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NÚMERO 307

MENSAL ○ NOVEMBRO 2023

PRÉ-HISTÓRIA ENTREVISTA
PENÍNSULA IBÉRICA, ALDA AZEVEDO
O REFÚGIO HUMANO NA ERA PENSAR O FUTURO COM
GLACIAR EUROPEIA BASE NA DEMOGRAFIA

SAÚDE
CURAR COM BACTÉRIAS
PRÉ-HISTÓRICAS?
ZOOLOGIA
ICTIOSSAUROS,
OS LEVIATÃS
DO PASSADO

HISTÓRIA
D. JOÃO II
DE PORTUGAL

NEUROCIÊNCIA
PORQUE É QUE VEMOS
FANTASMAS

MECANISMOS
CEREBRAIS
COMO FUNCIONA A MENTE HUMANA
ND A
A!
VE R
À AGO

VIVER A HISTÓRIA
COM PAIXÃO

EDIÇÃO BIBLIOTECA
EDIÇÃO
BIBLIOTECA
CELTAS GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS
PORTUGAL ORIGENS DE UMA NAÇAO

PALEOARTE
VALE DO CÔA
Território de
memória
GRUTA DO ESCOURAL
Marco do paleolítico
no Alentejo
MISTÉRIO
Stonehenge e outros
santuários megalíticos

PALEOARTE
Conheça a formação de Portugal
como Nação através de grandes
historiadores: conhecerá os
CELTAS
GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS
Onde e quando surgiu
o nosso impulso artístico
A arte acompanha o ser humano
desde os tempos mais remotos, ao
longo da sua evolução. O que é que
protagonistas, os momentos Mergulhe na Idade do Ferro e descubra os artistas das cavernas pretendiam
decisivos, os desafios e as bases uma das culturas mais fascinantes alcançar com as suas pinturas? O
do futuro império. da Europa, a Celta, pelas mãos de que é que elas simbolizam?
grandes especialistas.
NotíciasFlix

SE DE I CT OC RI IÓA NL

Mil perguntas sobre o cérebro


F
onte das nossas emoções, pensamentos e ações, o nosso cérebro tem sido comparado a uma máquina
perfeita ao longo da história da ciência. Um mecanismo altamente complexo que, até hoje, não está
totalmente compreendido. Em 2016, o neurorradiologista Matthew Glasser realizou um mapeamento
cerebral no qual foram registadas novas áreas anatómicas e 97 regiões foram adicionadas às 83 já descritas e
conhecidas. A mente, em termos gerais, é o «resultado» da atividade cerebral e está ligada à consciência e à
perceção. Então, como funciona esta máquina que nos torna humanos, quais são os seus
processos internos, como é que a nossa própria evolução influenciou a sua plasticidade?
Estas eternas questões e os últimos avanços da investigação são o tema do nosso artigo
de capa: uma panorâmica geral que aborda tudo o que ainda está por descobrir. E, como
sempre, não é o único artigo que irá captar a sua atenção. Porque é que algumas pessoas
estão biologicamente predispostas a ver fantasmas e a sofrer fenómenos paranormais?
Que promessas médicas nos podem dar as bactérias pré-históricas em termos de cura
de doenças atuais como a ELA ou a diabetes? E como nos podemos defender das fake
news que procuram manipular «precisamente» as nossas mentes? Como vêem, tudo Carmen Sabalete,
diretora
questões que despertarão a vossa curiosidade para continuar a ler e desfrutar. csabalete@zinetmedia.es

Mais SUPER no seu quiosque:


NÚMERO 1 ○ ABRIL 2023

INTERESSANTE

EDIÇÃO BIBLIOTECA EDIÇÃO BIBLIOTECA EDIÇÃO


BIBLIOTECA

AFONSO
HENRIQUES
CELTAS GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS

e o nascimento de
PORTUGAL ORIGENS DE UMA NAÇAO

Portugal
O MILAGRE DE
OURIQUE
PALEOARTE

ou o mito nacional
de sobrevivência
D.DINIS, A
VALE DO CÔA
Território de JÁ HOUVE UM TSUNAMI
EM PORTUGAL?
memória
CONSOLIDAÇÃO
DO TERRITÓRIO GRUTA DO ESCOURAL
e afirmação Marco do paleolítico
da identidade no Alentejo Que sermão deu
Santo António
EXPANSÃO MISTÉRIO aos peixes?
PORTUGUESA: Stonehenge e outros
Que países foram fundados

CELTAS
as primeiras décadas santuários megalíticos por ex-escravos?
É legal que a minha renda

PALEOARTE
seja revista em concordância

PORTUGAL
com o IPC?

Onde e quando surgiu


Cor nos animais - para Júlio César
namoriscar ou para Quando é que ocorre o tinha um

GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS Origens de uma nação o nosso impulso artístico 1


assustar? crime de peculato?

E mais 150 Perguntas e Respostas


piercing?

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SUPER 3
Sumário

20
AGE

REPORTAGENS 72 Porque é que vemos


12 O último refúgio humano
da Idade do Gelo europeia
fantasmas?
A neurociência tem muito a dizer sobre a
predisposição para fenómenos paranormais.
44
A Península Ibérica foi o último refúgio dos
primeiros habitantes da Europa durante a 80 Ernst Tugendhat
Idade do Gelo. O filósofo em busca de um fundamento ético.

20 Ciclo de vida humano 86 Ictiossauros


O tempo de que necessitamos para a Os incríveis gigantes marinhos da antiguidade
«cerebralização» é o que nos torna uma e a sua evolução da terra para o mar.
espécie.
94 90 anos de King Kong
32 Cura com bactérias A história desta personagem mítica e de
pré-históricas outros símios muito cinematográficos.
Cientistas espanhóis estão a estudar esta
questão utilizando bactérias com milhões de
anos. EN T R E V ISTA
38 Fake news 28 Alda Azevedo
Dispomos de meios para nos defendermos de Pensar o futuro com base na Demografia
ISTOCK

informações falsas e tendenciosas?


RÚBRICAS 19 Ciência quotidiana
44 Vingança Jose Manuel López Nicolás sobre a ciência
A psicologia do «olho por olho». 6 Notícias atuais do guisado.
Por Cristina Enríquez.
50 Como funciona a mente 60 Motor
A cognição não se limita à mente, engloba 9 Matrizes e Matrazes Curiosidades do motor
outros órgãos e está relacionada com o Eugenio Manuel fala-nos da June McCarroll. de José Manuel González.
FOTO DA CAPA: ASC

ambiente.
64 D. João II de Portugal 10 Falar de ciência 78 Tecnocultura
África, Atlântico e Índia no seu reinado As palavras da ciência, por M. S. Sabadell. J. Moreno em busca do grande algoritmo.
4 SUPER
SHUTTERSTOCK MIT

32

86
78
38

94

ASC GTRES

SUPER 5
DISCOVERY ATUALIDADE
POR CRISTINA ENRÍQUEZ

PATAGÓNIA, A FÁBRICA Recriação do jakapil, um

MUNDIAL DE DINOSSAUROS
dinossauro herbívoro
que andava semi-ereto.

ASC
m 1993, um caçador de fós-

E
seis amador, chamado Rubén
Carolini descobriu na Pata-
gónia o primeiro fóssil do
Giganotosaurus carolinii, um dos maiores
carnívoros que alguma vez viveu na Ter- Argentina), tinha menos de um metro e pensava relicto [um remanescente de um
ra. Este predador letal tinha entre 12 e meio de altura e pesava entre quatro e se- ecossistema em regressão]. Teria sido
13 metros de comprimento, pesava quase te quilos, era herbívoro, tinha uma man- mais lógico encontrá-lo em terrenos ju-
sete toneladas (um pouco maior do que díbula alta e robusta e as patas dianteiras rássicos. O facto de aparecer no Cretáceo
o mítico Tyrannosaurus rex) e viveu nesta muito mais curtas do que as traseiras, pe- é uma verdadeira surpresa. Provavelmen-
região da América do Sul há cerca de 100 lo que podia andar semi-ereto. Embora os te na América do Sul e na Argentina vão
milhões de anos. seus restos tenham sido encontrados em continuar a aparecer. Penso que, no que
Este facto é importante porque, desde en- 2013, só foram trabalhados em 2019. diz respeito aos tireóforos, pode haver
tão, a Patagónia argentina tornou-se uma Esta espécie veio transformar o que se mais surpresas», diz Xabier Pereda, da
Meca da investigação paleontológica e do sabia sobre os dinossauros couraçados. Universidade do País Basco,um dos in-
turismo científico. A região possui a co- «Corresponde a uma linhagem que se vestigadores. e
leção paleontológica mais importante da
América do Sul, onde foram descobertos
mais de 30 novos tipos de dinossauros do
período Cretáceo Superior, que viveram
entre 90 e 100 milhões de anos atrás.
O sítio é uma das jóias da paleontologia
porque a qualidade de preservação dos
seus fósseis é excecional.
A última surpresa foi um «dinossauro cou-
raçado», uma nova espécie batizada Jaka-
pil kaniukura (que significa «portador de
escudo com crista de pedra» na língua an-
cestral do norte da Patagónia, Argentina),
que coexistiu no mesmo período Cretáceo
com os temíveis giganotossauros (como o
descoberto em 1993). O pequeno jakapil
vivia num território hostil, o antigo deser-
to de Kokorkom (província de Río Negro,

OS PRIMEIROS BEIJOS DOCUMENTADOS OCORRERAM ASC

NA MESOPOTÂMIA HÁ 4500 ANOS.


O costume do beijo romântico era uma prática estabelecida nas primeiras sociedades da
Mesopotâmia (no que é atualmente o Iraque e a Síria) há 4500 anos, de acordo com um
novo artigo que também analisa o seu possível papel na transmissão de algumas doenças.
Os autores do estudo, Troels PankArbøll,da Universidade de Copenhaga, e Sophie Lund,
ASC

Tábua babilónica com um casal beijando-se. da Universidade de Oxford, salientam que, embora a tradição do beijo seja provavel-
mente mais antiga, as provas documentais situam-na cerca de 1000 anos antes do que
até agora se conhecia. O documento salienta que existe um conjunto de provas não
reconhecido de beijos romântico-sexuais presentes em textos antigos da Mesopotâmia
de 2500 a.C.. Milhares de tabuinhas de argila contêm exemplos claros de que o beijo
era considerado parte da intimidade romântica na antiguidade, tal como podia fazer
parte das amizades e das relações dos membros da família . «No entanto,o beijo não
deve ser visto como um costume que teve origem apenas numa única região e se espa-
lhou a partir daí, mas parece ter sido uma prática em muitas culturas antigas ao longo
SHUTTERSTOCK

de vários milénios. Teve múltiplas origens, numa vasta área geográfica que inclui cla-
ramente a Mesopotâmia e a Índia», explica Arbøll, e talvez também o Egito, embora aí
Baixo-relevo egípcio com dois homens. «as evidências sejam mais ambíguas».

6 SUPER
A povoação de
Whittier foi uma
antiga base naval
dos EUA.

ASC
As Begich Towers oferecem
abrigo durante os meses
rigorosos de inverno.

A ALDEIA INTEIRA A VIVER NUM SÓ EDIFÍCIO


Chama-se Whittier e é uma pequena um enclave geoestratégico importante
povoação do Alasca (Estados Unidos) e abandonaram o local.
onde 75% dos seus habitantes vivem A saída dos militares foi um dos pon-

YOULI ZHAO
no mesmo edifício durante o inverno. tos de partida para a conversão deste
Sim, quase toda a população de 220 edifício numa residência para os ha-
pessoas. bitantes locais se refugiarem durante
Esta situação peculiar começou depois os meses rigorosos de inverno, sem show, os habitantes de Whittier vivem
da Segunda Guerra Mundial, quando a terem de sair à rua regularmente. A as suas vidas. Dispõe de todos os ser-
Marinha dos EUA decidiu construir uma temperatura média é de 0º Celsius e as viços necessários para satisfazer as
base naval numa enseada do Prince temperaturas mínimas podem atingir necessidades dos habitantes: escritó-
William Sound, em Whittier. Consistia os -20º Celsius. A tudo isto juntam- rios administrativos, esquadra de polí-
em dois edifícios anexos construídos -se os ventos gelados e a neve que se cia, correios, igreja, centro de saúde,
em 1956 — conhecidos como Begich acumula. Tendo isto em conta e após supermercado, cafetaria, videoclube,
Towers — que albergavam 200 pessoas. várias renovações, Begich Towers é lavandaria, um pequeno hotel e ain-
Com o tempo, os militares americanos agora um edifício moderno de cator- da acesso à pequena escola municipal.
deixaram de considerar Whittier como ze andares no qual, como num reality Como podemos ver, fica tudo em casa!

Fonte de luz
TATUAGEM BRILHANTE REVELA O2 NO SANGUE e detetor Sensor de oxigénio de seda
Normal / Fluorescente

Investigadores da Universidade a fibroína. Quando montado num


Excitació

Sensor de

THOMAS FALCUCCI/UNIVERSIDAD TUFTS.


n

de Tufts criaram um material à gel ou película, conforma-se para oxigénio de


Emisió

seda
base de seda que pode ser colo- criar uma estrutura que dura sob
n

cado sob a pele e que muda de a pele de algumas semanas a mais


intensidade — brilha mais ou de um ano e, quando a cera se de-
menos — à medida que é expos- compõe, é compatível com o cor- O2
to a diferentes níveis de oxigénio po. Por isso, é capaz de monito- Artéria
Veia
no sangue. É uma tatuagem real- rizar continuamente substâncias
mente funcional, porque nos diz no sangue, algo que pode ser uma A película do sensor é normalmente verde, mas brilha a roxo
quanto oxigénio estamos a uti- grande vantagem no rastreio de quando exposta a luz infravermelha próxima na presença de
lizar quando fazemos exercício, certas condições humanas. «A se- oxigénio. Um detetor pode determinar o nível de oxigénio pelo
mas também é capaz de medir o da proporciona uma confluência brilho e duração do brilho púrpura. Direita: Comparação lado a
nível de glicose no sangue a qual- notável de muitas propriedades», lado do material sensor de seda normal e exposto à luz UV.
quer hora do dia ou mesmo moni- afirma David Kaplan, professor
Uma película de
torizar uma série de componentes de engenharia na Escola de En-
seda contendo
sanguíneos diferentes. Este sen- genharia da Universidade Tufts e
um cromóforo,
sor implantado tem sido capaz de investigador principal do estudo. implantada sob a
detetar os níveis de oxigénio em Para criar este sensor de oxigé- pele, brilhará sob
modelos animais em tempo real e nio, os investigadores utilizaram luz ultravioleta
TOM FALCUCCI, UNIVERSIDAD DE TUFTS.

de detetar com precisão os níveis um aditivo chamado PdBMAP que para revelar os
de oxigénio altos, baixos e nor- brilha quando exposto à luz de níveis de
mais. De momento, limita-se aos um determinado comprimento de oxigénio,
níveis de oxigénio e é composto onda, e este brilho tem uma in- monitorizando os
por um gel formado a partir dos tensidade e duração proporcionais componentes do
sangue.
componentes proteicos da seda, ao nível de oxigénio no ambiente.

SUPER 7
O tratamento HIFU
concentra o calor nos
neurónios responsáveis
pelo tremor.

BWFUNKI PHOTO EDITOR


Este tratamento
é efetuado
enquanto o doente
está acordado.
ASC

45 MINUTOS QUE MUDAM A VIDA DE QUEM TEM


A DOENÇA DE PARKINSON
tremor essencial é a pertur- por neurologistas, neurocirurgiões, radio- tremor, eliminando-os numa única sessão.

O
bação do movimento mais logistas, técnicos de radiologia e profis- Uma vez localizado o ponto exato do cé-
prevalente nas pessoas com sionais de enfermagem, conseguiu reduzir rebro onde os ultra-sons devem ser aplica-
doença de Parkinson, aumen- o tremor essencial associado à doença de dos, graças a uma ressonância magnética
tando a partir dos 65 anos Parkinson dos membros superiores numa de três teslas, a temperatura é aumentada
de idade. Piora a qualidade de vida dos média de 80 % em mais de 80 pacientes, até 60 graus centígrados para ablacionar
doentes, uma vez que provoca dificulda- graças à aplicação de calor por ultra-sons ou eliminar os neurónios responsáveis
des na realização das atividades básicas de alta intensidade nos neurónios que o pelo tremor. É colocada na cabeça do
da vida diária ao induzir movimentos in- produzem. A técnica utilizada consiste paciente uma estrutura de estereotaxia,
voluntários ou oscilações que afetam as num tratamento não invasivo que não coberta com uma membrana de água arre-
mãos — criando dificuldades em escrever requer incisões nem anestesia geral. Esta fecida para que os feixes de calor passem
ou desenhar, ou problemas em segurar equipa foi a primeira do sistema público de através do couro cabeludo sem o danifi-
talheres, copos e utensílios de alimenta- saúde de Madrid e a segunda em Espanha car. Como o doente permanece sempre
ção— e as cordas vocais, provocando uma a utilizar o tratamento HIFU (High Inten- acordado, o neurologista pode verificar o
voz trémula. sity Focal Ultrasound), graças a um equi- grau de eliminação do tremor em tempo
Uma equipa multidisciplinar do Hospi- pamento de alta tecnologia que concentra real, permitindo aumentar a intensidade
tal Clínico San Carlos (Madrid), composta o calor nos neurónios responsáveis pelo do tratamento em função da resposta. e

A ALTERNATIVA SUSTENTÁVEL AOS PLÁSTICOS


O plástico é um dos maiores problemas que o planeta enfrenta. Isto deve-se aos desafios
ecológicos que a sua degradação coloca, mas também devido à enorme quantidade de plás-
ticos atualmente produzidos e utilizados. De facto, de acordo com o relatório Plastic Waste
Makers Index 2023 da Fundação Minderoo, este material de utilização única foi quinze
vezes superior ao dos plásticos reciclados entre 2019 e 2021.
A Greentech Camm Solutions desenvolveu o material camm, que tem todas as vantagens
de um plástico convencional, mas nenhuma das desvantagens. É 100 % biodegradável,
solúvel em água e decompõe-se sem deixar resíduos ou microplásticos. É também compos-
tável, reciclável e isento de toxinas, o que o torna totalmente seguro para os alimentos.
Em combinação com o papel, é durável, resistente e uma alternativa totalmente viável às
embalagens de plástico e compósitos. A empresa recorda que cerca de 80 % dos quase 400
milhões de toneladas de plástico produzidos em todo o mundo até à data continuam a ser
armazenados em aterros, rios, oceanos ou na natureza. Apenas 9 % é totalmente reciclado,
razão pela qual a substituição do plástico por materiais sustentáveis e recicláveis se tornou
um dos maiores desafios no caminho para um ambiente mais limpo. Christoph Bertsch,
ASC

cofundador e Diretor Executivo da Camm Solutions, afirma: «O material Camm é um avanço,


O camm é decomposto por adição de uma vez que pode ser moldado em quase todas as formas e funções e, no final do seu ciclo
água, sem qualquer vestígio de de vida, dissolve-se na água sem deixar qualquer resíduo».
substâncias nocivas.

8 SUPER
CURIOSIDADE MATRIZES E MATRAZES

JUNE MCCARROLL: A HEROÍNA DA LINHA DIVISÓRIA


NASCIDA EM 1867 NO CONDADO DE LEWIS, NOVA IORQUE, FOI UMA PIONEIRA NO DOMÍNIO DA
MEDICINA E DA SEGURANÇA RODOVIÁRIA. APESAR DAS LIMITAÇÕES QUE ENFRENTOU ENQUANTO
MULHER, REALIZOU FEITOS NOTÁVEIS QUE TIVERAM UM GRANDE IMPACTO NA SOCIEDADE.

infância de McCarroll foi pas-

A sada em Adirondacks. Infe-


lizmente, a sua mãe Adaline
morreu quando ela tinha ape-
nas cinco meses de idade, em dezembro
de 1867. No censo de 1880, McCarroll e
a sua família viviam em Emporia, Kansas,
onde o seu pai, casado pela segunda vez,
foi presidente da câmara durante algum
tempo. No entanto, por volta de 1888,
o pai de McCarroll deixou a sua segunda
mulher e o filho no Kansas e mudou-se
para Los Angeles, Califórnia, onde mais
tarde se juntaria a McCarroll.
Em 31 de dezembro de 1896, McCarroll
casou-se com Timothy Preston Hill em
Los Angeles. Embora a relação tenha si-

ASC
do breve e se tenham separado em 1900,
o recenseamento desse ano ainda a apre-
senta como June Hill, médica, casada há de saúde da comunidade. Foi também as mulheres da Califórnia e a Comissão de
três anos, mas sem marido no agregado presidente da Associação Médica do Estradas do Estado votou a aprovação das
familiar. No mesmo ano, McCarroll ca- Condado de San Bernardino e membro faixas centrais em novembro de 1924. A
sou-se com James R. Robertson. Depois do Conselho Nacional de Saúde. ideia de McCarroll espalhou-se rapida-
de se formar em medicina em Chicago, mente por todo o país e acabou por se
McCarroll mudou-se com seu segundo A DRA. JUNE CONDUZIA O SEU FORD T NUM tornar uma caraterística das estradas de
marido para o sul da Califórnia em 1904, ESTREITO CAMINHO DA autoestrada Indio todo o mundo.
na esperança de que ele se recuperasse Boulevard, no outono de 1917, quando A linha divisória da faixa de rodagem
da tuberculose. No entanto, Robertson um grande camião a fez sair da estrada tornou-se uma caraterística comum das
morreu em 1914. Dois anos mais tarde, e cair numa vala de areia. Como tinha estradas modernas, melhorando signi-
McCarroll casou-se pela terceira vez com um contacto próximo com vítimas de ficativamente a segurança rodoviária e
Frank Taylor McCarroll, gerente da esta- acidentes rodoviários, começou a pensar salvando inúmeras vidas. Existe alguma
ção local da Southern Pacific Railroad. em como melhorar a segurança rodoviá- controvérsia sobre quem inventou este
Durante os primeiros anos do século ria. Numa viagem posterior, reparou que sistema. Embora June McCarroll seja fre-
XX, McCarroll trabalhou como enfermei- a estrada em que conduzia tinha uma quentemente considerada a criadora da
ra (e mais tarde como médica) para a elevação no centro que fazia com que os linha central e promotora da sua utili-
Southern Pacific Railroad. Entre 1907 e carros permanecessem no seu próprio la- zação, a mesma ideia foi também atri-
1916, foi a única médica a prestar cui- do da estrada. Foi então que pensou que buída a outros inventores. No entanto,
dados regulares no vasto deserto entre a demarcação das faixas de rodagem com McCarroll é amplamente reconhecida co-
o Lago Salton e Palm Springs. Para além uma linha tornaria as estradas, então mo uma das pioneiras na promoção da
disso, era também a única profissional precárias, mais seguras para conduzir. utilização do traço central nas estradas
médica que atendia as cinco reservas in- Levou a ideia ao Conselho de Supervi- para melhorar a segurança rodoviária.
dígenas da região, em nome do Bureau sores do Condado de Riverside e pintou June McCarroll morreu em 30 de março
of Indian Affairs. June deslocava-se da ela própria uma faixa branca com cerca de 1954, com 86 anos de idade. Uma
forma que podia— a cavalo, de comboio de uma milha de comprimento na atual placa comemorativa em sua honra en-
ou de automóvel. Autoestrada 99. Depois de obter o apoio contra-se no cruzamento da Indio Bou-
McCarroll foi médi- das Federações de Clubes de Mulheres do levard com a Fargo Street em Indio,
ca durante muitos Condado, do Distrito e do Estado, June Califórnia. Além disso, em 24 de abril
anos, mas foi tam- McCarroll apresentou uma petição à As- de 2002, o Estado da Califórnia desig-
bém ativista social sembleia Legislativa do Estado da Cali- nou o troço da Interstate 10 perto de
e líder comunitária. fórnia para que fosse promulgada uma lei Indio como «The Doctor June McCarroll
Trabalhou incansa- que autorizasse a pintura de uma linha Memorial Freeway», em reconhecimento
POR EUGENIO MANUEL
velmente para me- no meio de todas as auto-estradas esta- do seu contributo para a segurança ro-
FERNÁNDEZ AGUILAR, lhorar as condições tais. A ideia foi um grande sucesso entre doviária. e
Físico

SUPER 9
CURIOSIDADE FALAR DE CIÊNCIA...

CIÊNCIA POLITICAMENTE INCORRETA


A RELIGIÃO E A POLÍTICA, JUNTAMENTE COM CERTOS GRUPOS DE PODER, JULGAM E PERSEGUEM
A INVESTIGAÇÃO QUE VAI CONTRA A MORAL OU QUE, SEGUNDO ELES, PODE PROMOVER
COMPORTAMENTOS AFASTADOS DOS VALORES TRADICIONAIS. UMA NOVA CENSURA?

