja revista em concordância
PORTUGAL
com o IPC?
SUPER 3
Sumário
20
AGE
ambiente.
64 D. João II de Portugal 10 Falar de ciência 78 Tecnocultura
África, Atlântico e Índia no seu reinado As palavras da ciência, por M. S. Sabadell. J. Moreno em busca do grande algoritmo.
4 SUPER
SHUTTERSTOCK MIT
32
86
78
38
94
ASC GTRES
SUPER 5
DISCOVERY ATUALIDADE
POR CRISTINA ENRÍQUEZ
MUNDIAL DE DINOSSAUROS
dinossauro herbívoro
que andava semi-ereto.
ASC
m 1993, um caçador de fós-
E
seis amador, chamado Rubén
Carolini descobriu na Pata-
gónia o primeiro fóssil do
Giganotosaurus carolinii, um dos maiores
carnívoros que alguma vez viveu na Ter- Argentina), tinha menos de um metro e pensava relicto [um remanescente de um
ra. Este predador letal tinha entre 12 e meio de altura e pesava entre quatro e se- ecossistema em regressão]. Teria sido
13 metros de comprimento, pesava quase te quilos, era herbívoro, tinha uma man- mais lógico encontrá-lo em terrenos ju-
sete toneladas (um pouco maior do que díbula alta e robusta e as patas dianteiras rássicos. O facto de aparecer no Cretáceo
o mítico Tyrannosaurus rex) e viveu nesta muito mais curtas do que as traseiras, pe- é uma verdadeira surpresa. Provavelmen-
região da América do Sul há cerca de 100 lo que podia andar semi-ereto. Embora os te na América do Sul e na Argentina vão
milhões de anos. seus restos tenham sido encontrados em continuar a aparecer. Penso que, no que
Este facto é importante porque, desde en- 2013, só foram trabalhados em 2019. diz respeito aos tireóforos, pode haver
tão, a Patagónia argentina tornou-se uma Esta espécie veio transformar o que se mais surpresas», diz Xabier Pereda, da
Meca da investigação paleontológica e do sabia sobre os dinossauros couraçados. Universidade do País Basco,um dos in-
turismo científico. A região possui a co- «Corresponde a uma linhagem que se vestigadores. e
leção paleontológica mais importante da
América do Sul, onde foram descobertos
mais de 30 novos tipos de dinossauros do
período Cretáceo Superior, que viveram
entre 90 e 100 milhões de anos atrás.
O sítio é uma das jóias da paleontologia
porque a qualidade de preservação dos
seus fósseis é excecional.
A última surpresa foi um «dinossauro cou-
raçado», uma nova espécie batizada Jaka-
pil kaniukura (que significa «portador de
escudo com crista de pedra» na língua an-
cestral do norte da Patagónia, Argentina),
que coexistiu no mesmo período Cretáceo
com os temíveis giganotossauros (como o
descoberto em 1993). O pequeno jakapil
vivia num território hostil, o antigo deser-
to de Kokorkom (província de Río Negro,
Tábua babilónica com um casal beijando-se. da Universidade de Oxford, salientam que, embora a tradição do beijo seja provavel-
mente mais antiga, as provas documentais situam-na cerca de 1000 anos antes do que
até agora se conhecia. O documento salienta que existe um conjunto de provas não
reconhecido de beijos romântico-sexuais presentes em textos antigos da Mesopotâmia
de 2500 a.C.. Milhares de tabuinhas de argila contêm exemplos claros de que o beijo
era considerado parte da intimidade romântica na antiguidade, tal como podia fazer
parte das amizades e das relações dos membros da família . «No entanto,o beijo não
deve ser visto como um costume que teve origem apenas numa única região e se espa-
lhou a partir daí, mas parece ter sido uma prática em muitas culturas antigas ao longo
SHUTTERSTOCK
de vários milénios. Teve múltiplas origens, numa vasta área geográfica que inclui cla-
ramente a Mesopotâmia e a Índia», explica Arbøll, e talvez também o Egito, embora aí
Baixo-relevo egípcio com dois homens. «as evidências sejam mais ambíguas».
6 SUPER
A povoação de
Whittier foi uma
antiga base naval
dos EUA.
ASC
As Begich Towers oferecem
abrigo durante os meses
rigorosos de inverno.
YOULI ZHAO
no mesmo edifício durante o inverno. tos de partida para a conversão deste
Sim, quase toda a população de 220 edifício numa residência para os ha-
pessoas. bitantes locais se refugiarem durante
Esta situação peculiar começou depois os meses rigorosos de inverno, sem show, os habitantes de Whittier vivem
da Segunda Guerra Mundial, quando a terem de sair à rua regularmente. A as suas vidas. Dispõe de todos os ser-
Marinha dos EUA decidiu construir uma temperatura média é de 0º Celsius e as viços necessários para satisfazer as
base naval numa enseada do Prince temperaturas mínimas podem atingir necessidades dos habitantes: escritó-
William Sound, em Whittier. Consistia os -20º Celsius. A tudo isto juntam- rios administrativos, esquadra de polí-
em dois edifícios anexos construídos -se os ventos gelados e a neve que se cia, correios, igreja, centro de saúde,
em 1956 — conhecidos como Begich acumula. Tendo isto em conta e após supermercado, cafetaria, videoclube,
Towers — que albergavam 200 pessoas. várias renovações, Begich Towers é lavandaria, um pequeno hotel e ain-
Com o tempo, os militares americanos agora um edifício moderno de cator- da acesso à pequena escola municipal.
deixaram de considerar Whittier como ze andares no qual, como num reality Como podemos ver, fica tudo em casa!
Fonte de luz
TATUAGEM BRILHANTE REVELA O2 NO SANGUE e detetor Sensor de oxigénio de seda
Normal / Fluorescente
Sensor de
seda
base de seda que pode ser colo- criar uma estrutura que dura sob
n
de detetar com precisão os níveis um aditivo chamado PdBMAP que para revelar os
de oxigénio altos, baixos e nor- brilha quando exposto à luz de níveis de
mais. De momento, limita-se aos um determinado comprimento de oxigénio,
níveis de oxigénio e é composto onda, e este brilho tem uma in- monitorizando os
por um gel formado a partir dos tensidade e duração proporcionais componentes do
sangue.
componentes proteicos da seda, ao nível de oxigénio no ambiente.
SUPER 7
O tratamento HIFU
concentra o calor nos
neurónios responsáveis
pelo tremor.
O
bação do movimento mais logistas, técnicos de radiologia e profis- Uma vez localizado o ponto exato do cé-
prevalente nas pessoas com sionais de enfermagem, conseguiu reduzir rebro onde os ultra-sons devem ser aplica-
doença de Parkinson, aumen- o tremor essencial associado à doença de dos, graças a uma ressonância magnética
tando a partir dos 65 anos Parkinson dos membros superiores numa de três teslas, a temperatura é aumentada
de idade. Piora a qualidade de vida dos média de 80 % em mais de 80 pacientes, até 60 graus centígrados para ablacionar
doentes, uma vez que provoca dificulda- graças à aplicação de calor por ultra-sons ou eliminar os neurónios responsáveis
des na realização das atividades básicas de alta intensidade nos neurónios que o pelo tremor. É colocada na cabeça do
da vida diária ao induzir movimentos in- produzem. A técnica utilizada consiste paciente uma estrutura de estereotaxia,
voluntários ou oscilações que afetam as num tratamento não invasivo que não coberta com uma membrana de água arre-
mãos — criando dificuldades em escrever requer incisões nem anestesia geral. Esta fecida para que os feixes de calor passem
ou desenhar, ou problemas em segurar equipa foi a primeira do sistema público de através do couro cabeludo sem o danifi-
talheres, copos e utensílios de alimenta- saúde de Madrid e a segunda em Espanha car. Como o doente permanece sempre
ção— e as cordas vocais, provocando uma a utilizar o tratamento HIFU (High Inten- acordado, o neurologista pode verificar o
voz trémula. sity Focal Ultrasound), graças a um equi- grau de eliminação do tremor em tempo
Uma equipa multidisciplinar do Hospi- pamento de alta tecnologia que concentra real, permitindo aumentar a intensidade
tal Clínico San Carlos (Madrid), composta o calor nos neurónios responsáveis pelo do tratamento em função da resposta. e
8 SUPER
CURIOSIDADE MATRIZES E MATRAZES
ASC
do breve e se tenham separado em 1900,
o recenseamento desse ano ainda a apre-
senta como June Hill, médica, casada há de saúde da comunidade. Foi também as mulheres da Califórnia e a Comissão de
três anos, mas sem marido no agregado presidente da Associação Médica do Estradas do Estado votou a aprovação das
familiar. No mesmo ano, McCarroll ca- Condado de San Bernardino e membro faixas centrais em novembro de 1924. A
sou-se com James R. Robertson. Depois do Conselho Nacional de Saúde. ideia de McCarroll espalhou-se rapida-
de se formar em medicina em Chicago, mente por todo o país e acabou por se
McCarroll mudou-se com seu segundo A DRA. JUNE CONDUZIA O SEU FORD T NUM tornar uma caraterística das estradas de
marido para o sul da Califórnia em 1904, ESTREITO CAMINHO DA autoestrada Indio todo o mundo.
na esperança de que ele se recuperasse Boulevard, no outono de 1917, quando A linha divisória da faixa de rodagem
da tuberculose. No entanto, Robertson um grande camião a fez sair da estrada tornou-se uma caraterística comum das
morreu em 1914. Dois anos mais tarde, e cair numa vala de areia. Como tinha estradas modernas, melhorando signi-
McCarroll casou-se pela terceira vez com um contacto próximo com vítimas de ficativamente a segurança rodoviária e
Frank Taylor McCarroll, gerente da esta- acidentes rodoviários, começou a pensar salvando inúmeras vidas. Existe alguma
ção local da Southern Pacific Railroad. em como melhorar a segurança rodoviá- controvérsia sobre quem inventou este
Durante os primeiros anos do século ria. Numa viagem posterior, reparou que sistema. Embora June McCarroll seja fre-
XX, McCarroll trabalhou como enfermei- a estrada em que conduzia tinha uma quentemente considerada a criadora da
ra (e mais tarde como médica) para a elevação no centro que fazia com que os linha central e promotora da sua utili-
Southern Pacific Railroad. Entre 1907 e carros permanecessem no seu próprio la- zação, a mesma ideia foi também atri-
1916, foi a única médica a prestar cui- do da estrada. Foi então que pensou que buída a outros inventores. No entanto,
dados regulares no vasto deserto entre a demarcação das faixas de rodagem com McCarroll é amplamente reconhecida co-
o Lago Salton e Palm Springs. Para além uma linha tornaria as estradas, então mo uma das pioneiras na promoção da
disso, era também a única profissional precárias, mais seguras para conduzir. utilização do traço central nas estradas
médica que atendia as cinco reservas in- Levou a ideia ao Conselho de Supervi- para melhorar a segurança rodoviária.
dígenas da região, em nome do Bureau sores do Condado de Riverside e pintou June McCarroll morreu em 30 de março
of Indian Affairs. June deslocava-se da ela própria uma faixa branca com cerca de 1954, com 86 anos de idade. Uma
forma que podia— a cavalo, de comboio de uma milha de comprimento na atual placa comemorativa em sua honra en-
ou de automóvel. Autoestrada 99. Depois de obter o apoio contra-se no cruzamento da Indio Bou-
McCarroll foi médi- das Federações de Clubes de Mulheres do levard com a Fargo Street em Indio,
ca durante muitos Condado, do Distrito e do Estado, June Califórnia. Além disso, em 24 de abril
anos, mas foi tam- McCarroll apresentou uma petição à As- de 2002, o Estado da Califórnia desig-
bém ativista social sembleia Legislativa do Estado da Cali- nou o troço da Interstate 10 perto de
e líder comunitária. fórnia para que fosse promulgada uma lei Indio como «The Doctor June McCarroll
Trabalhou incansa- que autorizasse a pintura de uma linha Memorial Freeway», em reconhecimento
POR EUGENIO MANUEL
velmente para me- no meio de todas as auto-estradas esta- do seu contributo para a segurança ro-
FERNÁNDEZ AGUILAR, lhorar as condições tais. A ideia foi um grande sucesso entre doviária. e
Físico
SUPER 9
CURIOSIDADE FALAR DE CIÊNCIA...
Temas como a
pederastia, a
sexualidade ou a
prostituição não
deveriam ser
investigados,
com a premissa
de que atentam
contra a moral.
São ciência
perseguida.
ISTOCK
orghos Apostolopoulos é um va nos Estados Unidos? Durante anos, Para muitos grupos de pressão con-
10 SUPER
O sexo é o mal dos males dos cristãos
conservadores, pelo que qualquer in-
vestigação sobre ele deve ser anulada.
Alfred Kinsey, autor de dois aclamados
estudos sobre o comportamento sexual
em 1948 e 1953 — muitos acreditam
que a revolução sexual dos anos 60 foi
uma consequência direta dos seus re-
latórios — foi atacado e vilipendiado
pelos moralistas americanos que o ro-
tularam de bissexual, sadomasoquista e Alfred Kinsey,
pedófilo. Nos anos 80 e 90, Vern Bul- que estudou o
lough, especialista em comportamen- comportamento
to sexual e saúde pública, foi também sexual, foi atacado por
acusado de pedófilo por fazer parte do grupos conservadores
que o rotularam de
conselho de redação da Paidika, uma re-
bissexual,
vista dedicada à pedofilia. É claro que sadomasoquista
há casos em que o melhor não é atacar e pedófilo.
o cientista, mas inventar investigações,
como fizeram as Testemunhas de Jeo-
vá francesas em 1974: segundo um Dr.
Zohman não identificado, as relações
sexuais ilícitas exercem uma tal pressão
sobre o coração que, no Japão, oito em
cada dez mortes súbitas durante o ato
sexual ocorreram no decurso de relações
sexuais extraconjugais.
Mas nenhum ataque foi mais furibun-
do do que o sofrido pelo livro Harmful to
Minors: The Perils of Protecting Children
GETTY
O LIVRO, QUE FOI PASSANDO DE EDITORA EM em nada que não seja verdadeiro; co-
EDITORA ATÉ QUE A UNIVERSIDADE DO MIN- A CENSURA DA mo acredito que não é verdadeiro, de-
NESOTA aceitou publicá-lo, teve a opo- ve ser falso. A sombra de Roger Bacon,
sição de evangelistas e católicos con- CIÊNCIA COM BASE Giordano Bruno e Galileu Galilei paira-
servadores que tentaram impedir a sua va sobre o país que era o campeão da
publicação porque justificava e promovia NOS SEUS EFEITOS liberdade de expressão. No século XX,
o abuso e a violação de crianças. Por- houve uma forma extrema de censura no
quê? Porque dizia que os estudos cien- NOCIVOS PARA A domínio do pensamento: a exercida por
tíficos mostravam que a grande maioria Estaline, que perseguia qualquer ideia,
das crianças que tinham sido abusadas MORALESTÁ A SER investigação ou trabalho artístico que
sexualmente cresciam normalmente, sem não estivesse de acordo com a ideologia
grandes traumas ou efeitos nocivos a PRATICADA NOS EUA comunista ou que pudesse provocar uma
longo prazo. Obviamente, algumas expe- «associação indesejável de pensamen-
riências são mais terríveis do que outras: que o tão falado trauma irreparável não tos» nos cidadãos.
ser violado por um dos pais não é o mes- era assim. O que deveria ter sido uma A reação da Associação Americana de
mo que ver um exibicionista no parque. excelente notícia, que falava da capa- Psicologia foi surpreendente: negou as
Da mesma forma, embora legalmente se- cidade humana de ultrapassar as piores conclusões do artigo, alegando que eram
ja tratado como abuso o sexo consensual experiências, tornou-se motivo de per- contrárias à política da Associação. Isto
entre um menor e um adulto, não é a seguição política. é surpreendente, uma vez que o artigo
mesma coisa ser agredido aos 5 anos e Em 12 de julho de 1999, o Congresso foi publicado numa das suas revistas, su-
ter sexo aos 15. dos Estados Unidos deu o passo históri- jeita aos habituais controlos científicos
Um dos artigos em que Levine se co de condenar e censurar por unanimi- de revisão por pares. Note-se qual foi o
baseou apareceu em julho de 1998 no dade uma publicação científica, porque argumento: não que as conclusões não
Psychological Bulletin. No artigo, Bruce os membros do Congresso discordavam tivessem sido apoiadas por dados empí-
Rind, Philip Tromovitch e Robert Bau- dos resultados e consideravam que es- ricos; não que tivesse sido feita má in-
serman examinaram 59 investigações tes poderiam ter um efeito negativo na vestigação, mas que esta contrariava a
anteriores sobre as consequências do população do país. Era a «certeza au- política da associação. Puro «ofendidis-
abuso sexual em crianças e descobriram tista» posta em prática: não acreditarei mo» a nível institucional.e
SUPER 11
P R É - H I S T Ó R I A
O ÚLTIMO REFÚGIO
HUMANO DA ERA
GLACIAR EUROPEIA
Graças ao dente de um caçador-recoletor que viveu há 23 000 anos em Granada, Espanha,
ficou demonstrado que a Península Ibérica foi o último refúgio dos primeiros colonos da Europa
durante o período mais frio da última Idade do Gelo.
12 SUPER
A gruta de
SUPER 13
Dentes humanos descobertos na gruta de Malalmuerzo,
província de Granada. A informação genética sobre os
seres humanos pode ser extraída destes restos.
S
«Os genomas antigos permitem reconstruir migra-
ções e divisões populacionais que podem ser datadas
abemos que os primeiros Ho- através de ferramentas puramente genéticas, com base
mo sapiens que povoaram a na diversidade e nas taxas de mutação que são agora
Europa chegaram numa pri- amplamente aceites, após mais de vinte anos do geno-
meira vaga, há cerca de 45 000 ma humano», explica Carles Lalueza-Fox, especialista
anos, bem no início da última em paleogenética, investigador do Instituto de Bio-
Idade do Gelo. Durante cerca logia Evolutiva do Conselho Nacional de Investigação
de 15 000 anos, colonizaram o espanhol e diretor do Museu de Ciências Naturais de
continente sem grandes pro- Barcelona, à SUPER INTERESSANTE. «Esta aborda-
blemas. Mas entre 19 000 e gem deve ser feita em colaboração com arqueólogos,
25 000 anos atrás, tudo o que antropólogos e historiadores, no que é, sem dúvida,
restou deles foi um pequeno uma visão nova e claramente multidisciplinar do estu-
reduto no sul da Península Ibérica. do do passado», explica o especialista.
Já os ossos e os estilos tecnológicos das ferramentas
de pedra pareciam indicar aos especialistas que todo A NOSSA ESPÉCIE, O HOMO SAPIENS, NÃO FOI O PRIMEIRO SER
o sul da Europa tinha funcionado como um refúgio HUMANO A PISAR A EUROPA . Na altura em que começaram
durante o chamado Máximo Glaciar, o período mais a povoar este continente, entre 50 000 e 45 000 anos
frio da última Idade do Gelo. Mas as novas descobertas atrás, encontraram os neandertais. Já tinha havido
apontam no sentido contrário. Em particular, a análise encontros entre as duas espécies há cerca de 100 000
dos genes de um indivíduo descoberto na gruta de Ma- anos, no Médio Oriente.
lalmuerzo, na província de Granada, em Espanha. Este Mas o Homo neanderthalensis encontrava-se em
humano de há cerca de 23 000 anos é o elo que faltava grande declínio demográfico há dezenas de milhares
entre as últimas populações sobreviventes da Europa de anos, devido às duras condições climatéricas do
gelada e as que viriam a repovoar todo o continente período anterior à chegada do sapiens à Europa. O
quando o gelo recuou, há cerca de 19 000 anos. último refúgio dos neandertais, e onde acabaram por
Atualmente, graças à paleogenética, um pedaço de se extinguir há cerca de 40 000 anos, foi a Península
osso humano é suficiente para contar a história de Ibérica. E, embora a nossa espécie estivesse mais bem
um povo. Com os avanços tecnológicos, os genes que adaptada às drásticas alterações climáticas que ocor-
podem ser extraídos funcionam da mesma forma que reram durante a última Idade do Gelo, veremos que
quando um historiador descobre um livro antigo. há cerca de 20 000 anos começaria o mesmo declínio
O conjunto de genes do indivíduo a quem pertenceu que o dos neandertais na Europa, e o seu último re-
fúgio seria também a Península Ibérica. A diferença Mas o avanço dos gelos continentais, acompanhado
é que nós sobrevivemos, aí e também noutras partes de uma diminuição constante da temperatura, tornou
do mundo. o clima cada vez mais inóspito. Este facto empurrou as
Graças à arqueologia e à paleoantropologia, foram populações para sul, ao mesmo tempo que as atomi-
descobertas diferentes culturas humanas na Europa, zava em grupos isolados. Principalmente nos Balcãs a
há dezenas de milhares de anos. Cada uma com o seu leste, no sul de Itália, a oeste no sul de França e no sul
próprio estilo distinto de ferramentas de pedra, ar- da Península Ibérica.
te rupestre, esculturas em pedra e marfim, etc. Com
a ajuda de genes extraídos de ossos de todo o conti-
nente, foi possível provar a relação entre todas estas
diferentes culturas da Europa, abrangendo um perío-
do de dezenas de milhares de anos.
Estes grupos humanos que começaram a chegar ao
continente há cerca de 45 000 anos tinham o que se
chama a cultura Aurignaciana, pelo estilo de ferra-
mentas de pedra que fabricavam.
Mas há cerca de 33 000 anos começou o que é conhe-
cido como o Último Máximo Glaciar, um período de
temperaturas cada vez mais baixas e um avanço maci-
ço dos glaciares continentais.
Nessa altura, a tecnologia tinha evoluído para a cha-
mada cultura gravettiana, numa população humana
europeia altamente interligada. Um traço muito ca-
raterístico desta cultura foi a arte rupestre e o grande
número de esculturas femininas que foram feitas. A
mais famosa delas é, sem dúvida, a Vénus de Willendorf.
MUSÉE DE DOLE
SUPER 15
ASC
SUPER 17
O período conhecido como Máximo Glaciar
obrigou muitas espécies a migrarem para
regiões mais equatoriais.