Temas como a
pederastia, a
sexualidade ou a
prostituição não
deveriam ser
investigados,
com a premissa
de que atentam
contra a moral.
São ciência
perseguida.
ISTOCK

orghos Apostolopoulos é um va nos Estados Unidos? Durante anos, Para muitos grupos de pressão con-

Y epidemiologista social que,


no início da segunda década
do século XXI, dedicou parte
Apostolopoulos recolheu amostras de
sangue, de urina e de muco vaginal,
para além de ter realizado entrevistas
servadores, a sexualidade humana é
um tabu, e uma investigação como es-
ta, ou o estudo de nativos americanos
do seu tempo de investigação ao estu- exaustivas com as pessoas que gravitam de «dois espíritos» que se consideram
do do mundo obscuro das paragens de em torno das zonas de repouso: prosti- uma mistura de homem e mulher (a
camiões no Arizona e na Geórgia. Pro- tutas, traficantes de droga, empregados maioria é homossexual ou bissexual),
curava saber o que leva os camionistas de carga, homens «caça-camionistas». de imigrantes hispânicos que vivem a
à depressão, à toxicodependência e ao Neste mundo pouco conhecido, intera- milhares de quilómetros de distância
sexo sem proteção. Os epidemiologistas gem cerca de 20 populações diferentes. das suas esposas, de adolescentes que
já tinham provado que, na África subsa- procuram pornografia na Internet, ou
riana, existe uma ligação clara entre a O SEU TRABALHO, FINANCIADO PELOS INS- de mulheres tailandesas e vietnamitas
propagação do VIH e TITUTOS NACIONAIS DE SAÚDE dos Estados em bordéis de São Francisco, são ciên-
os camionistas, que Unidos, esteve, juntamente com o de 150 cia perseguida. A pressão destes grupos
têm relações sexuais outros investigadores, na mira de grupos de direita é intensa e foi sentida por
com prostitutas sem de pressão conservadores como a Coliga- Erick Jansen, —estuda o temperamen-
preservativo e de- ção para os Valores Tradicionais. O seu to, a ereção e o risco sexual—, Timothy
pois o transmitem diretor, Andrea Lafferty, declarou: «Que Guinnane —fecundidade irlandesa no
às suas mulheres e defesa plausível pode ser dada para ‘in- início do século XX—, Chris McQuins-
POR MIGUEL ÁNGEL
namoradas. Será que vestigar’ as práticas sexuais de prostitu- ton —género, migração e risco de VIH
SABADELL o mesmo se passa- tas que prestam serviço a camionistas? entre os mexicanos—.
Físico

10 SUPER
O sexo é o mal dos males dos cristãos
conservadores, pelo que qualquer in-
vestigação sobre ele deve ser anulada.
Alfred Kinsey, autor de dois aclamados
estudos sobre o comportamento sexual
em 1948 e 1953 — muitos acreditam
que a revolução sexual dos anos 60 foi
uma consequência direta dos seus re-
latórios — foi atacado e vilipendiado
pelos moralistas americanos que o ro-
tularam de bissexual, sadomasoquista e Alfred Kinsey,
pedófilo. Nos anos 80 e 90, Vern Bul- que estudou o
lough, especialista em comportamen- comportamento
to sexual e saúde pública, foi também sexual, foi atacado por
acusado de pedófilo por fazer parte do grupos conservadores
que o rotularam de
conselho de redação da Paidika, uma re-
bissexual,
vista dedicada à pedofilia. É claro que sadomasoquista
há casos em que o melhor não é atacar e pedófilo.
o cientista, mas inventar investigações,
como fizeram as Testemunhas de Jeo-
vá francesas em 1974: segundo um Dr.
Zohman não identificado, as relações
sexuais ilícitas exercem uma tal pressão
sobre o coração que, no Japão, oito em
cada dez mortes súbitas durante o ato
sexual ocorreram no decurso de relações
sexuais extraconjugais.
Mas nenhum ataque foi mais furibun-
do do que o sofrido pelo livro Harmful to
Minors: The Perils of Protecting Children
GETTY

From Sex, da jornalista Judith Levine.


O livro aborda a pedofilia, as relações
consensuais entre adolescentes e adul-
tos, o sexo adolescente...

O LIVRO, QUE FOI PASSANDO DE EDITORA EM em nada que não seja verdadeiro; co-
EDITORA ATÉ QUE A UNIVERSIDADE DO MIN- A CENSURA DA mo acredito que não é verdadeiro, de-
NESOTA aceitou publicá-lo, teve a opo- ve ser falso. A sombra de Roger Bacon,
sição de evangelistas e católicos con- CIÊNCIA COM BASE Giordano Bruno e Galileu Galilei paira-
servadores que tentaram impedir a sua va sobre o país que era o campeão da
publicação porque justificava e promovia NOS SEUS EFEITOS liberdade de expressão. No século XX,
o abuso e a violação de crianças. Por- houve uma forma extrema de censura no
quê? Porque dizia que os estudos cien- NOCIVOS PARA A domínio do pensamento: a exercida por
tíficos mostravam que a grande maioria Estaline, que perseguia qualquer ideia,
das crianças que tinham sido abusadas MORALESTÁ A SER investigação ou trabalho artístico que
sexualmente cresciam normalmente, sem não estivesse de acordo com a ideologia
grandes traumas ou efeitos nocivos a PRATICADA NOS EUA comunista ou que pudesse provocar uma
longo prazo. Obviamente, algumas expe- «associação indesejável de pensamen-
riências são mais terríveis do que outras: que o tão falado trauma irreparável não tos» nos cidadãos.
ser violado por um dos pais não é o mes- era assim. O que deveria ter sido uma A reação da Associação Americana de
mo que ver um exibicionista no parque. excelente notícia, que falava da capa- Psicologia foi surpreendente: negou as
Da mesma forma, embora legalmente se- cidade humana de ultrapassar as piores conclusões do artigo, alegando que eram
ja tratado como abuso o sexo consensual experiências, tornou-se motivo de per- contrárias à política da Associação. Isto
entre um menor e um adulto, não é a seguição política. é surpreendente, uma vez que o artigo
mesma coisa ser agredido aos 5 anos e Em 12 de julho de 1999, o Congresso foi publicado numa das suas revistas, su-
ter sexo aos 15. dos Estados Unidos deu o passo históri- jeita aos habituais controlos científicos
Um dos artigos em que Levine se co de condenar e censurar por unanimi- de revisão por pares. Note-se qual foi o
baseou apareceu em julho de 1998 no dade uma publicação científica, porque argumento: não que as conclusões não
Psychological Bulletin. No artigo, Bruce os membros do Congresso discordavam tivessem sido apoiadas por dados empí-
Rind, Philip Tromovitch e Robert Bau- dos resultados e consideravam que es- ricos; não que tivesse sido feita má in-
serman examinaram 59 investigações tes poderiam ter um efeito negativo na vestigação, mas que esta contrariava a
anteriores sobre as consequências do população do país. Era a «certeza au- política da associação. Puro «ofendidis-
abuso sexual em crianças e descobriram tista» posta em prática: não acreditarei mo» a nível institucional.e

SUPER 11
P R É - H I S T Ó R I A

O ÚLTIMO REFÚGIO
HUMANO DA ERA
GLACIAR EUROPEIA
Graças ao dente de um caçador-recoletor que viveu há 23 000 anos em Granada, Espanha,
ficou demonstrado que a Península Ibérica foi o último refúgio dos primeiros colonos da Europa
durante o período mais frio da última Idade do Gelo.

Texto de MARTÍN CAGLIANI, divulgador científico

12 SUPER
A gruta de

OFICINA DE TURISMO DE GRNANDA


Malalmuerzo, em
Moclín, Granada,
onde foram
encontrados os
restos de um ser
humano com
23.000 anos, cujo
genoma permitirá
descobrir os seus
antepassados e as
suas migrações.

SUPER 13
Dentes humanos descobertos na gruta de Malalmuerzo,
província de Granada. A informação genética sobre os
seres humanos pode ser extraída destes restos.

o pedaço de osso é conhecido como genoma, e a infor-


mação que dele se pode extrair é tão rica como uma
pilha de livros. Mas os genes de uma pessoa não con-
tam apenas a sua história, contam também a história
de todos os seus antepassados.
Dois estudos recentes, um publicado na revista
Nature e o outro na Nature Ecology and Evolution,
analisaram os genomas de 356 caçadores-recoletores
de toda a Europa, abrangendo um período de 35 000 a
5000 anos atrás.
Ao comparar os genomas de diferentes pessoas en-
tre si, é possível determinar o parentesco entre esses
indivíduos. Por sua vez, isto permite-nos identificar o
percurso da espécie humana desde a sua evolução em
África, há cerca de 300 000 anos. Como chegou ao Mé-
dio Oriente há cerca de 100 000 anos, se instalou na
Europa há cerca de 45 000 anos e, graças aos estudos
PEDRO CANTALEJO

mais recentes, como quase se extinguiu neste conti-


nente durante a última Idade do Gelo, apenas para o
repovoar a partir do sul da Península Ibérica milhares
de anos mais tarde.

S
«Os genomas antigos permitem reconstruir migra-
ções e divisões populacionais que podem ser datadas
abemos que os primeiros Ho- através de ferramentas puramente genéticas, com base
mo sapiens que povoaram a na diversidade e nas taxas de mutação que são agora
Europa chegaram numa pri- amplamente aceites, após mais de vinte anos do geno-
meira vaga, há cerca de 45 000 ma humano», explica Carles Lalueza-Fox, especialista
anos, bem no início da última em paleogenética, investigador do Instituto de Bio-
Idade do Gelo. Durante cerca logia Evolutiva do Conselho Nacional de Investigação
de 15 000 anos, colonizaram o espanhol e diretor do Museu de Ciências Naturais de
continente sem grandes pro- Barcelona, à SUPER INTERESSANTE. «Esta aborda-
blemas. Mas entre 19 000 e gem deve ser feita em colaboração com arqueólogos,
25 000 anos atrás, tudo o que antropólogos e historiadores, no que é, sem dúvida,
restou deles foi um pequeno uma visão nova e claramente multidisciplinar do estu-
reduto no sul da Península Ibérica. do do passado», explica o especialista.
Já os ossos e os estilos tecnológicos das ferramentas
de pedra pareciam indicar aos especialistas que todo A NOSSA ESPÉCIE, O HOMO SAPIENS, NÃO FOI O PRIMEIRO SER
o sul da Europa tinha funcionado como um refúgio HUMANO A PISAR A EUROPA . Na altura em que começaram
durante o chamado Máximo Glaciar, o período mais a povoar este continente, entre 50 000 e 45 000 anos
frio da última Idade do Gelo. Mas as novas descobertas atrás, encontraram os neandertais. Já tinha havido
apontam no sentido contrário. Em particular, a análise encontros entre as duas espécies há cerca de 100 000
dos genes de um indivíduo descoberto na gruta de Ma- anos, no Médio Oriente.
lalmuerzo, na província de Granada, em Espanha. Este Mas o Homo neanderthalensis encontrava-se em
humano de há cerca de 23 000 anos é o elo que faltava grande declínio demográfico há dezenas de milhares
entre as últimas populações sobreviventes da Europa de anos, devido às duras condições climatéricas do
gelada e as que viriam a repovoar todo o continente período anterior à chegada do sapiens à Europa. O
quando o gelo recuou, há cerca de 19 000 anos. último refúgio dos neandertais, e onde acabaram por
Atualmente, graças à paleogenética, um pedaço de se extinguir há cerca de 40 000 anos, foi a Península
osso humano é suficiente para contar a história de Ibérica. E, embora a nossa espécie estivesse mais bem
um povo. Com os avanços tecnológicos, os genes que adaptada às drásticas alterações climáticas que ocor-
podem ser extraídos funcionam da mesma forma que reram durante a última Idade do Gelo, veremos que
quando um historiador descobre um livro antigo. há cerca de 20 000 anos começaria o mesmo declínio
O conjunto de genes do indivíduo a quem pertenceu que o dos neandertais na Europa, e o seu último re-

O último refúgio dos neandertais, onde se extinguiram


há 40 000 anos, foi a Península Ibérica
14 SUPER
A cultura Aurignaciana Área máxima de terra
(-35 000 a -26 000 aproximadamente) Terras emergentes (atuais)
Área de presença Aurignaciana Montanhas
Zonas principais Extensão máxima dos glaciares

Principais 6. Languedoc 13. Veneza 20. Eslováquia Oriental


jazidas 7. Provença 14. Mosa-Reno 21. Transilvânia
1. Leste de Espanha 8. Liguaria 15. Suábia 22. Ucrânia-Morávia
2. Cantábria 9. Itália Central 16. Baixa Áustria 23. Vale do Don
3. Pirinéus 10. Adriático 17. Morávia 24. Crimeia
4. Aquitânia 11. Bósnia 18. Silésia 25. Grécia
5. Borgonha 12. Eslovénia 19. Montanhas Bükk 26. Aurignaciano Levantino
ASC

fúgio seria também a Península Ibérica. A diferença Mas o avanço dos gelos continentais, acompanhado
é que nós sobrevivemos, aí e também noutras partes de uma diminuição constante da temperatura, tornou
do mundo. o clima cada vez mais inóspito. Este facto empurrou as
Graças à arqueologia e à paleoantropologia, foram populações para sul, ao mesmo tempo que as atomi-
descobertas diferentes culturas humanas na Europa, zava em grupos isolados. Principalmente nos Balcãs a
há dezenas de milhares de anos. Cada uma com o seu leste, no sul de Itália, a oeste no sul de França e no sul
próprio estilo distinto de ferramentas de pedra, ar- da Península Ibérica.
te rupestre, esculturas em pedra e marfim, etc. Com
a ajuda de genes extraídos de ossos de todo o conti-
nente, foi possível provar a relação entre todas estas
diferentes culturas da Europa, abrangendo um perío-
do de dezenas de milhares de anos.
Estes grupos humanos que começaram a chegar ao
continente há cerca de 45 000 anos tinham o que se
chama a cultura Aurignaciana, pelo estilo de ferra-
mentas de pedra que fabricavam.
Mas há cerca de 33 000 anos começou o que é conhe-
cido como o Último Máximo Glaciar, um período de
temperaturas cada vez mais baixas e um avanço maci-
ço dos glaciares continentais.
Nessa altura, a tecnologia tinha evoluído para a cha-
mada cultura gravettiana, numa população humana
europeia altamente interligada. Um traço muito ca-
raterístico desta cultura foi a arte rupestre e o grande
número de esculturas femininas que foram feitas. A
mais famosa delas é, sem dúvida, a Vénus de Willendorf.
MUSÉE DE DOLE

À direita, pontas de base fendida do


período Aurignaciano. Museu de Belas
Artes e Arqueologia de Dole (França).

SUPER 15
ASC

Em cima, utensílios de osso da cultura Aurignaciana, definida


pelo estilo dos utensílios líticos fabricados. À direita, a Vénus de
Willendorf, uma figura feminina do Paleolítico Superior feita de
calcário e manchada de ocre vermelho. Caracteriza-se pelas
suas ancas largas e órgãos sexuais muito pronunciados.

Esta separação começa a gerar uma nova cultura no


que é hoje a França e a Espanha, a Solutrense. Após
20 000 anos a habitar o continente, a nossa espécie
começou a sentir o que tinha afetado os seus primos
neandertais. Um clima cada vez mais inóspito, devido
à chegada do máximo glaciar, empurrou-os para aquele
que seria o seu último reduto: o sul da Península Ibérica.

O INVERNO CHEGOU. Os humanos não estavam simples-


MATTHIASKABEL

mente à procura de condições de vida mais tranquilas.


O avanço do gelo alterou completamente o clima, não
só era mais frio, como o ar era mais seco, afetando a
vegetação e a fauna. Por outras palavras, a alimentação
humana.
A chamada Idade do Gelo, a última Idade do Gelo, re- continente do que noutras regiões do mundo.
cebe ambos os nomes devido ao incrível avanço do A última Idade do Gelo fez parte da chamada Glacia-
gelo continental. A temperatura global era 6°C mais ção Quaternária, que começou há cerca de 2,5 milhões
baixa do que é hoje, o que pode não parecer muito, de anos. Durante este período, alternaram-se períodos
mas apenas um grau afetava o clima e a circulação do glaciares e interglaciares. O último dos períodos gla-
ar e da água em todo o planeta, tal como acontece hoje ciares começou há cerca de 115 000 anos, até há cerca
com as alterações climáticas provocadas pelo aqueci- de 11 700 anos, altura em que deu lugar ao interglaciar
mento global. em que vivemos.
Vinte e cinco por cento da superfície da Terra es- Embora a adaptação da nossa espécie para tolerar
tava coberta de gelo. Esta acumulação de água sólida diferentes climas lhe tenha permitido povoar quase
nos pólos e nos continentes levou a uma descida de todo o planeta durante a Última Idade do Gelo, o pe-
125 metros no nível do mar. Este facto, por sua vez, ríodo conhecido como Máximo Glaciar foi demasiado
expôs grandes massas de terra que outrora eram rigoroso. Foi a altura em que os glaciares cobriam um
fundos marinhos, como o Canal da Mancha. A Euro- quarto da superfície da Terra. Começou a intensificar-
pa foi particularmente afetada pelo avanço dos gelos -se por volta de 33 000 anos atrás, com o pico máximo
continentais, porque a precipitação era maior neste entre 26 000 e 19 000 anos atrás.

Na Idade do Gelo, a temperatura global era 6°C mais baixa do


que atualmente e o gelo cobria 25% da superfície da Terra
16 SUPER
Durante esse máximo, o gelo continental cobria «A Península Ibérica atuou como um refúgio gené-
grande parte do norte da América, da Ásia e do nor- tico que preservou, em parte, a composição genética
te da Europa. A imagem atual do Ártico, uma grande anterior a este episódio climático», explicou Carles
massa branca, cobria o norte de França e da Alema- Lalueza-Fox, um dos autores do estudo publicado na
nha, deixando mais de metade da Dinamarca sob o Nature Ecology and Evolution. O estudo analisou os
gelo, bem como a Irlanda, grande parte das Ilhas Bri- restos mortais de um dos sobreviventes do último Má-
tânicas e toda a região do Báltico. Com exceção do sul ximo Glaciar, que viveu há cerca de 23 000 anos no que
de Itália, dos Balcãs e da Península Ibérica, a outra é hoje Granada, em Espanha. Foi descoberto na gruta
parte da Europa que não estava sob o gelo era uma de Malalmuerzo, um local amplamente decorado com
estepe ártica. pinturas rupestres de alta qualidade.
Embora estas alterações tenham ocorrido ao longo É a primeira vez que um membro da cultura so-
de centenas de anos, foram demasiado bruscas pa- lutrense é identificado geneticamente. Foi possível
ra a vida vegetal e animal, pelo que, nalgumas zonas, compará-lo com outros genomas novos e com os de
foram empurradas para regiões mais equatoriais, en- centenas já conhecidos. Isto permitiu-lhes descobrir
quanto outras foram simplesmente expulsas. a ligação entre as diferentes culturas que povoaram a
Europa nos últimos 45 000 anos.
A PENÍNSULA IBÉRICA, O ÚLTIMO REFÚGIO. Já se especula- O Aurignaciano é o povoador original, que deu lugar
va que o sul de França e a Península Ibérica eram das ao Gravetiano. Foi o Gravetiano que sofreu a grande
únicas zonas da Europa que tinham sido povoadas por investida do Máximo Glaciar. Muitos pensaram que
humanos durante o Máximo Glaciar, principalmente tinha desaparecido, mas a paleogenética provou que
devido ao abandono verificado em sítios arqueológicos continuou na cultura solutrense. Até os europeus de
em várias partes do continente europeu. Mas a verda- hoje trazem no seu ADN um legado genético desses úl-
de é que é a paleogenética que confirma esta hipótese. timos sobreviventes.

Catástrofes da Idade do Gelo


U ma série de catástrofes ambien-
tais precipitou alterações mais
drásticas no clima já frio da última
metros. Esta erupção não só afetou
o clima, tornando-o mais frio porque
o sol esteve tapado durante muito
com o Oceano Atlântico, derreteram
e trouxeram quantidades incríveis
de água doce. Este facto, por sua
Idade do Gelo. A primeira ocorreu tempo, como também afetou o ecos- vez, perturbou as correntes oceâni-
há cerca de 40 000 anos e foi uma sistema do sudeste da Europa. Criou cas, interrompendo principalmente
das erupções vulcânicas mais signi- um inverno vulcânico, dentro de uma a corrente que trazia água quente
ficativas dos últimos 200 000 anos. era glaciar, que deve ter afetado o para as costas europeias, provo-
Aquilo a que os geólogos chamam clima de toda a Europa e da zona me- cando assim grandes flutuações
uma super-erupção de magnitude 7, diterrânica.As outras catástrofes, que climáticas no continente, especial-
o chamado Ignimbrito da Campânia, se juntaram a esta, são os chamados mente na Península Ibérica. O pior foi
que ocorreu nos campos de Phle- Eventos Heinrich. Trata-se de um fe- o Evento Heinrich 4, que coincidiu
grean, no norte do Golfo de Nápoles, nómeno natural que ocorre quando com as erupções descritas acima.
no sul de Itália. Os especialistas esti- enormes grupos de icebergues se Seguiu-se-lhe o Evento Heinrich 2,
mam que as nuvens de fumo podem desprendem do permafrost do Árti- que coincidiu com o último Máximo
ter atingido uma altura de 44 quiló- co. Quando entraram em contacto Glaciar.
SHUTTERSTOCK

SUPER 17
O período conhecido como Máximo Glaciar
obrigou muitas espécies a migrarem para
regiões mais equatoriais.
AGE

«Em 2016, verificou-se que a ascendência presente maior parte da ascendência que descobrimos nas po-
num Aurignaciano de Goyet, na Bélgica, reaparecia, pulações da cultura magdalenense. O quadro ainda
embora diminuída, num indivíduo magdalenense de é confuso em muitos pormenores porque, embora
El Mirón, em Espanha, mas não estava presente nou- já tenhamos algumas centenas de genomas de toda
tras partes da Europa», contou Lalueza-Fox. «Esta a Europa, há uma grande complexidade de migra-
persistência ao longo de 20 000 anos foi muito sur- ções e mudanças que se estendem por mais de 30 000
preendente. Agora, com a análise de três indivíduos anos», conclui Lalueza-Fox. e
solutrenses, dois de Espanha e um do sudoeste de
França, datados entre 23 000 e 21 000 anos atrás, ficou
demonstrado que a ascendência goyet persistiu duran-
te o Último Máximo Glaciar.»
«As populações que sobreviveram ao Último
Máximo Glaciar na Península Ibérica repovoaram
parcialmente a Europa e, ao mesmo tempo, mistura-
ram-se com novas populações que parecem ter vindo
dos Balcãs ou do Próximo Oriente na mesma altura»,
diz o paleogeneticista. «Estas últimas constituem a

Durante a última Idade do Gelo, o gelo continental cobriu


grande parte do norte da Europa. À direita, o Professor Manuel
González Morales, com a escápula de 15 500 anos gravada
com uma cabeça de corça encontrada na Cueva del Mirón
(Cantábria).
ALBERTO AJA / EFE
AGE

18 SUPER
CIÊNCIA DA VIDA QUOTIDIANA

A CIÊNCIA DO GUISADO
xistem vários tipos de guisa-

E do no nosso país, mas embo-


ra todos eles tenham carac-
terísticas diferentes que os
tornam únicos, a maioria dos guisados
tem muitos processos científico-tecnoló-
gicos em comum.

• PRIMEIRO PASSO: DEMOLHAR AS LE-


GUMINOSAS
1) Grão-de-bico. O grão-de-bico tem
uma elevada concentração de proteínas
vegetais, embora careça dos aminoáci-
dos essenciais metionina e cistina. Tem
também uma quantidade limitada de Fazer um bom guisado
de grão-de-bico é uma
triptofano. Por conseguinte, é vantajoso arte culinária, mas
combinar o grão-de-bico com alimentos também tem muito a
que complementem o seu teor proteico. ver com os processos
2) Demolhar. A maior parte das legumi- científico-
tecnológicos
nosas contém um certo número de açú-
SHUTTERSTOCK

envolvidos na sua
cares conhecidos como oligossacarídeos preparação.
na sua casca. Se o grão-de-bico não for
demolhado na noite anterior, estes oli-
gossacarídeos chegam ao intestino grosso
sem serem digeridos corretamente, levan- parte dos diferentes guisados em certas 10) Colagénio. Durante o processo de
do à fermentação por bactérias intestinais regiões. Vou mencionar as principais pro- cozedura, ocorre também a conversão do
e à produção de gases desagradáveis. No priedades de alguns deles. colagénio, uma proteína encontrada no
entanto, quando demolhados, os oligossa- 5) Aipo. Tem um baixo teor calórico e tecido conjuntivo que dá força aos mús-
carídeos são convertidos em monossacári- uma quantidade considerável de água, culos e tendões da carne. Isto resulta
deos, que são mais fáceis de digerir. potássio e flavonóides. num aumento da elasticidade da pele e
3) Bicarbonato. Em certas regiões, o 6) Feijão verde. São uma boa fonte de dos ossos do animal, tornando a carne
teor de carbonato de cálcio da água é folatos, fenóis, vitamina C, iodo e caro- mais tenra e mais fácil de digerir.
abundante. Este cálcio interage com a tenos (compostos com atividade provita- 11) Formação de espuma. Quando se
pectina, que é um tipo de açúcar presen- mina A). cozinha a carne, forma-se frequentemen-
te nas paredes celulares das leguminosas, 7) Carne. Existem muitos tipos de car- te uma espuma que, embora não seja pre-
criando formações conhecidas como pec- ne utilizados na preparação dos diferen- judicial, muitas pessoas eliminam. Esta
tatos, que contribuem para o seu endu- tes guisados (frango, vitela, porco...). espuma deve-se a três processos: i) Uma
recimento. Se adicionarmos bicarbonato Contribuem principalmente para o seu percentagem das proteínas dissolvidas
de sódio, impedimos a formação destes sabor e aroma. na água coagula-se com o aumento da
pectatos, evitando que o grão-de-bico 8) Batata. Desempenha um papel fun- temperatura e sobe à superfície. ii) O au-
endureça. damental no guisado porque o seu amido mento da temperatura faz também com
4) É aconselhável reutilizar a água de atua como um agente espessante para o que uma parte da gordura se transforme
demolha? O grão-de-bico contém certos caldo. É aconselhável cortar a batata em em óleo. Sendo menos denso do que a
anti-nutrientes, como saponinas, taninos pedaços irregulares, com uma faca. Isto água, este óleo sobe à superfície, arras-
e fitatos, que podem afetar a digestibi- permite que a batata liberte mais amido, o tando consigo outras substâncias, como
lidade e a assimilação de muitas subs- que tornará o caldo mais encorpado e com os pigmentos do chouriço (razão pela
tâncias benéficas para a saúde. Durante um sabor mais apetitoso. qual a espuma tem, por vezes, uma tona-
o processo de demolha, uma quantidade lidade avermelhada) e as vitaminas lipos-
considerável destes • TERCEIRA ETAPA: COZINHAR solúveis. iii) Devido aos dois processos
anti-nutrientes é li- Encher uma panela com água e adicio- anteriores, o óleo envolve as proteínas
bertada na água, pelo nar o sal e os outros componentes. coaguladas, atuando como uma tábua de
que não é aconselhá- 9) Extração da água. Durante o proces- salvação e mantendo-as a flutuar sob a
vel voltar a utilizá-la. so de cozedura, que ocorre a uma tem- forma de uma espuma oleosa.
peratura ligeiramente superior a 100°C Após 45 minutos, retiramos todos os
• SEGUNDO devido à presença de sal e especiarias, ingredientes do caldo (que utilizaremos
PASSO: OUTROS ocorre uma extração em fase aquosa em para criar uma sopa com um toque cien-
POR JOSÉ MANUEL
LÓPEZ NICOLÁS INGREDIENTES que as moléculas dos ingredientes so- tífico) e procedemos à sua apresentação
Vice-reitor de Transferência
e Divulgação Científica na
Há muitos ingre- lúveis em água são transferidas para o nos pratos.
Universidade de Múrcia e
autor do blog Scientia.
dientes que fazem líquido, conferindo sabor, aroma e cor. Saúde! e

SUPER 19
B I O L O G I A E V O L U T I V A

AGE

O NOSSO
CICLO VITAL
É O QUE NOS TORNA
20 SUPER
HUMANOS
Para que um cérebro como o humano gere, armazene e processe informação de forma eficiente, é
preciso tempo. E esse tempo, o ciclo de vida da espécie, é o que nos caracteriza. As espécies mais
cerebralizadas são as que têm os ciclos de vida mais lentos. Tudo — a infância, a adolescência, a
maturidade e a velhice — seria concebido para articular a «inteligência cultural».

Texto de CARLOS VAREA, Professor de Antropologia Física no Departamento de Biologia da


Universidade Autónoma de Madrid e codiretor do Museu Virtual de Ecologia Humana.

SUPER 21
CREDITO
AGE O cérebro humano é o órgão que requer mais
energia para crescer e se manter. Os seres
humanos são os organismos mais altamente
cerebralizados: temos um tamanho de cérebro
cinco vezes maior que o que nos corresponde.

O
ciclo de vida de cada espé- O ciclo de vida de cada espécie é a expressão de uma
cie é caracterizado pela sua trajetória adaptativa que visa afetar recursos e ener-
duração potencial e pelo gia, sempre limitados, para crescer, reproduzir-se e
número, extensão e carac- manter-se vivo. Isto é fácil de compreender se compa-
terísticas das suas fases de rarmos as estratégias de vida de uma pequena ratazana
desenvolvimento, maturida- e de um elefante africano: nos anos que uma elefanta
de e envelhecimento. O ciclo demora a ser mãe pela primeira vez (aos 13 anos), terão
de vida é o quadro que defi- nascido cerca de 80 gerações de ratazanas, o que sig-
ne e permite compreender a nifica cerca de 1030 novos membros desta espécie em
biologia de uma espécie, no- comparação com um único elefante. Dizemos que as
meadamente no caso da nossa ratazanas vivem muito «rapidamente» e os elefantes
espécie, o Homo sapiens. A muito «lentamente».
evolução das espécies deve-se à alteração dos seus
ciclos de vida ao longo do tempo, tal como proposto NO NOSSO CASO, NÃO É O TAMANHO DO NOSSO CORPO (QUE É
pelo biólogo americano John Tyler Bonner (1920-2019) MODERADO) que explica o facto de crescermos tão len-
no seu livro Size and cycle, publicado em 1965. A sua tamente e de sermos a espécie de mamíferos com
proposta central era que os organismos não são sim- vida mais longa, mas sim o nosso cérebro relativamente
plesmente «adultos», mas são ciclos de vida sobre os grande: somos o organismo mais cerebralizado.
quais a seleção natural atuou. Nós diferimos dos nos- A cerebralização é o processo de aumento do tamanho
sos parentes primatas mais próximos (as duas espécies relativo do cérebro, ou seja, em relação ao tamanho do
de chimpanzés, Pan troglodytes e Pan paniscus) em corpo de cada espécie. O que é importante não é o ta-
apenas 1% dos nossos genomas: o que nos torna ge- manho absoluto do cérebro de uma espécie (o de uma
nuinamente humanos não é essa pequena diferença baleia é maior do que o nosso), mas o tamanho real
genómica, mas a expressão diferente ao longo do nos- comparado com o que deveria ser de acordo com o seu
so ciclo de vida de genes que são comuns. tamanho corporal. No nosso caso, temos um tamanho

O que é importante não é o tamanho absoluto do cérebro de


uma espécie, mas o tamanho real comparado com o que
deveria ser de acordo com o seu tamanho corporal
22 SUPER
de cérebro cinco vezes maior do que o que deveríamos numa determinada idade, mas o funcionamento ce-
ter; no Pan troglodytes, ele é duas vezes maior. lular não parece poder ser mantido para além desse
Graças ao trabalho da neurocientista brasileira Suza- limite. O que acontece é que o número de pessoas que
na Herculano-Houzel, sabemos que o consumo total de vivem até às idades mais avançadas está a aumentar
glicose pelo cérebro é uma função linear e constante do graças à melhoria geral das condições de vida, que se
número de seus neurónios. O cérebro é, por conseguin- exprime no aumento espetacular da esperança de vida
te, o órgão mais dispendioso em termos energéticos à nascença (50 anos num século em Espanha), em re-
para crescer e manter, pelo que os restantes sistemas sultado da redução drástica da mortalidade à nascença
do corpo têm de acompanhar o seu crescimento: é, co- e infantil.
mo afirmaram G. A. Sacher e E. F. Staffeldt em 1974, o Mas sempre existiram homens e mulheres idosos. Nas
«pacemaker» do organismo. Além disso, para que um populações de caçadores-recoletores e de agriculto-
cérebro seja útil, é necessário tempo para a constru- res itinerantes, onde foi possível recolher informações
ção de uma estrutura neuronal que permita a geração, demográficas fiáveis antes do seu desaparecimento ou
o armazenamento e o processamento eficientes da in- aculturação, 15 % das crianças viviam até aos 70 anos e
formação. Em suma, ter um cérebro relativamente as idades mais tardias de morte eram 85 anos.
grande é uma estratégia adaptativa muito eficaz, pois
proporciona flexibilidade comportamental face a cir-
cunstâncias ambientais sempre imprevisíveis, mas

ASC
requer muita energia e muito tempo. A consequência
é que as espécies mais cerebralizadas têm ciclos de vi-
da mais lentos (ou mais longos) e apresentam padrões
comportamentais mais complexos de obtenção de nu-
trientes de alta qualidade para satisfazer necessidades
energéticas mais elevadas.
O melhor exemplo desta trajetória evolutiva é a nos-
sa espécie. Somos a espécie de mamíferos com maior
longevidade potencial, quer pelo prolongamento das
fases pré-reprodutivas, como da vida adulta. A escri-
tora francesa Jeanne Louise Calment, que morreu com
122 anos em 1997, detém o recorde acreditado da mais
tardia idade de morte.

NÃO HÁ EVIDÊNCIAS DE QUE A NOSSA LONGEVIDADE ESTEJA A


AUMENTAR para além destas idades, ou que alguma vez
o possa fazer: não estamos programados para morrer
ASC

Em cima, o crânio de
Dmanisi, com cerca
de 1,8 milhões de
anos, que mostra
que a longevidade já
estava presente nos
nossos
antepassados:
mostra a perda total
de dentes e um
grande desgaste
ósseo, revelando que
os humanos foram
alimentados com
comida processada.
À esquerda, a
escritora francesa
Jeanne Louise
Calment, que morreu
aos 122 anos e
detém o título de
pessoa mais longeva
da história.

SUPER 23
Um crescimento muito lento de crianças muito vulne- crânio de 650 centímetros cúbicos, D 3444) corres-
ráveis e dependentes — como é o caso da nossa espécie ponde a um indivíduo que deve ter morrido em idade
— exige adultos de vida longa e competentes, que pos- avançada, pois apresenta a perda total dos dentes e um
sam garantir um ciclo de renovação demográfica tão grande desgaste ósseo, o que prova que durante mui-
longo e precário. Um primeiro exemplo disto pode tos anos deve ter sido alimentado pelo seu grupo com
ser encontrado na população fóssil do sítio de Dmani- alimentos processados. Viver e manter a capacidade
si, na Geórgia, que é atribuída ao Homo erectus e que, cognitiva até fases avançadas permitiu à nossa espécie
com quase 1,8 milhões de anos, é a prova mais antiga e aos seus antepassados a transmissão intergeracional
da primeira saída dos nossos antepassados de África. A de informações essenciais para o grupo: a sobrevivência
mandíbula identificada como D 3900 (associada a um dos idosos pode ter sido a chave do sucesso da nossa li-
nhagem. Mas o nosso ciclo de vida caracteriza-se não só
pela sua longa duração, mas também por particularida-
des únicas (a chamada «altricialidade secundária» e o
SHUTTERSTOCK

Nos primatas, o longo período pós-menopausa nas mulheres), e pela in-


desmame clusão de duas novas etapas, a infância e a adolescência.
ocorre quando
as crias são A INFÂNCIA ESTÁ DIVIDIDA EM DUAS FASES: a do lactente
juvenis e não
bebés, como (período de amamentação) e uma fase posterior que se
nos humanos. caracteriza pela erupção da dentição permanente, por
um sistema digestivo adulto e por novos níveis cog-
nitivos. Os primatas desmamam as suas crias quando
estas já são juvenis. Pelo contrário, na nossa espécie, o
desmame ocorre muito cedo (nas populações de caça-
dores-recoletores, em média aos 30-36 meses), dando
lugar a uma fase de dependência absoluta.
A infância tem sido um período de extrema vulne-
rabilidade na nossa história, com elevadas taxas de

A inserção da infância, foi explicada evolutivamente como


SHUTTERSTOCK

um mecanismo adaptativo destinado a reduzir o intervalo


entre os nascimentos para acelerar a renovação das
gerações.

24 SUPER
A guarda coletiva
de crianças é uma Altricialidade secundária
caraterística universal das N ós, humanos, temos uma peculiaridade muito marcante
que nos diferencia dos nossos parentes primatas: somos
«altriciais secundários», ou seja, somos recém-nascidos extre-
populações humanas, mamente dependentes. Nos mamíferos altriciais, a gestação
é muito curta, a ninhada é muito grande e os recém-nascidos
mas não existe entre são extremamente imaturos (não são capazes de ver nem de
ouvir), mas o seu ritmo de crescimento é muito rápido, pelo
os primatas que, após o desmame, passam imediatamente à idade adul-
ta. Pelo contrário, nos mamíferos precociais, a gestação é
longa, a ninhada é pequena e a descendência, plenamente
ativa após o nascimento, crescerá lentamente. Os primatas
são mamíferos precociais radicais; a nossa espécie também
o é, exceto à nascença. Porquê?
mortalidade até tempos recentes. Dado que a amamen-
Diz-se que o nascimento humano é «prematuro», mas a dura-
tação tradicional reduz a ovulação, Barry Bogin explicou
ção da gestação humana (267 dias; no chimpanzé, 228 dias)
a inserção da infância na nossa história evolutiva co-
é um mês mais longa do que seria apropriado para o nosso
mo um mecanismo adaptativo destinado a reduzir o
tamanho corporal. Além disso, em comparação com os nos-
espaçamento dos nascimentos (3,4 anos nos caçadores-
sos parentes primatas, os recém-nascidos humanos são muito
-recoletores, pelo menos metade do dos chimpanzés),
grandes em tamanho corporal (6-7% do peso materno). Mas
a fim de acelerar a rotação das gerações. Além disso, o
custo energético da lactação materna pode ser transfe- também é verdade que somos muito imaturos: nascemos com
rido para o grupo. 28% do tamanho do nosso cérebro adulto, enquanto os chim-
Mas o que é importante compreender é que este re- panzés nascem com mais de 40%.
curso evolutivo, que explica a elevada fecundidade da A altricialidade humana pode ser explicada por duas hipó-
nossa espécie apesar do nosso desenvolvimento lento, teses, não necessariamente incompatíveis. A primeira é a
só poderia ser sustentado assegurando o cuidado co- chamada «hipótese obstétrica», que propõe que a nossa al-
letivo das crianças, um traço universal nas populações tricialidade se deve à contradição evolutiva entre a adoção
humanas mas inexistente entre os nossos parentes do bipedalismo e a nossa extrema cerebralização, que surgiu
primatas, o que explica também porque somos o pri- há cerca de dois milhões de anos, com o aparecimento do
mata com a maior taxa de sobrevivência dos nossos género Homo. Nos primatas, o crescimento do cérebro é es-
descendentes até atingirem a idade reprodutiva, como sencialmente fetal.
o demonstram as sociedades de caçadores-recoletores: O bipedalismo levou a um estreitamento do canal de parto e,
60%, contra 35% nos chimpanzés. com o aumento da cerebralização, o parto ter-se-ia tornado
Depois da infância, partilhamos com todas as outras cada vez mais difícil se a gestação tivesse sido prolongada. O
espécies de mamíferos sociais o período juvenil, que é aumento do diâmetro da bacia para ajustar o processo teria
uma fase de aprendizagem social. A juventude é a fase comprometido a eficiência locomotora dos nossos antepas-
em que se estabelecem as ligações neuronais (sinapto- sados. Mas o parto humano continua a ser complicado: o feto
génese) e se dá a mielinização, um processo que, nos tem de se virar para encaixar a cabeça no canal de parto, aca-
seres humanos, termina com uma reorganização maci- bando por emergir — se tudo correr bem — de costas para a
ça do cérebro durante a adolescência. Esta é uma fase mãe. A figura da parteira pode, portanto, ser considerada co-
também exclusiva da nossa espécie que, ao prolongar- mo tendo surgido no Homo erectus, pelo menos há cerca de
-se por vários anos, atrasa ainda mais a nossa maturação um milhão e meio de anos.
sexual completa. A adolescência afeta todos os sistemas
Mais recentemente, a «Hipótese energética da gestação e
do nosso corpo (esquelético, muscular e adiposo), mas
da lactação» propõe que, à medida que a cerebralização au-
numa sequência e intensidade diferentes nos rapazes e
mentava na nossa linhagem, as fêmeas não teriam podido
nas raparigas, integrando mais cedo as jovens mulheres
satisfazer as necessidades energéticas crescentes do feto,
no mundo social da parentalidade, mas ainda sem plena
mas teriam podido fazê-lo através da lactação, que é mais
capacidade reprodutiva.
dispendiosa do ponto de vista energético para a mãe, mas
permite que o bebé mantenha o seu crescimento cerebral.
QUANDO SURGE UM CICLO DE VIDA HUMANO? Estabelecer a
velocidade de crescimento ou quantas etapas compu- A verdade é que, após o nascimento, o nosso cérebro continua
nham o ciclo de vida dos nossos antepassados é muito a crescer a uma intensidade ainda fetal (em todos os outros
mais complicado do que estabelecer as alterações ana- primatas, o crescimento abranda após o nascimento), dupli-
tómicas associadas ao aparecimento do bipedalismo ou cando ao longo do primeiro ano de vida.
das mãos capazes de fazer e manipular ferramentas, que Um bebé gasta 87% da sua taxa metabólica basal a fazer cres-
podem ser observadas nos vestígios fósseis. cer o seu cérebro nos primeiros meses de vida extra-uterina
Uma forma indireta de nos aproximar do momento (na idade adulta, gastamos 20% na sua manutenção, mais do
em que surgiu o nosso ciclo de vida é rever o processo dobro dos outros primatas). Durante os primeiros seis meses
de cerebralização na nossa linhagem Homo: à medi- de lactação, a mãe necessita de 500 quilocalorias adicionais
da que o tamanho do cérebro aumentava nos nossos por dia: o apoio do grupo à mãe neste desafio foi essencial na
antepassados, os seus ciclos de vida tinham de abran- nossa história evolutiva.
dar. Outra forma é através da análise dentária, que

SUPER 25
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Um longo período pós-reprodutivo nas mulheres


É muito surpreendente que as mu-
lheres percam a sua capacidade
reprodutiva quando lhes resta um terço
os outros parentes primatas. O Homo
sapiens parece ter mantido uma idade
ancestral para a menopausa.
to de debate. A chamada «Hipótese
da Avó» — sintetizada por Kristen Ha-
wkes — propõe que uma menopausa
da sua vida potencial após a meno- Este facto é surpreendente. A me- precoce teria sido fixada pela seleção
pausa. A menopausa é a cessação da nopausa determina que, na nossa natural, pelo que um período reprodu-
ovulação e é determinada pelo esgo- espécie, o período reprodutivo efe- tivo feminino geneticamente limitado
tamento dos ovócitos, produzidos em tivo das fêmeas é, em última análise, favoreceria, através dos cuidados
quantidade limitada durante a fase fe- mais curto do que o dos nossos pa- prestados pelas avós aos seus netos e
tal. A menopausa ocorre em todas as rentes hominídeos, apesar de terem netas, uma sobrevivência mais longa
mulheres, em qualquer população, que um ciclo de vida muito mais longo. A da sua própria descendência, que car-
atingem e ultrapassam uma faixa etária idade da primeira procriação nas po- regaria este traço.
variável mas limitada (menos sensível pulações caçadoras-recoletoras e No entanto, num contexto de cuida-
ao ambiente do que a idade da menar- agrícolas itinerantes é de cerca de 19 dos cooperativos e coletivos — que
ca), com um valor médio de cerca de anos, enquanto nas duas espécies de deve ter sido necessariamente o pa-
51 anos. chimpanzés é de 13 a 14 anos. Porque drão predominante na nossa história
Estudos efetuados em chimpanzés é que a nossa maior longevidade não evolutiva e na nossa espécie — Bar-
parecem confirmar que as fêmeas levou a um prolongamento do período ry Bogin argumentou que, à medida
também entram na menopausa, numa fértil das mulheres, o que teria favo- que a longevidade aumentava na
idade semelhante ou talvez ligeiramen- recido a sobrevivência da espécie? nossa linhagem devido à melhoria
te mais tardia do que as mulheres. Mas, Outras linhagens de mamíferos sociais das condições de vida resultantes do
exceto em cativeiro, onde recebem cui- de vida longa mantêm gravidezes bem desenvolvimento cultural e da estrutu-
dados de saúde e alimentação, é muito sucedidas até à sétima (elefantes) e ração social, as fêmeas e as mulheres
raro as fêmeas chimpanzés viverem oitava (baleias) décadas de vida. Ape- que atingissem a idade da menopausa
durante um período significativo após nas as fêmeas de duas espécies de primata teriam direcionado os seus es-
a cessação da ovulação. Mesmo em mamíferos, ambas baleias dentadas forços para ensinar e apoiar as jovens
cativeiro, a esperança de vida máxima (a orca, Orcinus orca, e a baleia-pilo- mães do seu grupo, favorecendo a
registada nas duas espécies de chim- to de barbatanas curtas, Globicephala sobrevivência de todos os que nasces-
panzés não excede os 60 anos (59 em macrorhynchus), têm uma fase pós-re- sem, e não apenas dos geneticamente
Pan troglodytes e 55 em Pan paniscus). produtiva comparável à das mulheres, relacionados com elas. A nossa es-
O longo período de várias décadas até 30 anos. pécie caraterizar-se-ia assim por um
sem capacidade reprodutiva femini- A manutenção deste longo período «sistema de reprodução biocultural»,
na é único para a nossa espécie entre pós-reprodutivo nas mulheres é obje- único entre os primatas.

26 SUPER
O que nos caracteriza
enquanto espécie é a nossa
natureza biossocial.
O nosso crescimento lento e
a nossa grande plasticidade
biológica conferem-nos o
nosso potencial cognitivo

nos permite calcular o tempo de formação das coroas


dos dentes. Os australopitecos cresceram à mesma
velocidade que os atuais chimpanzés. Por exemplo, o
«Menino de Tang», descoberto por Raymond Dart em
1924, um Australopithecus africanus de há 2,5 mi-
lhões de anos, morreu com pouco mais de três anos
(caçado por um pássaro) e já tinha o primeiro molar
erupcionado. O nosso primeiro molar erupciona en-
tre os 5,5 e os 6,5 anos, enquanto nos chimpanzés(Pan
troglodytes) erupciona aos 3,3 anos.