AGE
«Em 2016, verificou-se que a ascendência presente maior parte da ascendência que descobrimos nas po-
num Aurignaciano de Goyet, na Bélgica, reaparecia, pulações da cultura magdalenense. O quadro ainda
embora diminuída, num indivíduo magdalenense de é confuso em muitos pormenores porque, embora
El Mirón, em Espanha, mas não estava presente nou- já tenhamos algumas centenas de genomas de toda
tras partes da Europa», contou Lalueza-Fox. «Esta a Europa, há uma grande complexidade de migra-
persistência ao longo de 20 000 anos foi muito sur- ções e mudanças que se estendem por mais de 30 000
preendente. Agora, com a análise de três indivíduos anos», conclui Lalueza-Fox. e
solutrenses, dois de Espanha e um do sudoeste de
França, datados entre 23 000 e 21 000 anos atrás, ficou
demonstrado que a ascendência goyet persistiu duran-
te o Último Máximo Glaciar.»
«As populações que sobreviveram ao Último
Máximo Glaciar na Península Ibérica repovoaram
parcialmente a Europa e, ao mesmo tempo, mistura-
ram-se com novas populações que parecem ter vindo
dos Balcãs ou do Próximo Oriente na mesma altura»,
diz o paleogeneticista. «Estas últimas constituem a
18 SUPER
CIÊNCIA DA VIDA QUOTIDIANA
A CIÊNCIA DO GUISADO
xistem vários tipos de guisa-
envolvidos na sua
cares conhecidos como oligossacarídeos preparação.
na sua casca. Se o grão-de-bico não for
demolhado na noite anterior, estes oli-
gossacarídeos chegam ao intestino grosso
sem serem digeridos corretamente, levan- parte dos diferentes guisados em certas 10) Colagénio. Durante o processo de
do à fermentação por bactérias intestinais regiões. Vou mencionar as principais pro- cozedura, ocorre também a conversão do
e à produção de gases desagradáveis. No priedades de alguns deles. colagénio, uma proteína encontrada no
entanto, quando demolhados, os oligossa- 5) Aipo. Tem um baixo teor calórico e tecido conjuntivo que dá força aos mús-
carídeos são convertidos em monossacári- uma quantidade considerável de água, culos e tendões da carne. Isto resulta
deos, que são mais fáceis de digerir. potássio e flavonóides. num aumento da elasticidade da pele e
3) Bicarbonato. Em certas regiões, o 6) Feijão verde. São uma boa fonte de dos ossos do animal, tornando a carne
teor de carbonato de cálcio da água é folatos, fenóis, vitamina C, iodo e caro- mais tenra e mais fácil de digerir.
abundante. Este cálcio interage com a tenos (compostos com atividade provita- 11) Formação de espuma. Quando se
pectina, que é um tipo de açúcar presen- mina A). cozinha a carne, forma-se frequentemen-
te nas paredes celulares das leguminosas, 7) Carne. Existem muitos tipos de car- te uma espuma que, embora não seja pre-
criando formações conhecidas como pec- ne utilizados na preparação dos diferen- judicial, muitas pessoas eliminam. Esta
tatos, que contribuem para o seu endu- tes guisados (frango, vitela, porco...). espuma deve-se a três processos: i) Uma
recimento. Se adicionarmos bicarbonato Contribuem principalmente para o seu percentagem das proteínas dissolvidas
de sódio, impedimos a formação destes sabor e aroma. na água coagula-se com o aumento da
pectatos, evitando que o grão-de-bico 8) Batata. Desempenha um papel fun- temperatura e sobe à superfície. ii) O au-
endureça. damental no guisado porque o seu amido mento da temperatura faz também com
4) É aconselhável reutilizar a água de atua como um agente espessante para o que uma parte da gordura se transforme
demolha? O grão-de-bico contém certos caldo. É aconselhável cortar a batata em em óleo. Sendo menos denso do que a
anti-nutrientes, como saponinas, taninos pedaços irregulares, com uma faca. Isto água, este óleo sobe à superfície, arras-
e fitatos, que podem afetar a digestibi- permite que a batata liberte mais amido, o tando consigo outras substâncias, como
lidade e a assimilação de muitas subs- que tornará o caldo mais encorpado e com os pigmentos do chouriço (razão pela
tâncias benéficas para a saúde. Durante um sabor mais apetitoso. qual a espuma tem, por vezes, uma tona-
o processo de demolha, uma quantidade lidade avermelhada) e as vitaminas lipos-
considerável destes • TERCEIRA ETAPA: COZINHAR solúveis. iii) Devido aos dois processos
anti-nutrientes é li- Encher uma panela com água e adicio- anteriores, o óleo envolve as proteínas
bertada na água, pelo nar o sal e os outros componentes. coaguladas, atuando como uma tábua de
que não é aconselhá- 9) Extração da água. Durante o proces- salvação e mantendo-as a flutuar sob a
vel voltar a utilizá-la. so de cozedura, que ocorre a uma tem- forma de uma espuma oleosa.
peratura ligeiramente superior a 100°C Após 45 minutos, retiramos todos os
• SEGUNDO devido à presença de sal e especiarias, ingredientes do caldo (que utilizaremos
PASSO: OUTROS ocorre uma extração em fase aquosa em para criar uma sopa com um toque cien-
POR JOSÉ MANUEL
LÓPEZ NICOLÁS INGREDIENTES que as moléculas dos ingredientes so- tífico) e procedemos à sua apresentação
Vice-reitor de Transferência
e Divulgação Científica na
Há muitos ingre- lúveis em água são transferidas para o nos pratos.
Universidade de Múrcia e
autor do blog Scientia.
dientes que fazem líquido, conferindo sabor, aroma e cor. Saúde! e
SUPER 19
B I O L O G I A E V O L U T I V A
AGE
O NOSSO
CICLO VITAL
É O QUE NOS TORNA
20 SUPER
HUMANOS
Para que um cérebro como o humano gere, armazene e processe informação de forma eficiente, é
preciso tempo. E esse tempo, o ciclo de vida da espécie, é o que nos caracteriza. As espécies mais
cerebralizadas são as que têm os ciclos de vida mais lentos. Tudo — a infância, a adolescência, a
maturidade e a velhice — seria concebido para articular a «inteligência cultural».
SUPER 21
CREDITO
AGE O cérebro humano é o órgão que requer mais
energia para crescer e se manter. Os seres
humanos são os organismos mais altamente
cerebralizados: temos um tamanho de cérebro
cinco vezes maior que o que nos corresponde.
O
ciclo de vida de cada espé- O ciclo de vida de cada espécie é a expressão de uma
cie é caracterizado pela sua trajetória adaptativa que visa afetar recursos e ener-
duração potencial e pelo gia, sempre limitados, para crescer, reproduzir-se e
número, extensão e carac- manter-se vivo. Isto é fácil de compreender se compa-
terísticas das suas fases de rarmos as estratégias de vida de uma pequena ratazana
desenvolvimento, maturida- e de um elefante africano: nos anos que uma elefanta
de e envelhecimento. O ciclo demora a ser mãe pela primeira vez (aos 13 anos), terão
de vida é o quadro que defi- nascido cerca de 80 gerações de ratazanas, o que sig-
ne e permite compreender a nifica cerca de 1030 novos membros desta espécie em
biologia de uma espécie, no- comparação com um único elefante. Dizemos que as
meadamente no caso da nossa ratazanas vivem muito «rapidamente» e os elefantes
espécie, o Homo sapiens. A muito «lentamente».
evolução das espécies deve-se à alteração dos seus
ciclos de vida ao longo do tempo, tal como proposto NO NOSSO CASO, NÃO É O TAMANHO DO NOSSO CORPO (QUE É
pelo biólogo americano John Tyler Bonner (1920-2019) MODERADO) que explica o facto de crescermos tão len-
no seu livro Size and cycle, publicado em 1965. A sua tamente e de sermos a espécie de mamíferos com
proposta central era que os organismos não são sim- vida mais longa, mas sim o nosso cérebro relativamente
plesmente «adultos», mas são ciclos de vida sobre os grande: somos o organismo mais cerebralizado.
quais a seleção natural atuou. Nós diferimos dos nos- A cerebralização é o processo de aumento do tamanho
sos parentes primatas mais próximos (as duas espécies relativo do cérebro, ou seja, em relação ao tamanho do
de chimpanzés, Pan troglodytes e Pan paniscus) em corpo de cada espécie. O que é importante não é o ta-
apenas 1% dos nossos genomas: o que nos torna ge- manho absoluto do cérebro de uma espécie (o de uma
nuinamente humanos não é essa pequena diferença baleia é maior do que o nosso), mas o tamanho real
genómica, mas a expressão diferente ao longo do nos- comparado com o que deveria ser de acordo com o seu
so ciclo de vida de genes que são comuns. tamanho corporal. No nosso caso, temos um tamanho
ASC
requer muita energia e muito tempo. A consequência
é que as espécies mais cerebralizadas têm ciclos de vi-
da mais lentos (ou mais longos) e apresentam padrões
comportamentais mais complexos de obtenção de nu-
trientes de alta qualidade para satisfazer necessidades
energéticas mais elevadas.
O melhor exemplo desta trajetória evolutiva é a nos-
sa espécie. Somos a espécie de mamíferos com maior
longevidade potencial, quer pelo prolongamento das
fases pré-reprodutivas, como da vida adulta. A escri-
tora francesa Jeanne Louise Calment, que morreu com
122 anos em 1997, detém o recorde acreditado da mais
tardia idade de morte.
Em cima, o crânio de
Dmanisi, com cerca
de 1,8 milhões de
anos, que mostra
que a longevidade já
estava presente nos
nossos
antepassados:
mostra a perda total
de dentes e um
grande desgaste
ósseo, revelando que
os humanos foram
alimentados com
comida processada.
À esquerda, a
escritora francesa
Jeanne Louise
Calment, que morreu
aos 122 anos e
detém o título de
pessoa mais longeva
da história.
SUPER 23
Um crescimento muito lento de crianças muito vulne- crânio de 650 centímetros cúbicos, D 3444) corres-
ráveis e dependentes — como é o caso da nossa espécie ponde a um indivíduo que deve ter morrido em idade
— exige adultos de vida longa e competentes, que pos- avançada, pois apresenta a perda total dos dentes e um
sam garantir um ciclo de renovação demográfica tão grande desgaste ósseo, o que prova que durante mui-
longo e precário. Um primeiro exemplo disto pode tos anos deve ter sido alimentado pelo seu grupo com
ser encontrado na população fóssil do sítio de Dmani- alimentos processados. Viver e manter a capacidade
si, na Geórgia, que é atribuída ao Homo erectus e que, cognitiva até fases avançadas permitiu à nossa espécie
com quase 1,8 milhões de anos, é a prova mais antiga e aos seus antepassados a transmissão intergeracional
da primeira saída dos nossos antepassados de África. A de informações essenciais para o grupo: a sobrevivência
mandíbula identificada como D 3900 (associada a um dos idosos pode ter sido a chave do sucesso da nossa li-
nhagem. Mas o nosso ciclo de vida caracteriza-se não só
pela sua longa duração, mas também por particularida-
des únicas (a chamada «altricialidade secundária» e o
SHUTTERSTOCK
24 SUPER
A guarda coletiva
de crianças é uma Altricialidade secundária
caraterística universal das N ós, humanos, temos uma peculiaridade muito marcante
que nos diferencia dos nossos parentes primatas: somos
«altriciais secundários», ou seja, somos recém-nascidos extre-
populações humanas, mamente dependentes. Nos mamíferos altriciais, a gestação
é muito curta, a ninhada é muito grande e os recém-nascidos
mas não existe entre são extremamente imaturos (não são capazes de ver nem de
ouvir), mas o seu ritmo de crescimento é muito rápido, pelo
os primatas que, após o desmame, passam imediatamente à idade adul-
ta. Pelo contrário, nos mamíferos precociais, a gestação é
longa, a ninhada é pequena e a descendência, plenamente
ativa após o nascimento, crescerá lentamente. Os primatas
são mamíferos precociais radicais; a nossa espécie também
o é, exceto à nascença. Porquê?
mortalidade até tempos recentes. Dado que a amamen-
Diz-se que o nascimento humano é «prematuro», mas a dura-
tação tradicional reduz a ovulação, Barry Bogin explicou
ção da gestação humana (267 dias; no chimpanzé, 228 dias)
a inserção da infância na nossa história evolutiva co-
é um mês mais longa do que seria apropriado para o nosso
mo um mecanismo adaptativo destinado a reduzir o
tamanho corporal. Além disso, em comparação com os nos-
espaçamento dos nascimentos (3,4 anos nos caçadores-
sos parentes primatas, os recém-nascidos humanos são muito
-recoletores, pelo menos metade do dos chimpanzés),
grandes em tamanho corporal (6-7% do peso materno). Mas
a fim de acelerar a rotação das gerações. Além disso, o
custo energético da lactação materna pode ser transfe- também é verdade que somos muito imaturos: nascemos com
rido para o grupo. 28% do tamanho do nosso cérebro adulto, enquanto os chim-
Mas o que é importante compreender é que este re- panzés nascem com mais de 40%.
curso evolutivo, que explica a elevada fecundidade da A altricialidade humana pode ser explicada por duas hipó-
nossa espécie apesar do nosso desenvolvimento lento, teses, não necessariamente incompatíveis. A primeira é a
só poderia ser sustentado assegurando o cuidado co- chamada «hipótese obstétrica», que propõe que a nossa al-
letivo das crianças, um traço universal nas populações tricialidade se deve à contradição evolutiva entre a adoção
humanas mas inexistente entre os nossos parentes do bipedalismo e a nossa extrema cerebralização, que surgiu
primatas, o que explica também porque somos o pri- há cerca de dois milhões de anos, com o aparecimento do
mata com a maior taxa de sobrevivência dos nossos género Homo. Nos primatas, o crescimento do cérebro é es-
descendentes até atingirem a idade reprodutiva, como sencialmente fetal.
o demonstram as sociedades de caçadores-recoletores: O bipedalismo levou a um estreitamento do canal de parto e,
60%, contra 35% nos chimpanzés. com o aumento da cerebralização, o parto ter-se-ia tornado
Depois da infância, partilhamos com todas as outras cada vez mais difícil se a gestação tivesse sido prolongada. O
espécies de mamíferos sociais o período juvenil, que é aumento do diâmetro da bacia para ajustar o processo teria
uma fase de aprendizagem social. A juventude é a fase comprometido a eficiência locomotora dos nossos antepas-
em que se estabelecem as ligações neuronais (sinapto- sados. Mas o parto humano continua a ser complicado: o feto
génese) e se dá a mielinização, um processo que, nos tem de se virar para encaixar a cabeça no canal de parto, aca-
seres humanos, termina com uma reorganização maci- bando por emergir — se tudo correr bem — de costas para a
ça do cérebro durante a adolescência. Esta é uma fase mãe. A figura da parteira pode, portanto, ser considerada co-
também exclusiva da nossa espécie que, ao prolongar- mo tendo surgido no Homo erectus, pelo menos há cerca de
-se por vários anos, atrasa ainda mais a nossa maturação um milhão e meio de anos.
sexual completa. A adolescência afeta todos os sistemas
Mais recentemente, a «Hipótese energética da gestação e
do nosso corpo (esquelético, muscular e adiposo), mas
da lactação» propõe que, à medida que a cerebralização au-
numa sequência e intensidade diferentes nos rapazes e
mentava na nossa linhagem, as fêmeas não teriam podido
nas raparigas, integrando mais cedo as jovens mulheres
satisfazer as necessidades energéticas crescentes do feto,
no mundo social da parentalidade, mas ainda sem plena
mas teriam podido fazê-lo através da lactação, que é mais
capacidade reprodutiva.
dispendiosa do ponto de vista energético para a mãe, mas
permite que o bebé mantenha o seu crescimento cerebral.
QUANDO SURGE UM CICLO DE VIDA HUMANO? Estabelecer a
velocidade de crescimento ou quantas etapas compu- A verdade é que, após o nascimento, o nosso cérebro continua
nham o ciclo de vida dos nossos antepassados é muito a crescer a uma intensidade ainda fetal (em todos os outros
mais complicado do que estabelecer as alterações ana- primatas, o crescimento abranda após o nascimento), dupli-
tómicas associadas ao aparecimento do bipedalismo ou cando ao longo do primeiro ano de vida.
das mãos capazes de fazer e manipular ferramentas, que Um bebé gasta 87% da sua taxa metabólica basal a fazer cres-
podem ser observadas nos vestígios fósseis. cer o seu cérebro nos primeiros meses de vida extra-uterina
Uma forma indireta de nos aproximar do momento (na idade adulta, gastamos 20% na sua manutenção, mais do
em que surgiu o nosso ciclo de vida é rever o processo dobro dos outros primatas). Durante os primeiros seis meses
de cerebralização na nossa linhagem Homo: à medi- de lactação, a mãe necessita de 500 quilocalorias adicionais
da que o tamanho do cérebro aumentava nos nossos por dia: o apoio do grupo à mãe neste desafio foi essencial na
antepassados, os seus ciclos de vida tinham de abran- nossa história evolutiva.
dar. Outra forma é através da análise dentária, que
SUPER 25
SHUTTERSTOCK
26 SUPER
O que nos caracteriza
enquanto espécie é a nossa
natureza biossocial.
O nosso crescimento lento e
a nossa grande plasticidade
biológica conferem-nos o
nosso potencial cognitivo
SUPER 27
ENTREVISTA
Alda
Azevedo
Pensar o futuro com base na Demografia.
ALEXANDRE GASPAR
28 SUPER
C
omo lidar com uma socieda- Por outro lado, globalmente vivemos em diferentes fases
de cada vez mais envelheci- e a diferentes ritmos: enquanto muitos países do norte do
da? Como dignificar a habi- globo estão numa fase de envelhecimento demográfico e
tação e as condições de vida? alguns até já de decréscimo populacional, muitos países
Como definir estratégias pa- do sul do globo estão agora numa fase inicial da transição
ra o futuro a partir dos da- demográfica, com fecundidades ainda muito elevadas.
dos que temos atualmente?
Falámos com Alda Azevedo, Por falar em envelhecimento demográfico, os mais re-
doutorada em Demografia centes dados apontam Portugal como o 4.º país mais
pela Universitat Autònoma envelhecido do mundo, sendo que essa tendência ape-
de Barcelona, investigado- nas deverá abrandar a partir de 2040. O que mudou nos
ra no Instituto de Ciências últimos 40 anos em termos de envelhecimento?
Sociais da Universidade de Nos Censos 1981, em Portugal, a população com 65 e mais
Lisboa e professora auxiliar convidada no ISCSP. Alda anos representava 12% da população residente. Nos Cen-
Azevedo é também membro do Conselho Diretivo da As- sos 2021, essa proporção é de 23%, ou seja, quase o dobro.
sociação de Demografia Histórica e do Conselho Fiscal da Esta mudança na estrutura etária da população residente
Associação Portuguesa de Demografia. foi gradual, mas por vezes penso que foi sendo desvalori-
O envelhecimento da população e a demografia da ha- zada. Isto porque apesar de todos os alarmes soarem não
bitação são duas das suas principais áreas de estudo, conseguimos, enquanto sociedade, prepararmo-nos pa-
acerca das quais nos dá o seu parecer nesta entrevista. ra as necessidades de uma população envelhecida.
De que forma pode a Demografia contribuir para me- A esperança de vida aumentou, mas viver mais nem
lhor prepararmos o futuro? sempre significa viver melhor...
A Demografia é a ciência da população. A preparação Sim, numa altura em que a esperança de vida à nascença
do futuro requer conhecimento dos movimentos da é, em 2021, de 78.1 anos para os homens e de 83.4 anos
população no território, da evolução da natalidade e para as mulheres, o grande desafio está em aumentar os
da mortalidade, pelo que é uma ciência com um papel anos de vida saudável, ou seja, sem limitações funcio-
fundamental. Projetar o volume e a estrutura etária da nais ou incapacidades físicas. Neste aspeto, Portugal tem
população, segundo diferentes cenários, ajuda a melhor ainda um percurso a percorrer, pois situa-se ainda abai-
informar governantes e decisores políticos sobre as ne- xo da média da união europeia: aos 65 anos, os homens
cessidades de infraestruturas e de serviços, ao nível da podem ainda esperar viver 8.4 anos sem limitações de
saúde, da educação, da habitação, por exemplo. Há toda maior (-1.1 ano), as mulheres 7.4 anos (-2.5 anos). Quer
uma alocação de recursos que, para ser eficiente e para isto dizer que apesar das mulheres viverem até mais tar-
diluir as desigualdades sociais existentes, exige um co- de, começam a sofrer de limitações de saúde mais cedo
nhecimento profundo da população e dos diferentes gru- do que os homens e que as mulheres em Portugal distam
pos populacionais que a constituem. bastante mais da média europeia do que os homens.
Em que outras temáticas da atualidade apontaria a De- Em que medida a emigração tem contribuído para o en-
mografia como fundamental? velhecimento da população?
Através da recolha, validação e integração de dados de O volume da população evolui com a combinação de
diferentes fontes e em diferentes domínios, a Demo- entradas (nascimentos e imigrantes) e as saídas (óbitos
grafia permite descrever e explicar diferentes questões e emigrantes). Quando as entradas excedem as saídas
relacionadas com as populações. A pandemia Covid-19, temos crescimento populacional, quando as saídas su-
por exemplo, mostrou-nos como o conhecimento de peram as entradas, temos um decréscimo populacional,
questões-chave, como a estrutura etária da população, como aconteceu na última década em Portugal.
as condições habitacionais, o estatuto socioeconómico Os movimentos migratórios não produziriam efeitos na
das pessoas, foi crucial para perceber o impacto desi- estrutura etária da população residente se a estrutura dos
gual que a mesma desencadeou. migrantes fosse muitíssimo semelhante à da população
Outra área fundamental prende-se com o fluxo de mi- residente. Num cenário teórico desses, as migrações in-
grantes internacionais e de refugiados, que tem aumen- terfeririam apenas no volume da população. Mas os emi-
tando, facto que tem suscitando também posições po- grantes são sobretudo jovens e adultos em idade ativa,
líticas distintas sobre o papel dos países de destino no grupo etário em que se concentra a atividade reproduti-
acolhimento destes imigrantes. va. Quer isto dizer que a saída de jovens e adultos, quan-
No contexto das alterações climáticas, um outro exem- do não compensada pelas entradas, tem um duplo efeito
plo, a Demografia pode ajudar a compreender o impac- na estrutura da população de origem: diminui a mão-de-
to da ação humana e contribuir para guiar estratégias de -obra disponível e o potencial reprodutivo da população.
desenvolvimento mais sustentável, ajudando a identificar
quais as populações mais afetadas e, por isso, as que ne- No extremo oposto, como poderíamos incentivar a re-
cessitam de mais apoio. novação de gerações através da população imigrante?
SUPER 31
S A Ú D E
O sistema de
ISTOCK
imunidade adquirida
CRISPR permite que
as bactérias se
«auto-vacinem»
como defesa contra
o ataque de vírus.
32 SUPER
Curar com
bactérias
pré-históricas
E se a cura para patologias genéticas, difíceis de combater atualmente, fosse
encontrada em bactérias pré-históricas? Cientistas espanhóis estão a estudar o
desenvolvimento de terapias experimentais para pacientes com doenças como a
ELA, o cancro ou a diabetes com base em modificações do ADN em bactérias com
idades compreendidas entre 100 milhões e 2600 milhões de anos.
SUPER 33
A
s bactérias possuem um doenças, ovelhas com melhor lã... O sistema de edi-
sistema de imunidade ad- ção genética CRISPR é, na verdade, muito simples.
quirida conhecido como As bactérias armazenam pedaços de vírus no seu
CRISPR, uma espécie de DNA para que, se forem reinfetadas mais tarde com
«autovacina» que lhes per- o mesmo vírus, o possam identificar e defender-se.
mite defenderem-se da Isto é possível graças a uma proteína (Cas9 nuclease)
infeção por vírus. Esta des- que, por meio de guias, se posiciona na parte afeta-
coberta, feita há 20 anos, da do DNA e o corta, como uma tesoura molecular.
em 2003, pelo geneticista As duas extremidades voltam a unir-se e o gene em
espanhol Francis Mojica, da questão é desativado. É um verdadeiro corta-e-cola.
Universidade de Alicante, Mas o sistema CRISPR descoberto por Mojica, e o seu
abriu a porta a um futuro desenvolvimento como ferramenta de edição de ge-
muito promissor de avanços em domínios como a nes, que valeu a Emmanuelle Charpentier e Jennifer
medicina e a biologia. Doudna o Prémio Nobel da Química em 2020, tem
O sistema CRISPR-Cas (clustered regularly spa- um inconveniente. «As ferramentas CRISPR que se
ced short palindromic repeats) pode ser utilizado destinam a ser utilizadas em terapias para muitas
para a manipulação genética de qualquer ser vivo, doenças derivam de bactérias que são patogénicas
incluindo o ser humano. Na prática, a edição do ge- para nós, porque causam infeções», explica Lluís
noma pode, no futuro, conduzir à cura de doenças Montoliú, investigador científico do CSIC e dire-
genéticas, cancro ou doenças degenerativas. Outras tor-adjunto do Centro Nacional de Biotecnologia
aplicações incluem a criação de porcos sem vírus (CBN-CSIC). Estas bactérias incluem, por exem-
para utilizar os seus órgãos em transplantes, ou a plo, o estreptococo, que causa otites ou infeções na
modificação de mosquitos que transmitem doenças garganta, e o estafilococo, a causa da maioria das
como a malária, o Zika, a febre amarela e o dengue. infeções hospitalares. Por conseguinte, é lógico que
Na agricultura, alimentos mais ricos ou melhorados, muitas pessoas infetadas por estas bactérias tenham
como o trigo sem glúten. Na pecuária, animais sem anticorpos. E também contra as proteínas CRISPR,
de modo que «se as utilizássemos universalmente,
é possível que aparecessem reações anafilácticas de
rejeição, porque o nosso sistema imunitário reagiria
Na imagem, edição do genoma utilizando e, então, seria gerado um problema adicional», diz
CRISPR, que foi concebido para reconhecer a o especialista.
sequência de DNA que se quer modificar e
introduzir um corte nessa posição. PARA RESOLVER ESTE PROBLEMA DAS BACTÉRIAS ÀS QUAIS O
SISTEMA IMUNITÁRIO REAGE, há investigadores que em-
barcam em expedições para a Antártida, o Evereste, o
deserto de Atacama, Yellowstone ou a Fossa das Maria-
nas, locais remotos onde existem microrganismos com
os quais não tivemos contacto e onde podem localizar
os seus sistemas CRISPR. Numa demonstração de cria-
tividade, um grupo de cientistas espanhóis liderado
pelo paleoenzimologista Raúl Pérez Jiménez, incluindo
a própria equipa de Montoliú, a do geneticista Francis
Mojica, especialistas do Centro de Investigación Bio-
médica en Red de Enfermedades Raras (CIBERER) e
de outras instituições, decidiu procurar bactérias de
uma forma diferente. «Não temos muito dinheiro pa-
ra este tipo de expedições, mas ocorreu-nos que, em
vez de viajarmos no espaço, podíamos viajar no tem-
po. Imaginámos que, se voltássemos atrás no tempo,
poderíamos obter sistemas CRISPR tão diferentes dos
atuais que o nosso sistema imunitário não os reconhe-
ceria», diz Montoliú.
Houve um primeiro problema técnico. Quando se quer
recuar tanto no tempo, a primeira coisa em que se pensa
é nos fósseis. Mas eles estão petrificados e isso significa
que não há DNA, por isso como é que se consegue fa-
zer a reconstrução ancestral para ressuscitar sistemas
CRISPR de há milhões de anos? Pérez-Jiménez, espe-
cialista em paleoenzimologia e bioinformática no CIC
nanoGUNE em Donosti (atualmente no CIC bioGU-
NE em Bilbao), nunca tinha trabalhado com sistemas
CRISPR. Mas em 2017, quando tudo isto se iniciou,
começou a investigar e contactou Mojica para lhe pro-
por o projeto de «ressuscitar» bactérias do passado. O
método: criá-las por computador utilizando técnicas
de bioinformática.
ASC
34 SUPER
Cientista chinês que criou
raparigas resistentes à
SIDA, varíola e cólera
O sistema CRISPR, descoberto pelo geneticista de Alican-
te Francisco Mojica, foi o primeiro passo. Os cientistas
Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna utilizaram-no para
desenvolver um método de edição do genoma, o que lhes valeu
o Prémio Nobel da Química de 2020, considerando que «esta
tecnologia revolucionou as ciências da vida molecular, proporcio-
nou novas oportunidades para o melhoramento de plantas, está a
contribuir para terapias inovadoras contra o cancro e pode realizar
o sonho de curar doenças hereditárias».
No entanto, a Academia Sueca alertou para os riscos desta ferra-
menta de edição do genoma, que pode ser utilizada para curar
doenças... ou para a engenharia genética.
A Academia advertiu que «o poder da
tesoura genética» exige regulamenta-
ção, pois esta ferramenta pode ser
utilizada para criar embriões ge-
GETTY
neticamente modificados: seres
humanos à la carte. Em 2018,
uma equipa científica chinesa
ISTOCK
afirmou ter criado os primeiros bebés geneticamente modificados com a ferramenta CRISPR: meninas gé-
meas (e uma terceira menina nascida mais tarde) às quais foi retirado o gene CCR5 com o objetivo de as
tornar resistentes ao HIV, à varíola e à cólera. He Jianku, da Universidade de Shenzhen, foi condenado a três
anos de prisão e a sanções pecuniárias. Desconhece-se o paradeiro e o estado de saúde das raparigas.
PARA RESSUSCITAR ESTES ORGANISMOS DO PASSADO, Pé- tizou-as e estudou-as. Verificou que todas elas tinham
rez-Jiménez utilizou um supercomputador e uma atividade de edição de genes. Cumpriam a hipótese de
tecnologia estatística com grande capacidade de cál- partida, tal como verificado em células humanas em
culo. «Não se ressuscita o organismo, ressuscitam-se cultura. E, evidentemente, não eram bactérias reco-
os genes ou as proteínas», sublinha. Há muita infor- nhecidas pelo sistema imunitário atual.
mação em bases de dados que sequenciam proteínas e
genes de milhares de organismos, até mesmo genomas BACTÉRIAS VERSUS VÍRUS. Os resultados desta investi-
completos. «É possível pegar nessa informação e, com gação, publicados na revista Nature Microbiology em
um estudo comparativo, fazer uma árvore filogené- janeiro deste ano, mostraram também que a antiga
tica. Da mesma forma que se faz para as famílias de luta entre bactérias e vírus se tornou mais especiali-
proteínas», diz. zada ao longo de milhares de milhões de anos. Isto é
Não há registo de bactérias de há milhares de milhões conhecido porque os sistemas CRISPR destes micror-
de anos, «mas começámos com um grupo de bactérias ganismos do passado e do presente são semelhantes,
atuais cujo sistema CRISPR conhecíamos, demos ao mas não são os mesmos. Os mais semelhantes são os
computador e pedimos-lhe que procurasse as relações mais recentes, os de há 37 milhões de anos. Pode pare-
entre elas e os antepassados que explicassem a variabi- cer que foi há muito tempo, mas em termos evolutivos
lidade atual; e, quando as encontrasse, que procurasse não é, uma vez que as bactérias mais antigas datam de
os antepassados dos antepassados», explica Montoliú. há 3500 milhões de anos, mas à medida que recuamos
Como se tivéssemos genes de uma família e de outra e, no tempo, comparando os sistemas CRISPR das bac-
comparando-os, pudéssemos obter informações sobre térias com os de há 2600 milhões de anos, continuam
os seus avós, bisavós, trisavós... a ser semelhantes, mas tornam-se mais rudimentares.
A equipa de investigação realizou uma reconstrução As bactérias utilizam estes sistemas CRISPR para se
informática das sequências CRISPR ancestrais de há defenderem contra os vírus. Mas os vírus, por sua vez,
37, 137, 200, 1000 e até 2400 milhões de anos, sinte- desenvolvem sistemas para impedir que as bactérias
MORELL / EFE
Para Orzáez, «estamos a perder oportunidades» para do CRISPR.
outros países como os Estados Unidos, grande parte da
América do Sul e países asiáticos como a Índia, Coreia,
Japão e China, onde a legislação não restringe a co-
mercialização de produtos com o genoma editado por
CRISPR. «Competitivamente, vamos perder músculo cien- os destruam. Há milhares de milhões de anos que se
tífico e tecnológico. Já estamos atrasados, mesmo que a trava uma luta constante entre ambos.» Se recuarmos
situação se altere, apesar de estarmos a tentar acompa- até à origem da vida, se as primeiras células surgiram
nhar tecnologicamente. Mas se não houver uma empresa há 3500 milhões de anos, então, antes das molécu-
que possa comprar as variedades e comercializá-las, não las genéticas de duas cadeias, surgiram as moléculas
há investimento do setor privado e não podemos avançar de cadeia simples. E se o mundo original era feito de
na investigação, porque dependemos apenas da investi- cadeias genéticas de cadeia simples, os vírus também
gação pública», salienta Orzáez. o eram. Portanto, os sistemas CRISPR devem ter-se
«Estamos a jogar muito», adverte, «porque consoante a especializado em cortar moléculas de cadeia simples,
porta se abra mais estreitamente ou mais amplamente, is- mas não as de cadeia dupla», diz Montoliú. O estu-
so permitir-nos-á avançar ou não». «As pessoas mudam, do efetuado por estes investigadores confirmou este
a composição social muda, a nossa população é mais facto. Tanto as bactérias com 2600 milhões de anos
velha e podemos dar-lhes uma dieta mais direcionada e como as com mil milhões de anos tinham atividade
personalizada», diz. Em todo o caso, já existem iniciativas compatível com o corte de moléculas de DNA e RNA
legislativas com o objetivo de modificar a regulamenta- de cadeia simples. Mas as bactérias mais recentes
ção, «e a presidência espanhola do Conselho da UE é um cortavam preferencialmente cadeias duplas de DNA,
momento crucial», afirma Orzáez. como as bactérias atuais.
Miguel Angel Moreno, chefe do Serviço de Genética
do Hospital Ramón y Cajal e investigador do CIBERER,
salienta num comunicado do CSIC que «a ingenuida-
de que pode ter tido uma nuclease ancestral, ao não
reconhecer tão especificamente certas regiões do
genoma, torna-a uma ferramenta mais versátil para
corrigir mutações que até agora não eram editáveis ou
eram corrigidas de forma ineficaz».
Nas bactérias mais antigas, «as enzimas já não são tão
específicas e tão bem organizadas, mas muito mais
anárquicas e mais flexíveis. Não existem os constran-
gimentos moleculares dos sistemas atuais, que são a
base da sua utilização. E isso torna-a muito interes-
sante, porque essas restrições moleculares impõem
SHUTTERSTOCK
36 SUPER
A edição genómica é uma tecnologia relativamente
barata e acessível a pequenos laboratórios e empresas
SUPER 37
MASS MEDIA
SHUTTERSTOCK
38 SUPER
A INVASÃO DAS
FAKE NEWS
PODEMOS DEFENDER-NOS DA
INFORMAÇÃO FALSA E INTERESSEIRA?
O fluxo avassalador de informação que recebemos expõe-nos também ao
risco de sermos vítimas de notícias de origem duvidosa e de intenções
ainda mais incertas. O objetivo é a manipulação e a desinformação, mas
temos à nossa disposição sistemas e ferramentas que nos permitem
detetar e protegermo-nos delas e dos seus criadores.
SUPER 39
H
á um sentimento comum de que uma parte da aristocracia romana começou a res-
que a desinformação, a pro- ponsabilizar o imperador Nero pelo incêndio e pelas
pagação contínua de notícias suas consequências. Diz-se que, em resposta a estes
falsas através das diferentes rumores, agentes do próprio imperador começaram a
redes sociais, mas também espalhar o boato de que os cristãos eram os culpados
através dos meios de comu- pelo incêndio, e a primeira perseguição a este grupo
nicação social tradicionais, é baseou-se nestes rumores e no estado de alarme que
um mal endémico dos nossos deles resultou.
tempos. De acordo com o úl- Toni Aira recorda que, no primeiro terço do século
timo Eurobarómetro, um em passado, Edward Bernays (1891-1995) publicou Pro-
cada quatro cidadãos afirma paganda, um relato das experiências de quem pôs
que todos os dias se depara em prática diferentes estratégias de comunicação
com notícias ou informações que não só distorcem a dirigidas ao grande público para atingir objetivos es-
realidade como, em muitos casos, são mesmo com- pecíficos e pré-definidos. Bernays, considerado o pai
pletamente falsas. Mais de metade dos cidadãos tem das relações públicas, definiu a propaganda como a
dificuldade em separar as notícias falsas das informa- «tentativa consistente e duradoura de criar ou moldar
ções verdadeiras. Por conseguinte, oito em cada dez conhecimentos com o objetivo de influenciar as rela-
cidadãos consideram que esta desinformação é algo ções do público com uma empresa, ideia ou grupo».
que põe seriamente em perigo o sistema democrático e É verdade que, na primeira metade do século XX,
a credibilidade das instituições. quando Bernays expôs as suas teorias ou quando,
alguns anos mais tarde, os princípios da propagan-
PODE PENSAR-SE QUE O FENÓMENO DA DESINFORMAÇÃO É UMA da articulados por Joseph Goebbels começaram a ser
CRIAÇÃO RECENTE, mas isso é algo que Toni Aira, Pro- postos em prática, os meios de comunicação mais
fessor de Comunicação Política na Escola de Gestão
da UPF Barcelona, nega categoricamente. «Por muito
que nos queiram fazer crer, a desinformação tem feito
parte da vida humana. Sempre existiu». O professor
recorda o caso de Nero e o incêndio de Roma, quan- A desinformação
do numa noite de verão do ano 64, quatro dos catorze
bairros da Cidade Eterna foram arrasados pelas cha- sempre fez parte da
mas e outros sete foram gravemente afetados. Eis os
factos sobre os quais as diferentes fontes históricas es- vida humana,
tão de acordo. Uma das versões mais difundidas do que
aconteceu nos dias que se seguiram ao incêndio afirma sempre existiu
plataformas de propaganda.
40 SUPER
«Não verá isto
nos meios de
comunicação social»
E sta é provavelmente uma das frases mais repetidas por
aqueles que tentam, de forma grosseira, fazer com que infor-
mações de pouca ou nenhuma veracidade se tornem virais. Clara
Jiménez Cruz, rindo, afirma que «este é um dos indicadores mais
claros de que estamos a lidar com notícias falsas». Uma afirma-
ção que Toni Aira também corrobora, acrescentando o «elemento
conspiratório» desta informação. «É absurdo pensar que, dada a
diversidade de interesses e ideologias de cada um dos diferentes
GTRES
SUPER 41
Os jovens têm
preferência em aceder a
conteúdos de atualidade
SHUTTERSTOCK
através de diferentes
redes sociais.
dos mais velhos, e que os membros deste setor jovem este comportamento não seja exclusivo deles, tendem
fizeram dos telemóveis e das redes sociais o seu meio a demonstrar maior confiança em fontes e conteúdos
preferido para se informarem sobre a atualidade, par- de fiabilidade duvidosa do que em notícias provenien-
tilharem notícias e participarem, à sua maneira, no tes de meios de comunicação convencionais, sejam
debate público». eles tradicionais (imprensa, rádio, televisão) ou cria-
O elevado nível de participação dos jovens em dos especialmente para a esfera digital.
diferentes redes sociais faz com que se tornem,
conscientemente ou não, elementos essenciais na NOS ÚLTIMOS ANOS, TÊM SIDO REALIZADOS VÁRIOS ESTUDOS e
propagação de notícias falsas. Normalmente, se um análises sobre a perceção dos jovens em relação às fake
determinado conteúdo consegue captar a atenção de news e o seu comportamento face às mesmas.
um jovem utilizador, é imediatamente reencaminhado São vários os fatores que fazem disparar o alarme
para um grande número dos seus contactos, na maio- de um jovem leitor de conteúdos de que o que está a
ria dos casos sem que estes tenham parado por um ler pode ser uma informação falsa: títulos demasiado
momento para verificar a fiabilidade da informação atrativos, conteúdo surpreendente no meio de onde
contida no conteúdo. Além disso, os jovens, embora provém a informação ou falta de coerência lógica no
conteúdo da suposta informação. Quando os jovens
utilizadores suspeitam que o que estão a ler é de veraci-
dade duvidosa, tendem a rejeitá-lo, embora o número
daqueles que continuam a partilhar conteúdos sus-
peitos seja considerável e apenas uma pequena fração
deles tente verificar o conteúdo utilizando alguns dos
serviços de verificação de factos ou diferentes ferra-
mentas de verificação disponíveis online. No entanto,
mais de 60 % dos utilizadores das redes sociais não
têm conhecimento destes serviços e ferramentas.
Para Clara Jimenez Cruz, co-fundadora e CEO da
maldita.es, a principal forma de detetar notícias fal-
sas é a educação. É importante saber, por exemplo,
que «os jornalistas adoram investigar os exclusivos de
outros em busca de novas informações», diz ela, e é
por isso que «as notícias verdadeiras tendem a apare-
cer em mais do que um meio de comunicação». Mas
quando uma suposta notícia se reflete em nada mais
do que algo que tenta parecer um meio de comunica-
SHUTTERSTOCK
42 SUPER
Mais de 60% dos utilizadores
das redes sociais não têm
conhecimento dos serviços
de verificação
SHUTTERSTOCK
aos nossos telemóveis: «é muito fácil verificar foto-
grafias e vídeos com ferramentas muito simples que
estão ao alcance de qualquer pessoa e são muito fáceis
de utilizar».
Toni Aira, por seu lado, acrescenta uma chave pa-
Algumas ferramentas
ra detetar informações falsas, e é tão simples como
«não tomar nada como garantido, tentar verificar
para verificar
com fontes de referência, que são conhecidas pela sua
exaustividade e pelo rigor com que tratam a informa-
informações duvidosas
ção, o conteúdo que nos parece duvidoso». O professor
da Universidade Pompeu Fabra é um fervoroso adepto Trusted News: é uma extensão para o navegador Chrome que
de «quebrar a nossa própria bolha, tentando procurar classifica o sítio Web de onde provém a imagem, dizendo-nos se
informação para além do que gostamos». é um sítio satírico, desconhecido, não fiável, malicioso...
Em março passado, na prestigiada revista Scientific Wolfram Alpha: muitas vezes somos confrontados com
American, depois de estabelecer semelhanças entre o imagens de um local desconhecido. Este motor de busca for-
comportamento de propagação das fake news e o dos nece-nos informações sobre o tempo num determinado local
vírus geradores de doenças, questionou-se sobre a num determinado dia e verifica se essas informações corres-
possibilidade de criar uma vacina psicológica contra a pondem à imagem que queremos verificar.
desinformação. Sander van der Linden, psicólogo so- Jeffrey’s Exif Viewer: é comum ilustrar notícias falsas com ima-
cial da Universidade de Cambridge, e a sua equipa, em gens tiradas noutro momento ou local, esta ferramenta acede
colaboração com a Google, criaram uma série de ví- aos metadados da imagem para sabermos a data em que foi ti-
deos «para sensibilizar as pessoas para as técnicas de rada e até os seus dados de geolocalização.
manipulação mais utilizadas no YouTube». Os vídeos TinyEye: outro motor de busca especializado que nos informa
(https://www.youtube.com/@infointerventions), que de todos os sítios Web onde a imagem sobre a qual temos dúvi-
são muito curtos, mostram pequenas cenas de manipu- das foi publicada anteriormente.
lação retiradas de Os Simpsons, Star Wars, South Park InVID: uma das ferramentas de verificação de vídeo mais popu-
ou Family Guy. O objetivo destes exemplos é ensinar os lares que permite verificar facilmente o contexto e a veracidade
espectadores a detetar estas técnicas de manipulação, de um vídeo e se este pode estar a violar os direitos de autor
para que as possam identificar quando as virem e, as- dessas imagens.
sim, imunizarem-se contra a possível «infeção». e
SUPER 43
PSICOLOGIA
Vingar-se é
humano e
compreensível,
mas, a longo
prazo, não faz
desaparecer a dor
da afronta. Para
Einstein, «... as
SHUTTERSTOCK
pessoas
inteligentes
ignoram».
44 SUPER
VINGANÇA
A PSICOLOGIA DO OLHO POR OLHO
Sempre existiu entre nós e também noutras espécies animais. Embora seja mal vista, nos
seres humanos existe uma ideia subjacente de que é lógico que aqueles que nos fizeram
algo de mau paguem por isso e sofram a mesma dor que nos infligiram. Mas se o mal já
foi feito, se não há volta atrás, o que é que se alcança com a vingança?
O
desejo de vingança é um fe- mas são pensamentos dirigidos pelo medo de ficar nu-
nómeno que sempre fez parte ma situação vulnerável que se transformam em raiva e
do comportamento humano. ódio, por isso é um comportamento impulsivo, visceral,
Em todas as sociedades, as emocional, mas disfarçado de racional», adverte María
pessoas compreendem a ideia Ibáñez, codiretora do Centro de Psicologia e Introspe-
de se zangarem e de terem o ção de Madrid.
desejo de magoar alguém que Consideremos ainda que a vingança não é necessa-
nos magoou, segundo Michael riamente um ato violento. Pode ser executada de outras
McCullough, um psicólogo formas: ignorando alguém, menosprezando-o subtil-
evolutivo da Universidade de mente, fazendo-o confundir-se com uma mentira...