O CERTO É QUE AS PRIMEIRAS EVIDÊNCIAS DO ABRANDAMENTO


DO CICLO DE VIDA remontam ao aparecimento do Homo
erectus (há 1,7 milhões de anos), como mostra o estudo
do fóssil KNM-WT 15000, conhecido como o «Jovem
Turkana», encontrado em Nariokotome (Quénia) e
datado de há 1,6 milhões de anos. Morto aos oito anos
de idade (já com 160 centímetros de altura), o seu ci-
clo de vida foi ainda mais rápido do que o nosso, mas já
mais lento do que o dos australopitecos e chimpanzés,
potencialmente 15 anos mais longo. Esta evidência en-
quadra-se bem na nossa opinião de que o Homo erectus
foi a primeira espécie a ocupar efetivamente a savana (e
a expandir-se para fora de África) e a sofrer um aumen-
to substancial e sustentado da cerebralização.
O estudo dos restos da gruta de Sidrón (Astúrias),
apresentado em 2017 pelo grupo de Paleoantropologia
do Museu Nacional de Ciências Naturais-CSIC, dirigido
por Antonio Rosas, conclui que os neandertais já cres-
ciam à mesma velocidade que nós.
A cerebralização extrema que culmina na nossa es-
pécie ao longo dos dois milhões de anos de história
evolutiva da nossa linhagem Homo só pode materia-
lizar-se em cada um de nós graças à sequenciação do
nosso desenvolvimento ontogenético, ao nosso longo
período de dependência e aprendizagem num contex-
to de extrema socialização, e à nossa longevidade, que
nos permite suportar uma educação prolongada e en- O fóssil de 1,6
trelaçar conhecimentos intergeracionais . milhões de anos
O que nos caracteriza enquanto espécie é a nossa na- conhecido como
«Jovem de Turkana»,
tureza biossocial, de tal modo que o nosso crescimento encontrado no
lento e a grande plasticidade biológica que dele deriva Quénia, era um rapaz
nos conferem o nosso potencial cognitivo. O nosso ci- de 8 anos com 160
clo de vida articula a nossa capacidade única — entre cm de altura: o seu
ciclo de vida era
os primatas — de mudança cultural cumulativa, de mais rápido do que o
aprendizagem e de inovação, a chamada «inteligência nosso.
cultural». e
ASC

SUPER 27
ENTREVISTA

Alda
Azevedo
Pensar o futuro com base na Demografia.
ALEXANDRE GASPAR

Entrevista de ELSA REGADAS

28 SUPER
C
omo lidar com uma socieda- Por outro lado, globalmente vivemos em diferentes fases
de cada vez mais envelheci- e a diferentes ritmos: enquanto muitos países do norte do
da? Como dignificar a habi- globo estão numa fase de envelhecimento demográfico e
tação e as condições de vida? alguns até já de decréscimo populacional, muitos países
Como definir estratégias pa- do sul do globo estão agora numa fase inicial da transição
ra o futuro a partir dos da- demográfica, com fecundidades ainda muito elevadas.
dos que temos atualmente?
Falámos com Alda Azevedo, Por falar em envelhecimento demográfico, os mais re-
doutorada em Demografia centes dados apontam Portugal como o 4.º país mais
pela Universitat Autònoma envelhecido do mundo, sendo que essa tendência ape-
de Barcelona, investigado- nas deverá abrandar a partir de 2040. O que mudou nos
ra no Instituto de Ciências últimos 40 anos em termos de envelhecimento?
Sociais da Universidade de Nos Censos 1981, em Portugal, a população com 65 e mais
Lisboa e professora auxiliar convidada no ISCSP. Alda anos representava 12% da população residente. Nos Cen-
Azevedo é também membro do Conselho Diretivo da As- sos 2021, essa proporção é de 23%, ou seja, quase o dobro.
sociação de Demografia Histórica e do Conselho Fiscal da Esta mudança na estrutura etária da população residente
Associação Portuguesa de Demografia. foi gradual, mas por vezes penso que foi sendo desvalori-
O envelhecimento da população e a demografia da ha- zada. Isto porque apesar de todos os alarmes soarem não
bitação são duas das suas principais áreas de estudo, conseguimos, enquanto sociedade, prepararmo-nos pa-
acerca das quais nos dá o seu parecer nesta entrevista. ra as necessidades de uma população envelhecida.

De que forma pode a Demografia contribuir para me- A esperança de vida aumentou, mas viver mais nem
lhor prepararmos o futuro? sempre significa viver melhor...
A Demografia é a ciência da população. A preparação Sim, numa altura em que a esperança de vida à nascença
do futuro requer conhecimento dos movimentos da é, em 2021, de 78.1 anos para os homens e de 83.4 anos
população no território, da evolução da natalidade e para as mulheres, o grande desafio está em aumentar os
da mortalidade, pelo que é uma ciência com um papel anos de vida saudável, ou seja, sem limitações funcio-
fundamental. Projetar o volume e a estrutura etária da nais ou incapacidades físicas. Neste aspeto, Portugal tem
população, segundo diferentes cenários, ajuda a melhor ainda um percurso a percorrer, pois situa-se ainda abai-
informar governantes e decisores políticos sobre as ne- xo da média da união europeia: aos 65 anos, os homens
cessidades de infraestruturas e de serviços, ao nível da podem ainda esperar viver 8.4 anos sem limitações de
saúde, da educação, da habitação, por exemplo. Há toda maior (-1.1 ano), as mulheres 7.4 anos (-2.5 anos). Quer
uma alocação de recursos que, para ser eficiente e para isto dizer que apesar das mulheres viverem até mais tar-
diluir as desigualdades sociais existentes, exige um co- de, começam a sofrer de limitações de saúde mais cedo
nhecimento profundo da população e dos diferentes gru- do que os homens e que as mulheres em Portugal distam
pos populacionais que a constituem. bastante mais da média europeia do que os homens.

Em que outras temáticas da atualidade apontaria a De- Em que medida a emigração tem contribuído para o en-
mografia como fundamental? velhecimento da população?
Através da recolha, validação e integração de dados de O volume da população evolui com a combinação de
diferentes fontes e em diferentes domínios, a Demo- entradas (nascimentos e imigrantes) e as saídas (óbitos
grafia permite descrever e explicar diferentes questões e emigrantes). Quando as entradas excedem as saídas
relacionadas com as populações. A pandemia Covid-19, temos crescimento populacional, quando as saídas su-
por exemplo, mostrou-nos como o conhecimento de peram as entradas, temos um decréscimo populacional,
questões-chave, como a estrutura etária da população, como aconteceu na última década em Portugal.
as condições habitacionais, o estatuto socioeconómico Os movimentos migratórios não produziriam efeitos na
das pessoas, foi crucial para perceber o impacto desi- estrutura etária da população residente se a estrutura dos
gual que a mesma desencadeou. migrantes fosse muitíssimo semelhante à da população
Outra área fundamental prende-se com o fluxo de mi- residente. Num cenário teórico desses, as migrações in-
grantes internacionais e de refugiados, que tem aumen- terfeririam apenas no volume da população. Mas os emi-
tando, facto que tem suscitando também posições po- grantes são sobretudo jovens e adultos em idade ativa,
líticas distintas sobre o papel dos países de destino no grupo etário em que se concentra a atividade reproduti-
acolhimento destes imigrantes. va. Quer isto dizer que a saída de jovens e adultos, quan-
No contexto das alterações climáticas, um outro exem- do não compensada pelas entradas, tem um duplo efeito
plo, a Demografia pode ajudar a compreender o impac- na estrutura da população de origem: diminui a mão-de-
to da ação humana e contribuir para guiar estratégias de -obra disponível e o potencial reprodutivo da população.
desenvolvimento mais sustentável, ajudando a identificar
quais as populações mais afetadas e, por isso, as que ne- No extremo oposto, como poderíamos incentivar a re-
cessitam de mais apoio. novação de gerações através da população imigrante?

«Desde logo na prestação de cuidados, o envelhecimento aumenta


a necessidade de cuidadores, sejam eles formais ou informais»
SUPER 29
O Índice Mundial de Pensões é um estudo da responsabili-
dade da consultora Mercer e do Instituto CFA, que avalia os
sistemas de pensões de 44 países, com base numa média dos de pensões, por exemplo, é um tema muito sensível, em
indicadores de adequação, sustentabilidade e integridade. Por- parte porque está assombrado pela possibilidade de um
tugal integrou este estudo, pela primeira vez, apresentando como aumento na idade de reforma, uma medida pouco popu-
melhores resultados os indicadores «adequação» e «integridade» lar. Não querendo ser exaustiva, relativamente às altera-
e como pior a «sustentabilidade». O nosso país ocupa um lugar ções no mercado de trabalho, a redução da mão-de-obra
intermédio em termos de avaliação global, mas destaca-se nega- disponível poderá ter alguma resposta através da crescen-
tivamente no indicador de sustentabilidade comparativamente te digitalização do trabalho, mas esta leva também à ne-
aos restantes países avaliados. Relembremos a pontuação obtida cessidade de uma requalificação profissional de parte dos
pelo nosso país*: adequação 84,9 pontos; integridade 73,9; sus- trabalhadores.
tentabilidade 29,7 pontos (o 6.º país com a pontuação mais baixa Se sabemos que o numerador da equação (os seniores)
neste indicador). está a aumentar, o denominador (a população ativa) tem
de crescer a um ritmo superior. Transições para a reforma
*Dados de outubro de 2022 mais flexíveis e a diminuição do desemprego, que atinge
particularmente os jovens com menos de 34 anos, mas
também os adultos com mais de 55 anos, podem contri-
buir positivamente para mitigar os efeitos do envelheci-
Numa população envelhecida, com um potencial repro- mento nos sistemas de pensões.
dutivo mais reduzido, a imigração é crucial. Não con-
segue propriamente inverter tendências, mas tem um Conforme os Censos 2021, Portugal revela um ritmo de
papel importante. Por um lado, tem um efeito imedia- envelhecimento mais acelerado do que os restantes paí-
to na população: entram mais pessoas em idade ativa. ses europeus. Mediante a escassez de respostas sociais,
E tem ainda um efeito diferido na natalidade porque os em que domínios considera mais urgente intervir de
imigrantes laborais tendem a conservar os padrões de modo a criar condições condignas para os mais velhos
fecundidade dos países de origem durante os primeiros no imediato?
anos nos países de chegada. O envelhecimento da população apresenta desafios para
O crescimento populacional observado em Portugal os indivíduos, as famílias, os governos e as sociedades.
entre as décadas 1991-2011, explica-se sobretudo pela Desde logo na prestação de cuidados, o envelhecimen-
abertura de Portugal à imigração. Se olharmos às dinâ- to aumenta a necessidade de cuidadores, sejam eles for-
micas naturais e migratórias da última década, vemos mais ou informais. Este facto pode colocar as famílias sob
que os saldos migratórios positivos atenuaram o efeito pressão emocional, financeira e logística, principalmente
dos saldos naturais negativos. Há, no entanto, que per- quando o direito à assistência a familiares ascendentes es-
ceber que Portugal não é particularmente interessante barra nas relações trabalhador-empregador.
para os imigrantes laborais. Os salários são baixos, há Depois, nas condições habitacionais e do ambiente físi-
precaridade laboral, e a habitação é cara. Tudo isto pesa co envolvente: o envelhecimento pode exigir alterações
nas decisões dos emigrantes sobre o país de destino. nas habitações e nas infraestruturas de proximidade para
acomodar problemas de mobilidade e de acessibilidade,
A longevidade pode ser preocupante em termos de res- e permitir a vida autónoma e independente até tão tarde
postas sociais, o que aponta para outra área, a da susten- quanto possível.
tabilidade do sistema das pensões. Segurança Social, mer- Por outro lado, não ignoremos ainda o risco de maus-tra-
cado de trabalho... Como lidar com esta sociedade mais tos ou negligência com impactos físicos e emocionais e até
envelhecida? o risco de aproveitamento financeiro.
Muito possivelmente teremos de recorrer à combinação Mas não se entenda por isto que os seniores são um gru-
de diferentes medidas. A mitigação dos efeitos do enve- po homogéneo com necessidades idênticas, porque não o
lhecimento da população na sustentabilidade dos sistemas são: é diferente ter 75 e 95 anos, e mesmo tendo a mesma
idade, as pessoas têm condições de saúde únicas. Um ren-
dimento mais elevado permite uma maior independência
relativamente a apoios sociais, as redes familiares e de vi-
zinhança também diferem bastante, até mesmo as esco-
lhas de vida, a forma como cada pessoa decide viver a sua
velhice.

Uma das suas publicações «Como vivem os portugueses:


população e famílias, alojamentos e habitação» levanta a

«Neste momento, nem o


litoral nem o interior
conseguem reunir condições
que promovam propriamente
a qualidade de vida»
30 SUPER
Relatório «Pobreza
questão fundamental das condições habitacionais em Por-
tugal. Que retrato faz deste assunto, em linhas gerais?
e exclusão social em
Poderíamos viver melhor. E refiro-me tanto às condições Portugal»
habitacionais como ao acesso à habitação, muitíssimo di-
ficultado nos últimos anos em virtude da escalada de pre-
ços da habitação (compra e arrendamento).
O relatório «Pobreza e exclusão social em Portugal», desenvol-
vido pelo Observatório Nacional de Luta contra a Pobreza*,
refere que em 2021, 25% da população que vivia abaixo do limiar
Já não temos praticamente pessoas a viverem em casas
da pobreza tinha 65 anos ou mais, sendo que a percentagem ten-
sem água canalizada, duche ou banho, cozinha, eletrici-
de a subir, conforme sobe a faixa etária.
dade ou esgotos como tínhamos no final do século passa-
Por comparação ao anterior relatório existente, Portugal tornou-se
do, mas ainda temos pessoas a viverem em casas precárias,
o 8.º país da União Europeia com maior percentagem de pessoas
muitas vezes improvisadas, e sem condições de segurança
em situação de vulnerabilidade social e económica, em maior ris-
e salubridade.
co de pobreza e de exclusão social e com o maior aumento dos
A nossa população vive em condições de habitação muito
níveis de desigualdades de rendimento.
desiguais. Enfrentam dificuldades acrescidas na habitação
as famílias com crianças e jovens até aos 18 anos, as famí-
* Com base em dados disponíveis até 13 de outubro 2022
lias numerosas, as famílias em risco de pobreza, as famílias
com pessoas na condição de desempregadas e as famílias
em arrendamento.
Depois, por grupo etário, se muitos jovens, por exemplo,
têm dificuldade em sair de casa dos pais porque não con- duas faces da mesma moeda, porque não são. Podemos es-
seguem custear os preços atuais, os mais velhos vivem tar isolados e não nos sentirmos sós, como podemos estar
frequentemente em casas com mais quartos do que seria acompanhados e sentirmo-nos muito sós.
necessário para a atual composição da famílias. Neste as- O isolamento dos seniores levanta dificuldades no acesso
peto, a cultura da casa própria tão enraizada em Portugal a bens e serviços, na gestão da vida quotidiana: compra
acaba por ter um efeito negativo: os jovens adiam a saída de bens de primeira necessidade, consultas médicas, etc.
até poderem comprar a sua própria casa e os mais velhos E nesse aspeto, apesar de aludirmos frequentemente aos
não mudam de casa quando a família fica mais pequena seniores residentes em localidade menos populosas, o iso-
por via da saída da emancipação residencial dos filhos. lamento também existe nas grandes cidades. Basta pen-
Temos desajustamentos entre as necessidades das famílias sarmos no impacto na vida quotidiana de uma pessoa com
e o parque de habitação que são muito difíceis de mitigar mobilidade reduzida viver num 3.º andar sem elevador.
com preços tão elevados como temos tido em Portugal. Já a questão da solidão é uma questão de saúde mental que
deve ter uma resposta social e no âmbito dos cuidados de
Como poderíamos, se não inverter, pelo menos desace- saúde primários. Nos últimos anos têm-se multiplicado
lerar a tendência de concentração da população nas áreas medidas que tornam a vida das pessoas com idade avan-
metropolitanas das grandes cidades, enquanto o interior çada menos difícil: há cada vez mais municípios a provi-
do país continua a despovoar e a envelhecer? denciarem transportes públicos porta-a-porta, redes de
O despovoamento do interior não é uma tendência re- proximidade que garantem apoio domiciliário, pequenas
cente, vem da década de 1950. Já as assimetrias na dis- reparações em casa. Há também cada vez mais progra-
tribuição da população no território, estas têm vindo a mas intergeracionais de apoio comunitário. No entanto,
acentuar-se cada vez mais. Os grandes centros urbanos a cobertura destes serviços e programas não é total e es-
crescem e as cidades de média dimensão decrescem. O tá muitas vezes dependente do financiamento existente.
interior perde população, o litoral ganha. 20% da popu- Neste aspeto, a distribuição territorial destas oportunida-
lação do país concentra-se em sete municípios. Os pri- des para os mais velhos acaba por ser também um fator de
meiros seis estão nas áreas metropolitanas e em sétimo desigualdade na velhice.
está Braga. O despovoamento do interior leva ao encer-
ramento de serviços e à diminuição de atividades econó- A Universidade de Lisboa lançou neste ano letivo a 1.ª edi-
micas, menos emprego, e, por conseguinte, há menos ção do doutoramento em Ciências da População. Revisi-
pessoas a querer ou poder lá viver. Neste momento, nem tando a questão inicial, este novo PhD é mais uma prova
o litoral nem o interior conseguem reunir condições que do papel fundamental da Demografia na preparação do
promovam propriamente a qualidade de vida. O pri- futuro?
meiro por excesso, o segundo por carência. Há que re- Este programa foi desenhado para estudantes e profissio-
cuperar serviços e infraestruturas que possam assegurar nais de qualquer área do conhecimento, porque o estudo
as necessidades da população residente; há que garantir da população e das causas e consequências dos eventos de-
ligações a cidades de média dimensão que funcionem co- mográficos exige e contribui para várias áreas científicas.
mo polos de serviços públicos e privados; há que gerar Uma característica-chave deste programa é precisamente
empregos e assegurar o acesso à habitação. o seu carácter interdisciplinar, utilizando sobretudo mé-
Muito dificilmente conseguiremos inverter a tendência todos quantitativos para estudar as questões da popula-
das últimas décadas, mas podemos procurar diminuir as ção. O programa, em inglês, prepara os estudantes para
assimetrias territoriais geradoras de desigualdades. fazer investigação de alto nível em ambientes académicos
e não académicos.
Os mais velhos são quase sempre os mais vulneráveis às si- Após o primeiro ano, os estudantes terão ainda a possibi-
tuações de solidão, isolamento. Comparativamente à rea- lidade de fazerem visitas de curta-duração em instituições
lidade de há cerca de 4 ou 5 décadas atrás, o que melhorou de reconhecido mérito na investigação em demografia.
e o que piorou e o que mais a preocupa enquanto cidadã? Mais informações em: https://www.phdpopulations-
É importante não olhar para o isolamento e a solidão como ciences.com/ e

SUPER 31
S A Ú D E

O sistema de
ISTOCK
imunidade adquirida
CRISPR permite que
as bactérias se
«auto-vacinem»
como defesa contra
o ataque de vírus.

32 SUPER
Curar com
bactérias
pré-históricas
E se a cura para patologias genéticas, difíceis de combater atualmente, fosse
encontrada em bactérias pré-históricas? Cientistas espanhóis estão a estudar o
desenvolvimento de terapias experimentais para pacientes com doenças como a
ELA, o cancro ou a diabetes com base em modificações do ADN em bactérias com
idades compreendidas entre 100 milhões e 2600 milhões de anos.

Texto de ABIGAIL CAMPOS, jornalista

SUPER 33
A
s bactérias possuem um doenças, ovelhas com melhor lã... O sistema de edi-
sistema de imunidade ad- ção genética CRISPR é, na verdade, muito simples.
quirida conhecido como As bactérias armazenam pedaços de vírus no seu
CRISPR, uma espécie de DNA para que, se forem reinfetadas mais tarde com
«autovacina» que lhes per- o mesmo vírus, o possam identificar e defender-se.
mite defenderem-se da Isto é possível graças a uma proteína (Cas9 nuclease)
infeção por vírus. Esta des- que, por meio de guias, se posiciona na parte afeta-
coberta, feita há 20 anos, da do DNA e o corta, como uma tesoura molecular.
em 2003, pelo geneticista As duas extremidades voltam a unir-se e o gene em
espanhol Francis Mojica, da questão é desativado. É um verdadeiro corta-e-cola.
Universidade de Alicante, Mas o sistema CRISPR descoberto por Mojica, e o seu
abriu a porta a um futuro desenvolvimento como ferramenta de edição de ge-
muito promissor de avanços em domínios como a nes, que valeu a Emmanuelle Charpentier e Jennifer
medicina e a biologia. Doudna o Prémio Nobel da Química em 2020, tem
O sistema CRISPR-Cas (clustered regularly spa- um inconveniente. «As ferramentas CRISPR que se
ced short palindromic repeats) pode ser utilizado destinam a ser utilizadas em terapias para muitas
para a manipulação genética de qualquer ser vivo, doenças derivam de bactérias que são patogénicas
incluindo o ser humano. Na prática, a edição do ge- para nós, porque causam infeções», explica Lluís
noma pode, no futuro, conduzir à cura de doenças Montoliú, investigador científico do CSIC e dire-
genéticas, cancro ou doenças degenerativas. Outras tor-adjunto do Centro Nacional de Biotecnologia
aplicações incluem a criação de porcos sem vírus (CBN-CSIC). Estas bactérias incluem, por exem-
para utilizar os seus órgãos em transplantes, ou a plo, o estreptococo, que causa otites ou infeções na
modificação de mosquitos que transmitem doenças garganta, e o estafilococo, a causa da maioria das
como a malária, o Zika, a febre amarela e o dengue. infeções hospitalares. Por conseguinte, é lógico que
Na agricultura, alimentos mais ricos ou melhorados, muitas pessoas infetadas por estas bactérias tenham
como o trigo sem glúten. Na pecuária, animais sem anticorpos. E também contra as proteínas CRISPR,
de modo que «se as utilizássemos universalmente,
é possível que aparecessem reações anafilácticas de
rejeição, porque o nosso sistema imunitário reagiria
Na imagem, edição do genoma utilizando e, então, seria gerado um problema adicional», diz
CRISPR, que foi concebido para reconhecer a o especialista.
sequência de DNA que se quer modificar e
introduzir um corte nessa posição. PARA RESOLVER ESTE PROBLEMA DAS BACTÉRIAS ÀS QUAIS O
SISTEMA IMUNITÁRIO REAGE, há investigadores que em-
barcam em expedições para a Antártida, o Evereste, o
deserto de Atacama, Yellowstone ou a Fossa das Maria-
nas, locais remotos onde existem microrganismos com
os quais não tivemos contacto e onde podem localizar
os seus sistemas CRISPR. Numa demonstração de cria-
tividade, um grupo de cientistas espanhóis liderado
pelo paleoenzimologista Raúl Pérez Jiménez, incluindo
a própria equipa de Montoliú, a do geneticista Francis
Mojica, especialistas do Centro de Investigación Bio-
médica en Red de Enfermedades Raras (CIBERER) e
de outras instituições, decidiu procurar bactérias de
uma forma diferente. «Não temos muito dinheiro pa-
ra este tipo de expedições, mas ocorreu-nos que, em
vez de viajarmos no espaço, podíamos viajar no tem-
po. Imaginámos que, se voltássemos atrás no tempo,
poderíamos obter sistemas CRISPR tão diferentes dos
atuais que o nosso sistema imunitário não os reconhe-
ceria», diz Montoliú.
Houve um primeiro problema técnico. Quando se quer
recuar tanto no tempo, a primeira coisa em que se pensa
é nos fósseis. Mas eles estão petrificados e isso significa
que não há DNA, por isso como é que se consegue fa-
zer a reconstrução ancestral para ressuscitar sistemas
CRISPR de há milhões de anos? Pérez-Jiménez, espe-
cialista em paleoenzimologia e bioinformática no CIC
nanoGUNE em Donosti (atualmente no CIC bioGU-
NE em Bilbao), nunca tinha trabalhado com sistemas
CRISPR. Mas em 2017, quando tudo isto se iniciou,
começou a investigar e contactou Mojica para lhe pro-
por o projeto de «ressuscitar» bactérias do passado. O
método: criá-las por computador utilizando técnicas
de bioinformática.
ASC

34 SUPER
Cientista chinês que criou
raparigas resistentes à
SIDA, varíola e cólera
O sistema CRISPR, descoberto pelo geneticista de Alican-
te Francisco Mojica, foi o primeiro passo. Os cientistas
Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna utilizaram-no para
desenvolver um método de edição do genoma, o que lhes valeu
o Prémio Nobel da Química de 2020, considerando que «esta
tecnologia revolucionou as ciências da vida molecular, proporcio-
nou novas oportunidades para o melhoramento de plantas, está a
contribuir para terapias inovadoras contra o cancro e pode realizar
o sonho de curar doenças hereditárias».
No entanto, a Academia Sueca alertou para os riscos desta ferra-
menta de edição do genoma, que pode ser utilizada para curar
doenças... ou para a engenharia genética.
A Academia advertiu que «o poder da
tesoura genética» exige regulamenta-
ção, pois esta ferramenta pode ser
utilizada para criar embriões ge-

GETTY
neticamente modificados: seres
humanos à la carte. Em 2018,
uma equipa científica chinesa
ISTOCK

afirmou ter criado os primeiros bebés geneticamente modificados com a ferramenta CRISPR: meninas gé-
meas (e uma terceira menina nascida mais tarde) às quais foi retirado o gene CCR5 com o objetivo de as
tornar resistentes ao HIV, à varíola e à cólera. He Jianku, da Universidade de Shenzhen, foi condenado a três
anos de prisão e a sanções pecuniárias. Desconhece-se o paradeiro e o estado de saúde das raparigas.