Miami que estuda a vingança há até atos de vingança psicológica que só têm lugar
há mais de quinze anos. na mente do vingador, imaginando que algo está erra-
Estamos biologicamente programados para a vingan- do com a outra pessoa ou desejando-lhe mal. «Todos
ça, porque é uma forma de manter a coesão social desde eles são prejudiciais, tanto mais quanto maior for o ódio
as nossas origens. Para não falar da difusão cultural. com que são praticados. Por outras palavras, é mais
Do Corão à Bíblia, todas as religiões usam histórias de prejudicial sentir um forte desejo de que alguém sofra
vingança para exemplificar o castigo por ações negati- do que partir-lhe o telemóvel num ato impulsivo mo-
vas. Há o famoso «olho por olho, dente por dente» do mentâneo», diz Ibáñez.
Código de Hamurabi, a Lei de Talião, que diz que «se O impulso para se vingar tem origem no sentimento
um homem livre ferir ou vazar o olho de outro homem de ser um perdedor ou de se sentir inferior em algu-
livre, este fará o mesmo». E na sua Summa Theologi- ma situação. «O equívoco subjacente, consciente ou
ca, Tomás de Aquino considera a vingança como uma não, é que, ao fazer a outra pessoa «pagar» pelo que
virtude que se situa a meio caminho entre dois vícios:
a crueldade, por excesso, e a relutância em punir, por
defeito. Assim, culturalmente, tem sido aceite que os
seres humanos queiram agir quando há um ataque, e o
socialmente razoável é saber que haverá consequências
Estamos biologicamente
para aqueles que se comportam mal, porque isso ajuda
a desenvolver um comportamento bondoso.
preparados para a vingança
Assim sendo, podemos concluir que a vingança é um
comportamento racional e lógico? Nem uma coisa nem porque tem sido uma forma
outra, segundo os especialistas em psicologia. «Pode
parecer racional porque é elaborada pelo pensamento, de manter a coesão social
SUPER 45
ISTOCK
O primeiro gatilho
para o sentimento
de vingança é o
medo, que
rapidamente se
transforma em
raiva, ódio e
pensamentos que
justificam a ação
para reparar a
injustiça.
fez, ou seja, ao fazê-la sofrer de alguma forma, a sua equiparado», diz Dafne Cataluña, fundadora do Insti-
inferioridade é restaurada; o ofendido e o agressor su- tuto Europeu de Psicologia Positiva.
postamente igualam-se. É um auto-engano que não Neste sentido, a ideia de injustiça é utilizada para jus-
resolve nada, mas aumenta a raiva e o ódio», acrescenta tificar o ódio e para poder magoar o outro sem se sentir
o especialista. culpado ou má pessoa. «Com a ideia de injustiça, es-
sa pessoa sente-se vítima e, mesmo que o outro tenha
AS EMOÇÕES POR DETRÁS DA VINGANÇA SÃO SEMPRE NEGATI- agido mal, o estatuto de vítima justifica que se torne
VAS: cólera, raiva, ira, ódio, fúria, ressentimento e, no num carrasco. Espera-se que a outra pessoa, ao sofrer,
pior dos casos, agressividade... Mas o primeiro gatilho desista de magoar ou prejudicar novamente a primeira.
para todas estas emoções é, na verdade, o medo. «O O que geralmente acontece é que a pessoa que recebe a
medo de se sentir desvalorizado, de ser prejudicado de vingança também a vê como injusta, e isso converte-se
alguma forma, de ser prejudicado emocionalmente, de numa escalada», diz Ibáñez.
ter a sua imagem prejudicada... O medo transforma-se
rapidamente em ódio, raiva e pensamentos como «eu O SER HUMANO DISPÕE, PORTANTO, DE MECANISMOS PSICOLÓ-
não mereço», «isto é injusto», «tem de pagar por isto, GICOS DESTINADOS A PROCURAR A PUNIÇÃO daqueles que nos
assim aprenderá», explica o psicólogo Jesús Jiménez, prejudicam. O sentimento de vingança é ativado na in-
co-diretor do Centro de Psicologia e Introspeção. fância, por volta dos seis anos de idade, quando somos
O que é que o vingador procura? Restaurar a justiça? capazes de fazer uma leitura mais social e complexa das
Estabelecer limites? Enviar uma mensagem? «Normal- relações. Todos os seres humanos têm um passado de
mente, para provar a si próprio que sabe estabelecer sentimento de vingança e uma disposição para a pro-
limites para garantir que não volta a ser enganado. Mas curar. «Este sentimento está em nós como a bondade,
há uma diferença entre limites assertivos e retaliação. a raiva, a alegria, a nostalgia... como todos os outros, e
Os limites assertivos procuram pôr fim a um compor- todos eles têm uma carga genética associada que, depen-
tamento que nos magoa sem magoar a outra pessoa, dendo do ambiente em que a pessoa se desenvolve, acaba
enquanto a vingança se baseia na ideia de um dano por se desenvolver mais ou menos», explica Cataluña,
ISTOCK
foi enquadrada na teoria schadenfreude, um conceito consegue psicologicamente
alemão que implica regozijar-se com o mal estar de uma com a vingança, quando o
pessoa de que não se gosta, e concluiu que é possível que mal já foi feito e não é
o desejo de vingança faça parte da herança evolutiva da reversível?
nossa espécie.
A equipa de Bueno-Guerra realizou uma série de ex-
periências com crianças de quatro a seis anos e com
chimpanzés. Apresentaram-lhes um indivíduo pró-so-
cial que lhes dava brinquedos e comida, e um indivíduo
antissocial que os tirava (nas crianças isto era feito com
fantoches). Depois, um terceiro indivíduo batia separa-
damente em cada um dos indivíduos acima referidos.
A certa altura, o castigo deixava de ser visível (no caso
das crianças, os fantoches desapareciam atrás de uma
cortina e, no caso dos chimpanzés, os experimenta-
dores deslocavam-se para um local da sala de onde já
não se via a ação). Se os chimpanzés e as crianças es-
tivessem motivados para ver a pessoa antissocial ser
castigada, desejariam que a cortina se abrisse ou que
tivessem acesso à parte da sala para onde a ação tinha
sido deslocada, ao passo que desejariam o contrário se
o ator fosse o pró-social. Em ambos os casos, os sujeitos
O ser humano sente
pagavam um custo para assistir à cena (moedas no caso
prazer em ver como
das crianças e o esforço físico de abrir a porta no caso recebem o castigo
dos chimpanzés). aqueles que lhe
fizeram mal, mas
OS SERES HUMANOS E OS CHIMPANZÉS PARTILHAM O INTERESSE também quando não
EM VER ALGUÉM QUE JÁ LHES FEZ MAL SER CASTIGADO. Foi is- o prejudicaram
to que o estudo constatou. No entanto, os chimpanzés pessoalmente.
SUPER 47
A vingança e a agressividade melhoram o humor, mas a raiva
também aumenta a frustração porque a pessoa entra num
círculo vicioso de emoções negativas
O estudo de 2017 Combating the sting of rejection ção tinha sido avaliada negativamente. A investigação
with the pleasure of revenge: A new look at how emo- concluiu, assim, que a vingança desempenha um papel
tion shapes aggression, realizado na Universidade de importante e ativo na reparação do humor.
Kentucky, concluiu que, por vezes, a vingança pode No entanto, nem tudo é preto e branco. O estudo The
ser doce. Os investigadores David Chester e C. Nathan Paradoxical Consequences of Revenge, publicado em
DeWall contaram com mais de 1700 participantes em 2007 no Journal of Personality and Social Psycholo-
diferentes experiências. Numa delas, foi-lhes pedido gy, concluiu que a principal emoção que prevalece nos
que jogassem um jogo de vídeo em que alguns experi- indivíduos que procuram vingança é a raiva, e esta au-
mentavam rejeição porque a bola não lhes era passada. menta a frustração, porque a pessoa entra num círculo
Quando terminaram, foi-lhes pedido que a descar- vicioso dominado por emoções negativas.
regassem num boneco de vudu, decidindo quantas
agulhas lhe espetar. A conclusão foi que o sentimento NO VINGADOR, HÁ UMA EXPERIÊNCIA INICIAL DE GLÓRIA, DE
de rejeição desencadeia a necessidade de restaurar o REPARAÇÃO DO DANO, ATÉ DE PRAZER, DE FACTO. «Mas, pas-
equilíbrio emocional com excesso de agressividade, o sado pouco tempo, apercebemo-nos de que esse facto
que melhora o humor. não alterou verdadeiramente a experiência da nossa
Noutro teste, foi pedido aos participantes que es- própria dor, nem as suas consequências. Por exemplo,
crevessem um ensaio, que foi depois entregue a outro no meu caso, trabalho muito com mulheres que foram
participante para o avaliar. Mais uma vez, foi-lhes da- abusadas sexualmente na infância. Quando a pessoa
do um boneco de vudu para reagirem às classificações que as agrediu morre ou sofre por algum motivo, elas
que lhes tinham sido atribuídas. O comportamento apercebem-se de que a sua dor continua a existir, inde-
agressivo (espetar muitas agulhas no boneco) reduziu pendentemente da dor que o agressor sinta agora», diz
a sensação de desconforto entre os sujeitos cuja reda- Dafne Cataluña.
ISTOCK
Embora no
vingador haja
uma experiência
de glória, de
consolação e de
reparação do
dano, a dor está
sempre presente,
não muda nem
desaparece.
48 SUPER
SHUTTERSTOC
Histórias de vingança
O desejo de vingança é omnipresente
na cultura e tem sido um tema recor-
rente em livros, obras de arte e guiões de
Dick de Herman Melville, Ligações Perigo-
sas de Choderlos de Laclos, Crónica de
uma Morte Anunciada de Gabriel García
origem a um dos filmes clássicos em que
a Lei de Talião é a protagonista. Desafio,
retribuição e vingança são os enredos de
filmes de renome universal. Márquez, Carrie de Stephen King e Os Ho- longas-metragens como Revenge, Unfor-
A literatura está repleta de exemplos, des- mens que Não Amavam as Mulheres de given, Braveheart, Kill Bill, The Revenant e
de Hamlet de William Shakespeare, um Stieg Larsson. uma grande parte da filmografia de Liam
compêndio de vingança, até O Conde de Foi precisamente outro romance sobre vin- Neeson, o vingador cinematográfico por
Monte Cristo de Alexandre Dumas, Moby gança, O Padrinho de Mario Puzo, que deu excelência.
Uma vez consumada a vingança, consoante a perso- PERFIS VINGATIVOS, PESSOAS NARCISISTAS. «Os fracos vin-
nalidade de cada indivíduo, surgem emoções diferentes. gam-se; os fortes perdoam. As pessoas inteligentes
«Em todo o caso, o suposto prazer é semelhante ao de ignoram». Esta citação de Albert Einstein implica que a
uma droga, produz uma sensação passageira com con- vingança é uma emoção que é vivida de forma diferen-
sequências negativas posteriores. Para uma pessoa mais te consoante o perfil de cada indivíduo. Há, portanto,
primitiva, o ódio levá-la-á a sentir-se satisfeita, res- personalidades mais propensas a serem vingativas que
taurada pela vingança, sentirá até um certo prazer em estão geralmente associadas a pessoas com menos em-
prejudicar o outro, uma sensação de poder que a fará patia, «menos compassivas, porque sentir a dor dos
acreditar que está mais segura. Na realidade, está a fazer outros é um grande dissuasor». Entre os diagnósticos
crescer dentro de si a raiva, o ódio, a insensibilidade, mais frequentes estão as perturbações de personalidade
um estado de guerra com os outros... e tudo isto o vai antissocial, as perturbações narcísicas e alguns jovens
isolar psicologicamente, o que o vai fazer sofrer», sa- com perturbações de comportamento disruptivo», diz
lienta María Ibáñez. o fundador do Instituto Europeu de Psicologia Positiva.
Por outro lado, uma pessoa mais evoluída sentirá Os perfis propensos à vingança incluem pessoas «que
arrependimento, culpa, vergonha... «Embora num formaram uma autoimagem de serem fortes, valiosas,
primeiro momento possa sentir-se mais ou menos mas que na realidade escondem uma realidade interna
satisfeita ou aliviada por ter castigado a outra pessoa, de insegurança, vulnerabilidade, medo, e por isso têm
não estará completamente tranquila, porque percebe muito medo de serem rotuladas como fracas ou serem
que esse estado vingativo também a faz sentir-se mal. menosprezadas... Este tipo de pessoa é vulnerável aos
Quando se compreende que a vingança nos prejudica, seus próprios medos transformados em vingança e
promove-se a inteligência e aumenta-se a capacida- ódio. Não sabe como se proteger, mas defende-se ata-
de de procurar e encontrar soluções que realmente cando, quer o demonstre ou não, e por isso prejudica-se
nos protejam e não nos prejudiquem», salienta Jesús a si próprio», conclui o codiretor do Centro de Psicolo-
Ibáñez. gia e Introspeção. e
SUPER 49
C É R E B R O
COMO
FUNCIONA
A MENTE
O cérebro é a matéria mais complexa e fascinante do
universo e ainda temos muito a descobrir sobre ele. Mas
a cognição não se limita apenas ao cérebro; engloba
outros órgãos, como o intestino, e está intimamente
ligada ao ambiente.
50 SUPER
O nosso cérebro
ISTOCK
continua a ser, apesar
de tudo o que se sabe,
um grande mistério.
Possuímos capacidades
inatas, mas também
precisamos do
ambiente para
desenvolver
mecanismos de
resposta.
SUPER 51
A estrutura do
cérebro é tão
complexa que foram
recentemente
descobertas quase
cem novas áreas,
SHUTTERSTOCK
nunca antes
descritas.
N
ão há nada como dar a conhe- que, ainda hoje, continuamos a descobrir novas re-
cer de relance alguns números giões anatómicas. Por exemplo, um estudo liderado
sobre o cérebro humano para por Matthew Glasser, publicado na Nature em 2016,
compreender a sua vastidão, a fez um mapeamento mais preciso, acrescentando 97
sua densidade e, sobretudo, a novas áreas às 83 já descritas. Ou seja, ainda em 2016,
sua insondável complexidade: existiam quase 100 áreas que nunca tinham sido des-
uma massa de 1,5 kg alberga na- critas, apesar de apresentarem claras diferenças de
da menos que 86 mil milhões de estrutura, função e conetividade com as suas vizinhas.
neurónios. Por outras palavras,
um único fragmento de cérebro O NOSSO CÉREBRO NEM SEMPRE FOI A PEÇA DE MATÉRIA MAIS
do tamanho de um grão de areia INTRINCADA E MISTERIOSA QUE CONHECEMOS. O Ardipi-
contém até 100 000 neurónios. Além disso, entre todos thecus é provavelmente um dos nossos antepassados
estes neurónios existe uma constelação inextricável de mais antigos e tinha um crânio pequeno, com cerca
10 triliões de sinapses, estruturas especializadas que de 350 cm3 (a nossa espécie, Homo sapiens, tem en-
lhes permitem comunicar entre si. Desta forma, os tre 1300 e 1800 cm3). Assim, nos últimos seis milhões
neurónios ligam-se uns aos outros ou, como disse o de anos, o nosso cérebro triplicou ou mesmo quadru-
Prémio Nobel Ramón y Cajal, apertam as mãos. plicou de tamanho, embora a sua transformação mais
Com estes números, não é surpreendente constatar significativa tenha ocorrido entre 200 000 e 800 000
que a extraordinária atividade metabólica do cérebro anos atrás.
o obriga a consumir 20 % da energia do organismo, Vários fatores favoreceram este crescimento desen-
embora constitua apenas 2 % da sua massa. No en- freado, permitindo assim um maior desenvolvimento
tanto, dada a sua enorme complexidade, é um órgão cognitivo, bem como competências mais avançadas.
extraordinariamente eficiente, sendo o seu consumo Em primeiro lugar, o bipedalismo, a capacidade de
comparável ao de uma lâmpada de 20 watts. andar sobre duas pernas, libertou as mãos para tare-
De facto, o cérebro é tão incrivelmente complexo fas mais complexas e precisas, como a utilização de
52 SUPER
A complexidade das interações sociais favoreceu o
desenvolvimento de competências cognitivas avançadas,
como a teoria da mente, a empatia e a resolução de conflitos
AGE
eficazmente. A complexidade das interações sociais
favoreceu assim o desenvolvimento de competên-
cias cognitivas avançadas, como a teoria da mente, a
empatia e a resolução de conflitos. Para além disso, a o que aumentou ainda mais a inteligência humana.
capacidade de persuadir, manipular, elogiar, narrar e Por último, a seleção sexual pode ter favorecido a
entreter (com o benefício social inerente) impulsionou inteligência como uma caraterística atraente para os
o desenvolvimento do cérebro e a capacidade de falar parceiros, levando a um aumento da inteligência geral
e raciocinar. da população ao longo do tempo. Talvez estes cére-
Também a linguagem, a cultura e a transmissão de bros sofisticados albergassem qualidades importantes
conhecimentos melhoraram a capacidade dos seres relacionadas com a proteção e a parentalidade, e os
humanos para resolver problemas, planear e cooperar, potenciais parceiros pudessem inferir essas qualidades
SUPER 53
Os bebés humanos
nascem com um cérebro
ainda em desenvolvimento
e, durante os primeiros
anos de vida, formam-se
700 novas ligações
neuronais por segundo.
SHUTTERSTOCK
através de atributos discerníveis, como a inteligência, muitos mais até conseguirem obter alimentos por si
a expressão verbal, o raciocínio rápido ou o sentido de próprios para sobreviver.
humor. Perante estes desafios, o que é que impulsionou o
desenvolvimento inicial do cérebro humano? No seu
PORQUE É QUE OUTRAS ESPÉCIES NÃO DESENVOLVERAM CÉ- livro A Jornada da Humanidade (Lua de Papel, 2022),
REBROS SEMELHANTES ao longo de milhões de anos de Oded Galor resume-o numa palavra: flexibilidade. O
evolução? Muitas espécies foram capazes de sobreviver nosso cérebro é um fardo em muitos sentidos, mas
durante milhões de anos com cérebros muito menos é também um órgão que se adapta facilmente a am-
complexos. Existem até criaturas que não utilizam bientes em mudança. Não é por acaso que, durante os
um único neurónio para conseguir o que nós fazemos primeiros anos de vida, se formam cerca de 700 novas
(sobreviver e reproduzir-se), que nos ultrapassam em ligações neuronais por segundo no cérebro humano
número e que estão neste planeta há milhões de anos em desenvolvimento. E estes neurónios ligam-se de
mais do que nós, como é o caso das bactérias. uma forma ou de outra, dependendo do ambiente.
Ter um cérebro grande e complexo acarreta uma De acordo com esta perspetiva, uma vantagem única
série de desvantagens. A primeira é o seu elevado do cérebro humano é a sua capacidade de aprender efi-
consumo de energia, como já foi referido. O segundo cientemente com a experiência dos outros, facilitando
desafio é que o seu tamanho considerável dificulta a a aquisição de hábitos e preferências que impulsio-
passagem da cabeça do bebé pelo canal de parto. Co- nam a sobrevivência em diferentes ambientes, sem
mo resultado, o cérebro humano é mais compacto ou depender do processo muito mais lento de adaptação
«dobrado» do que o de outras espécies, e os bebés biológica.
humanos nascem com um cérebro ainda em desen- É certo que uma bactéria pode seguir os nutrientes
volvimento que requer anos de adaptação para atingir próximos sem a utilização de neurónios, porque foi
a maturidade. Isto significa que os recém-nascidos programada para os perseguir e evitar moléculas ine-
humanos são vulneráveis: enquanto as crias de ou- ficazes ou prejudiciais. É a composição bioquímica da
tras espécies podem andar e procurar alimentos logo bactéria que determina se ela vai ou não absorver uma
após o nascimento, os seres humanos demoram al- molécula no seu ambiente. No caso de um mamífero,
guns anos a atingir uma postura de marcha estável e no entanto, a decisão é tomada pelo próprio mamífe-
Língua crioula
T rata-se de uma língua com regras
gramaticais que surge de uma
língua franca, ou seja, sem regras
Derek Bickerton sobre um grupo de
trabalhadores estrangeiros de várias
nacionalidades no Hawai, durante
automaticamente a assimilar a língua,
mas aplicando as regras gramaticais
universais inatas. A língua franca
coerentes, utilizada para a comunicação o século XIX. Estes trabalhadores adquiriu, através destas crianças, regras
entre pessoas com línguas maternas desenvolveram uma língua franca para de inflexão, ordem das palavras e uma
diferentes. A prova mais evidente de comunicar entre si, que não tinha regras gramática coerente, transformando-
que as regras gramaticais são inatas e gramaticais coerentes e consistia numa se numa língua muito mais eficaz e
não adquiridas por imitação, tal como combinação de palavras e frases básicas eficiente: o crioulo.
o vocabulário, encontra-se na língua para facilitar a comunicação. Esta transformação foi efetuada
crioula. No entanto, estes trabalhadores tiveram instintivamente por apenas algumas
A experiência natural mais significativa filhos. A nova geração, crescendo neste crianças, sem necessidade de extensos
a este respeito foi o estudo de ambiente linguístico caótico, começou manuais gramaticais.