PARA RESSUSCITAR ESTES ORGANISMOS DO PASSADO, Pé- tizou-as e estudou-as. Verificou que todas elas tinham
rez-Jiménez utilizou um supercomputador e uma atividade de edição de genes. Cumpriam a hipótese de
tecnologia estatística com grande capacidade de cál- partida, tal como verificado em células humanas em
culo. «Não se ressuscita o organismo, ressuscitam-se cultura. E, evidentemente, não eram bactérias reco-
os genes ou as proteínas», sublinha. Há muita infor- nhecidas pelo sistema imunitário atual.
mação em bases de dados que sequenciam proteínas e
genes de milhares de organismos, até mesmo genomas BACTÉRIAS VERSUS VÍRUS. Os resultados desta investi-
completos. «É possível pegar nessa informação e, com gação, publicados na revista Nature Microbiology em
um estudo comparativo, fazer uma árvore filogené- janeiro deste ano, mostraram também que a antiga
tica. Da mesma forma que se faz para as famílias de luta entre bactérias e vírus se tornou mais especiali-
proteínas», diz. zada ao longo de milhares de milhões de anos. Isto é
Não há registo de bactérias de há milhares de milhões conhecido porque os sistemas CRISPR destes micror-
de anos, «mas começámos com um grupo de bactérias ganismos do passado e do presente são semelhantes,
atuais cujo sistema CRISPR conhecíamos, demos ao mas não são os mesmos. Os mais semelhantes são os
computador e pedimos-lhe que procurasse as relações mais recentes, os de há 37 milhões de anos. Pode pare-
entre elas e os antepassados que explicassem a variabi- cer que foi há muito tempo, mas em termos evolutivos
lidade atual; e, quando as encontrasse, que procurasse não é, uma vez que as bactérias mais antigas datam de
os antepassados dos antepassados», explica Montoliú. há 3500 milhões de anos, mas à medida que recuamos
Como se tivéssemos genes de uma família e de outra e, no tempo, comparando os sistemas CRISPR das bac-
comparando-os, pudéssemos obter informações sobre térias com os de há 2600 milhões de anos, continuam
os seus avós, bisavós, trisavós... a ser semelhantes, mas tornam-se mais rudimentares.
A equipa de investigação realizou uma reconstrução As bactérias utilizam estes sistemas CRISPR para se
informática das sequências CRISPR ancestrais de há defenderem contra os vírus. Mas os vírus, por sua vez,
37, 137, 200, 1000 e até 2400 milhões de anos, sinte- desenvolvem sistemas para impedir que as bactérias

A antiga luta entre bactérias e vírus tornou-se mais


especializada ao longo de milhares de milhões de anos
SUPER 35
Legislação restritiva
U m acórdão do Tribunal Europeu de 2018 considerou
os organismos editados com CRISPR como transgé-
nicos. Estas restrições legais impedem que os resultados
desta tecnologia sejam aplicados na União Europeia. A
investigação pode ser efetuada, mas nenhum produto
pode ser comercializado. A comunidade científica exige
a atualização de um regulamento que foi aprovado em
2001, quando a ferramenta CRISPR ainda nem sequer ti-
nha sido descoberta e desenvolvida.
Há também uma diferença fundamental entre organismos
geneticamente modificados e organismos transgénicos.
Nos primeiros, o genoma é editado ou corrigido com o
sistema de corte e colagem genético do sistema CRISPR.
No segundo, são introduzidos no genoma pedaços de
DNA de outros organismos. Na minha opinião pessoal»,
diz Diego Orzáez Calatayud, investigador do Instituto de
Biologia Molecular e Celular das Plantas, «os transgéni-
cos em si não são perigosos, mas sim o uso que se faz
deles. Neste caso, estes organismos editados não podem Na foto,
ser considerados transgénicos, mas são geneticamente Francis Mojica,
modificados. E toda a legislação que tivemos e que temos geneticista da
na Europa não é sobre transgénicos, mas sobre organis- Universidade
de Alicante,
mos geneticamente modificados», adverte.
descobridor

MORELL / EFE
Para Orzáez, «estamos a perder oportunidades» para do CRISPR.
outros países como os Estados Unidos, grande parte da
América do Sul e países asiáticos como a Índia, Coreia,
Japão e China, onde a legislação não restringe a co-
mercialização de produtos com o genoma editado por
CRISPR. «Competitivamente, vamos perder músculo cien- os destruam. Há milhares de milhões de anos que se
tífico e tecnológico. Já estamos atrasados, mesmo que a trava uma luta constante entre ambos.» Se recuarmos
situação se altere, apesar de estarmos a tentar acompa- até à origem da vida, se as primeiras células surgiram
nhar tecnologicamente. Mas se não houver uma empresa há 3500 milhões de anos, então, antes das molécu-
que possa comprar as variedades e comercializá-las, não las genéticas de duas cadeias, surgiram as moléculas
há investimento do setor privado e não podemos avançar de cadeia simples. E se o mundo original era feito de
na investigação, porque dependemos apenas da investi- cadeias genéticas de cadeia simples, os vírus também
gação pública», salienta Orzáez. o eram. Portanto, os sistemas CRISPR devem ter-se
«Estamos a jogar muito», adverte, «porque consoante a especializado em cortar moléculas de cadeia simples,
porta se abra mais estreitamente ou mais amplamente, is- mas não as de cadeia dupla», diz Montoliú. O estu-
so permitir-nos-á avançar ou não». «As pessoas mudam, do efetuado por estes investigadores confirmou este
a composição social muda, a nossa população é mais facto. Tanto as bactérias com 2600 milhões de anos
velha e podemos dar-lhes uma dieta mais direcionada e como as com mil milhões de anos tinham atividade
personalizada», diz. Em todo o caso, já existem iniciativas compatível com o corte de moléculas de DNA e RNA
legislativas com o objetivo de modificar a regulamenta- de cadeia simples. Mas as bactérias mais recentes
ção, «e a presidência espanhola do Conselho da UE é um cortavam preferencialmente cadeias duplas de DNA,
momento crucial», afirma Orzáez. como as bactérias atuais.
Miguel Angel Moreno, chefe do Serviço de Genética
do Hospital Ramón y Cajal e investigador do CIBERER,
salienta num comunicado do CSIC que «a ingenuida-
de que pode ter tido uma nuclease ancestral, ao não
reconhecer tão especificamente certas regiões do
genoma, torna-a uma ferramenta mais versátil para
corrigir mutações que até agora não eram editáveis ou
eram corrigidas de forma ineficaz».
Nas bactérias mais antigas, «as enzimas já não são tão
específicas e tão bem organizadas, mas muito mais
anárquicas e mais flexíveis. Não existem os constran-
gimentos moleculares dos sistemas atuais, que são a
base da sua utilização. E isso torna-a muito interes-
sante, porque essas restrições moleculares impõem
SHUTTERSTOCK

problemas à sua utilização», diz Pérez Jiménez.


Por conseguinte, as bactérias foram-se aperfeiçoan-
do ao longo do tempo para se adaptarem aos novos

36 SUPER
A edição genómica é uma tecnologia relativamente
barata e acessível a pequenos laboratórios e empresas

vírus. «Esta investigação representa um avanço ex-


traordinário no nosso conhecimento sobre a origem
e a evolução dos sistemas CRISPR-Cas. Na forma co-
mo a pressão seletiva dos vírus foi polindo ao longo de
milhares de anos uma maquinaria rudimentar, pouco
seletiva no seu início, até se tornar num sofisticado
mecanismo de defesa capaz de distinguir com grande
precisão o material genético dos invasores indese-
jados que deve destruir», afirma Mojica no mesmo
comunicado do CSIC.

O FUTURO. Os resultados desta conquista científica


permitem dispor de ferramentas de edição de genes
com propriedades diferentes das atuais, muito mais
flexíveis, o que abre novos caminhos na manipulação
do DNA e no tratamento de doenças como a ELA, o
cancro, a diabetes, ou mesmo como ferramenta de
diagnóstico. Mas ainda há mais investigação a fazer. O melhoramento genético
Os sistemas CRISPR ancestrais podem ser utiliza- das plantas que comemos
existe há milhares de anos,
YOMIURI SHIMBUN

dos para corrigir mutações no DNA em locais onde


melhoramo-las para nosso
as bactérias atuais não conseguem, porque precisam próprio benefício.
de uma sequência específica perante a mutação para
as corrigir. «As atuais são muito precisas, mas têm
estas restrições. As do passado cortam onde podem,
sem restrições ou diretrizes, mas ao mesmo tempo
podem cortar demasiado ou onde não é necessário», mite criar tudo, desde vacas resistentes à tuberculose
alerta Pérez-Jiménez. «Não pode ser utilizada dire- bovina a ovelhas com mais lã. Numa planta, o cor-
tamente nos doentes, porque pode gerar mutações te de genes permite criar alimentos enriquecidos e
inespecíficas. Há um longo caminho a percorrer, mais nutritivos, resistentes a pragas, agentes pa-
especialmente na conceção de sistemas que sejam togénicos e ameaças ambientais como a seca ou as
precisos, que não tenham as restrições dos sistemas altas temperaturas. A edição do genoma é uma tec-
atuais e que sejam seguros. A exatidão, a segurança e nologia relativamente barata e acessível a pequenos
a versatilidade têm de andar de mãos dadas para que laboratórios e empresas, diz Diego Orzáez Calatayud,
funcione», adverte. investigador do Instituto de Biologia Molecular e Ce-
Os sistemas CRISPR ancestrais funcionam em células lular de Plantas (IBMCP). «Na realidade, não é nada
humanas em cultura. Este é o primeiro passo. Agora de novo. O melhoramento genético é feito desde o
precisamos de verificar se funcionam em organismos Neolítico. As plantas que comemos não estão assim
mais complexos. O professor da Universidade Pablo na natureza, há milhares de anos que as melhoramos
de Olavide, Miguel Ángel Moreno-Mateos, investiga- para nosso próprio benefício. A diferença é que es-
dor Ramón y Cajal no Centro Andaluz de Biologia do tas tecnologias permitem fazê-lo de uma forma mais
Desenvolvimento (CABD), está a realizar experiências precisa, controlada e rápida, e com grandes benefí-
com peixes-zebra. E o próprio laboratório de Mon- cios, porque podemos fazer coisas que não podíamos
toliú está a fazê-las com ratinhos e albinismo. «Se fazer antes, ou porque não havia precisão suficiente
verificarmos que os resultados se confirmam nestes ou porque demorava mais tempo e mais gerações»,
animais, podemos passar para as células humanas», acrescenta.
diz Montoliú. Mas nenhum dos investigadores se atre- Já existem produtos no mercado mundial, como é o
ve a fixar prazos concretos para este futuro promissor caso do tomate com um elevado teor de aminoácidos
que abrirá a porta a terapias para milhares de doenças benéficos para a saúde, vendido no Japão. Em Espanha,
de origem genética. «Hoje já estamos a tratar várias a legislação não o permite, embora a investigação se-
doenças congénitas raras com sistemas CRISPR. Com ja autorizada em condições laboratoriais específicas.
este sistema, oferecemos uma ferramenta alternativa O Dr. Francisco Barro, do CSIC, desenvolveu uma va-
que o nosso sistema imunitário não reconhece. Bene- riedade de trigo geneticamente modificada adequada
ficiará do sistema CRISPR que já é conhecido, mas sem para celíacos. A equipa de Orzáez está a trabalhar com
as suas limitações», conclui Montoliú . o tabaco, «para o transformar numa cultura industrial
que acumule moléculas de valor acrescentado para uti-
A TECNOLOGIA DE EDIÇÃO DE GENES CRISPR-CAS9 TEM lização em produtos farmacêuticos e cosméticos e não
APLICAÇÕES NA BIOMEDICINA, MAS TAMBÉM NA BIOLOGIA para fumar. Isto, por outro lado, confere-lhe um valor
E NA BIOTECNOLOGIA e, de facto, já está a ser adotada diferencial em relação à cultura tradicional do tabaco,
por numerosas indústrias fora do setor da saúde. A de modo a que os agricultores possam utilizar a mesma
identificação de genes específicos na pecuária per- planta para um objetivo diferente». e

SUPER 37
MASS MEDIA
SHUTTERSTOCK

38 SUPER
A INVASÃO DAS

FAKE NEWS
PODEMOS DEFENDER-NOS DA
INFORMAÇÃO FALSA E INTERESSEIRA?
O fluxo avassalador de informação que recebemos expõe-nos também ao
risco de sermos vítimas de notícias de origem duvidosa e de intenções
ainda mais incertas. O objetivo é a manipulação e a desinformação, mas
temos à nossa disposição sistemas e ferramentas que nos permitem
detetar e protegermo-nos delas e dos seus criadores.

Texto de ARANCHA SEGURA, jornalista

SUPER 39
H
á um sentimento comum de que uma parte da aristocracia romana começou a res-
que a desinformação, a pro- ponsabilizar o imperador Nero pelo incêndio e pelas
pagação contínua de notícias suas consequências. Diz-se que, em resposta a estes
falsas através das diferentes rumores, agentes do próprio imperador começaram a
redes sociais, mas também espalhar o boato de que os cristãos eram os culpados
através dos meios de comu- pelo incêndio, e a primeira perseguição a este grupo
nicação social tradicionais, é baseou-se nestes rumores e no estado de alarme que
um mal endémico dos nossos deles resultou.
tempos. De acordo com o úl- Toni Aira recorda que, no primeiro terço do século
timo Eurobarómetro, um em passado, Edward Bernays (1891-1995) publicou Pro-
cada quatro cidadãos afirma paganda, um relato das experiências de quem pôs
que todos os dias se depara em prática diferentes estratégias de comunicação
com notícias ou informações que não só distorcem a dirigidas ao grande público para atingir objetivos es-
realidade como, em muitos casos, são mesmo com- pecíficos e pré-definidos. Bernays, considerado o pai
pletamente falsas. Mais de metade dos cidadãos tem das relações públicas, definiu a propaganda como a
dificuldade em separar as notícias falsas das informa- «tentativa consistente e duradoura de criar ou moldar
ções verdadeiras. Por conseguinte, oito em cada dez conhecimentos com o objetivo de influenciar as rela-
cidadãos consideram que esta desinformação é algo ções do público com uma empresa, ideia ou grupo».
que põe seriamente em perigo o sistema democrático e É verdade que, na primeira metade do século XX,
a credibilidade das instituições. quando Bernays expôs as suas teorias ou quando,
alguns anos mais tarde, os princípios da propagan-
PODE PENSAR-SE QUE O FENÓMENO DA DESINFORMAÇÃO É UMA da articulados por Joseph Goebbels começaram a ser
CRIAÇÃO RECENTE, mas isso é algo que Toni Aira, Pro- postos em prática, os meios de comunicação mais
fessor de Comunicação Política na Escola de Gestão
da UPF Barcelona, nega categoricamente. «Por muito
que nos queiram fazer crer, a desinformação tem feito
parte da vida humana. Sempre existiu». O professor
recorda o caso de Nero e o incêndio de Roma, quan- A desinformação
do numa noite de verão do ano 64, quatro dos catorze
bairros da Cidade Eterna foram arrasados pelas cha- sempre fez parte da
mas e outros sete foram gravemente afetados. Eis os
factos sobre os quais as diferentes fontes históricas es- vida humana,
tão de acordo. Uma das versões mais difundidas do que
aconteceu nos dias que se seguiram ao incêndio afirma sempre existiu

Os meios de comunicação social


que eram tradicionalmente uma
montra, converteram-se em
TKM ARCHIVE

plataformas de propaganda.

40 SUPER
«Não verá isto
nos meios de
comunicação social»
E sta é provavelmente uma das frases mais repetidas por
aqueles que tentam, de forma grosseira, fazer com que infor-
mações de pouca ou nenhuma veracidade se tornem virais. Clara
Jiménez Cruz, rindo, afirma que «este é um dos indicadores mais
claros de que estamos a lidar com notícias falsas». Uma afirma-
ção que Toni Aira também corrobora, acrescentando o «elemento
conspiratório» desta informação. «É absurdo pensar que, dada a
diversidade de interesses e ideologias de cada um dos diferentes
GTRES

meios de comunicação social, possam chegar a acordo sobre al-


O aumento do fluxo de informação que recebemos diariamente go tão trivial como este tipo de informação para a esconder».
significa que estamos expostos a mais notícias falsas. «É essencial», insiste o Professor Aira, «que tenhamos referên-
cias em meios de comunicação social que sejam reconhecidos
pela exaustividade e rigor com que tratam a informação que pu-
blicam. Dois valores, a exaustividade e o rigor, que também se
influentes da época eram a rádio e a imprensa, en- encontram nos meios de comunicação social de outros países à
quanto a televisão estava apenas a começar a emitir. nossa volta e que podemos facilmente consultar para confirmar
No entanto, algo que tinha nascido não como um ou desmentir informações».
meio de informação mas como uma vitrina de mero Esta e outras afirmações semelhantes têm como principal ob-
entretenimento, o cinematógrafo, viria a transfor- jetivo desacreditar os meios de comunicação tradicionais. É
mar-se num elemento essencial de propaganda pelo verdade que, por vezes, até os meios de comunicação social
simples facto de os espectadores contemplarem as mais prestigiados do mundo deram como notícia algo que não
cenas no ecrã sem terem de se interrogar se existem o era, mas ninguém está livre de cometer erros. As crises eco-
intenções secundárias por detrás delas, e graças a esta nómicas que temos vivido no mundo da imprensa implicaram
diminuição dos mecanismos de defesa do espetador, o despedimento de muitos jornalistas seniores com uma longa
em pouco tempo, o cinema tornou-se um elemento experiência e «se acrescentarmos a isso o facto de a informa-
importante para a disseminação de estereótipos, há- ção digital exigir uma atualização constante das páginas para
bitos e ideias. aumentar o número de visualizações», diz Clara Jiménez, «isso
«Também nessa altura», diz Toni Aira, «se pro- significa que no tempo que um jornalista levava a fazer uma re-
duziram fake news, a grande diferença está no fluxo portagem, agora tem de fazer quatro reportagens diferentes e,
de informação que chega ao cidadão. Quanto maior o logicamente, isso implica uma redução dos controlos e, portan-
fluxo de informações que um indivíduo recebe, maior to, leva a que se cometam muitos mais erros».
a possibilidade de ser atingido por fake news». Aos
meios de comunicação social existentes há pouco mais
de cem anos — imprensa, rádio e um cinema incipiente
— juntam-se agora a televisão, a Internet sob diferen-
tes formas e, sobretudo se nos referirmos à quantidade
de informação que um indivíduo pode receber, os te-
lemóveis e as redes sociais.

O DIGITAL NEWS REPORT É UM RELATÓRIO QUE ANALISA A


REALIDADE DOS DIFERENTES CANAIS DE COMUNICAÇÃO e in-
formação em vários países do mundo. Na sua última
edição, correspondente ao ano de 2022, afirma-se
que entre os portugueses verifica-se uma tendência
de saturação e perda de confiança em notícias, tendo
esta descido 8% em relação a 2015, mantendo-se ain-
da assim, no top 3 dos países em que mais se confia
em notícias, entre os 46 países analisados. Em ter-
mos gerais, a televisão é a fonte principal para acesso
a notícias de 53,6% dos portugueses. O consumo de
notícias online continua a subir (11%) — abaixo da
média global (17%) — mas predominantemente atra-
vés de acessos indiretos e não de visitas diretas a
websites de marcas de notícias. As redes sociais são
usadas para o efeito por 19,6% de portugueses. Rela-
tivamente aos formatos de notícias preferidos pelos
jovens, apontam-se os vídeos no Instagram e TikTok,
e os podcasts. Olhando para os diferentes grupos
etários, é fácil ver que a população mais jovem, o
SHUTTERSTOCK

público entre os 18 e os 24 anos, tem «hábitos e ati-


tudes perante a informação radicalmente diferentes

SUPER 41
Os jovens têm
preferência em aceder a
conteúdos de atualidade
SHUTTERSTOCK

através de diferentes
redes sociais.

dos mais velhos, e que os membros deste setor jovem este comportamento não seja exclusivo deles, tendem
fizeram dos telemóveis e das redes sociais o seu meio a demonstrar maior confiança em fontes e conteúdos
preferido para se informarem sobre a atualidade, par- de fiabilidade duvidosa do que em notícias provenien-
tilharem notícias e participarem, à sua maneira, no tes de meios de comunicação convencionais, sejam
debate público». eles tradicionais (imprensa, rádio, televisão) ou cria-
O elevado nível de participação dos jovens em dos especialmente para a esfera digital.
diferentes redes sociais faz com que se tornem,
conscientemente ou não, elementos essenciais na NOS ÚLTIMOS ANOS, TÊM SIDO REALIZADOS VÁRIOS ESTUDOS e
propagação de notícias falsas. Normalmente, se um análises sobre a perceção dos jovens em relação às fake
determinado conteúdo consegue captar a atenção de news e o seu comportamento face às mesmas.
um jovem utilizador, é imediatamente reencaminhado São vários os fatores que fazem disparar o alarme
para um grande número dos seus contactos, na maio- de um jovem leitor de conteúdos de que o que está a
ria dos casos sem que estes tenham parado por um ler pode ser uma informação falsa: títulos demasiado
momento para verificar a fiabilidade da informação atrativos, conteúdo surpreendente no meio de onde
contida no conteúdo. Além disso, os jovens, embora provém a informação ou falta de coerência lógica no
conteúdo da suposta informação. Quando os jovens
utilizadores suspeitam que o que estão a ler é de veraci-
dade duvidosa, tendem a rejeitá-lo, embora o número
daqueles que continuam a partilhar conteúdos sus-
peitos seja considerável e apenas uma pequena fração
deles tente verificar o conteúdo utilizando alguns dos
serviços de verificação de factos ou diferentes ferra-
mentas de verificação disponíveis online. No entanto,
mais de 60 % dos utilizadores das redes sociais não
têm conhecimento destes serviços e ferramentas.
Para Clara Jimenez Cruz, co-fundadora e CEO da
maldita.es, a principal forma de detetar notícias fal-
sas é a educação. É importante saber, por exemplo,
que «os jornalistas adoram investigar os exclusivos de
outros em busca de novas informações», diz ela, e é
por isso que «as notícias verdadeiras tendem a apare-
cer em mais do que um meio de comunicação». Mas
quando uma suposta notícia se reflete em nada mais
do que algo que tenta parecer um meio de comunica-
SHUTTERSTOCK

ção social, mas que na realidade não oferece mais do


que essa notícia e muito pouco mais, é sem dúvida uma
falsidade.
Um jovem tende a reencaminhar imediatamente os conteúdos que chamam Hoje em dia, a tecnologia oferece muitas possibili-
a sua atenção. dades para corroborar ou não a informação que chega

42 SUPER
Mais de 60% dos utilizadores
das redes sociais não têm
conhecimento dos serviços
de verificação

SHUTTERSTOCK
aos nossos telemóveis: «é muito fácil verificar foto-
grafias e vídeos com ferramentas muito simples que
estão ao alcance de qualquer pessoa e são muito fáceis
de utilizar».
Toni Aira, por seu lado, acrescenta uma chave pa-
Algumas ferramentas
ra detetar informações falsas, e é tão simples como
«não tomar nada como garantido, tentar verificar
para verificar
com fontes de referência, que são conhecidas pela sua
exaustividade e pelo rigor com que tratam a informa-
informações duvidosas
ção, o conteúdo que nos parece duvidoso». O professor
da Universidade Pompeu Fabra é um fervoroso adepto Trusted News: é uma extensão para o navegador Chrome que
de «quebrar a nossa própria bolha, tentando procurar classifica o sítio Web de onde provém a imagem, dizendo-nos se
informação para além do que gostamos». é um sítio satírico, desconhecido, não fiável, malicioso...
Em março passado, na prestigiada revista Scientific Wolfram Alpha: muitas vezes somos confrontados com
American, depois de estabelecer semelhanças entre o imagens de um local desconhecido. Este motor de busca for-
comportamento de propagação das fake news e o dos nece-nos informações sobre o tempo num determinado local
vírus geradores de doenças, questionou-se sobre a num determinado dia e verifica se essas informações corres-
possibilidade de criar uma vacina psicológica contra a pondem à imagem que queremos verificar.
desinformação. Sander van der Linden, psicólogo so- Jeffrey’s Exif Viewer: é comum ilustrar notícias falsas com ima-
cial da Universidade de Cambridge, e a sua equipa, em gens tiradas noutro momento ou local, esta ferramenta acede
colaboração com a Google, criaram uma série de ví- aos metadados da imagem para sabermos a data em que foi ti-
deos «para sensibilizar as pessoas para as técnicas de rada e até os seus dados de geolocalização.
manipulação mais utilizadas no YouTube». Os vídeos TinyEye: outro motor de busca especializado que nos informa
(https://www.youtube.com/@infointerventions), que de todos os sítios Web onde a imagem sobre a qual temos dúvi-
são muito curtos, mostram pequenas cenas de manipu- das foi publicada anteriormente.
lação retiradas de Os Simpsons, Star Wars, South Park InVID: uma das ferramentas de verificação de vídeo mais popu-
ou Family Guy. O objetivo destes exemplos é ensinar os lares que permite verificar facilmente o contexto e a veracidade
espectadores a detetar estas técnicas de manipulação, de um vídeo e se este pode estar a violar os direitos de autor
para que as possam identificar quando as virem e, as- dessas imagens.
sim, imunizarem-se contra a possível «infeção». e

Para detetar informações


falsas, nada deve ser
tomado como garantido e
as fontes de origem
duvidosa devem ser objeto
de um controlo cruzado.
AGE

SUPER 43
PSICOLOGIA

Vingar-se é
humano e
compreensível,
mas, a longo
prazo, não faz
desaparecer a dor
da afronta. Para
Einstein, «... as
SHUTTERSTOCK

pessoas
inteligentes
ignoram».