ASC
SUPER 55
A partir desta informação, podem ser gerados pensa- distintas, que se formaram umas sobre as outras, do
mentos e respostas comportamentais adequados. mais primitivo ao mais moderno. Primeiro, o cére-
Desde então, no entanto, os avanços da neurociên- bro reptiliano (responsável pelas funções básicas de
cia, da psicologia e da inteligência artificial forneceram sobrevivência), depois o sistema límbico (relacio-
novos conhecimentos e aperfeiçoaram algumas das nado com as emoções e a memória) e, finalmente, o
ideias apresentadas no livro. neocórtex (associado ao pensamento consciente e à
Por exemplo, tem havido uma compreensão muito cognição superior). O que se descobriu agora é que
mais profunda da genética e da epigenética (alterações estas divisões não são assim tão estanques, que existe
hereditárias na expressão genética que não envolvem alguma sobreposição anatómica e que, além disso, as
alterações na sequência do DNA) e da forma como camadas mais antigas continuaram a evoluir.
estes fatores influenciam a estrutura e a função do Desde a publicação do livro de Pinker, tem havido
cérebro. Isto conduziu a uma visão mais matizada do também um aumento da investigação que explora as
modo como a interação entre a genética e o ambiente ligações entre a mente e o corpo, como por exem-
afeta o desenvolvimento e o funcionamento da mente. plo, a forma como o sistema imunitário pode afetar
Embora o conceito de mente modular ainda tenha a cognição e o humor. Por exemplo, em situações de
seguidores, algumas das ideias originais também fo- inflamação aguda, como uma infeção, a libertação de
ram modificadas ou alargadas em resposta a novas citocinas pode levar a sintomas de «doença comporta-
investigações. Por exemplo, atualmente, dá-se mais mental», como fadiga, letargia, diminuição do apetite,
ênfase à ideia de que a mente é constituída por uma perturbações do sono e diminuição da motivação. Es-
série de processos e sistemas interligados que funcio- tes sintomas são adaptativos e ajudam o organismo a
nam em conjunto, em vez de módulos estritamente conservar energia para combater a infeção.
separados. Além disso, o sistema imunitário pode também
afetar a cognição e o humor através da sua interação
O CONCEITO DE «CÉREBRO TRINO», proposto pelo neu- com o eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA),
rocientista e médico americano Paul D. MacLean na que é uma parte essencial do sistema de resposta ao
década de 1960, também foi considerado simplista. stress. O stress crónico pode alterar o funcionamento
De acordo com a teoria do cérebro trino, o cérebro do eixo HPA, o que, por sua vez, pode afetar a função
humano é composto por três partes evolutivamente imunitária e exacerbar a inflamação. Estas e outras
ASC
Na década de
1960, MacLean
falou de um
cérebro com
três partes
evolutivamente
diferenciadas.
56 SUPER
A ligação entre o
cérebro e a
microbiota
intestinal é
conhecida como
o eixo intestino-
cérebro. O nosso
intestino é uma
espécie de
segundo cérebro.
ASC
descobertas têm vindo a reforçar a chamada «cog- DE ACORDO COM ESTE NOVO PARADIGMA, A NOSSA MENTE JÁ
nição incorporada», uma teoria da ciência cognitiva NÃO PARECE ESTAR APENAS LOCALIZADA NO NOSSO CÉREBRO.
que defende que a nossa mente não é um sistema Na década de 1990, Lynn Margulis, uma figura de des-
isolado, mas está profundamente ligada e é influen- taque no domínio da evolução biológica, introduziu
ciada pelo nosso corpo e ambiente. De acordo com pela primeira vez o termo «holobionte», que agora
esta perspetiva, a cognição não se limita ao cérebro, se refere a esta nova conceção da mente como loca-
mas estende-se a todo o corpo e é alimentada pela lizada em todo o corpo; embora holobionte também
sua interação com o ambiente em que vivemos. Isto se refira ao ambiente do organismo, alguns preferem
inclui os microrganismos que fazem parte de nós, a referir-se ao ser humano como um ecobionte, um or-
microbiota, que podem influenciar a nossa saúde fí- ganismo que faz parte de um ecossistema e interage
sica e mental e, por sua vez, afetar a nossa cognição. com outros organismos e com o seu ambiente. Neste
Por exemplo, a investigação demonstrou que a sentido, um ecobionte pode ser considerado como um
microbiota intestinal pode influenciar o funciona- componente do ecossistema que contribui para o seu
mento do sistema nervoso e a nossa cognição através funcionamento e equilíbrio.
da produção de neurotransmissores e outras subs- Precisamente porque o nosso cérebro ainda não está
tâncias químicas. Esta ligação entre o cérebro e a maduro à nascença, faz as últimas ligações neuronais
microbiota intestinal é conhecida como o eixo in- durante a vida. E fá-las de acordo com o meio em que
testino-cérebro, o que levou alguns investigadores se desenvolve, revelando o quanto de nós é ecobionte,
a considerar o nosso intestino como uma espécie de como explica a zoóloga e bióloga Zoe Cormier no seu
«segundo cérebro». livro A Ciência do Prazer: «O cérebro de um bebé está
SUPER 57
Mente inconsciente
D e um modo geral, os nossos sentidos captam cerca de dez milhões de bits de informação por segundo. No entanto, como
refere Jennifer Ackerman em Amar, Dormir, Comer, Beber, Sonhar, 24 Horas na Vida do Nosso Corpo, processamos conscien-
temente apenas sete a quarenta bits dessa informação.
Por outro lado, Timothy Wilson, da Universidade da Virgínia, utiliza outra medida em Strangers to Ourselves para salientar que a
nossa mente pode absorver onze milhões de bits de dados num instante, mas só temos consciência de quarenta deles.
Assim, pode argumentar-se, de acordo com Ap Dijksterhius, Henk Aarts e Pamela K. Smith num estudo publicado em The New
Unconscious, que a mente consciente tem 200 000 vezes menos capacidade de processamento do que a inconsciente.
58 SUPER
Genie Wiley nunca
dominou a
gramática, porque
na fase crítica do
desenvolvimento e
das capacidades
inatas foi isolada de
todo o contacto
humano.
ASC
algumas competências básicas de comunicação com Tal como acontece com muitas outras característi-
intervenções e apoio adequados. cas humanas, nascemos com modelos pré-instalados
Um exemplo desolador deste fenómeno é o caso de que são ativados ou não em função do ambiente. No
Genie, uma menina de 13 anos encontrada num aparta- entanto, os modelos são fixos. Por essa razão, todas as
mento de Los Angeles. Durante toda a sua vida, esteve línguas parecem partilhar características gramaticais
confinada a um quarto, isolada de qualquer contacto universais. Isto é sugerido pela teoria do instinto da
humano. Sem um ambiente linguístico em que as suas linguagem, proposta pelo linguista Noam Chomsky e
capacidades inatas se pudessem desenvolver, Genie também defendida por Steven Pinker no seu livro O
aprendeu apenas duas palavras para comunicar: «Bas- Instinto da Linguagem.
tayá» e «Nadamás». Contudo, ainda há muito a descobrir, a matizar e até
Quando Genie foi resgatada e começou a interagir a refutar. Tanto quanto sabemos, como argumenta o
com outras pessoas, adquiriu um novo e extenso vo- neurocientista David Eagleman, o cérebro é o pedaço
cabulário. No entanto, como já tinha passado a fase de matéria mais complexo e fascinante do universo.
crítica de desenvolvimento e as suas capacidades inatas Em vez de o vermos como um obstáculo intransponí-
tinham sido afetadas, nunca dominou adequadamente vel, podemos encará-lo como um desafio permanente
a gramática, apesar dos seus esforços em praticar. à ciência e um teste à espantosa capacidade do cérebro
Isto não significa que a linguagem seja toda aprendida. humano para se compreender a si próprio. e
SUPER 59
EXPLORADOR MOTOR
O CUPRA RAVAL integra uma série de materiais sustentáveis A EMPRESA anunciou o nome do seu futuro modelo Cupra, coin-
para proporcionar uma condução mais ecológica. Além disso, cidindo com os melhores resultados num primeiro trimestre da
os métodos de fabrico por impressão 3D e os tecidos 3D com sua história. Com 46 600 unidades vendidas durante o primeiro
conceção paramétrica, melhoram o desempenho e a qualida- trimestre de 2023, a empresa acumulou 83 % mais do que no
de percebida. mesmo período de 2022.
60 SUPER
FIAT LANÇA QUADRICICLO
TOTALMENTE ELÉTRICO
A FIAT REVELOU o seu quadriciclo é um novo dispositivo de mobilida-
100% elétrico, o Topolino, que será de elétrica que foi concebido para
lançado em abril de 2024. O nome um vasto público, incluindo clien-
faz lembrar o veículo que abriu ca- tes mais jovens, famílias e amantes
minho à mobilidade urbana e evoca da cidade. E graças ao seu design
o primeiro Fiat 500, produzido de encantador, adequado a todas as
1936 a 1955, vulgarmente conhecido gerações, fará com que os jovens
como «Topolino». se apaixonem de novo pelos au-
O novo Topolino encarna na perfei- tomóveis. Além disso, o novo Fiat
ção a dolce vita e o espírito italiano Topolino desempenhará um papel
da Fiat. Como veículo que pretende socialmente ativo na promoção da
fazer-nos sorrir, o Topolino traz um mobilidade elétrica nas cidades e
novo conceito de dolce vita, ale- um papel importante na criação de
gria, otimismo e diversão para as uma solução de mobilidade pes-
ruas da cidade. O novo quadriciclo soal para toda a família.
NOTA: 4,78
SUPER 61
EXPLORADOR MOTOR
A CONCENTRAÇÃO DE CARRINHAS
MAIS IMPORTANTE DE ESPANHA
m evento que começou espontaneamente há Por exemplo, foi possível ver-se a nova Amarok, um
NOTA: 4,45
62 SUPER
APENAS 1000 UNIDADES
DO «MY AMI BUGGY»
Após o sucesso da série ul- nas embaladeiras das portas,
“ A MINHA OPINIÃO
A DIGITALIZAÇÃO,
DESAFIO OU FICÇÃO?
tra-limitada de 50 unidades nas costuras dos bancos e nos
do «My Ami Buggy», lançada tapetes. Há cerca de uma década começámos
em França em 2022, a Citroën Esta segunda série limitada a conviver com o termo «digitalização»
propõe agora uma nova edição também não tem portas nem dentro da indústria automóvel. O sonho
especial de 1000 unidades, que tejadilho, mas os acessórios de era alcançar em tempo recorde a utopia da
será comercializada em nove proteção foram acrescentados condução autónoma infinita, levar o desen-
países, incluindo Portugal. Esta e modificados. Em particular, volvimento da segurança preventiva até
nova versão mantém a cor caqui foram concebidas novas lonas ao nível de conseguir o desaparecimento
da carroçaria e a cor preta dos de plástico com fechos de cor- dos acidentes nas estradas, conseguir um
elementos de proteção, tudo rer para proteger o condutor e o desenvolvimento perfeito da comunicação
concebido para lhe conferir um passageiro do mundo exterior. do veículo com o exterior quando em mo-
aspeto robusto. No entanto, Para além disso, a capota tem um vimento, e até com os restantes veículos na
a vitalidade e a frescura são novo sistema de fecho. Trata-se estrada, e muitos, muitos projetos que, na
proporcionadas pelos toques de um tecido preto impermeável, verdade, deixo de fora.
intensos de amarelo. Um tom agora com um fecho de correr, E, de repente, da forma mais inoportuna
que também é utilizado no ha- o que o torna mais prático e fácil que poderíamos imaginar, o «dieselgate»
bitáculo, nos frisos das portas, de manusear. Preço: 10 490 €. aparece em cena como um artista não
convidado. Tudo o que mencionámos an-
teriormente deixa de existir como se fosse
uma memória de futebol na mudança de
época e nasce a solução indiscutível, «o
veículo elétrico». Trata-se, naturalmente,
de um ator que era esperado, até com
ansiedade, mas pelo menos uma década
depois. Os nossos governantes mostra-
ram-nos o caminho único e indiscutível, a
eletrificação é sinónimo de salvação. Cada
ator aplicou este termo de uma forma
totalmente subjetiva, de acordo com o
campo em que se encontrava na altura, os
políticos talvez a pensar mais no presente
do que no futuro, a sociedade a partir de
diferentes focos, a lutar para salvar a reali-
dade indiscutível das alterações climáticas
e a indústria a tentar salvar a possibilidade
de estar vivo no futuro. E quando tanto
a sociedade como a indústria tiverem
demonstrado o seu empenhamento no
combate às alterações climáticas e a
sua capacidade de ultrapassar em uma
década a tecnologia mais avançada, a
digitalização e tudo o que mencionámos
no início reaparece novamente como um
ator importante. Não tenho dúvidas de que
passará de utópico a real em muito menos
tempo do que imaginámos.
SUPER 63
F I G U R A S D A H I S T Ó R I A D E P O R T U G A L
64 SUPER
D. JOÃO II
ÁFRICA, ATLÂNTICO E ÍNDIA
NO SEU REINADO
Figura mítica da história de Portugal, D. João II é protagonista de um pe-
ríodo recheado de acontecimentos e de transformações decisivos que mar-
caram de forma indelével a história do reino nos séculos seguintes.
SUPER 65
C
om 16 anos, em 1471, o prínci- quela região – e dos proventos comerciais nela obtidos
pe D. João, herdeiro do trono – passaria a estar decisivamente na órbita da coroa, sob
português, acompanhou o pai direta supervisão do herdeiro do trono.
D. Afonso V na grande armada
que tomou a cidade de Arzila. A PONDERAÇÃO DO PAPEL DE D. JOÃO II NA EXPANSÃO e nas
Tratava-se da terceira praça descobertas de terras e rotas marítimas, ou, visto de
conquistada pelos portugue- outra forma, o enquadramento do seu reinado em tais
ses no Norte de África, depois processos, não se pode desligar das várias correntes,
de Ceuta, em 1415, e de Alcácer memorialísticas e historiográficas, que sobre este per-
Ceguer, em 1458. Com ela cai- sonagem se foram tecendo ao longo dos séculos. Para
ria finalmente Tânger, presa alguns, e pelo menos desde o século XVI, o «Príncipe
há muito sonhada pelos monarcas portugueses, e cuja Perfeito» encarnou os ideais de um príncipe cristão e
malograda tentativa de conquista em 1438 havia cus- esclarecido. Na historiografia oitocentista, mas também
tado o cativeiro e a vida do infante D. Fernando, filho republicana e do Estado Novo, converteu-se na figura
mais novo de D. João I. O relato da conquista de Arzila acabada, por diferentes razões, do príncipe que encarna
foi-nos legado pela pena de Rui de Pina, cronista-mor a «razão de Estado» por oposição às «medievais» forças
do reino e figura próxima de D. João II e dos círculos centrífugas da nobreza e de outros grupos sociais. Assim
de poder. D. João fez o seu batismo de fogo e foi arma- foram lidos, por exemplo, os conflitos com a nobreza,
do cavaleiro pelo pai junto aos cadáveres dos condes de nomeadamente o julgamento e execução da cabeça des-
Monsanto e de Marialva, figuras do topo da hierarquia se estado, o duque de Bragança, e o assassinato, pelas
nobiliárquica e incensadas em exemplos máximos de próprias mãos do rei, de D. Diogo, seu primo e duque de
virtude cavaleiresca e cruzadística, atributos definido- Beja. Para estas correntes interpretativas, os atos de D.
res do horizonte mental da nobreza tradicional. João II foram percecionados como indispensáveis exibi-
Entre vários significados, a investidura cavaleiresca ções de força, de certo modo precursoras de uma «razão
também marcava a assunção da idade «adulta» daque- de estado» sobreponível a interesses particulares.
le que era investido. Desde então, e ao longo da década A figura de D. João II surgiu assim, durante muito
de 1470, o infante D. João é progressivamente associado tempo, em oposição ao «neo-senhorial» D. Afonso
ao governo do pai, e mais concretamente à gestão dos V: este, submisso aos interesses da nobreza, aquele,
assuntos africanos. Se, entre 1469 e 1474, a progressão contrariando-a, mesmo de forma violenta. No que à ex-
das descobertas no golfo da Guiné se deveu à concessão pansão diz respeito, tal dicotomia simplista também se
feita a Fernão Gomes da Mina, um funcionário e «ca- enraizou na perceção de um quixotesco interesse afon-
valeiro-mercador» integrado no círculo social da casa sino nos feitos de armas do Norte de África, contra os
do rei D. Afonso V, a partir de então, a exploração da- projetos ‘racionais’ e ambiciosos do filho, anunciadores
do plano da Índia. Uma visão que, se talvez impregnada
num certo senso-comum sobre a história de Portugal,
tem sido no entanto profundamente revista ao longo
das últimas décadas. Por um lado, no que à expansão
e aos descobrimentos diz respeito, tem sido sublinha-
do pela historiografia que, longe de desinteressado, D.
Afonso V foi uma figura atenta e empenhada na ques-
tão das explorações marítimas, em particular depois
da morte do tio, o infante D. Henrique, em 1460. O
contrato de exploração e comércio feito com Fernão
Gomes não significou, portanto, o desinteresse pelas
explorações marítimas em detrimento dos projetos
cruzadísticos, das praças norte-africanas às quimeras
da Terra Santa, como a aplicação de binómios interpre-
tativos anacrónicos e simplistas pode tentadoramente
fazer transparecer. Por outro lado, outras tendências
historiográficas, mesmo reconhecendo a importância
fundamental dos poderes ditos «estatais» na organi-
zação destas empresas de exploração – e, décadas mais
tarde, de organização imperial – têm insistido na im-
portância de análises de redes. Estas poderiam assumir
várias configurações, sobreponíveis entre si (pessoais,
familiares, profissionais, clientelares). A aplicação des-
tes princípios metodológicos permite observar, para
além das emanações dos poderes centrais e oficiais, as
atividades de agentes e de grupos, de forma concertada
Dona Leonor de Viseu, ou concorrente, entendendo-as como parte fundamen-
esposa do rei D. João II. tal das engrenagens sociais de fenómenos tão complexos
Escola portuguesa da como a expansão. Para mais, quando a organização de
primeira metade do século instituições como a coroa – a que hoje tentadoramente,
XVI. Acervo da Santa Casa
da Misericórdia de
mas de forma errada, associamos a noção de «estado»
Coimbra. – passava em grande medida pela articulação com dife-
rentes agentes e instituições.
ASC
66 SUPER
Crónica de João II,
de Rui de Pina.
ASC
68 SUPER
conversão dos povos através do batismo dos seus lí- exemplo os notáveis locais como fidalgos. Ainda assim,
deres, configurava simultaneamente a criação de um não deixava de se insinuar uma visão etnocêntrica que
esquema relacional teoricamente mais favorável, em acreditava numa superioridade portuguesa.
princípio sem a tensão subjacente ao encontro com Sobre este pano de fundo, e desde que D. João II as-
outras crenças. Para o efeito, recorde-se que, nas so- cendera ao trono, sete anos serão suficientes para se
ciedades antigas – pré-liberais e pré-industriais – as avançar decisivamente no conhecimento do oceano a
crenças religiosas estruturavam de forma muito pro- Sul do Equador. As viagens de Diogo Cão, entre 1482
funda a organização social, desempenhando um papel e 1486, permitem explorar toda a costa africana até à
muito mais vasto e holístico por comparação às so- Namíbia. Lida-se com um novo sistema de navegação,
ciedades em que vivemos. Os esforços de conversão obrigado a, entre outras coisas, conhecer profunda-
encontrariam um contexto mais favorável junto de cer- mente o regime de ventos. O «plano da Índia» decerto
tos príncipes locais, como o rei do Congo, batizado em germinaria desde a década de 1470. A coerência com
1491. A conversão desses príncipes, conferindo-lhes os que ele foi sendo construído poderá explicar a recusa,
nomes de batismo dos monarcas portugueses – Afon- por parte de D. João II, da proposta de Colombo de che-
so, João –, instruindo-os na língua portuguesa e no gar às Índias navegando rumo ao Ocidente. De todo o
catolicismo, e procurando impregná-los dos símbolos modo, os planos racionais sobrepõem-se às imagens
culturais europeus, consubstanciava simultaneamen- do Oriente que há muito impregnavam o imaginário
te a imersão nas disputas guerreiras e territoriais que ocidental, marcadas por um horizonte onírico de ri-
marcavam a região. Todavia, seria somente no século queza. Em 1487, o monarca decide enviar Afonso Paiva
XVI que os portugueses investiriam verdadeiramente e Pêro da Covilhã numa viagem secreta para recolher
na missionação e na conversão massiva ao cristianismo informações sobre a Índia e o mítico Prestes João. Po-
dos povos que encontravam. O proselitismo estava ne- rém, a viagem crucial é liderada por Bartolomeu Dias.
cessariamente imbuído de uma dimensão pragmática, Deixando Lisboa em agosto daquele ano, a expedição
e convivia, apesar da vocação universalista cristã, com dobrou a ponta sul do continente africano em feverei-
uma certa curiosidade «etnográfica». Essa curiosidade, ro de 1488, descobrindo a ligação entre os dois oceanos.
também pragmática, motiva a descrição das realidades Nos anos seguintes, novas viagens de exploração procu-
sociais com que os portugueses se deparavam através rariam determinar a melhor rota para a viagem. Prova
da sua própria utensilagem conceptual, retratando por de um «corpo de especialistas» desenvolvido ao longo
©AMPM
Episódio de O Cerco de Arzila, Tapeçarias de Pastrana (parcial) realizadas pela oficina flamenga de Tournai. Palácio dos Duques, Guimarães.
SUPER 69
ASC
Carta náutica de Lázaro Luís, 1563, vendo-se a costa norte de África com representação da Fortaleza da Mina. Academia de Ciências de Lisboa.
70 SUPER
Cronologia
1455 Nascimento de D. João II.
1471 Com 16 anos, D. João acompanha o pai na conquista de Arzila, onde é armado cavaleiro.
Tratado de Alcáçovas-Toledo, pondo fim ao conflito entre Portugal e as coroas de Castela e Aragão, e
1479-1480
assegurando o monopólio de Portugal sobre o Atlântico Sul.
1481 Morte de D. Afonso V e ascensão de D. João II ao trono.
Construção da fortaleza de S. Jorge da Mina, no atual Gana, numa expedição liderada por Diogo de
1482
Azambuja.
1482-1486 Viagens de Diogo Cão, chegando à costa da Namíbia.
Envio da missão de Pêro da Covilhã e de Afonso de Paiva para recolher informações sobre o Prestes João e
1487
a Índia.
1487-1488 Viagem de Bartolomeu Dias, dobrando o Cabo da Boa Esperança e penetrando no Oceano Índico.
1493 Bula Inter caetera propõe uma primeira divisão das esferas de domínio portuguesa e castelhana.
1494 Tratado de Tordesilhas, dividindo a esfera de domínio das coroas portuguesa e castelhana.
de décadas, o mesmo Bartolomeu Dias seria, anos mais informações sobre o Oriente; tentativa de penetração
tarde, um dos consultores navais da expedição que che- no interior do continente africano e criação de focos
gou à Índia sob o comando de Vasco da Gama. de cristianização; e a atividade diplomática que, envol-
Vários dos pontos até agora aflorados – preparação vendo outros poderes concorrentes e a Santa Sé, fixava
técnica de empresas futuras; organização da explora- em tratados as zonas de influência – surgem-nos como
ção do comércio nas costas africanas; prosseguimento pontos relacionados, evidenciando a complexidade das
da descoberta da costa ocidental deste continente com transformações em marcha.
o objetivo de penetrar no oceano Índico; colheita de
A CHEGADA DE COLOMBO ÀS ANTILHAS em 1492 reacende a
disputa entre os monarcas português e castelhano.
A intervenção da Santa Sé surge através da bula Inter
caetera. Datado de 3 de maio de 1493 e dirigido à co-
roa castelhana, o texto propunha uma linha meridiana
100 léguas a oeste de Cabo Verde, mas foi recusado pe-
lo rei de Portugal. Em 7 de junho de 1494, as potências
concorrentes chegam a um acordo e concluem o trata-
do de Tordesilhas. Fica assim estabelecida uma divisão
longitudinal 370 léguas a ocidente de Cabo Verde: re-
conhecendo a soberania castelhana sobre os territórios
por ela encontrados, os portugueses reivindicavam,
porém, o espaço de navegação no Atlântico Sul que en-
tendiam fundamental para cumprir os seus objetivos de
navegação para o Índico.
Tratou-se de um marco fundamental, decorrente
das transformações ocorridas nas décadas anteriores, e
configurador de uma nova perceção do espaço oceâni-
co. Ocorre no difícil ocaso do reinado de D. João II, em
que, ao que tudo indica, se começara a planear a via-
gem marítima para a Índia. Depois da morte do filho D.
Afonso pouco depois do casamento com a filha dos Reis
Católicos, o monarca encontrava-se isolado, enfrentan-
do forte oposição à tentativa de legitimar e tornar seu
herdeiro o filho ilegítimo D. Jorge. D. João II morreu
no Alvor em 1495. Seria já em 1497, no reinado do seu
Página do Tratado de Tordesilhas primo e sucessor D. Manuel que, de Lisboa, zarparia a
entre Portugal e Castela. armada capitaneada por Vasco da Gama, aportando fi-
nalmente, no ano seguinte, em Calecute. e
ASC
SUPER 71
M I S T É R I O S D A M E N T E
As pessoas com um
estilo de pensamento
mais intuitivo tendem
a acreditar mais em
fenómenos
paranormais,
considerando apenas
a informação que
reforça as suas
GETTY
hipóteses.
72 SUPER
Porque é que vemos
SUPER 73
ALBUM
ASC
No final do século
XIX e início do
século XX, as
sessões de
espiritismo
ASC
atraíam muitas
pessoas. Décadas
mais tarde,
chegaria a febre
do fenómeno
poltergeist.
N
DUVIDAMOS DA EXISTÊNCIA DE DEUS, MAS ACEITAMOS CADA
um sentido básico, os fan- VEZ MAIS O CORTEJO DOS FANTASMAS. Em 2000, 13,1 % dos
tasmas existem porque as espanhóis declaravam-se ateus ou agnósticos, uma per-
pessoas não param de dizer centagem que atualmente ronda os 40 %. Nos Estados
que os viram», resumiu Ro- Unidos, pelo menos, a crença nos fantasmas aumentou
ger Clarke no seu ensaio de 400 % desde o final dos anos 70. E quantos britânicos se
fácil leitura A História dos apaixonaram pelo documentário da BBC, Ghostwatch,
Fantasmas. Quinhentos anos que seguia as deambulações de um espírito pelas ruas
em busca de provas. A ques- de Londres! Foi transmitido em 1992, cinquenta e qua-
tão é saber porque é que as tro anos depois da Guerra dos Mundosde Orson Welles,
pessoas os vêem ou afirmam para pôr as coisas em contexto.
tê-los visto e, nesse debate, Sem dúvida que a sociologia tem muito a dizer sobre
os cientistas não ficaram de esta troca de fés, mas quando se trata de «ver» fantas-
braços cruzados. Quando um fenómeno escapa à sua mas, a psicologia parece ter a última palavra. Em maio
compreensão, tentam assimilá-lo com os instrumen- de 2022, a revista PLOS ONE publicou um relatório
tos de que dispõem: a dúvida, a análise, a síntese e a sobre as crenças paranormais e a função cognitiva (Pa-
verificação. A razão, numa palavra. Nesta procura da ranormal beliefs and cognitive function: Asystematic
verdade, um Prémio Nobel da Medicina, Charles Robert review and assessment of study quality across four
Richet (1850-1935), envolveu-se no Institut Métaphy- decades of research), em que analisou dezenas de ar-
sique de Paris, que, em pleno século XXI, continua a tigos de quatro bases de dados (Scopus, ScienceDirect,
promover uma «alternativa racional tanto aos excessos SpringerLink e OpenGrey) e concluiu, em traços gerais,
de credulidade como aos excessos de ceticismo». Por que quem acredita nestes fenómenos apresenta um es-
sua vez, o físico Oliver Lodge (1851-1940) presidiu à So- tilo de pensamento mais intuitivo e incorre no chamado
ciety for Psychical Research, em Londres, tão isenta de viés confirmatório, ou seja, na tendência para destacar
preconceitos como o referido instituto francês. E, nos apenas a informação que confirma as suas hipóteses ou,
anos 20 do século passado, a popular revista Scientific em muitos casos, os seus preconceitos.
American oferecia uma recompensa de 15 000 dólares E atenção, acreditar em fantasmas é normal e até
a quem conseguisse apresentar provas conclusivas da saudável, pois faz parte do nosso processo de aprendiza-
existência de fantasmas. gem. Margarita Megía Hortal, psicoterapeuta familiar e
Há cem anos atrás, em suma, as maiores mentes de casais, diz-nos que «o pensamento mágico, que apa-
discutiam casas assombradas, telepatia e telecinesia, rece normalmente entre os dois e os sete anos, permite
participavam nas sessões de médiuns famosos, colecio- às crianças ter uma visão fantástica do mundo e acre-
CREDITO
ASC
tinguir a fantasia da realidade, mas, como formulou um Professor Emérito do
estudo da British Psychological Association(Monsters, Departamento de Psicologia da
ghosts and witches: Testing the limits of the fantasy- Goldsmiths, Universidade de
-reality distinction in young children, 1991), elas «são Londres, e Diretor da Unidade
tentadas a acreditar na existência do que simplesmente de Investigação em Psicologia
imaginaram». Anómala, é um investigador
E o que acontece quando crescemos e continuamos a de renome mundial sobre
«ver» fantasmas? Alguns podem considerar que esta é acontecimentos paranormais.
a origem das religiões, embora não seja fácil discernir Falámos com ele.
se foi a nossa espiritualidade «natural» que produziu Será o medo da morte o fator
as primeiras religiões, ou se foram as religiões que ca- mais relevante para explicar a
nalizaram essa espiritualidade. Talvez um fantasma não perceção do sobrenatural por
seja mais do que essa presença a que os crentes chamam tantas pessoas?
alma, e então a sua razão de ser cai pelo seu próprio Nenhum de nós gosta da ideia de que, quando morremos, é o
peso: a nossa vida e a dos que nos rodeiam parecem- nosso fim. Talvez ainda pior, detestamos a ideia de que, quando
-nos muito valiosas (e são), por isso, na ânsia de as fazer os nossos entes queridos morrerem, nunca mais teremos
durar, imaginamos vidas que nunca acabam e que nos contacto com eles. Por isso, sentimo-nos fortemente motivados
acompanham. Em 1971, um estudo revelador realizado para encontrar qualquer prova que apoie a ideia de vida após
no País de Gales, The Hallucinations of Widowhood, a morte. Muitos tipos de alegações paranormais parecem
constatou que quase metade das pessoas entrevistadas, fornecer essas provas, tais como experiências de quase-morte,
todas viúvas e viúvos, tinham alucinações ou delírios memórias de vidas passadas, intercâmbios mediúnicos e até
sobre o cônjuge morto. fantasmas.
No decurso da sua investigação, a sua opinião sobre a
PARA ALÉM DESTAS MOTIVAÇÕES ANÍMICAS, O FATOR QUE NOS parapsicologia mudou?
PREDISPÕE PARA AS ALUCINAÇÕES É QUASE SEMPRE FÍSICO. Acreditei em muitas alegações paranormais até à idade adulta.
Por exemplo, uma mudança brusca de temperatura — o Quando descobri que havia explicações mais plausíveis
chamado ponto frio —, um clarão de luz que nos des- para as experiências paranormais que não se baseavam no
lumbra, uma reverberação que aumenta estranhamente sobrenatural, tornei-me um cético tenaz durante anos. Desde
o eco dos nossos passos... Viver fora da urna — lançados então, adotei uma posição mais matizada. Continuo a duvidar
nessa busca ancestral e permanente de refúgio de que que os fenómenos paranormais existam genuinamente (ou
falava o geógrafo Jay Appleton — é estar sujeito a im- seja, que não possam ser explicados nos termos da ciência
previstos que o nosso cérebro nem sempre sabe gerir da convencional), mas reconheço sempre que posso estar errado.
melhor maneira. Considera que o racionalismo está ameaçado no século XXI
Assim, perante uma situação que surge, reagimos por atitudes mais irracionais?
instintivamente, sobreexcitando a nossa atenção em Todos nós somos irracionais, em maior ou menor grau,
busca dessa ameaça indeterminada, e quando ela não embora alguns de nós façam o possível para basear as suas
se concretiza (porque pode não existir) e também não crenças na razão e nas provas. Sempre houve quem refutasse
a conseguimos racionalizar, simplesmente inventamo- o pensamento racional e preferisse basear as suas crenças
-la. É aqui que o ramo se torna a mão e a cortina se torna em apelos mais emocionais. No século XXI, estas tendências
a teia de aranha. Na ignorância, o nosso computador foram amplificadas por uma série de fatores, como as redes
central recebe estímulos equívocos e a sua resposta é a sociais e a proliferação de teorias da conspiração, pelo que é
do seu código fonte: em caso de dúvida, alarmar e exe- essencial incentivar o pensamento crítico se quisermos evitar
cutar o plano de segurança. Ou, por outras palavras, se consequências desastrosas.
os nossos sentidos falham na sua perceção, recorremos
ao jóquer extra-percetivo, porque é evidente (o nosso
SHUTTERSTOCK
CREDITO
SUPER 75
malia na sua visão fruto da vibração ocular. «Uma vez gressos ao basear a sua abordagem no pressuposto de
reconhecido o problema, foi feita uma modificação no que todos os estados mentais são, em última análise,
conjunto do exaustor e o nosso fantasma desapareceu», redutíveis a estados físicos dentro do cérebro». Quem
conta. Não sabemos realmente quanta experimen- melhor do que estes especialistas para resgatar os fe-
tação e quanta predisposição estiveram envolvidas nómenos paranormais das feiras de parapsicólogos e
nesta miragem, mas vale a pena notar que a sua teoria de fantasistas vários?
foi refutada por outros autores (Jason J. Braithwaite e Vejamos alguns avanços nesse sentido. Por exemplo,
M. Townsend, 2016). os que foram feitos em relação à paralisia do sono, uma
parassónia ou distúrbio que nos faz sentir que não nos
A NEUROCIÊNCIA ABRE A CORTINA. Para o psicólogo es- podemos mexer e que, por vezes, é acompanhada de
pecializado em crenças e experiências paranormais experiências hipnagógicas (alucinações visuais, audi-
Christopher C. French, com quem falamos nestas tivas e táteis). Por vezes, chegamos mesmo a ver-nos
páginas, «os neurocientistas fizeram grandes pro- fora do nosso corpo — a chamada autoscopia — mas,
Disfunções neurais?
C ertas doenças podem ser acompanha-
das de experiências paranormais». O
Dr. Saul Martínez-Horta, especialista em
os processos perceptivos dependem de
uma arquitetura neural complexa e que, em
certa medida, o cérebro se antecipa na per-
construção cultural das características pro-
totípicas de tais experiências.
Os fantasmas vivem dentro do nosso cé-
neuropsicologia clínica e diretor da Uni- ceção do mundo, não é improvável pensar rebro, houve experiências científicas que
dade de Neuropsicologia do Centro de que certas experiências perceptivas «atípi- «tenham induzido» o seu aparecimento?
Diagnóstico e Intervenção Neurocogniti- cas» possam ser o resultado de uma falha Tudo «vive» de alguma forma no nosso
va (CDINC) de Barcelona, dedica uma das pontual ou momentânea, num cérebro sau- cérebro, em termos de representação neu-
secções do seu ensaio Cérebros Rotos dável, das redes neurais que sustentam a ral de eventos internos e externos. Um
(Kailas, 2022) às «presenças, fantasmas e perceção do mundo que nos rodeia. conceito, uma memória, um cheiro, uma
outras experiências sobrenaturais», que, Por outro lado, sabemos com certeza sequência de movimentos, uma emoção,
em certos casos, podem ser a expressão de que certas doenças que afetam o cére- tudo tem uma representação neural, e a
disfunções neuronais. Ele fala-nos disso nes- bro, nomeadamente certos processos perda dessa representação, devido a uma
ta entrevista. neurodegenerativos e certas formas de lesão por exemplo, significa a perda de
Se uma pessoa vê fantasmas, isso sig- epilepsia, podem muitas vezes ser acom- função.
nifica que tem algum transtorno ou panhadas de experiências «paranormais» Assim, porque existem representações
disfunção neuronal? muito complexas e de visões extremamen- de tudo o que somos capazes de experi-
Não necessariamente. Os fenómenos te estruturadas, em ausência de um estado mentar, podemos induzir artificialmente
paranormais, incluindo experiências tão de confusão ou de delírio. Muitas destas certos estados ou provocar certas reações
surpreendentes como ver algo que pode- experiências visuais têm exatamente as utilizando, por exemplo, técnicas de esti-
ríamos conceber como «um fantasma», mesmas características ou fenomenolo- mulação cerebral, ao mesmo tempo que
têm sido relatados ao longo da história gia que historicamente acompanharam podemos induzir a disfunção de sistemas
da humanidade em múltiplos contextos, experiências como a visão de fantasmas. ou redes neuronais provocando fenóme-
culturas e em pessoas que nunca mos- Vale a pena, portanto, considerar até que nos mais inespecíficos mas de grande
traram sinais de doença neurológica. Em ponto os sintomas de doenças que sem- complexidade. Exemplo disso são algu-
todo o caso, partindo do princípio de que pre existiram desempenharam um papel na mas experiências realizadas em contexto
cirúrgico onde, através da estimulação de
ASC
76 SUPER
GETTY
ISTOCK
Certos fenómenos poderiam
ser explicados como uma falha
pontual das redes neuronais de
um cérebro saudável, que estão
SHUTTERSTOCK
ISTOCK
na base da perceção do mundo
que nos rodeia.
ISTOCK
obviamente, os íncubos medievais e as possessões de- E o que dizer das faces de Bélmez e de outras pareido-
moníacas com que o imaginário popular gostava de lias? Se virmos o rosto de Cristo numa torrada, temos
retratar estes episódios não têm aqui qualquer papel. duas opções: montar um negócio e tentar fazer com que
«Nas autoscopias, a pessoa tem a sensação de estar num o maior número possível de incautos compre a ilusão,
plano à parte, geralmente elevado, em relação ao seu ou pedir contas ao nosso lobo temporal, em cuja face
corpo físico, que habitualmente contempla como um basal se encontra o chamado giro fusiforme, cuja função
corpo imóvel, deitado na cama. Este fenómeno é o que é precisamente o reconhecimento facial.
define as famosas «viagens astrais» no campo da abor-
dagem paranormal», segundo Saul Martínez-Horta, OS FANTASMAS E A CIÊNCIA NÃO TIVERAM OUTRO REMÉDIO
neuropsicólogo e autor do imprescindível Cérebros Ro- SENÃO CONVIVER, mesmo se a ciência os aborda com ce-
tos (2022). A verdade é que tudo se deve a uma espécie ticismo e já não os chama por esse nome ou lhes dá um
de dessincronização na fase REM (Rapid Eye Movement) significado diferente. Quando Harry Price, o primeiro
do sono, que nos leva à fronteira entre o relaxamento «caça-fantasmas» da história, abriu o Laboratório Na-
muscular total e o estado de alerta. Aqui está um fantas- cional de Investigação Psíquica em Londres, em 1926,
ma desmascarado, muito angustiante mas inofensivo. esqueceu-se, no meio de todos os ditafones, barógrafos
Outros são muito mais dolorosos. As doenças e termómetros, do mais importante: que os fantasmas
neurodegenerativas, como a doença de Alzheimer, no- «vivem» dentro de nós e ganham vida quando o equilí-
meadamente na sua fase III, a doença de Parkinson ou brio neural, sempre tão delicado, é quebrado.
a demência com corpos de Lewy, causada por depósi- Em 2014, o neurologista suíço Olaf Blanke, à frente
tos de alfa-sinucleina em certas zonas do cérebro, pode de uma equipa internacional, realizou uma experiên-
envolver, em maior ou menor grau, alucinações visuais cia para gerar a ilusão de uma presença próxima
que o doente identificaria com sensações de presença. — um fantasma — em indivíduos saudáveis. Fê-lo
Mais uma vez, existe uma explicação científica. Por através de um robô sensório-motor que emitia sinais
exemplo, no caso da doença de Parkinson, cientistas do compatíveis com os gerados por lesões ligadas a este
Instituto Federal Suíço de Tecnologia de Lausanne e do tipo de alucinação, que ocorrem sobretudo no córtex
hospital Sant Pau de Barcelona identificaram em 2021 frontoparietal. A ciência não só sabe como caçar fan-
os circuitos cerebrais responsáveis por alucinações me- tasmas, mas também como criá-los; agora só falta a
nores, que afetam 30 % dos pacientes e podem evoluir inteligência artificial escrever as suas biografias num
para alucinações mais complexas ou estruturadas. piscar de olhos. e
SUPER 77
CURIOSIDADE TECNOCULTURA
A IA está a avançar
demasiado depressa
e a humanidade pode
não estar preparada
para ela.
SHUTTERSTOCK
H
um dos pais da
tância na inteligência artificial, IA, alertou para
que é o alinhamento. Por ali- os seus perigos.
nhamento entende-se o acordo
entre a realização de uma IA e os objetivos
para os quais foi programada. Não é, no
entanto, um conceito que tenha a ver com
o desempenho da IA, mas sim para esta não
produzir um resultado indesejável que seja
contra o interesse da humanidade no seu
todo. O alinhamento, que surgiu há décadas
como uma especulação de ficção científica,
está agora no centro do debate sobre o pro-
gresso das novas inteligências artificiais ge-
nerativas, especialmente as baseadas no Lar-
ge Language Model (LLM), como o ChatGPT,
o LLaMA ou o Google Bard. Isaac Asimov já
GETTY
78 SUPER
Uma Odisseia no Espaço transitam pelo
nosso imaginário. O filósofo Nick Bostrom
vislumbra a possibilidade de uma inteli-
gência artificial obcecada em fabricar clips
acabar por transformar toda a humani-
dade em pequenos objetos de secretária.
Recentemente, na sequência dos últimos
desenvolvimentos em matéria de IA (no-
meadamente, após o aparecimento do
ChatGPT-4), multiplicaram-se as opiniões
e as intervenções nos meios de comunica-
ção social, alertando para os perigos que
estas tecnologias podem acarretar. Talvez
SHUTTERSTOCK
a mais marcante tenha sido a carta aberta
promovida pelo Future of Life Institute e
assinada por mais de mil pessoas (entre as
quais Elon Musk e Steve Wozniak) apelan-
do a uma moratória de seis meses, durante fram, o ChatGPT reúne algoritmos conexio-
a qual a investigação de qualquer inteli- OS CIENTISTAS nistas (redes neuronais) aos simbólicos.
gência artificial para além do ChatGPT-4
seria interrompida. Esta moratória servi- APEL ARAM A Pedro Domingos, professor de Ciências da
Computação e autor de O Algoritmo Mestre,
ria para repensar as repercussões que tais
inteligências artificiais estariam a ter a UMA MORATÓRIA fantasia na sua obra sobre a possibilida-
de de surgir um algoritmo (a que chama
nível económico e político, avaliando até
que ponto poderiam contribuir para des- PARA REPENSAR algoritmo mestre) que reúna as potencia-
lidades dos algoritmos conexionistas, sim-
truir empregos, aumentar a desigualdade bolistas e analógicos. Tal algoritmo seria
económica ou produzir informações falsas AS IMPLICAÇÕES a chave da IAG de que estamos a falar.
capazes de manipular processos eleitorais. De momento, o ChatGPT teria duas das
Apenas um mês depois, Geoffrey Hinton, DA IA três pernas fundamentais deste algoritmo
considerado um dos pais da IA, deixou a mestre. Falta ainda o terceiro elemento, os
Google, a empresa onde trabalhava, para te corrida aos armamentos, há situações algoritmos analógicos. O próprio Domin-
se sentir livre para comentar os desenvol- em que os governos e as entidades regu- gos define os algoritmos analógicos como
vimentos neste domínio. Segundo Hinton, ladoras devem tomar as rédeas do assun- aqueles capazes de encontrar semelhanças
a IA está a avançar demasiado depressa e to, promovendo tratados e protocolos que entre situações diferentes e inferir novas
a humanidade pode não estar preparada garantam um mínimo de segurança aos semelhanças. Nesta tarefa, a inteligência
para ela. De facto, em algumas das suas cidadãos. Confiar, por exemplo, que um artificial deve ser capaz de selecionar ele-
declarações, lamenta mesmo ter dedicado vídeo (ou uma imagem, ou um texto) ao mentos da sua memória e colocá-los em
a sua vida à investigação neste domínio, qual eu atribuo credibilidade não foi pro- relação uns com os outros de acordo com
embora se console com a ideia de que, se duzido por uma inteligência artificial ou, um critério analógico e não lógico. Nada
não o tivesse feito (como noutros domí- se foi, que a autoria da IA esteja clara e impede de programar um extenso catálogo
nios científicos controversos), haveria al- informada no objeto digital. Caso contrá- de relações que vários objetos possam ter
guém que o fizesse. Um especialista em rio, corremos o risco de não saber onde em comum. Trata-se, afinal, de um proble-
inteligência artificial, Eliezer Yudkowski, é estamos, de dar credibilidade injustifica- ma de combinatória, de computação, em
mais contundente nas suas posições, de- da ao que deveria, no mínimo, levantar última análise. O que não pode ser progra-
fendendo a ideia de que a investigação em uma suspeita prudente. Neste sentido, a mado é um critério para essa procura, nem
sistemas superiores à versão 4 do ChatGPT carta promovida pelo Future of Life Insti- uma motivação. O pensamento humano
deve ser interrompida (e não apenas para- tute pode ser um pouco alarmista, mas a analógico — e metafórico — é muito in-
da durante um intervalo de tempo razoá- sua divulgação servirá, sem dúvida, para consciente, e é guiado por questões huma-
vel). «Pausar o desenvolvimento da IA não sensibilizar o grande público para um pe- nas como o desejo, o amor ou a carência.