44 SUPER
VINGANÇA
A PSICOLOGIA DO OLHO POR OLHO
Sempre existiu entre nós e também noutras espécies animais. Embora seja mal vista, nos
seres humanos existe uma ideia subjacente de que é lógico que aqueles que nos fizeram
algo de mau paguem por isso e sofram a mesma dor que nos infligiram. Mas se o mal já
foi feito, se não há volta atrás, o que é que se alcança com a vingança?

Texto de ABIGAIL CAMPOS DÍEZ, jornalista

O
desejo de vingança é um fe- mas são pensamentos dirigidos pelo medo de ficar nu-
nómeno que sempre fez parte ma situação vulnerável que se transformam em raiva e
do comportamento humano. ódio, por isso é um comportamento impulsivo, visceral,
Em todas as sociedades, as emocional, mas disfarçado de racional», adverte María
pessoas compreendem a ideia Ibáñez, codiretora do Centro de Psicologia e Introspe-
de se zangarem e de terem o ção de Madrid.
desejo de magoar alguém que Consideremos ainda que a vingança não é necessa-
nos magoou, segundo Michael riamente um ato violento. Pode ser executada de outras
McCullough, um psicólogo formas: ignorando alguém, menosprezando-o subtil-
evolutivo da Universidade de mente, fazendo-o confundir-se com uma mentira...
Miami que estuda a vingança há até atos de vingança psicológica que só têm lugar
há mais de quinze anos. na mente do vingador, imaginando que algo está erra-
Estamos biologicamente programados para a vingan- do com a outra pessoa ou desejando-lhe mal. «Todos
ça, porque é uma forma de manter a coesão social desde eles são prejudiciais, tanto mais quanto maior for o ódio
as nossas origens. Para não falar da difusão cultural. com que são praticados. Por outras palavras, é mais
Do Corão à Bíblia, todas as religiões usam histórias de prejudicial sentir um forte desejo de que alguém sofra
vingança para exemplificar o castigo por ações negati- do que partir-lhe o telemóvel num ato impulsivo mo-
vas. Há o famoso «olho por olho, dente por dente» do mentâneo», diz Ibáñez.
Código de Hamurabi, a Lei de Talião, que diz que «se O impulso para se vingar tem origem no sentimento
um homem livre ferir ou vazar o olho de outro homem de ser um perdedor ou de se sentir inferior em algu-
livre, este fará o mesmo». E na sua Summa Theologi- ma situação. «O equívoco subjacente, consciente ou
ca, Tomás de Aquino considera a vingança como uma não, é que, ao fazer a outra pessoa «pagar» pelo que
virtude que se situa a meio caminho entre dois vícios:
a crueldade, por excesso, e a relutância em punir, por
defeito. Assim, culturalmente, tem sido aceite que os
seres humanos queiram agir quando há um ataque, e o
socialmente razoável é saber que haverá consequências
Estamos biologicamente
para aqueles que se comportam mal, porque isso ajuda
a desenvolver um comportamento bondoso.
preparados para a vingança
Assim sendo, podemos concluir que a vingança é um
comportamento racional e lógico? Nem uma coisa nem porque tem sido uma forma
outra, segundo os especialistas em psicologia. «Pode
parecer racional porque é elaborada pelo pensamento, de manter a coesão social
SUPER 45
ISTOCK
O primeiro gatilho
para o sentimento
de vingança é o
medo, que
rapidamente se
transforma em
raiva, ódio e
pensamentos que
justificam a ação
para reparar a
injustiça.

fez, ou seja, ao fazê-la sofrer de alguma forma, a sua equiparado», diz Dafne Cataluña, fundadora do Insti-
inferioridade é restaurada; o ofendido e o agressor su- tuto Europeu de Psicologia Positiva.
postamente igualam-se. É um auto-engano que não Neste sentido, a ideia de injustiça é utilizada para jus-
resolve nada, mas aumenta a raiva e o ódio», acrescenta tificar o ódio e para poder magoar o outro sem se sentir
o especialista. culpado ou má pessoa. «Com a ideia de injustiça, es-
sa pessoa sente-se vítima e, mesmo que o outro tenha
AS EMOÇÕES POR DETRÁS DA VINGANÇA SÃO SEMPRE NEGATI- agido mal, o estatuto de vítima justifica que se torne
VAS: cólera, raiva, ira, ódio, fúria, ressentimento e, no num carrasco. Espera-se que a outra pessoa, ao sofrer,
pior dos casos, agressividade... Mas o primeiro gatilho desista de magoar ou prejudicar novamente a primeira.
para todas estas emoções é, na verdade, o medo. «O O que geralmente acontece é que a pessoa que recebe a
medo de se sentir desvalorizado, de ser prejudicado de vingança também a vê como injusta, e isso converte-se
alguma forma, de ser prejudicado emocionalmente, de numa escalada», diz Ibáñez.
ter a sua imagem prejudicada... O medo transforma-se
rapidamente em ódio, raiva e pensamentos como «eu O SER HUMANO DISPÕE, PORTANTO, DE MECANISMOS PSICOLÓ-
não mereço», «isto é injusto», «tem de pagar por isto, GICOS DESTINADOS A PROCURAR A PUNIÇÃO daqueles que nos
assim aprenderá», explica o psicólogo Jesús Jiménez, prejudicam. O sentimento de vingança é ativado na in-
co-diretor do Centro de Psicologia e Introspeção. fância, por volta dos seis anos de idade, quando somos
O que é que o vingador procura? Restaurar a justiça? capazes de fazer uma leitura mais social e complexa das
Estabelecer limites? Enviar uma mensagem? «Normal- relações. Todos os seres humanos têm um passado de
mente, para provar a si próprio que sabe estabelecer sentimento de vingança e uma disposição para a pro-
limites para garantir que não volta a ser enganado. Mas curar. «Este sentimento está em nós como a bondade,
há uma diferença entre limites assertivos e retaliação. a raiva, a alegria, a nostalgia... como todos os outros, e
Os limites assertivos procuram pôr fim a um compor- todos eles têm uma carga genética associada que, depen-
tamento que nos magoa sem magoar a outra pessoa, dendo do ambiente em que a pessoa se desenvolve, acaba
enquanto a vingança se baseia na ideia de um dano por se desenvolver mais ou menos», explica Cataluña,

O sentimento de vingança está em nós e é ativado na infância,


por volta dos seis anos, quando somos capazes de fazer uma
leitura mais social e complexa das relações
46 SUPER
membro do Colégio Oficial de Psicólogos de Madrid.
Histórias de vingança
«Aos seis anos, as crianças já querem ver como é que
os que se portam mal são castigados e podem até gostar
de ver como é que o castigo é aplicado. Tudo se baseia no
A história oferece numerosos exemplos de ajustes de contas
entre os seres humanos, desde a antiguidade até à con-
temporaneidade, e tem movimentado as relações nacionais e
conceito de justiça, precisamos de sentir que o dano foi internacionais. Os exemplos são numerosos e a literatura de in-
reparado através do castigo, caso contrário sentir-nos- vestigação sobre o assunto é abundante. O desejo de vingança
-íamos indefesos perante a injustiça e o mal e o grupo contra os muçulmanos levou à pregação das Cruzadas, segundo
não reagiria em conformidade», afirma. o filósofo José António Marina na sua monografia Las Cruzadas
Mas o ser humano não é um indivíduo isolado. Por vistas con rayos gamma. Também desempenhou um papel impor-
isso, na perceção da vingança, a educação tem um pa- tante desde as Guerras Púnicas até ao Tratado de Versalhes, para
pel muito importante, e não só por parte da família. É humilhar a Alemanha derrotada; passando pelas expedições de
também uma questão cultural. «O castigo e, portanto, Alexandre Magno como vingança contra a Pérsia.
a vingança, estão profundamente enraizados no in- Em tempos mais recentes, o 11 de setembro foi orquestrado co-
consciente coletivo, como um suposto mecanismo de mo um ato de vingança, tal como a morte de Osama Bin Laden
aprendizagem. Mas também é verdade que a personali- em 2014; os confrontos entre hutus e tutsis no Ruanda, o confli-
dade das crianças é um fator determinante. Se olharmos to entre israelitas e palestinianos...
para elas, há crianças muito pequenas, com dois ou três
anos, que já reagem batendo nos outros quando estes
fazem algo de que não gostam», diz Ibáñez.
O desejo de vingança não é exclusivo dos humanos.
Existe noutras espécies, como os corvos, os elefantes,
os macacos e os chimpanzés. De facto, estes últimos não parecem partilhar a motivação para ver ou aplicar
partilham com as crianças humanas mecanismos psi- um castigo quando não foram eles os prejudicados, ao
cológicos semelhantes destinados a procurar o castigo contrário dos humanos, cuja motivação para o casti-
daqueles que os prejudicam. Este facto foi confirmado go merecido inclui situações em que terceiros sofrem,
pelo estudo Preschool children and chimpanzees in- levando-os a estabelecer mecanismos sociais como tri-
cur costs to watch punishment of antisocial others, bunais ou declarações universais de direitos humanos,
realizado por Nereida Bueno-Guerra, psicóloga e coor- argumenta Bueno-Guerra.
denadora da Licenciatura em Criminologia da Faculdade
de Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Co- PRAZER OU FRUSTRAÇÃO — o que experi-
millas, juntamente com uma equipa de investigadores menta a pessoa que se vinga? Aspetos
do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva de positivos como o prazer, o alívio, o
Leipzig (Alemanha). O estudo, que fazia parte da tese restabelecimento do equilíbrio emo-
de doutoramento de Bueno-Guerra, foi publicado na cional, a libertação? Ou talvez
revista Nature Human Behavior e tinha como objetivo aspetos como o arrependimento, a
estudar as origens evolutivas da motivação subjacente frustração ou a vergonha? Por
ao castigo merecido (ou seja, a vingança). A investigação outras palavras, o que é que se

ISTOCK
foi enquadrada na teoria schadenfreude, um conceito consegue psicologicamente
alemão que implica regozijar-se com o mal estar de uma com a vingança, quando o
pessoa de que não se gosta, e concluiu que é possível que mal já foi feito e não é
o desejo de vingança faça parte da herança evolutiva da reversível?
nossa espécie.
A equipa de Bueno-Guerra realizou uma série de ex-
periências com crianças de quatro a seis anos e com
chimpanzés. Apresentaram-lhes um indivíduo pró-so-
cial que lhes dava brinquedos e comida, e um indivíduo
antissocial que os tirava (nas crianças isto era feito com
fantoches). Depois, um terceiro indivíduo batia separa-
damente em cada um dos indivíduos acima referidos.
A certa altura, o castigo deixava de ser visível (no caso
das crianças, os fantoches desapareciam atrás de uma
cortina e, no caso dos chimpanzés, os experimenta-
dores deslocavam-se para um local da sala de onde já
não se via a ação). Se os chimpanzés e as crianças es-
tivessem motivados para ver a pessoa antissocial ser
castigada, desejariam que a cortina se abrisse ou que
tivessem acesso à parte da sala para onde a ação tinha
sido deslocada, ao passo que desejariam o contrário se
o ator fosse o pró-social. Em ambos os casos, os sujeitos
O ser humano sente
pagavam um custo para assistir à cena (moedas no caso
prazer em ver como
das crianças e o esforço físico de abrir a porta no caso recebem o castigo
dos chimpanzés). aqueles que lhe
fizeram mal, mas
OS SERES HUMANOS E OS CHIMPANZÉS PARTILHAM O INTERESSE também quando não
EM VER ALGUÉM QUE JÁ LHES FEZ MAL SER CASTIGADO. Foi is- o prejudicaram
to que o estudo constatou. No entanto, os chimpanzés pessoalmente.

SUPER 47
A vingança e a agressividade melhoram o humor, mas a raiva
também aumenta a frustração porque a pessoa entra num
círculo vicioso de emoções negativas

O estudo de 2017 Combating the sting of rejection ção tinha sido avaliada negativamente. A investigação
with the pleasure of revenge: A new look at how emo- concluiu, assim, que a vingança desempenha um papel
tion shapes aggression, realizado na Universidade de importante e ativo na reparação do humor.
Kentucky, concluiu que, por vezes, a vingança pode No entanto, nem tudo é preto e branco. O estudo The
ser doce. Os investigadores David Chester e C. Nathan Paradoxical Consequences of Revenge, publicado em
DeWall contaram com mais de 1700 participantes em 2007 no Journal of Personality and Social Psycholo-
diferentes experiências. Numa delas, foi-lhes pedido gy, concluiu que a principal emoção que prevalece nos
que jogassem um jogo de vídeo em que alguns experi- indivíduos que procuram vingança é a raiva, e esta au-
mentavam rejeição porque a bola não lhes era passada. menta a frustração, porque a pessoa entra num círculo
Quando terminaram, foi-lhes pedido que a descar- vicioso dominado por emoções negativas.
regassem num boneco de vudu, decidindo quantas
agulhas lhe espetar. A conclusão foi que o sentimento NO VINGADOR, HÁ UMA EXPERIÊNCIA INICIAL DE GLÓRIA, DE
de rejeição desencadeia a necessidade de restaurar o REPARAÇÃO DO DANO, ATÉ DE PRAZER, DE FACTO. «Mas, pas-
equilíbrio emocional com excesso de agressividade, o sado pouco tempo, apercebemo-nos de que esse facto
que melhora o humor. não alterou verdadeiramente a experiência da nossa
Noutro teste, foi pedido aos participantes que es- própria dor, nem as suas consequências. Por exemplo,
crevessem um ensaio, que foi depois entregue a outro no meu caso, trabalho muito com mulheres que foram
participante para o avaliar. Mais uma vez, foi-lhes da- abusadas sexualmente na infância. Quando a pessoa
do um boneco de vudu para reagirem às classificações que as agrediu morre ou sofre por algum motivo, elas
que lhes tinham sido atribuídas. O comportamento apercebem-se de que a sua dor continua a existir, inde-
agressivo (espetar muitas agulhas no boneco) reduziu pendentemente da dor que o agressor sinta agora», diz
a sensação de desconforto entre os sujeitos cuja reda- Dafne Cataluña.

ISTOCK
Embora no
vingador haja
uma experiência
de glória, de
consolação e de
reparação do
dano, a dor está
sempre presente,
não muda nem
desaparece.

48 SUPER
SHUTTERSTOC
Histórias de vingança
O desejo de vingança é omnipresente
na cultura e tem sido um tema recor-
rente em livros, obras de arte e guiões de
Dick de Herman Melville, Ligações Perigo-
sas de Choderlos de Laclos, Crónica de
uma Morte Anunciada de Gabriel García
origem a um dos filmes clássicos em que
a Lei de Talião é a protagonista. Desafio,
retribuição e vingança são os enredos de
filmes de renome universal. Márquez, Carrie de Stephen King e Os Ho- longas-metragens como Revenge, Unfor-
A literatura está repleta de exemplos, des- mens que Não Amavam as Mulheres de given, Braveheart, Kill Bill, The Revenant e
de Hamlet de William Shakespeare, um Stieg Larsson. uma grande parte da filmografia de Liam
compêndio de vingança, até O Conde de Foi precisamente outro romance sobre vin- Neeson, o vingador cinematográfico por
Monte Cristo de Alexandre Dumas, Moby gança, O Padrinho de Mario Puzo, que deu excelência.

Uma vez consumada a vingança, consoante a perso- PERFIS VINGATIVOS, PESSOAS NARCISISTAS. «Os fracos vin-
nalidade de cada indivíduo, surgem emoções diferentes. gam-se; os fortes perdoam. As pessoas inteligentes
«Em todo o caso, o suposto prazer é semelhante ao de ignoram». Esta citação de Albert Einstein implica que a
uma droga, produz uma sensação passageira com con- vingança é uma emoção que é vivida de forma diferen-
sequências negativas posteriores. Para uma pessoa mais te consoante o perfil de cada indivíduo. Há, portanto,
primitiva, o ódio levá-la-á a sentir-se satisfeita, res- personalidades mais propensas a serem vingativas que
taurada pela vingança, sentirá até um certo prazer em estão geralmente associadas a pessoas com menos em-
prejudicar o outro, uma sensação de poder que a fará patia, «menos compassivas, porque sentir a dor dos
acreditar que está mais segura. Na realidade, está a fazer outros é um grande dissuasor». Entre os diagnósticos
crescer dentro de si a raiva, o ódio, a insensibilidade, mais frequentes estão as perturbações de personalidade
um estado de guerra com os outros... e tudo isto o vai antissocial, as perturbações narcísicas e alguns jovens
isolar psicologicamente, o que o vai fazer sofrer», sa- com perturbações de comportamento disruptivo», diz
lienta María Ibáñez. o fundador do Instituto Europeu de Psicologia Positiva.
Por outro lado, uma pessoa mais evoluída sentirá Os perfis propensos à vingança incluem pessoas «que
arrependimento, culpa, vergonha... «Embora num formaram uma autoimagem de serem fortes, valiosas,
primeiro momento possa sentir-se mais ou menos mas que na realidade escondem uma realidade interna
satisfeita ou aliviada por ter castigado a outra pessoa, de insegurança, vulnerabilidade, medo, e por isso têm
não estará completamente tranquila, porque percebe muito medo de serem rotuladas como fracas ou serem
que esse estado vingativo também a faz sentir-se mal. menosprezadas... Este tipo de pessoa é vulnerável aos
Quando se compreende que a vingança nos prejudica, seus próprios medos transformados em vingança e
promove-se a inteligência e aumenta-se a capacida- ódio. Não sabe como se proteger, mas defende-se ata-
de de procurar e encontrar soluções que realmente cando, quer o demonstre ou não, e por isso prejudica-se
nos protejam e não nos prejudiquem», salienta Jesús a si próprio», conclui o codiretor do Centro de Psicolo-
Ibáñez. gia e Introspeção. e

SUPER 49
C É R E B R O

COMO
FUNCIONA
A MENTE
O cérebro é a matéria mais complexa e fascinante do
universo e ainda temos muito a descobrir sobre ele. Mas
a cognição não se limita apenas ao cérebro; engloba
outros órgãos, como o intestino, e está intimamente
ligada ao ambiente.

Texto de SERGIO PARRA, jornalista

50 SUPER
O nosso cérebro

ISTOCK
continua a ser, apesar
de tudo o que se sabe,
um grande mistério.
Possuímos capacidades
inatas, mas também
precisamos do
ambiente para
desenvolver
mecanismos de
resposta.

SUPER 51
A estrutura do
cérebro é tão
complexa que foram
recentemente
descobertas quase
cem novas áreas,
SHUTTERSTOCK

nunca antes
descritas.

N
ão há nada como dar a conhe- que, ainda hoje, continuamos a descobrir novas re-
cer de relance alguns números giões anatómicas. Por exemplo, um estudo liderado
sobre o cérebro humano para por Matthew Glasser, publicado na Nature em 2016,
compreender a sua vastidão, a fez um mapeamento mais preciso, acrescentando 97
sua densidade e, sobretudo, a novas áreas às 83 já descritas. Ou seja, ainda em 2016,
sua insondável complexidade: existiam quase 100 áreas que nunca tinham sido des-
uma massa de 1,5 kg alberga na- critas, apesar de apresentarem claras diferenças de
da menos que 86 mil milhões de estrutura, função e conetividade com as suas vizinhas.
neurónios. Por outras palavras,
um único fragmento de cérebro O NOSSO CÉREBRO NEM SEMPRE FOI A PEÇA DE MATÉRIA MAIS
do tamanho de um grão de areia INTRINCADA E MISTERIOSA QUE CONHECEMOS. O Ardipi-
contém até 100 000 neurónios. Além disso, entre todos thecus é provavelmente um dos nossos antepassados
estes neurónios existe uma constelação inextricável de mais antigos e tinha um crânio pequeno, com cerca
10 triliões de sinapses, estruturas especializadas que de 350 cm3 (a nossa espécie, Homo sapiens, tem en-
lhes permitem comunicar entre si. Desta forma, os tre 1300 e 1800 cm3). Assim, nos últimos seis milhões
neurónios ligam-se uns aos outros ou, como disse o de anos, o nosso cérebro triplicou ou mesmo quadru-
Prémio Nobel Ramón y Cajal, apertam as mãos. plicou de tamanho, embora a sua transformação mais
Com estes números, não é surpreendente constatar significativa tenha ocorrido entre 200 000 e 800 000
que a extraordinária atividade metabólica do cérebro anos atrás.
o obriga a consumir 20 % da energia do organismo, Vários fatores favoreceram este crescimento desen-
embora constitua apenas 2 % da sua massa. No en- freado, permitindo assim um maior desenvolvimento
tanto, dada a sua enorme complexidade, é um órgão cognitivo, bem como competências mais avançadas.
extraordinariamente eficiente, sendo o seu consumo Em primeiro lugar, o bipedalismo, a capacidade de
comparável ao de uma lâmpada de 20 watts. andar sobre duas pernas, libertou as mãos para tare-
De facto, o cérebro é tão incrivelmente complexo fas mais complexas e precisas, como a utilização de

52 SUPER
A complexidade das interações sociais favoreceu o
desenvolvimento de competências cognitivas avançadas,
como a teoria da mente, a empatia e a resolução de conflitos

ferramentas. Além disso, a transição do andar de qua-


tro para o andar ereto também significou que o nosso
cérebro teve de coordenar uma grande quantidade de
informação e, nesse processo, fazer ajustes à atividade
muscular em todo o corpo para manter o equilíbrio.
A invenção do fogo também desempenhou um pa-
pel importante no desenvolvimento do nosso cérebro,
como sugerido por autores como o primatologista in-
glês Richard Wrangham. A inclusão de alimentos ricos
em calorias e nutrientes, como a carne, e a cozedura
Os cérebros
dos alimentos permitiram que os nossos antepassa- mais
dos tivessem acesso a mais energia. Assim, quando se sofisticados
começou a cozinhar, o trato digestivo humano con- possuem
traiu-se e o cérebro cresceu. qualidades
relacionadas
Paralelamente, outro fator decisivo para o cresci-
com a
mento do cérebro foi a socialização. A vida em grupos parentalidade.
sociais levou à necessidade de comunicar e cooperar

AGE
eficazmente. A complexidade das interações sociais
favoreceu assim o desenvolvimento de competên-
cias cognitivas avançadas, como a teoria da mente, a
empatia e a resolução de conflitos. Para além disso, a o que aumentou ainda mais a inteligência humana.
capacidade de persuadir, manipular, elogiar, narrar e Por último, a seleção sexual pode ter favorecido a
entreter (com o benefício social inerente) impulsionou inteligência como uma caraterística atraente para os
o desenvolvimento do cérebro e a capacidade de falar parceiros, levando a um aumento da inteligência geral
e raciocinar. da população ao longo do tempo. Talvez estes cére-
Também a linguagem, a cultura e a transmissão de bros sofisticados albergassem qualidades importantes
conhecimentos melhoraram a capacidade dos seres relacionadas com a proteção e a parentalidade, e os
humanos para resolver problemas, planear e cooperar, potenciais parceiros pudessem inferir essas qualidades

As bactérias estão no planeta há


muito mais tempo do que nós e são
mais numerosas do que nós, mas
SHUTTERSTOCK

desempenham as mesmas funções:


sobreviver e reproduzir-se.