é suficiente. É preciso parar tudo», chega rigo que, de outro modo, passaria prova- Emoções, afinal. E, para já, ninguém sabe
a dizer Yudkowski. velmente despercebido. como programar emoções.
Talvez o grande algoritmo de que fala
A OPINIÃO DE GEOFFREY HINTON ESTÁ EM É VERDADE QUE A FUSÃO DE WOLFRAM|ALPHA Pedro Domingos não passe de uma ente-
LINHA COM O QUE O FILÓSOFO FRANCÊS JA- COM O CHATGPT, no final de março deste léquia e as preocupações expressas pelos
CQUES ELLUL denomina de determinismo ano, veio colmatar uma falha do algorit- especialistas sobre o avanço das novas in-
tecnológico. Ellul postula que a tecnolo- mo de conversação generativo da OpenAI. teligências artificiais não sejam (para já)
gia, ao longo do tempo, se tornou cada Wolfram|Alpha é uma inteligência compu- demasiado fundadas. No entanto, após um
vez mais autónoma, independente da in- tacional-simbólica que permite trabalhar período explosivo de novos avanços neste
tervenção política e até da própria ciência com conceitos e, com isso, que a IA com- domínio, tudo indica que chegou o mo-
teórica. Independentemente da validade preenda ideias como a de que um homem é mento de nos interrogarmos. É um pon-
que dermos aos argumentos de Ellul, é mortal ou a de que George Washington não to de viragem, um momento para parar e
verdade que, tal como aconteceu com a podia utilizar um computador porque viveu pensar e tentar decidir até onde queremos
invenção da fissão nuclear e a consequen- antes da sua invenção. Com o plug-in Wol- ir e, sobretudo, em que condições. e
SUPER 79
F I L O S O F I A
INTEG
RIDAD
E
VERDADE
M I S S O
M P R O
C
80 SUPER
ERNST
E TUGENDHAT
E A PROCURA DE UM
FUNDAMENTO ÉTICO
Defensor de que os problemas da filosofia clássica podem ser
abordados mais eficazmente através de métodos analíticos,
este filósofo demonstrou uma paixão insaciável pela ética e
refletiu sobre o modo como a linguagem proposicional abre
um horizonte epistemológico e ético-político.
U
ma das questões que atravessa a história
do pensamento filosófico ocidental, pe-
lo menos desde a viragem antropológica
atribuída a Sócrates, é a de saber como de-
vemos viver, qual o estilo mais adequado
para experimentar a vida de forma mais
rica e plena. Naturalmente, esta questão
tem sido respondida de várias formas, com
diferentes graus de sucesso.
Talvez por causa do niilismo diagnosti-
cado por Nietzsche, ao longo do século XX
parece que nos apercebemos da falta de
fundamento último, não só na filosofia, mas também nas ciências (co-
mo Nietzsche advertiu em A Genealogia da Moral, «não há ciência
sem pressupostos»), na matemática (os teoremas da incompletude
de Kurt Gödel) e, claro, na ética. Algumas destas disciplinas parecem
sobreviver bem sem a certeza do fundamento, outras, pelo contrário,
andam à procura dele.
Isto está expresso na famosa Conferência sobre Ética de Wittgens-
tein: «Se um homem pudesse escrever um livro de ética que fosse
Para Tugendhat, o facto de
realmente um livro de ética, esse livro destruiria, como uma explo-
sermos todos da mesma são, todos os outros livros do mundo. As nossas palavras, usadas
espécie, o Homo sapiens, já como fazemos na ciência, são recipientes capazes apenas de conter e
justifica a igualdade entre transmitir significado e sentido, significado e sentido naturais. A éti-
ISTOCK
SUPER 81
factos.» Sobrestimava Wittgenstein a ética? Não con-
denaria esse suposto livro as pessoas a comportarem-se
dogmaticamente da mesma forma, anulando valores
essenciais como a liberdade ou o pluralismo?
Mesmo antes, no século XIX, já existem manifestações
evidentes, quando uma das personagens de Dostoiévs-
ki em Crime e Castigo pergunta: «Se Deus está morto,
tudo é permitido», não faz se não sublinhar esta falta
de fundamento último. Mais tarde, Nietzsche elevou-a
Se Deus,
SHUTTERSTOCK
82 SUPER
ASC
ASC
À esquerda, Ernst
Tugendhat, que foi
quem mais
contribuiu para
responder às
questões
suscitadas pela
afirmação de
Nietzsche (à
direita) de que
«Deus está morto».
fos ditos continentais e o mundo anglo-saxónico, como empíricas e refletir sobre esse problema na perspetiva
observamos entre Descartes, Leibniz e Spinoza, e Loc- da filosofia linguística». Tugendhat parte da convic-
ke, Berkeley e Hume, conflito esse que se manteve ao ção de que os problemas da filosofia clássica podem ser
longo do último século através dos talentos analíticos abordados com mais sucesso e eficácia através de méto-
de Frege, Russell, Wittgenstein, Carnap ou Quine, por dos analíticos.
oposição aos continentais: Husserl, Heidegger, Gada-
mer, Foucault ou Derrida. NA SUA DUPLA QUALIDADE DE INVESTIGADOR E PROFESSOR,
São raras exceções, os filósofos que dialogaram com TUGENDHAT PREOCUPOU-SE NÃO SÓ COM A investigação fi-
ambas as tradições: tal como Paul Ricoeur e Javier losófica e, em particular, ética, mas também com a
Muguerza, Tugendhat é uma dessas raras excepções. forma de a transmitir . Assim, em 2001, em colaboração
Curiosamente, com Muguerza, um dos filósofos hispa- com Celso López e Ana María Vicuña, publicou El libro
no-americanos mais relevantes das últimas décadas, de Manuel y de Camila, uma obra para qualquer tipo
partilha o facto de ter sido um dos principais introdu- de leitor, mas dirigida especialmente a crianças e ado-
tores da filosofia analítica, um na Alemanha e outro em lescentes, na qual aborda uma série de questões éticas
Espanha; ser capaz de ler e dialogar com pensadores através do diálogo. Posteriormente, publicou Diálogo
continentais e analíticos; paixão insaciável pela ética; em Letícia, onde são reveladas as perplexidades e con-
estudo e crítica de alguns dos filósofos mais influentes tradições éticas .
das últimas décadas, como Rawls e Habermas; procura Suspeito que ambas as obras tenham sido influencia-
incessante de um fundamento ético. das por Sócrates e Wittgenstein: no que diz respeito ao
Javier Sádaba, outro dos filósofos espanhóis mais primeiro, pela arte da maiêutica, pela necessidade de o
próximos de Ernst Tugendhat, que conheceu quando diálogo ir além do que sabemos na argumentação; no
era jovem em Heidelberg, dedicou-lhe um espaço em que diz respeito ao segundo, porque os argumentos ló-
Memorias desvergonzadas (escreveu recentemente gicos não costumam persuadir com a mesma força que
o obituário no El País). Aí resume o modo de filosofar aqueles que nos desafiam através da ação e do exemplo,
em Lições de ética, um método muito próximo do seu: razão pela qual o autor do Tractatus, quando lhe per-
«Consiste em isolar um problema, um dos eternos ou guntaram como aprender ética, não recomendou livros
dos mais recentes, conhecê-lo nas suas componentes de filósofos, mas sim os contos de Tolstoi.
SUPER 83
Tradicionalmente, a metafísica tem sido considerada ral é um sistema de exigências recíprocas». Qualquer
a primeira filosofia, porque vai à raiz, ao fundamento, justificação da moral», acrescentou em 2005, numa
à origem explicativa da realidade. Pelo menos até Kant. conversa com o filósofo e amigo Javier Muguerza, pou-
Inspirado por este último, cujas três famosas questões co antes de receber o doutoramento honoris causa da
fundamentais («O que posso saber? Como me devo Universidade Autónoma de Madrid, «é, portanto, uma
comportar? O que posso esperar?») conduzem a «O justificação recíproca. Não se pode defender a posição
que é o homem?», nas últimas décadas Tugendhat rei- de um contratualista puro que apenas se justifica a si
vindicou a antropologia como a primeira filosofia. próprio e espera assim chegar a um acordo com
Precisamente em Sevilha, no congresso «A filoso- o outro. É preciso esclarecer que a moral é es-
fia no futuro dos discursos antropológicos» (2006), sencialmente igualitária e que o facto de poder
Tugendhat proferiu uma conferência intitulada A ser definida como igualitária depende da sua
antropologia como primeira filosofia. Como são os reciprocidade, ou seja, resulta de uma justifica-
humanos, não condiciona e até determina, a nossa ção recíproca».
capacidade de conhecer (epistemologia) ou como é a Muguerza respondeu que «a igualdade, em última
realidade (ontologia)? Não carece de sentido elaborar análise, assenta apenas na metafísica. Como é que a
normas morais, códigos de ética e até leis sem possuir igualdade pode ser verificada empiricamente? Ao que
um conhecimento adequado da condição humana? Tugendhat respondeu: «A igualdade não pode ser ve-
rificada empiricamente, nem se pretende que o seja. A
CASO CONTRÁRIO, CONTINUAREMOS A INCORRER EM LEIS AR- ideia de igualdade moral é que se atribui o mesmo valor
BITRÁRIAS, DISCRIMINATÓRIAS E EXCLUDENTES. Tugendhat à outra pessoa, mesmo que essa pessoa seja diferente».
costumava recordar uma passagem famosa da Política Não é uma questão de vontade», continua Tugendhat,
de Aristóteles, em que este distingue a voz dos animais «mas de justificação de como nos devemos comportar,
do logos dos humanos. É claro que a voz lhes permite e aqui o conceito de intersubjetividade aparece como
comunicar, mas o logos, que Tugendhat traduz como o ponto fundamental. É por isso que a justificação é
linguagem proposicional, permite-nos a nós, huma- recíproca. Posso ser mais forte do que o meu filho
nos, deliberar, questionar, raciocinar e, assim, exercer e ainda assim propor-lhe que nos comportemos
SHUTTERSTOCK
a liberdade e a responsabilidade. Vemos, então, que a de acordo com regras de justificação recíproca.
partir de um traço antropológico, a linguagem pro- No que diz respeito à igualdade, mesmo
posicional, abre-se um horizonte epistemológico e que sejamos física e psicologicamente di-
ético-político. ferentes, mesmo que as nossas culturas e
Este título foi uma surpresa para muitos, mas Tugen- circunstâncias sociais sejam diferentes,
dhat, na sua aventura filosófica e antropológica, procura voltamos à antropologia: o facto de
o comum na diversidade. Considera que os fenómenos sermos da mesma espécie, Homo sa-
religiosos não podem ser aceites num diálogo antropo- piens, dotados de um certo número
lógico racional, uma vez que a crença num deus implica de qualidades comuns, como a
um pressuposto de existência que não pode ser intersub- estrutura do corpo e do cérebro,
jetivamente justificado. Por misticismo, pelo contrário, a consciência de si, a razão ou
entende um fenómeno humano que não remete para a liberdade, não será razão
algo de sobrenatural, «é simplesmente uma atitude de suficiente para justificar a
recolhimento em si mesmo, na qual a pessoa recupera a igualdade? A reciprocida-
consciência de si e do mundo como um todo, tomando de não inclui de algum
assim consciência da sua própria insignificância e uma modo a igualdade e a
consciência não egocêntrica dos outros seres». equanimidade?e
Não é por acaso que filósofos como Russell ou Witt-
genstein, ou cientistas como Einstein, se ocuparam do
misticismo ou da religião cósmica. No final de A Natu-
reza Humana, o filósofo Jesús Mosterín afirmava: «A
ciência sem misticismo corre o risco de permanecer
uma mera ginástica metodológica. O misticismo sem
ciência degenera facilmente em auto-engano e supers-
tição. Só a conjunção do conhecimento científico com o
sentimento místico nos permite aspirar a alcançar esse
estado de exaltação lúcida e de plenitude vital em que
consiste a comunhão com o Universo».
Confúcio formulou a primeira regra de ouro da hu-
manidade: «Não faças aos outros o que não gostarias
que te fizessem a ti». Tanto esta regra como a formula-
ção de Kant do imperativo categórico, que constitui o
fundamento teórico dos direitos humanos, assentam na
reciprocidade: «Age de forma a tratares sempre os outros
como fins em si mesmos e nunca apenas como meios».
No prefácio do seu livro Problemas, Tugendhat evo- Para o filósofo, a moral é
ca John Rawls para responder à questão do fundamento essencialmente igualitária e o
da ética (utilizo aqui o termo como sinónimo de «mo- facto de poder ser definida
ral», quando em rigor não o é; Paul Ricoeur explicou de como igualitária depende da
forma esclarecedora a diferença entre os dois): «a mo- sua reciprocidade.
84 SUPER
JOSE MANUEL
ALBUM
À esquerda, o filósofo espanhol Javier Muguerza (1936-
2019), amigo de Tugendhat. À direita, Ludwig Wittgenstein
(1889-1951), filósofo austríaco, naturalizado britânico.
SUPER 85
Z O O L O G I A
SHUTTERSTOCK
86 SUPER
OS
ICTIOSAU R
LEVIATÃS DO PASSADO
O seu tamanho impressiona e imaginar os oceanos com este animal a povoar as suas águas é
bastante inquietante. Este gigante marinho, do qual ainda há muito por descobrir, transformou-se
para passar da terra ao meio aquático, adaptando habilmente o seu corpo para se tornar um predador
eficaz: as patas transformaram-se em barbatanas e o corpo tornou-se curto e hidrodinâmico. O seu
estudo permite-nos observar o pulsar da vida, a sua evolução e as suas extinções.
SUPER 87
SHUTTERSTOCK
Esqueleto fóssil de
um pliossauro do
Museu de História
Natural de
Londres. Estes
animais eram
carnívoros com
cabeças grandes e
mandíbulas
poderosas.
E
m 10 de maio de 1941, a Luft- local para se apoderar da peça completa, que acabaria
waffe, a força aérea nazi, por incluir um enorme crânio, com um focinho alon-
sobrevoou Londres durante gado, vários dentes e olhos grandes, juntamente com
o último ataque Blitz. Milha- a parte da frente do corpo do animal. Anning vendeu
res de bombas devastaram a o fóssil por cerca de 23 libras, que usou para sustentar
capital britânica. O edifício a família.
do Royal College of Surgeons Onde é que, entre todos os outros seres vivos, se encai-
foi um dos afetados, tendo xava um animal destes? Foi esta a questão que se colocou
sido atingido três vezes e in- a Everard Home, anatomista do Royal College of Sur-
cendiando-se de seguida. As geons e cunhado de Hunter, ao analisar em pormenor
chamas espalharam-se pelos a peça encontrada pelos Annings. Na realidade, os fós-
corredores, laboratórios e sa- seis de ictiossauros eram conhecidos pelo menos desde
las até chegarem ao Hunterian Museum, propriedade 1669. No entanto, eram pistas escassas que só serviam
do cirurgião John Hunter, que albergava milhares de para desnortear os que tentavam desvendar o mistério,
peças anatómicas e de história natural. Nessa noite, dando origem a todo o tipo de especulações. Em 1814,
mais de dois terços dessa coleção ficaram reduzidos Home descreveu o espécime num artigo publicado na
a uma massa carbonizada, incluindo uma peça icóni- Philosophical Transactions, onde referiu que poderia
ca da paleontologia: o primeiro fóssil completo de um ser uma espécie de crocodilo. No entanto, a semelhan-
ictiossauro. ça com os peixes fê-lo hesitar. O exame subsequente de
Já em 1812, as nações europeias estavam envolvidas outros fósseis apenas serviu para aumentar o mistério.
noutro conflito, as guerras napoleónicas. No entanto, Finalmente, em 1819, Home chegou a uma conclusão.
longe dos campos de batalha e dos gabinetes onde se Nessa altura, a teoria da evolução ainda não tinha surgi-
decidia o destino do continente, uma estranha criatu- do. Por outro lado, a scala naturae ou cadeia dos seres,
ra estava prestes a surgir para capturar a imaginação ideia segundo a qual havia uma hierarquia que ordenava
da sociedade inglesa. Aconteceu quando uma rapariga todas as formas de vida , ainda estava em vigor . Segun-
de treze anos conseguiu escavar um estranho fóssil em do este ponto de vista, a criatura poderia representar
Lyme Regis, uma cidade costeira de Dorset. No ano an- um elo entre répteis e anfíbios, razão pela qual a batizou
terior, o seu irmão Joseph tinha encontrado os restos de Proteosaurus, dada a suposta semelhança das suas
mortais numa falésia. Mary Anning regressou então ao vértebras com um grupo de salamandras conhecidas
88 SUPER
Os ictiossauros que habitaram os oceanos do Triássico
representam os primeiros gigantes da Terra
Há 251 milhões
de anos, 90% das
espécies tinham
desaparecido e
as sobreviventes
lutavam para
colonizar o
supercontinente
Pangéia e o
SHUTTERSTOCK
oceano
Pantalassa.
SUPER 89
O maior dos ictiossauros conhecidos, o Shastasaurus
sikanniensis, pode ter atingido 21 metros de comprimento
mais pequenos, presas que, por sua vez, eram alimen- ros de Berlim, no Nevada, foram encontrados os restos
tadas por uma população abundante de amonites. de cerca de 37 exemplares de Shonisaurus popularis,
Os paralelos entre estes leviatãs do Triássico e as baleias, uma espécie que viveu há cerca de 230 milhões de anos e
ambos representando ramos evolutivos que deixaram a que chegou a atingir 15 m de comprimento. Qual a razão
terra, são incríveis. O maior de todos os ictiossauros co- desta congregação de fósseis? Durante muito tempo,
nhecidos até à data é o Shastasaurus sikanniensis, que as explicações apontavam para um encalhe em mas-
viveu há cerca de 210 milhões de anos. Este animal pode sa ou para o envenenamento por proliferação de algas
ter atingido um comprimento de 21 m e pesava cerca tóxicas. No entanto, de acordo com uma investigação
de 80 toneladas. Foi descoberto na Colúmbia Britâni- recente publicada em 2022, o local representa um sí-
ca, no Canadá, pela paleontóloga canadiana Elizabeth tio onde os ictiossauros deram à luz durante milhares
Nicholls, em 1992. O corpo do S. sikanniensis era lon- de anos, uma vez que eram animais vivíparos. Ou seja,
go e esguio, e tinha uma cauda adaptada esses répteis marinhos faziam grandes migrações pelo
para nadar lentamente. Por esta razão, oceano para se reproduzir, deslocando-se a locais espe-
provavelmente alimentava-se de pe- cíficos geração após geração.
quenos animais, que abocanhava em
grandes bocados, graças a poderosos COMO É QUE OS RÉPTEIS TERRESTRES SE TRANSFORMARAM
músculos da língua. Vejamos outro EM FASCINANTES CRIATURAS MARINHAS? No século XX, os
exemplo. No Parque ictiossauros continuavam a atormentar a paleontolo-
Estadual dos gia com incógnitas. Foi em 1982 que investigadores
Ictiossau- da Universidade de Hokkaido encontraram parte da
resposta a nordeste de Honshu, a principal ilha do
Japão. Tratava-se de dois esqueletos quase completos
de Utatsusaurus, um réptil do Triássico Inferior com
cerca de 3 m de comprimento. O paleontólogo Ryo-
suke Motani, depois de estudar os fósseis em 1995,
descreveu o animal como um «ictiossauro, seme-
Muitos dos
grandes répteis
deixaram a terra
e adentraram-se
no meio marinho,
sofrendo
alterações
morfológicas,
fisiológicas e
SHUTTERSTOCK
etológicas na sua
evolução.
90 SUPER
90 - Muy Interesante
lhante a um lagarto com barbatanas». Pouco depois,
na China, foi descoberto outro ictiossauro primitivo,
batizado de Chaohusaurus. Ambas as pistas permi-
tiram-nos situar os nossos protagonistas na árvore
evolutiva dos répteis.
Após estes primeiros passos dados na costa, os ictios-
sauros acabariam por abraçar o ambiente marinho, à
medida que eram moldados pela evolução. Tentemos
delinear este maravilhoso percurso, que envolveu mu-
danças morfológicas, fisiológicas e etológicas. As patas,
adaptadas à vida em terra, deram lugar a barbatanas. A
forma do corpo foi-se tornando cada vez mais curta e
mais hidrodinâmica, para evitar a resistência à natação,
e nalgumas espécies houve mesmo o desenvolvimento O paleontólogo Martin
de barbatanas dorsais. Esta caraterística, juntamente Sander, da Universidade
de Bona, junto ao crânio
com a vantagem oferecida pelo sangue quente, tornou- de um Cymbospondylus
VELZJUARBEJ
-os animais muito rápidos. youngorum.
Uma vez que continuavam a respirar ar, as adaptações
foram-se aperfeiçoando, permitindo-lhes mergulhar
durante períodos de tempo mais longos para capturar
presas a maiores profundidades. Isto exigiu também
uma visão adaptada a um ambiente onde a quan- do um possível recorde para todos os animais. Do mais
tidade de luz é menor. Por esta razão, os pequeno para o maior, podemos comparar este valor
ictiossauros acabariam por desenvolver com os olhos do elefante africano (5 cm), da baleia azul
olhos grandes. Por exemplo, o Ophthal- (15 cm) ou da lula gigante (25 cm).
mosaurus, que viveu no Jurássico,
tinha olhos com até 23 cm de diâme- O DECLÍNIO DOS ICTIOSSAUROS. Do ponto de vista de um
tro. Mas os maiores olhos eram os do banhista, ou de uma presa indefesa, os mares jurássicos
Temnodontossauro, a criatura do não devem ter sido muito tranquilizadores. A lista de
Jurássico encontrada pelos An- predadores incluía os plesiossauros, répteis marinhos
ning, que tinham um diâmetro de pescoço comprido, cujo comprimento do corpo va-
de cerca de 26 cm, estabelecen- riava entre 2 e 17 metros. Neste grupo, encontramos
os pliossauros, carnívoros com cabeças enormes e um
comprimento de corpo até 15 m, que, graças às suas
poderosas mandíbulas, caçavam um grupo diversifica-
do de animais em mar aberto. Por outro lado, tubarões
como o Hybodus, que chegavam a atingir 2 m de com-
primento e atuavam como predadores oportunistas,
viviam em águas pouco profundas. Mas as criaturas
mais pequenas, ou as que tinham mais probabilidades
de acabar na ementa, também não ficavam muito atrás.
Por exemplo, a evolução tornou mais rápidas algumas
linhagens de peixes. Este foi o ambiente enfrentado pe-
los ictiossauros, que não tiveram um bom começo no
novo período.
Há cerca de 201 milhões de anos, ocorreu um evento de
extinção que dizimou 76% das espécies, marcando o
fim do Triássico. Após esse acontecimento, os colossais
ictiossauros foram relegados para o esquecimento. Em
contraste, os ictiossauros mais pequenos e mais rápidos
prosperaram num ambiente mais competitivo. Foi para
este mundo, onde os répteis pareciam ter-se transmu-
tado em peixes, que Anning e os seus contemporâneos
olharam.
Entre o final do Jurássico e o início do Cretáceo, os
ictiossauros enfrentaram novamente uma época tur-
bulenta. A Pangea estava a desintegrar-se e o clima
global começava a aquecer, provocando a subida do
nível do mar, enquanto outras alterações se faziam
sentir nos ecossistemas. Ainda assim, a evolução
também se fez sentir nestes répteis marinhos, que
evoluíram para espécies caçadoras mais hidrodinâ-
micas e hábeis. Um exemplo disso é o Kyhytysuka
sachicarum, um hipercarnívoro de 5 m de compri-
mento, cujos dentes eram capazes tanto de cortar
como de esmagar as presas. Durante o Cretáceo, al-
SUPER 91
Fóssil de
Ictiossauro do
Museu do Estado
do Nevada. Estes
animais podem
ter desaparecido
devido ao
aumento da
temperatura da
superfície do mar.
Em baixo, um
NEVADA STATE MUSEUM
ictiossauro do
Museu de
História Natural
de Londres.
AGE
go acabou por quebrar o ramo dos ictiossauros. A sobrancelhas de espanto, traçar a história dos ictiossau-
questão da extinção destas criaturas é ainda objeto ros permite-nos também vislumbrar o pulsar da vida,
de debate académico. A única coisa que sabemos com impulsionada pela evolução e marcada pelas extinções.
certeza é que ocorreu 30 milhões de anos antes do fa- É uma visão instigante, pois imaginamos criaturas se-
moso impacto catastrófico, que destruiu o mundo dos melhantes a peixes a navegar num oceano igualmente
dinossauros, mas também o dos plesiossauros. Porque estranho.
é que o declínio dos nossos protagonistas chegou mais
cedo? Uma das primeiras hipóteses apontava para a DESDE A SUA DESCOBERTA, NO SÉCULO XIX, APÓS DÉCADAS DE
baixa diversidade do grupo nessa altura, razão pela DEBATE E DE REGISTOS FÓSSEIS, a paleontologia conseguiu
qual não teriam sido capazes de competir num cená- desbravar o terreno para contemplar a árvore evolutiva
rio repleto de predadores. No entanto, sabemos agora dos ictiossauros. Mas o puzzle ainda está em constru-
que as suas linhagens não eram tão pequenas duran- ção, o que significa que podemos esperar atualizações
te este período. Uma segunda hipótese, avançada por surpreendentes desta história no futuro.
paleontólogos como Valentin Fischer, destaca o papel Com base no registo fóssil, várias pistas parecem indicar
das alterações climáticas que modificaram drastica- que leviatãs ainda maiores do Triássico estão ainda por
mente o ambiente. O Cretáceo Superior foi marcado descobrir. Em maio de 2016, a mandíbula inferior de um
por uma série de flutuações climáticas, associadas enorme ictiossauro que viveu há 205 milhões de anos
ao vulcanismo e ao movimento dos continentes, que foi encontrada numa praia em Somerset, Inglaterra.
aumentaram a temperatura da superfície do mar, Depois de comparar estes restos com fósseis de Shas-
elevaram o nível do mar e provocaram episódios de tasaurus sikanniensis, os investigadores concluíram
anoxia ou falta de oxigénio nos ecossistemas aquáti- que tinha cerca de 26 m de comprimento. Por outras
cos, entre outros efeitos. Este cenário teria produzido palavras, era tão grande como uma baleia azul. Outra
o desaparecimento dos ictiossauros em duas fases, pista foi encontrada nos Alpes suíços, onde paleontólo-
uma inicial há cerca de 100 milhões de anos e uma fi- gos desenterraram o maior dente de ictiossauro jamais
nal após cerca de cinco milhões de anos. encontrado, juntamente com uma vértebra também de
O paleoantropólogo Richard Leakey afirmou que «a vi- tamanho considerável.
da, vista através de uma janela paleontológica, é como Entretanto, em março de 2023, uma equipa de
uma imagem de caleidoscópio, para a qual a mudança paleontólogos suecos e noruegueses anunciou a des-
não é apenas natural, mas inevitável». Para além dos coberta do mais antigo ictiossauro conhecido. Os
factos curiosos, dos leviatãs que nos fazem arquear as seus restos foram encontrados em 2014 a oeste de
92 SUPER
Os ictiossauros são considerados sobreviventes de uma
extinção em massa e não sucessores ecológicos
SHUTTERSTOCK
Durante o
Cretáceo, as
alterações
climáticas
modificaram
abruptamente o
ambiente. O
Cretáceo
Superior esteve
associado a
flutuações como
o vulcanismo e o
movimento dos
continentes.
Spitsbergen, a maior ilha do arquipélago ártico de Para além dos fósseis de ictiossauros, os feitos de An-
Svalbard. Trata-se, concretamente, de onze vérte- ning incluem a descoberta, em 1823, do primeiro fóssil
bras pertencentes a uma cauda cujo dono ainda não completo de um plesiossauro. Este espécime, cujo
foi nomeado e que viveu há cerca de 250 milhões de longo pescoço era constituído por 35 vértebras, cau-
anos. Portanto, este animal habitou a Terra apenas sou uma grande agitação na comunidade científica.
dois milhões de anos após a catastrófica extinção Inicialmente, o naturalista Georges Cuvier chegou a
do Permiano, há cerca de 252 milhões de anos. Este classificar a notícia como uma falsificação. Pouco de-
pedaço de árvore foi inesperado porque, segundo os pois, em 1828, Anning desenterrou o esqueleto parcial
investigadores, «o seu grande tamanho e estrutura de um pterossauro, o primeiro a ser descoberto fora
óssea interna» parecem indicar que estamos peran- da Alemanha. Inspirado por estas criaturas, em 1830 o
te uma espécie totalmente adaptada a um estilo de geólogo Henry de la Beche desenhou Duria Antiquior,
vida oceânico. Por esta razão, defendem que deve- um Dorset mais antigo, uma imagem considerada a
mos considerar a linhagem dos ictiossauros como primeira recriação da vida pré-histórica baseada em
«sobreviventes da extinção em massa, em vez de su- registos fósseis.
cessores ecológicos» do Permiano. As importantes contribuições científicas de Anning
foram ofuscadas por uma sociedade académica que,
O PRIMEIRO FÓSSIL COMPLETO DE ICTIOSSAURO FOI DESTRUÍ- embora se baseasse nos seus fósseis, se recusava a dar
DO NO DECURSO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL. No entanto, crédito ao trabalho realizado por mulheres. A sua vida
em 2016, os paleontólogos Dean R. Lomax e Judy A. foi também marcada por problemas financeiros.
Massare encontraram uma cópia em gesso do mesmo Por esta razão, em 1820, o coronel Thomas James Bir-
fóssil no Museu Peabody de História Natural da Uni- ch organizou um leilão onde vendeu a sua coleção de
versidade de Yale, que tinha sido esquecido entre as fósseis para ajudar a família de Anning com os lucros.
prateleiras e o pó. Com este dinheiro, juntamente com as suas poupan-
Graças à ilustração incluída por Everard Home no seu ças, a caçadora de fósseis conseguiu comprar uma casa
artigo de 1819, identificaram o que poderia ser con- com uma montra onde, em 1826, abriu o Anning’s
siderado como um dos legados da paleontóloga Mary Fossil Depot. Aí se podia admirar o esqueleto de um
Anning. Algum tempo depois, em 2019, Lomax en- ictiossauro e comprar fósseis de amonites ou belem-
controu outro molde igualmente abandonado entre nites, entre outras criaturas. Era certamente um sítio
as coleções do Museu de História Natural de Berlim. que valeria a pena visitar. e
SUPER 93
C I N E M A
Na versão de 1976 de
King Kong, do
realizador John
Guillermin, várias
atrizes foram
consideradas para
interpretar a
protagonista, mas no
final foi escolhida uma
empregada de mesa
desconhecida,
Jessica Lange.
ASC
90 ANOS
DE KING KONG
E OUTRAS «MACACADAS» CINEMATOGRÁFICAS
94 SUPER
A figura deste gorila gigante atrai-nos em igual medida pela sua força
poderosa e pela sua vulnerabilidade. Esta personagem mítica da história
do cinema é, por vezes, furiosa e, por vezes, incrivelmente sensível, e isso
seduz-nos. Os símios sob a forma humana lançam sobre nós um feitiço
inexplicável, e a sétima arte aproveitou-se disso.
O
macaco está presente na ficção O guião do filme é obra do escritor britânico Ed-
desde os tempos mais remotos. gar Wallace, que elabora um primeiro argumento
Basta pensar em Hanuman, o com Merian C. Cooper, que também realiza o filme
herói símio do Ramayana, um juntamente com Ernest B. Schoedsack. Infelizmente,
poema épico sânscrito escrito Wallace morre, pelo que James Ashmore Creelman
entre 750 e 700 a.C., para com- e Ruth Rose, a mulher de Schoedsack, aperfeiçoam
preender que esta relação é muito a sua história, dando-lhe a sua forma final de argu-
antiga. mento cinematográfico.
A figura do macaco huma- King Kong é uma das maiores personagens da his-
noide, o macaco selvagem dos tória do cinema; algo que o filósofo Fernando Savater,
livros de maravilhas que de- «cinéfago» declarado (que é a minha forma preferi-
ram origem a mitos que sobrevivem até hoje, como o da de designar aqueles que devoram o cinema com
dos yetis ou das civilizações impossíveis de tribos de fruição), compreende e explica maravilhosamente:
macacos isolados nas profundezas da selva, é particu- «Porque é que a figura gigantesca e peluda de King
larmente significativa para o tema em questão. Kong nos comove, e até nos comove especialmente,
Como afirma o realizador Arturo Montenegro, a re- de uma forma mais intensa e inexplicável do que a de
ferência mais antiga é possivelmente a do almirante outros monstros no ecrã? Porque nos aparece de duas
cartaginês Hanon (século V a.C.). Na crónica da sua formas contrastantes: é imensamente forte, como to-
viagem a África, a expedição terá tido de enfrentar abo- dos nós gostaríamos de ser. Mas também imensamente
rígenes selvagens. Uma tribo de seres peludos e pouco vulnerável, como cada um de nós, na nossa intimida-
refinados, que, devido à sua baixa cultura e espírito be- de, sabemos que somos [...]».
licoso, foram batizados de «gorilas». A força de Kong é evidente. A cena em que quebra as
Tudo isto, e mil referências mais, que vou deixar de suas grossas correntes quando é exibido como atração
fora, são o terreno fértil que pode considerar-se ante- de feira em Nova Iorque transforma-o numa espécie
cedente do King Kong, o grande símio gigante que em de Sansão que se liberta das suas amarras graças à sua
2023 celebra o seu aniversário, pois serão 90 anos desde
a sua aparição nos ecrãs de todo o mundo, mudando pa-
ra sempre a história do cinema.
SUPER 95
força proverbial. Mas é a sua natureza vulnerável que
eleva a personagem a outro nível, pois o ponto fraco
do titã-macaco é o amor. Savater, mais uma vez, ex-
plica-o lindamente: «O gorila gigante vive solitário
e soberano na ilha dos sonhos, povoada por criatu-
ras fantásticas. Aí não abundam as loiras, por isso ele
apaixona-se com as suas enormes patas pela primeira
que lhe é oferecida [...] Depois é roubada e ele terá de
a perseguir até à grande cidade, uma selva feita de as-
falto e arranha-céus cujos perigos ignora. «A cidade
não é para mim», pensará o já destronado rei Kong. A
rapariga também não será para ele, apesar de a amar
tanto, e descobre isso quando está no topo do mundo.
[...] Kong aperceber-se-á de que só pode ser noivo da
morte, não da loira. Acordará do seu sonho ao cair do
topo do arranha-céus, como nós por vezes acordamos
de um pesadelo com uma estranha sensação de queda
no estômago... O amor fica no alto, nós caímos».
A verdadeira magia do filme reside em dar uma alma
ao que não é mais do que um boneco articulado; e, nesse
sentido, Willis O’Brien e a sua equipa podem ser consi-
derados os verdadeiros artífices do filme.
King Kong estreia-se em Nova Iorque, a 7 de março
de 1933, no Radio City Music Hall, com grande sucesso.
Do outro lado do país, na Califórnia, dois adolescentes
ASC
chamados Ray Harryhausen e Ray Bradbury planeiam Fray Wray, estrela do primeiro filme de King Kong. Peter Jackson
levar o carro da mãe do primeiro para escapar até um ofereceu-lhe uma participação especial no seu filme de 2005, mas
cinema local que exibia King Kong. Quando vêem no ela recusou.
ecrã o macaco gigante empoleirado no topo do Empire
State Building, as suas vidas mudam para sempre. Ali,
fazem um juramento solene. Os dois serão sempre ami-
gos e a fantasia dominará as suas vidas. de ficção científica, como Fahrenheit 451 ou Crónicas
O primeiro torna-se o mais famoso técnico de efei- Marcianas.
tos especiais de stop motion de todos os tempos (com a
permissão de O’Brien); e o segundo, um distinto escri- SEQUELAS E REMAKES DE KING KONG. O sucesso de King Kong
tor, conhecido pelos seus famosos romances e histórias levou a R.K.O. a produzir imediatamente uma seque-
la intitulada The Son of Kong (1933), desta vez dirigida
a solo por Ernest B. Schoedsack e com O’Brien e a sua
equipa encarregues dos efeitos especiais. Como se po-
de deduzir do título do filme, a expedição que capturou
o King Kong original regressa à Ilha da Caveira, onde
consegue capturar a cria do macaco gigante. A criatura,
também criada pelo mestre O’Brien, tem pêlo albino,
um tamanho um pouco mais discreto e um caráter mais
afável e brincalhão do que o seu progenitor. O filme tem
um bom desempenho nas bilheteiras, embora não se
aproxime em qualidade nem em receitas de bilheteira
do título original.
Como não há duas sem três, O’Brien e Schoedsack
participam num último filme protagonizado por um
macaco gigante. Trata-se de The Great Gorilla (1949),
cuja novidade mais notável foi a incorporação de um jo-
vem Ray Harryhausen como parte da equipa técnica de
efeitos especiais do filme.
96 SUPER
o rei macaco sobe ao topo das Torres Gémeas, inaugu-
radas em 1973.
A segunda diz respeito à escolha da atriz para inter-
pretar a loira Ann Darrow. Bo Derek, Barbra Streisand
e Cher fizeram audições para o papel, bem como duas
jovens atrizes que eram algo desconhecidas na altura,
Melanie Griffith e Meryl Streep. Mas, no final, o produ-
tor optou por outra desconhecida que trabalhava como
empregada de mesa e modelo para pagar os seus estudos
de representação: Jessica Lange, que se estreou no cine-
ma com este filme, iniciando uma carreira de sucesso.
Em 1986, De Laurentiis rodou uma sequela intitulada
King Kong 2, dirigida pelo próprio Gillermin, com uma
jovem Linda Hamilton no papel feminino principal, que
se revelou um retumbante fracasso de bilheteira.
Com o desenvolvimento da tecnologia digital no sé-
culo XXI, o cinema de Hollywood sente que é altura de
ASC
trazer de volta King Kong. O projeto cabe a Peter Jack-
Imagem promocional do filme japonês King Kong que apareceu son, um verdadeiro especialista no género fantástico,
em Edo (1938) de Sôya Kumagai. conhecido mundialmente pela sua trilogia de filmes que
adapta O Senhor dos Anéis.
Jackson sabe que é fundamental encontrar a atriz cer-
ta para interpretar o papel de Ann Darrow, uma vez que
kaijû eiga (um subgénero do cinema fantástico japonês a história de King Kong se baseia na química entre a bela
protagonizado por monstros gigantes). e a fera. Finalmente, o papel cabe à bela e talentosa Nao-
A origem deste projeto é mais do que curiosa. Wil- mi Watts. Jackson, um fã de Fay Wray, a atriz original,
lis O’Brien e Cooper tinham tentado, sem sucesso, oferece-lhe uma participação especial no filme, mas a
lançar um novo título protagonizado pelo macaco gi- veterana atriz de 94 anos recusa o convite devido à sua
gante. Era uma tarefa difícil, pois o filme opunha dois saúde debilitada.
grandes monstros do cinema ocidental: King Kong e
Frankenstein.
Quando o filme falhou, R.K.O. vendeu os direitos ci-
nematográficos ao Japão, e o projeto foi assumido pela
Honda, que manteve o macaco gigante, mas substituiu
o monstro imortal de Mary Shelley pela sua própria
criatura, Godzilla.
Tanto Honda como o técnico de efeitos Eiji Tsuburaya
estão conscientes de que trabalham com dois ícones da
história do cinema. Na tradição dos filmes de monstros
japoneses, não recorrem à técnica de stop motion, mas
a um ator vestido de lagarto mutante, Haruo Nakajima,
acompanhado por Shoichi Hirose, que veste um fato de
Kong.
O confronto entre os dois titãs começa de forma es-
petacular, com King Kong a saltar de para-quedas (ou
algo semelhante feito com balões aerostáticos) sobre o
Monte Fuji — como teria sido bom ter o macaco original
empoleirado no Empire State Building!
Segue-se uma batalha de golpes, na qual Godzilla,
graças ao seu hálito radioativo, se aguenta muito me-
lhor do que o tiranossauro que enfrenta Kong na versão
de 1933.
O filme tornou-se um verdadeiro fenómeno de mas-
sas no Japão, facilitando a filmagem de novas produções
japonesas protagonizadas pelo grande macaco. Isto le-
vou a uma série animada de 26 episódios realizada por
Hiroshi Ikeda em 1966, seguida de um novo projeto
cinematográfico filmado por Honda, intitulado King
Kong Escapes ( 1967).
realizado em 1976 por John Gillermin. Cartaz do filme King Kong, de 2005, do realizador Peter Jackson,
Esta película apresenta duas novidades de destaque: a no qual o papel de Ann Darrow é interpretado pela atriz Naomi
primeira é trazer a ação para o presente, razão pela qual Watts e o do monstro por Andy Serkis.
SUPER 97
ASC
ASC
À esquerda, Jane, o macaco Cheetah e Tarzan, as estrelas indiscutíveis da saga de filmes de Tarzan protagonizados por Johnny
Weissmüller. À direita, cartaz do filme Gorillas in the Mist, com Sigourney Weawer, sobre a vida de Dian Fossey.
Em 2017, o cinema de Hollywood produz King Kong Barnaby Fulton, um médico que faz experiências
e a Ilha da Caveira, realizado por Jordan Charles com chimpanzés num laboratório para encontrar
Vogt-Roberts, e em 2021 chega o último filme a prota- a pílula da eterna juventude. Um dos macacos mis-
gonizar o macaco gigante, Godzilla vs. Kong, de Adam tura acidentalmente vários ingredientes, obtendo
Wingard. o resultado desejado e desencadeando uma série de
É interessante notar que o título deste remake apre- situações cómicas sofridas por todos os que experi-
senta em primeiro lugar a criatura criada pela Honda, mentam a fórmula.
que ao longo dos anos igualou, ou mesmo ultrapassou Este não é o único caso em que um macaco dá um
em popularidade, o grande King Kong de Hollywood. toque cómico a um filme. Veja-se, por exemplo, o oran-
gotango Clyde, companheiro do sério Clint Eastwood
OUTROS MACACOS NO CINEMA. Quando David O. Selznick, em Die Hard (1978) de James Fargo e na sua sequela, The
produtor da R.K.O., oferece o papel de Ann Darrow a Big Fight (1980) de Buddy Van Horn.
Fay Wray, diz-lhe que o seu parceiro é a maior estre- O meu favorito é Louie, o rei macaco louco, que dan-
la de Hollywood. A atriz pensa que vai atuar com Clark ça com o urso Baloo no desenho animado da Disney O
Gable, mas o produtor referia-se ao macaco gigante. Livro da Selva (1967). Não podemos esquecer Stanley
Embora King Kong seja, sem dúvida, a estrela símia Kubrick, que mostra o hominídeo que cria a primeira
mais conhecida da sétima arte, existem outros filmes tecnologia da humanidade no seu 2001 Uma Odisseia
importantes protagonizados por macacos. no Espaço (1969); nem Charlton Heston, que tem de
Embora esta lista seja necessariamente incompleta, lidar com toda uma civilização de macacos que domi-
vale a pena mencionar o chimpanzé Jiggs (que inter- na o mundo e escraviza os humanos em Planeta dos
preta a macaca Cheetah), que acompanhou Johnny Macacos (1968).
Weissmüller em Tarzan of the Apes (1932). Após a sua Deixo para o fim um dos meus filmes preferidos, Go-
morte em 1938, é substituído por outro chimpanzé cha- rillas in the Mist (1988), de Michael Apted, que aborda
mado Mike. a figura da naturalista Dian Fossey (interpretada por Si-
Também gosto de I Feel I’m Getting Younger (1952), gourney Weaver) e o seu trabalho com estes primatas
de Howard Hawks, em que Cary Grant dá vida ao Dr. no Ruanda. e
5,50 €
(Cont.)
x(4B4CD7*KKMOKT( +”!z!%!”!@
NÚMERO 303
MENSAL ○ JULHO 2023
ENTREVISTA
NUNO MAULIDE
A QUÍMICA ORGÂNICA
SEM COMPLEXIDADE
PÁG. 42
GUERRA
PORTUGAL NA
1ª GUERRA MUNDIAL
PÁG. 80
TECNOLOGIA
SERÁ QUE ALGUMA
VEZ VEREMOS A
FUSÃO NUCLEAR A
FUNCIONAR?
PÁG. 36
HISTÓRIA
A ÚLTIMA NOITE
DE GIACOMO
CASANOVA
PÁG. 88
CRIMINOLOGIA
PORQUE É QUE
AS CRIANÇAS
MORFOLOGIA
MATAM?
PÁG. 74
GALÁCTICA
N.º 303
PORTUGAL NA
QUE FORMA TÊM AS GALÁXIAS E PORQUÊ? 1ª GUERRA MUNDIAL
39 E/ano 19 E/ano