SUPER 53
Os bebés humanos
nascem com um cérebro
ainda em desenvolvimento
e, durante os primeiros
anos de vida, formam-se
700 novas ligações
neuronais por segundo.
SHUTTERSTOCK

através de atributos discerníveis, como a inteligência, muitos mais até conseguirem obter alimentos por si
a expressão verbal, o raciocínio rápido ou o sentido de próprios para sobreviver.
humor. Perante estes desafios, o que é que impulsionou o
desenvolvimento inicial do cérebro humano? No seu
PORQUE É QUE OUTRAS ESPÉCIES NÃO DESENVOLVERAM CÉ- livro A Jornada da Humanidade (Lua de Papel, 2022),
REBROS SEMELHANTES ao longo de milhões de anos de Oded Galor resume-o numa palavra: flexibilidade. O
evolução? Muitas espécies foram capazes de sobreviver nosso cérebro é um fardo em muitos sentidos, mas
durante milhões de anos com cérebros muito menos é também um órgão que se adapta facilmente a am-
complexos. Existem até criaturas que não utilizam bientes em mudança. Não é por acaso que, durante os
um único neurónio para conseguir o que nós fazemos primeiros anos de vida, se formam cerca de 700 novas
(sobreviver e reproduzir-se), que nos ultrapassam em ligações neuronais por segundo no cérebro humano
número e que estão neste planeta há milhões de anos em desenvolvimento. E estes neurónios ligam-se de
mais do que nós, como é o caso das bactérias. uma forma ou de outra, dependendo do ambiente.
Ter um cérebro grande e complexo acarreta uma De acordo com esta perspetiva, uma vantagem única
série de desvantagens. A primeira é o seu elevado do cérebro humano é a sua capacidade de aprender efi-
consumo de energia, como já foi referido. O segundo cientemente com a experiência dos outros, facilitando
desafio é que o seu tamanho considerável dificulta a a aquisição de hábitos e preferências que impulsio-
passagem da cabeça do bebé pelo canal de parto. Co- nam a sobrevivência em diferentes ambientes, sem
mo resultado, o cérebro humano é mais compacto ou depender do processo muito mais lento de adaptação
«dobrado» do que o de outras espécies, e os bebés biológica.
humanos nascem com um cérebro ainda em desen- É certo que uma bactéria pode seguir os nutrientes
volvimento que requer anos de adaptação para atingir próximos sem a utilização de neurónios, porque foi
a maturidade. Isto significa que os recém-nascidos programada para os perseguir e evitar moléculas ine-
humanos são vulneráveis: enquanto as crias de ou- ficazes ou prejudiciais. É a composição bioquímica da
tras espécies podem andar e procurar alimentos logo bactéria que determina se ela vai ou não absorver uma
após o nascimento, os seres humanos demoram al- molécula no seu ambiente. No caso de um mamífero,
guns anos a atingir uma postura de marcha estável e no entanto, a decisão é tomada pelo próprio mamífe-

O nosso cérebro é um fardo em muitos sentidos, mas também


se adapta facilmente a ambientes em mudança
54 SUPER
ro. Segundo o físico Leonard Mlodinow, no seu livro te humana e as bases da cognição, das emoções e da
Emocional: A Nova Neurociência dos Afetos (Edito- perceção. Entre outros tópicos, apresenta a ideia da
rial Zahar, 2023), isto representa a vantagem funcional modularidade da mente (que é composta por vários
do sistema de recompensa que está incorporado no módulos especializados, cada um responsável pelo
sistema nervoso. processamento de diferentes tipos de informação e pela
Por outras palavras, apesar de os bebés humanos execução de diferentes funções), que a mente humana
serem fisicamente vulneráveis, os seus cérebros estão possui certos instintos inatos que nos predispõem a
equipados com capacidades de aprendizagem úni- aprender e a adaptarmo-nos ao nosso ambiente, que o
cas, incluindo a capacidade de captar e reter normas cérebro utiliza algoritmos e heurísticas para interpre-
comportamentais da cultura que permitiram a sobre- tar as imagens que nos chegam aos olhos e construir
vivência dos seus antepassados e que ajudarão os seus uma representação coerente do ambiente, e que as
descendentes a prosperar. emoções são mecanismos adaptativos que nos ajudam
a tomar decisões em situações de incerteza e a respon-
DA MENTE MODULAR À COGNIÇÃO INCORPORADA. Com qua- der adequadamente ao nosso ambiente.
se mil páginas, a obra do psicólogo e linguista Steven Por exemplo, quando experimentamos uma emoção
Pinker, Como Funciona a Mente (1997), foi um marco intensa, como o medo ou a alegria, a amígdala envia
na popularização da ciência cognitiva e da psicologia sinais para outras áreas do cérebro, como o córtex pré-
evolutiva. Nela, Pinker explora a natureza da men- -frontal, para este interpretar e processar essa emoção.

Língua crioula
T rata-se de uma língua com regras
gramaticais que surge de uma
língua franca, ou seja, sem regras
Derek Bickerton sobre um grupo de
trabalhadores estrangeiros de várias
nacionalidades no Hawai, durante
automaticamente a assimilar a língua,
mas aplicando as regras gramaticais
universais inatas. A língua franca
coerentes, utilizada para a comunicação o século XIX. Estes trabalhadores adquiriu, através destas crianças, regras
entre pessoas com línguas maternas desenvolveram uma língua franca para de inflexão, ordem das palavras e uma
diferentes. A prova mais evidente de comunicar entre si, que não tinha regras gramática coerente, transformando-
que as regras gramaticais são inatas e gramaticais coerentes e consistia numa se numa língua muito mais eficaz e
não adquiridas por imitação, tal como combinação de palavras e frases básicas eficiente: o crioulo.
o vocabulário, encontra-se na língua para facilitar a comunicação. Esta transformação foi efetuada
crioula. No entanto, estes trabalhadores tiveram instintivamente por apenas algumas
A experiência natural mais significativa filhos. A nova geração, crescendo neste crianças, sem necessidade de extensos
a este respeito foi o estudo de ambiente linguístico caótico, começou manuais gramaticais.

ASC

SUPER 55
A partir desta informação, podem ser gerados pensa- distintas, que se formaram umas sobre as outras, do
mentos e respostas comportamentais adequados. mais primitivo ao mais moderno. Primeiro, o cére-
Desde então, no entanto, os avanços da neurociên- bro reptiliano (responsável pelas funções básicas de
cia, da psicologia e da inteligência artificial forneceram sobrevivência), depois o sistema límbico (relacio-
novos conhecimentos e aperfeiçoaram algumas das nado com as emoções e a memória) e, finalmente, o
ideias apresentadas no livro. neocórtex (associado ao pensamento consciente e à
Por exemplo, tem havido uma compreensão muito cognição superior). O que se descobriu agora é que
mais profunda da genética e da epigenética (alterações estas divisões não são assim tão estanques, que existe
hereditárias na expressão genética que não envolvem alguma sobreposição anatómica e que, além disso, as
alterações na sequência do DNA) e da forma como camadas mais antigas continuaram a evoluir.
estes fatores influenciam a estrutura e a função do Desde a publicação do livro de Pinker, tem havido
cérebro. Isto conduziu a uma visão mais matizada do também um aumento da investigação que explora as
modo como a interação entre a genética e o ambiente ligações entre a mente e o corpo, como por exem-
afeta o desenvolvimento e o funcionamento da mente. plo, a forma como o sistema imunitário pode afetar
Embora o conceito de mente modular ainda tenha a cognição e o humor. Por exemplo, em situações de
seguidores, algumas das ideias originais também fo- inflamação aguda, como uma infeção, a libertação de
ram modificadas ou alargadas em resposta a novas citocinas pode levar a sintomas de «doença comporta-
investigações. Por exemplo, atualmente, dá-se mais mental», como fadiga, letargia, diminuição do apetite,
ênfase à ideia de que a mente é constituída por uma perturbações do sono e diminuição da motivação. Es-
série de processos e sistemas interligados que funcio- tes sintomas são adaptativos e ajudam o organismo a
nam em conjunto, em vez de módulos estritamente conservar energia para combater a infeção.
separados. Além disso, o sistema imunitário pode também
afetar a cognição e o humor através da sua interação
O CONCEITO DE «CÉREBRO TRINO», proposto pelo neu- com o eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA),
rocientista e médico americano Paul D. MacLean na que é uma parte essencial do sistema de resposta ao
década de 1960, também foi considerado simplista. stress. O stress crónico pode alterar o funcionamento
De acordo com a teoria do cérebro trino, o cérebro do eixo HPA, o que, por sua vez, pode afetar a função
humano é composto por três partes evolutivamente imunitária e exacerbar a inflamação. Estas e outras
ASC

Na década de
1960, MacLean
falou de um
cérebro com
três partes
evolutivamente
diferenciadas.

56 SUPER
A ligação entre o
cérebro e a
microbiota
intestinal é
conhecida como
o eixo intestino-
cérebro. O nosso
intestino é uma
espécie de
segundo cérebro.
ASC

descobertas têm vindo a reforçar a chamada «cog- DE ACORDO COM ESTE NOVO PARADIGMA, A NOSSA MENTE JÁ
nição incorporada», uma teoria da ciência cognitiva NÃO PARECE ESTAR APENAS LOCALIZADA NO NOSSO CÉREBRO.
que defende que a nossa mente não é um sistema Na década de 1990, Lynn Margulis, uma figura de des-
isolado, mas está profundamente ligada e é influen- taque no domínio da evolução biológica, introduziu
ciada pelo nosso corpo e ambiente. De acordo com pela primeira vez o termo «holobionte», que agora
esta perspetiva, a cognição não se limita ao cérebro, se refere a esta nova conceção da mente como loca-
mas estende-se a todo o corpo e é alimentada pela lizada em todo o corpo; embora holobionte também
sua interação com o ambiente em que vivemos. Isto se refira ao ambiente do organismo, alguns preferem
inclui os microrganismos que fazem parte de nós, a referir-se ao ser humano como um ecobionte, um or-
microbiota, que podem influenciar a nossa saúde fí- ganismo que faz parte de um ecossistema e interage
sica e mental e, por sua vez, afetar a nossa cognição. com outros organismos e com o seu ambiente. Neste
Por exemplo, a investigação demonstrou que a sentido, um ecobionte pode ser considerado como um
microbiota intestinal pode influenciar o funciona- componente do ecossistema que contribui para o seu
mento do sistema nervoso e a nossa cognição através funcionamento e equilíbrio.
da produção de neurotransmissores e outras subs- Precisamente porque o nosso cérebro ainda não está
tâncias químicas. Esta ligação entre o cérebro e a maduro à nascença, faz as últimas ligações neuronais
microbiota intestinal é conhecida como o eixo in- durante a vida. E fá-las de acordo com o meio em que
testino-cérebro, o que levou alguns investigadores se desenvolve, revelando o quanto de nós é ecobionte,
a considerar o nosso intestino como uma espécie de como explica a zoóloga e bióloga Zoe Cormier no seu
«segundo cérebro». livro A Ciência do Prazer: «O cérebro de um bebé está

SUPER 57
Mente inconsciente
D e um modo geral, os nossos sentidos captam cerca de dez milhões de bits de informação por segundo. No entanto, como
refere Jennifer Ackerman em Amar, Dormir, Comer, Beber, Sonhar, 24 Horas na Vida do Nosso Corpo, processamos conscien-
temente apenas sete a quarenta bits dessa informação.
Por outro lado, Timothy Wilson, da Universidade da Virgínia, utiliza outra medida em Strangers to Ourselves para salientar que a
nossa mente pode absorver onze milhões de bits de dados num instante, mas só temos consciência de quarenta deles.
Assim, pode argumentar-se, de acordo com Ap Dijksterhius, Henk Aarts e Pamela K. Smith num estudo publicado em The New
Unconscious, que a mente consciente tem 200 000 vezes menos capacidade de processamento do que a inconsciente.

hiperconectado: o cérebro de um recém-nascido tem aprender línguas, o ambiente em que se desenvolvem


muito mais ligações cerebrais do que o de um adul- desempenha um papel fundamental na aquisição e de-
to». Com o passar dos meses, os cérebros dos bebés senvolvimento das suas competências linguísticas. A
precisam de se tornar mais eficientes, fazendo liga- exposição à língua, a interação social e o estímulo e
ções adequadas de acordo com o ambiente em que se apoio ambiental são fatores-chave que influenciam o
desenvolvem, levando a um processo de poda neural. processo de aprendizagem das línguas.
No entanto, até que isso aconteça, os bebés «vivem Por essa razão, quando uma criança não recebe
numa névoa sinestésica: cada cheiro está tingido de qualquer exposição à linguagem, ou recebe uma ex-
cor, cada som está impregnado de cor e cada cheiro posição mínima ou inadequada durante os primeiros
está colorido com som. Uma explosão alucinogénica anos de vida, pode sofrer atrasos significativos no de-
onde os sentidos se misturam num turbilhão carnal. senvolvimento da linguagem e noutras competências
Não é de admirar que os bebés pareçam sempre eufó- cognitivas e sociais, e pode ter dificuldade em apren-
ricos, sobrecarregados e exaustos ao mesmo tempo». der palavras, estruturas gramaticais e competências
de comunicação. Em casos extremos, como o das
A IMPORTÂNCIA DO MEIO TAMBÉM SE REFLETE NA DIVERSIDA- crianças selvagens ou das que sofreram negligência e
DE LINGUÍSTICA da espécie humana. Assim, embora os isolamento prolongados, podem nunca atingir a pro-
seres humanos tenham uma predisposição inata para ficiência linguística total, embora possam aprender

58 SUPER
Genie Wiley nunca
dominou a
gramática, porque
na fase crítica do
desenvolvimento e
das capacidades
inatas foi isolada de
todo o contacto
humano.
ASC

algumas competências básicas de comunicação com Tal como acontece com muitas outras característi-
intervenções e apoio adequados. cas humanas, nascemos com modelos pré-instalados
Um exemplo desolador deste fenómeno é o caso de que são ativados ou não em função do ambiente. No
Genie, uma menina de 13 anos encontrada num aparta- entanto, os modelos são fixos. Por essa razão, todas as
mento de Los Angeles. Durante toda a sua vida, esteve línguas parecem partilhar características gramaticais
confinada a um quarto, isolada de qualquer contacto universais. Isto é sugerido pela teoria do instinto da
humano. Sem um ambiente linguístico em que as suas linguagem, proposta pelo linguista Noam Chomsky e
capacidades inatas se pudessem desenvolver, Genie também defendida por Steven Pinker no seu livro O
aprendeu apenas duas palavras para comunicar: «Bas- Instinto da Linguagem.
tayá» e «Nadamás». Contudo, ainda há muito a descobrir, a matizar e até
Quando Genie foi resgatada e começou a interagir a refutar. Tanto quanto sabemos, como argumenta o
com outras pessoas, adquiriu um novo e extenso vo- neurocientista David Eagleman, o cérebro é o pedaço
cabulário. No entanto, como já tinha passado a fase de matéria mais complexo e fascinante do universo.
crítica de desenvolvimento e as suas capacidades inatas Em vez de o vermos como um obstáculo intransponí-
tinham sido afetadas, nunca dominou adequadamente vel, podemos encará-lo como um desafio permanente
a gramática, apesar dos seus esforços em praticar. à ciência e um teste à espantosa capacidade do cérebro
Isto não significa que a linguagem seja toda aprendida. humano para se compreender a si próprio. e

SUPER 59
EXPLORADOR MOTOR

O CARRO URBANO ELÉTRICO DA


CUPRA, O RAVAL, CHEGARÁ EM 2025.
Cupra já revelou o nome o conjunto de baterias de 226 CV a

A do seu primeiro veículo


urbano elétrico. Trata-se do
Raval, um nome que serve
impulsionar este carro elétrico citadino
para 100 km/h em apenas 6,9 segundos
e com uma autonomia de até 440
de homenagem ao bairro de Raval, no quilómetros na sua versão mais alta. e
coração de Barcelona, tal como o seu
irmão, o Cupra Born. «O Raval é uma
das zonas mais fantásticas de Barcelona,
por isso estamos orgulhosos que o futuro
citadino elétrico da marca tenha o seu
nome e represente o seu espírito. Tal
como fizemos com o Born, queremos
agora exportar a essência do Raval e
continuar a inspirar o mundo a partir
de Barcelona», explicou Wayne Griffiths,
CEO da empresa, durante a apresentação
do revolucionário modelo.
Sob esta essência, e com um design
inspirado na competição, nasceu um
automóvel de nova geração, urbano,
100% elétrico e com muito carácter.
Concebido e desenvolvido em Barcelona,
será produzido na sede da Seat em
Martorell e será lançado em 2025. Para
tal, a empresa investirá 3 mil milhões
de euros para passar da combustão para
a eletrificação e produzir automóveis
elétricos a partir de 2025 com base
na plataforma MEB Small do Grupo
Volkswagen.
Com 4,03 metros, o design exterior e
interior leve ajuda o motor elétrico e

O CUPRA RAVAL integra uma série de materiais sustentáveis A EMPRESA anunciou o nome do seu futuro modelo Cupra, coin-
para proporcionar uma condução mais ecológica. Além disso, cidindo com os melhores resultados num primeiro trimestre da
os métodos de fabrico por impressão 3D e os tecidos 3D com sua história. Com 46 600 unidades vendidas durante o primeiro
conceção paramétrica, melhoram o desempenho e a qualida- trimestre de 2023, a empresa acumulou 83 % mais do que no
de percebida. mesmo período de 2022.

60 SUPER
FIAT LANÇA QUADRICICLO
TOTALMENTE ELÉTRICO
A FIAT REVELOU o seu quadriciclo é um novo dispositivo de mobilida-
100% elétrico, o Topolino, que será de elétrica que foi concebido para
lançado em abril de 2024. O nome um vasto público, incluindo clien-
faz lembrar o veículo que abriu ca- tes mais jovens, famílias e amantes
minho à mobilidade urbana e evoca da cidade. E graças ao seu design
o primeiro Fiat 500, produzido de encantador, adequado a todas as
1936 a 1955, vulgarmente conhecido gerações, fará com que os jovens
como «Topolino». se apaixonem de novo pelos au-
O novo Topolino encarna na perfei- tomóveis. Além disso, o novo Fiat
ção a dolce vita e o espírito italiano Topolino desempenhará um papel
da Fiat. Como veículo que pretende socialmente ativo na promoção da
fazer-nos sorrir, o Topolino traz um mobilidade elétrica nas cidades e
novo conceito de dolce vita, ale- um papel importante na criação de
gria, otimismo e diversão para as uma solução de mobilidade pes-
ruas da cidade. O novo quadriciclo soal para toda a família.

NOTA: 4,78

A LEXUS REVELA O SEU NOVO BEST-SELLER


DESDE O SEU LANÇAMENTO EM forma de seta. Embora as dimensões
POTÊNCIA
1989, a Lexus tem sido repetidamente exteriores sejam mais compactas do
226 CV.
pioneira em novas ideias e produtos que qualquer outro Lexus, com ape-
que remodelaram o mercado de auto- nas 4,19 metros de comprimento, a
ACELERAÇÃO móveis de luxo. Hoje marca um novo imagem do LBX é vigorosa e podero-
0-100 km/h em começo com o lançamento do LBX, sa. No interior, há muito espaço para
6,9 segundos. o Lexus mais pequeno de sempre. todos os passageiros, com até 332
O seu objetivo é apelar a um público litros de espaço na bagageira e um
PREÇO mais jovem e àqueles que talvez nun- painel de instrumentos que se esten-
A ser lançado em 2025. ca tenham considerado comprar um de continuamente através dos painéis
Lexus antes. O estilo do LBX estabe- das portas. O LBX é alimentado por
NOTA: 4,90 lece uma nova identidade Lexus com
um design frontal Resolute Look que
um sistema híbrido auto-recarregá-
vel da Lexus de nova geração com
reinterpreta a famosa grelha dupla em 136 CV de potência.

SUPER 61
EXPLORADOR MOTOR

A CONCENTRAÇÃO DE CARRINHAS
MAIS IMPORTANTE DE ESPANHA
m evento que começou espontaneamente há Por exemplo, foi possível ver-se a nova Amarok, um

U 19 anos tornou-se agora um evento obrigatório


para os amantes de carrinhas Volkswagen. Des-
de o primeiro encontro, em 2004, quando um
modelo de referência no mercado das pick-ups, e a gama
completa de Camper: com a Caddy California, a lendária
California e a Grand California. Mas foi o novo ID. Buzz
grupo de proprietários decidiu reunir-se em Sant Pere Pes- que chamou a atenção de milhares de fãs. Houve ainda a
cador, o evento atingiu um recorde de participação: cerca tradicional foto de família, o desfile de carrinhas, o clás-
de 900 carrinhas e 6500 pessoas. É um evento que acolhe sico churrasco, atividades para crianças e o concurso de
veículos de todas as épocas e origens, desde os anos 50 até máscaras. e
às últimas inovações da marca, modelos muito pessoais,
bem como outros com diferentes cores e acessórios.

NOTA: 4,45

62 SUPER
APENAS 1000 UNIDADES
DO «MY AMI BUGGY»
Após o sucesso da série ul- nas embaladeiras das portas,
“ A MINHA OPINIÃO

A DIGITALIZAÇÃO,
DESAFIO OU FICÇÃO?
tra-limitada de 50 unidades nas costuras dos bancos e nos
do «My Ami Buggy», lançada tapetes. Há cerca de uma década começámos
em França em 2022, a Citroën Esta segunda série limitada a conviver com o termo «digitalização»
propõe agora uma nova edição também não tem portas nem dentro da indústria automóvel. O sonho
especial de 1000 unidades, que tejadilho, mas os acessórios de era alcançar em tempo recorde a utopia da
será comercializada em nove proteção foram acrescentados condução autónoma infinita, levar o desen-
países, incluindo Portugal. Esta e modificados. Em particular, volvimento da segurança preventiva até
nova versão mantém a cor caqui foram concebidas novas lonas ao nível de conseguir o desaparecimento
da carroçaria e a cor preta dos de plástico com fechos de cor- dos acidentes nas estradas, conseguir um
elementos de proteção, tudo rer para proteger o condutor e o desenvolvimento perfeito da comunicação
concebido para lhe conferir um passageiro do mundo exterior. do veículo com o exterior quando em mo-
aspeto robusto. No entanto, Para além disso, a capota tem um vimento, e até com os restantes veículos na
a vitalidade e a frescura são novo sistema de fecho. Trata-se estrada, e muitos, muitos projetos que, na
proporcionadas pelos toques de um tecido preto impermeável, verdade, deixo de fora.
intensos de amarelo. Um tom agora com um fecho de correr, E, de repente, da forma mais inoportuna
que também é utilizado no ha- o que o torna mais prático e fácil que poderíamos imaginar, o «dieselgate»
bitáculo, nos frisos das portas, de manusear. Preço: 10 490 €. aparece em cena como um artista não
convidado. Tudo o que mencionámos an-
teriormente deixa de existir como se fosse
uma memória de futebol na mudança de
época e nasce a solução indiscutível, «o
veículo elétrico». Trata-se, naturalmente,
de um ator que era esperado, até com
ansiedade, mas pelo menos uma década
depois. Os nossos governantes mostra-
ram-nos o caminho único e indiscutível, a
eletrificação é sinónimo de salvação. Cada
ator aplicou este termo de uma forma
totalmente subjetiva, de acordo com o
campo em que se encontrava na altura, os
políticos talvez a pensar mais no presente
do que no futuro, a sociedade a partir de
diferentes focos, a lutar para salvar a reali-
dade indiscutível das alterações climáticas
e a indústria a tentar salvar a possibilidade
de estar vivo no futuro. E quando tanto
a sociedade como a indústria tiverem
demonstrado o seu empenhamento no
combate às alterações climáticas e a
sua capacidade de ultrapassar em uma
década a tecnologia mais avançada, a
digitalização e tudo o que mencionámos
no início reaparece novamente como um
ator importante. Não tenho dúvidas de que
passará de utópico a real em muito menos
tempo do que imaginámos.

José Manuel González,


coordenador da secção Motor.
N

SUPER 63
F I G U R A S D A H I S T Ó R I A D E P O R T U G A L

D. João II, Iluminura no Livro dos Copos, ca. 1490 a 1498.


ASC

64 SUPER
D. JOÃO II
ÁFRICA, ATLÂNTICO E ÍNDIA
NO SEU REINADO
Figura mítica da história de Portugal, D. João II é protagonista de um pe-
ríodo recheado de acontecimentos e de transformações decisivos que mar-
caram de forma indelével a história do reino nos séculos seguintes.

Texto de MIGUEL AGUIAR, Investigador no Instituto de Estudos Medievais – NOVA FCSH

SUPER 65
C
om 16 anos, em 1471, o prínci- quela região – e dos proventos comerciais nela obtidos
pe D. João, herdeiro do trono – passaria a estar decisivamente na órbita da coroa, sob
português, acompanhou o pai direta supervisão do herdeiro do trono.
D. Afonso V na grande armada
que tomou a cidade de Arzila. A PONDERAÇÃO DO PAPEL DE D. JOÃO II NA EXPANSÃO e nas
Tratava-se da terceira praça descobertas de terras e rotas marítimas, ou, visto de
conquistada pelos portugue- outra forma, o enquadramento do seu reinado em tais
ses no Norte de África, depois processos, não se pode desligar das várias correntes,
de Ceuta, em 1415, e de Alcácer memorialísticas e historiográficas, que sobre este per-
Ceguer, em 1458. Com ela cai- sonagem se foram tecendo ao longo dos séculos. Para
ria finalmente Tânger, presa alguns, e pelo menos desde o século XVI, o «Príncipe
há muito sonhada pelos monarcas portugueses, e cuja Perfeito» encarnou os ideais de um príncipe cristão e
malograda tentativa de conquista em 1438 havia cus- esclarecido. Na historiografia oitocentista, mas também
tado o cativeiro e a vida do infante D. Fernando, filho republicana e do Estado Novo, converteu-se na figura
mais novo de D. João I. O relato da conquista de Arzila acabada, por diferentes razões, do príncipe que encarna
foi-nos legado pela pena de Rui de Pina, cronista-mor a «razão de Estado» por oposição às «medievais» forças
do reino e figura próxima de D. João II e dos círculos centrífugas da nobreza e de outros grupos sociais. Assim
de poder. D. João fez o seu batismo de fogo e foi arma- foram lidos, por exemplo, os conflitos com a nobreza,
do cavaleiro pelo pai junto aos cadáveres dos condes de nomeadamente o julgamento e execução da cabeça des-
Monsanto e de Marialva, figuras do topo da hierarquia se estado, o duque de Bragança, e o assassinato, pelas
nobiliárquica e incensadas em exemplos máximos de próprias mãos do rei, de D. Diogo, seu primo e duque de
virtude cavaleiresca e cruzadística, atributos definido- Beja. Para estas correntes interpretativas, os atos de D.
res do horizonte mental da nobreza tradicional. João II foram percecionados como indispensáveis exibi-
Entre vários significados, a investidura cavaleiresca ções de força, de certo modo precursoras de uma «razão
também marcava a assunção da idade «adulta» daque- de estado» sobreponível a interesses particulares.
le que era investido. Desde então, e ao longo da década A figura de D. João II surgiu assim, durante muito
de 1470, o infante D. João é progressivamente associado tempo, em oposição ao «neo-senhorial» D. Afonso
ao governo do pai, e mais concretamente à gestão dos V: este, submisso aos interesses da nobreza, aquele,
assuntos africanos. Se, entre 1469 e 1474, a progressão contrariando-a, mesmo de forma violenta. No que à ex-
das descobertas no golfo da Guiné se deveu à concessão pansão diz respeito, tal dicotomia simplista também se
feita a Fernão Gomes da Mina, um funcionário e «ca- enraizou na perceção de um quixotesco interesse afon-
valeiro-mercador» integrado no círculo social da casa sino nos feitos de armas do Norte de África, contra os
do rei D. Afonso V, a partir de então, a exploração da- projetos ‘racionais’ e ambiciosos do filho, anunciadores
do plano da Índia. Uma visão que, se talvez impregnada
num certo senso-comum sobre a história de Portugal,
tem sido no entanto profundamente revista ao longo
das últimas décadas. Por um lado, no que à expansão
e aos descobrimentos diz respeito, tem sido sublinha-
do pela historiografia que, longe de desinteressado, D.
Afonso V foi uma figura atenta e empenhada na ques-
tão das explorações marítimas, em particular depois
da morte do tio, o infante D. Henrique, em 1460. O
contrato de exploração e comércio feito com Fernão
Gomes não significou, portanto, o desinteresse pelas
explorações marítimas em detrimento dos projetos
cruzadísticos, das praças norte-africanas às quimeras
da Terra Santa, como a aplicação de binómios interpre-
tativos anacrónicos e simplistas pode tentadoramente
fazer transparecer. Por outro lado, outras tendências
historiográficas, mesmo reconhecendo a importância
fundamental dos poderes ditos «estatais» na organi-
zação destas empresas de exploração – e, décadas mais
tarde, de organização imperial – têm insistido na im-
portância de análises de redes. Estas poderiam assumir
várias configurações, sobreponíveis entre si (pessoais,
familiares, profissionais, clientelares). A aplicação des-
tes princípios metodológicos permite observar, para
além das emanações dos poderes centrais e oficiais, as
atividades de agentes e de grupos, de forma concertada
Dona Leonor de Viseu, ou concorrente, entendendo-as como parte fundamen-
esposa do rei D. João II. tal das engrenagens sociais de fenómenos tão complexos
Escola portuguesa da como a expansão. Para mais, quando a organização de
primeira metade do século instituições como a coroa – a que hoje tentadoramente,
XVI. Acervo da Santa Casa
da Misericórdia de
mas de forma errada, associamos a noção de «estado»
Coimbra. – passava em grande medida pela articulação com dife-
rentes agentes e instituições.
ASC

66 SUPER
Crónica de João II,
de Rui de Pina.
ASC

A figura de D. João II surgiu assim, durante muito tempo,


em oposição ao «neo-senhorial» D. Afonso V
SUPER 67
A expansão e os descobrimentos
foram processos históricos
complexos, sobre os quais,
as forças sociais da época se
dividiam
jurídica tendente à afirmação da teoria do mare clau-
sum, o tratado expressou a nascente conceção moderna
do espaço como uma área passível de ser concebida
abstratamente. Para trás ficava a perceção que encarava
esse espaço como uma «sucessão de costas», ou como
estando essencialmente polarizado por objetos e luga-
res. Na mesma época, surge também o sentido moderno
das palavras descobrir e descoberta, sinalizando, na
perspetiva dos agentes históricos ocidentais, o conhe-
cimento de terras até então ignoradas, mas também de
novos caminhos para chegar às terras que se conheciam
de forma mais real ou onírica. Em 1493, pronunciando
uma oração de obediência perante o papa Alexandre
VI, Fernando de Almeida elogiou o rei D. João II por ter
promovido “o achamento de novos homens (…) dando
ao mundo novas e inúmeras ilhas remotas”. Nasce as-
sim a visão que, nas décadas seguintes, fundamentaria
a mitologia da gesta marítima portuguesa. Em todo o
Brasão de Armas de D.João II. caso, a coincidência de todos estes elementos evidencia
as profundas transformações que estavam em marcha.

D. JOÃO II SUCEDEU AO PAI EM 1481. Desde então, o co-


Rejeitando interpretações simplistas geradas a partir nhecimento da África atlântica ocupa parte central
de categorias mentais alheias à época em que os perso- das preocupações do monarca, ainda que concertando
nagens viveram, importa recusar a visão da expansão ações em vários planos. No que concerne às navegações,
e dos descobrimentos como movimentos unidimensio- existia um capital aprimorado: um corpo de especia-
nais. No caso do reinado de D. João II, tal visão assentaria listas, apoiado em conhecimento técnico, livresco,
facilmente no lastro desta personagem mítica, cujas e em técnicas de navegação e construção naval pro-
implicações memorialísticas e ideológicas tivemos já gressivamente adaptadas às novas circunstâncias. As
oportunidade de assinalar. A expansão e os desco- explorações também se tornavam possíveis graças aos
brimentos foram, na realidade, processos históricos proventos materiais que as financiavam, e pelo horizonte
complexos, sobre os quais, de resto, as forças sociais da de honra e proveito que chegar mais longe prometia. De
época se dividiam. Porta de entrada de D. João na «vida resto, para a coroa, o crescente proveito estava alicer-
pública», a presença portuguesa em Marrocos fora, pe- çado nos monopólios comerciais que paulatinamente se
lo menos desde a década de 1430, e em sucessivas fases, começam a aplicar sobre os produtos mais apetecidos.
objeto de debate na corte portuguesa, entre aqueles que Em 1482, a construção da fortaleza de S. Jorge da Mina
defendiam os méritos do esforço de conquista e de ma- no atual Gana – numa expedição liderada por Diogo de
nutenção das praças, e os que a ele se opunham ou pelo Azambuja, e que seguiu de Portugal com os materiais
menos colocavam sérias reservas. preparados para assemblagem no local, erigindo a pra-
Quando na década de 1470 o então infante D. João ça-forte – permite aos portugueses passar a dominar
recebeu responsabilidades sobre a empresa atlânti- de forma estável o comércio no golfo da Guiné. Através
ca, os proventos a ela associados já justificavam a sua deste ponto de apoio, os portugueses acederiam aos
importância. Selando a paz depois da guerra da suces- circuitos do ouro, completados, sobretudo a partir do
são castelhana que, desde 1475, opusera D. Afonso V Benim, pelo tráfico de escravos. Posteriormente, e em
a Isabel e Fernando (tendo estes emergido vitoriosos, grande parte com base nestas rotas, dar-se-ia uma no-
unindo as coroas de Castela e de Aragão), o tratado de va escala ao tráfico negreiro, largamente impulsionado
Alcáçovas-Toledo, concluído em 1479-1480, plasma pelo mercado europeu e, algumas décadas depois, pelas
uma nova conceção do espaço e do poder que nele se sociedades de matriz senhorial-eclesial que se iriam im-
exerce. Reconhecendo definitivamente a hegemonia plantar no continente americano.
castelhana sobre as Canárias, objeto de disputa entre
as coroas portuguesa e castelhana desde o século XIV, A EXPANSÃO DO CRISTIANISMO FORNECE também um quadro
o tratado legitimava o monopólio português a sul da- motivacional e relacional imprescindível. A dimensão
quele arquipélago, e selava a posse dos arquipélagos da proselítica do cristianismo ambicionando a expan-
Madeira, dos Açores e de Cabo Verde. Numa expressão são da Igreja universal, e alicerçada na tentativa de

68 SUPER
conversão dos povos através do batismo dos seus lí- exemplo os notáveis locais como fidalgos. Ainda assim,
deres, configurava simultaneamente a criação de um não deixava de se insinuar uma visão etnocêntrica que
esquema relacional teoricamente mais favorável, em acreditava numa superioridade portuguesa.
princípio sem a tensão subjacente ao encontro com Sobre este pano de fundo, e desde que D. João II as-
outras crenças. Para o efeito, recorde-se que, nas so- cendera ao trono, sete anos serão suficientes para se
ciedades antigas – pré-liberais e pré-industriais – as avançar decisivamente no conhecimento do oceano a
crenças religiosas estruturavam de forma muito pro- Sul do Equador. As viagens de Diogo Cão, entre 1482
funda a organização social, desempenhando um papel e 1486, permitem explorar toda a costa africana até à
muito mais vasto e holístico por comparação às so- Namíbia. Lida-se com um novo sistema de navegação,
ciedades em que vivemos. Os esforços de conversão obrigado a, entre outras coisas, conhecer profunda-
encontrariam um contexto mais favorável junto de cer- mente o regime de ventos. O «plano da Índia» decerto
tos príncipes locais, como o rei do Congo, batizado em germinaria desde a década de 1470. A coerência com
1491. A conversão desses príncipes, conferindo-lhes os que ele foi sendo construído poderá explicar a recusa,
nomes de batismo dos monarcas portugueses – Afon- por parte de D. João II, da proposta de Colombo de che-
so, João –, instruindo-os na língua portuguesa e no gar às Índias navegando rumo ao Ocidente. De todo o
catolicismo, e procurando impregná-los dos símbolos modo, os planos racionais sobrepõem-se às imagens
culturais europeus, consubstanciava simultaneamen- do Oriente que há muito impregnavam o imaginário
te a imersão nas disputas guerreiras e territoriais que ocidental, marcadas por um horizonte onírico de ri-
marcavam a região. Todavia, seria somente no século queza. Em 1487, o monarca decide enviar Afonso Paiva
XVI que os portugueses investiriam verdadeiramente e Pêro da Covilhã numa viagem secreta para recolher
na missionação e na conversão massiva ao cristianismo informações sobre a Índia e o mítico Prestes João. Po-
dos povos que encontravam. O proselitismo estava ne- rém, a viagem crucial é liderada por Bartolomeu Dias.
cessariamente imbuído de uma dimensão pragmática, Deixando Lisboa em agosto daquele ano, a expedição
e convivia, apesar da vocação universalista cristã, com dobrou a ponta sul do continente africano em feverei-
uma certa curiosidade «etnográfica». Essa curiosidade, ro de 1488, descobrindo a ligação entre os dois oceanos.
também pragmática, motiva a descrição das realidades Nos anos seguintes, novas viagens de exploração procu-
sociais com que os portugueses se deparavam através rariam determinar a melhor rota para a viagem. Prova
da sua própria utensilagem conceptual, retratando por de um «corpo de especialistas» desenvolvido ao longo

©AMPM

Episódio de O Cerco de Arzila, Tapeçarias de Pastrana (parcial) realizadas pela oficina flamenga de Tournai. Palácio dos Duques, Guimarães.

SUPER 69
ASC

Carta náutica de Lázaro Luís, 1563, vendo-se a costa norte de África com representação da Fortaleza da Mina. Academia de Ciências de Lisboa.

70 SUPER
Cronologia
1455 Nascimento de D. João II.

1469-1474 Contrato de concessão da exploração da costa africana a Fernão Gomes da Mina.

1471 Com 16 anos, D. João acompanha o pai na conquista de Arzila, onde é armado cavaleiro.
Tratado de Alcáçovas-Toledo, pondo fim ao conflito entre Portugal e as coroas de Castela e Aragão, e
1479-1480
assegurando o monopólio de Portugal sobre o Atlântico Sul.
1481 Morte de D. Afonso V e ascensão de D. João II ao trono.
Construção da fortaleza de S. Jorge da Mina, no atual Gana, numa expedição liderada por Diogo de
1482
Azambuja.
1482-1486 Viagens de Diogo Cão, chegando à costa da Namíbia.
Envio da missão de Pêro da Covilhã e de Afonso de Paiva para recolher informações sobre o Prestes João e
1487
a Índia.
1487-1488 Viagem de Bartolomeu Dias, dobrando o Cabo da Boa Esperança e penetrando no Oceano Índico.

1491 Conversão do rei do Congo.

1492 Chegada de Cristóvão Colombo às Antilhas.

1493 Bula Inter caetera propõe uma primeira divisão das esferas de domínio portuguesa e castelhana.

1494 Tratado de Tordesilhas, dividindo a esfera de domínio das coroas portuguesa e castelhana.

1495 Morte de D. João II.

de décadas, o mesmo Bartolomeu Dias seria, anos mais informações sobre o Oriente; tentativa de penetração
tarde, um dos consultores navais da expedição que che- no interior do continente africano e criação de focos
gou à Índia sob o comando de Vasco da Gama. de cristianização; e a atividade diplomática que, envol-
Vários dos pontos até agora aflorados – preparação vendo outros poderes concorrentes e a Santa Sé, fixava
técnica de empresas futuras; organização da explora- em tratados as zonas de influência – surgem-nos como
ção do comércio nas costas africanas; prosseguimento pontos relacionados, evidenciando a complexidade das
da descoberta da costa ocidental deste continente com transformações em marcha.
o objetivo de penetrar no oceano Índico; colheita de
A CHEGADA DE COLOMBO ÀS ANTILHAS em 1492 reacende a
disputa entre os monarcas português e castelhano.
A intervenção da Santa Sé surge através da bula Inter
caetera. Datado de 3 de maio de 1493 e dirigido à co-
roa castelhana, o texto propunha uma linha meridiana
100 léguas a oeste de Cabo Verde, mas foi recusado pe-
lo rei de Portugal. Em 7 de junho de 1494, as potências
concorrentes chegam a um acordo e concluem o trata-
do de Tordesilhas. Fica assim estabelecida uma divisão
longitudinal 370 léguas a ocidente de Cabo Verde: re-
conhecendo a soberania castelhana sobre os territórios
por ela encontrados, os portugueses reivindicavam,
porém, o espaço de navegação no Atlântico Sul que en-
tendiam fundamental para cumprir os seus objetivos de
navegação para o Índico.
Tratou-se de um marco fundamental, decorrente
das transformações ocorridas nas décadas anteriores, e
configurador de uma nova perceção do espaço oceâni-
co. Ocorre no difícil ocaso do reinado de D. João II, em
que, ao que tudo indica, se começara a planear a via-
gem marítima para a Índia. Depois da morte do filho D.
Afonso pouco depois do casamento com a filha dos Reis
Católicos, o monarca encontrava-se isolado, enfrentan-
do forte oposição à tentativa de legitimar e tornar seu
herdeiro o filho ilegítimo D. Jorge. D. João II morreu
no Alvor em 1495. Seria já em 1497, no reinado do seu
Página do Tratado de Tordesilhas primo e sucessor D. Manuel que, de Lisboa, zarparia a
entre Portugal e Castela. armada capitaneada por Vasco da Gama, aportando fi-
nalmente, no ano seguinte, em Calecute. e
ASC

SUPER 71
M I S T É R I O S D A M E N T E

As pessoas com um
estilo de pensamento
mais intuitivo tendem
a acreditar mais em
fenómenos
paranormais,
considerando apenas
a informação que
reforça as suas
GETTY

hipóteses.

72 SUPER
Porque é que vemos

A sugestão e a educação, com toda a sua bagagem de mitos


e tradições, explicam em parte a sobrevivência das crenças
paranormais na nossa sociedade. Mas há outros fatores, mais
físicos do que ambientais, que também podem desencadear
estas alucinações. Nos últimos anos, a neurociência tem vindo a
esclarecer as causas que nos induzem a ver fantasmas.

Texto de ALBERTO DE FRUTOS, jornalista

SUPER 73
ALBUM

ASC
No final do século
XIX e início do
século XX, as
sessões de
espiritismo
ASC

atraíam muitas
pessoas. Décadas
mais tarde,
chegaria a febre
do fenómeno
poltergeist.

navam fotografias de espíritos e, em não poucos casos,


acreditavam em fantasmas. O que aconteceu para que
a ciência se distanciasse de tais especulações? Bem, o
racionalismo crítico prevaleceu sobre as intuições não
comprováveis, e muitos dos fenómenos paranormais
que assombravam os nossos antepassados podem ago-
ra ser interpretados à luz da ciência. Incluindo, sim, os
fantasmas.

N
DUVIDAMOS DA EXISTÊNCIA DE DEUS, MAS ACEITAMOS CADA
um sentido básico, os fan- VEZ MAIS O CORTEJO DOS FANTASMAS. Em 2000, 13,1 % dos
tasmas existem porque as espanhóis declaravam-se ateus ou agnósticos, uma per-
pessoas não param de dizer centagem que atualmente ronda os 40 %. Nos Estados
que os viram», resumiu Ro- Unidos, pelo menos, a crença nos fantasmas aumentou
ger Clarke no seu ensaio de 400 % desde o final dos anos 70. E quantos britânicos se
fácil leitura A História dos apaixonaram pelo documentário da BBC, Ghostwatch,
Fantasmas. Quinhentos anos que seguia as deambulações de um espírito pelas ruas
em busca de provas. A ques- de Londres! Foi transmitido em 1992, cinquenta e qua-
tão é saber porque é que as tro anos depois da Guerra dos Mundosde Orson Welles,
pessoas os vêem ou afirmam para pôr as coisas em contexto.
tê-los visto e, nesse debate, Sem dúvida que a sociologia tem muito a dizer sobre
os cientistas não ficaram de esta troca de fés, mas quando se trata de «ver» fantas-
braços cruzados. Quando um fenómeno escapa à sua mas, a psicologia parece ter a última palavra. Em maio
compreensão, tentam assimilá-lo com os instrumen- de 2022, a revista PLOS ONE publicou um relatório
tos de que dispõem: a dúvida, a análise, a síntese e a sobre as crenças paranormais e a função cognitiva (Pa-
verificação. A razão, numa palavra. Nesta procura da ranormal beliefs and cognitive function: Asystematic
verdade, um Prémio Nobel da Medicina, Charles Robert review and assessment of study quality across four
Richet (1850-1935), envolveu-se no Institut Métaphy- decades of research), em que analisou dezenas de ar-
sique de Paris, que, em pleno século XXI, continua a tigos de quatro bases de dados (Scopus, ScienceDirect,
promover uma «alternativa racional tanto aos excessos SpringerLink e OpenGrey) e concluiu, em traços gerais,
de credulidade como aos excessos de ceticismo». Por que quem acredita nestes fenómenos apresenta um es-
sua vez, o físico Oliver Lodge (1851-1940) presidiu à So- tilo de pensamento mais intuitivo e incorre no chamado
ciety for Psychical Research, em Londres, tão isenta de viés confirmatório, ou seja, na tendência para destacar
preconceitos como o referido instituto francês. E, nos apenas a informação que confirma as suas hipóteses ou,
anos 20 do século passado, a popular revista Scientific em muitos casos, os seus preconceitos.
American oferecia uma recompensa de 15 000 dólares E atenção, acreditar em fantasmas é normal e até
a quem conseguisse apresentar provas conclusivas da saudável, pois faz parte do nosso processo de aprendiza-
existência de fantasmas. gem. Margarita Megía Hortal, psicoterapeuta familiar e
Há cem anos atrás, em suma, as maiores mentes de casais, diz-nos que «o pensamento mágico, que apa-
discutiam casas assombradas, telepatia e telecinesia, rece normalmente entre os dois e os sete anos, permite
participavam nas sessões de médiuns famosos, colecio- às crianças ter uma visão fantástica do mundo e acre-

Muitos fenómenos paranormais que perturbaram o


passado podem ser interpretados hoje à luz da ciência
74 SUPER
ditar no Pai Natal, em fantasmas ou na fada dos dentes.
Entre o ceticismo e a
A sua função é ajudá-las no processo de crescimento e irracionalidade
amadurecimento para enfrentar os conflitos e a vida em
geral». Não é que as crianças sejam incapazes de dis-
C hristopher C. French,

CREDITO
ASC
tinguir a fantasia da realidade, mas, como formulou um Professor Emérito do
estudo da British Psychological Association(Monsters, Departamento de Psicologia da
ghosts and witches: Testing the limits of the fantasy- Goldsmiths, Universidade de
-reality distinction in young children, 1991), elas «são Londres, e Diretor da Unidade
tentadas a acreditar na existência do que simplesmente de Investigação em Psicologia
imaginaram». Anómala, é um investigador
E o que acontece quando crescemos e continuamos a de renome mundial sobre
«ver» fantasmas? Alguns podem considerar que esta é acontecimentos paranormais.
a origem das religiões, embora não seja fácil discernir Falámos com ele.
se foi a nossa espiritualidade «natural» que produziu Será o medo da morte o fator
as primeiras religiões, ou se foram as religiões que ca- mais relevante para explicar a
nalizaram essa espiritualidade. Talvez um fantasma não perceção do sobrenatural por
seja mais do que essa presença a que os crentes chamam tantas pessoas?
alma, e então a sua razão de ser cai pelo seu próprio Nenhum de nós gosta da ideia de que, quando morremos, é o
peso: a nossa vida e a dos que nos rodeiam parecem- nosso fim. Talvez ainda pior, detestamos a ideia de que, quando
-nos muito valiosas (e são), por isso, na ânsia de as fazer os nossos entes queridos morrerem, nunca mais teremos
durar, imaginamos vidas que nunca acabam e que nos contacto com eles. Por isso, sentimo-nos fortemente motivados
acompanham. Em 1971, um estudo revelador realizado para encontrar qualquer prova que apoie a ideia de vida após
no País de Gales, The Hallucinations of Widowhood, a morte. Muitos tipos de alegações paranormais parecem
constatou que quase metade das pessoas entrevistadas, fornecer essas provas, tais como experiências de quase-morte,
todas viúvas e viúvos, tinham alucinações ou delírios memórias de vidas passadas, intercâmbios mediúnicos e até
sobre o cônjuge morto. fantasmas.
No decurso da sua investigação, a sua opinião sobre a
PARA ALÉM DESTAS MOTIVAÇÕES ANÍMICAS, O FATOR QUE NOS parapsicologia mudou?
PREDISPÕE PARA AS ALUCINAÇÕES É QUASE SEMPRE FÍSICO. Acreditei em muitas alegações paranormais até à idade adulta.
Por exemplo, uma mudança brusca de temperatura — o Quando descobri que havia explicações mais plausíveis
chamado ponto frio —, um clarão de luz que nos des- para as experiências paranormais que não se baseavam no
lumbra, uma reverberação que aumenta estranhamente sobrenatural, tornei-me um cético tenaz durante anos. Desde
o eco dos nossos passos... Viver fora da urna — lançados então, adotei uma posição mais matizada. Continuo a duvidar
nessa busca ancestral e permanente de refúgio de que que os fenómenos paranormais existam genuinamente (ou
falava o geógrafo Jay Appleton — é estar sujeito a im- seja, que não possam ser explicados nos termos da ciência
previstos que o nosso cérebro nem sempre sabe gerir da convencional), mas reconheço sempre que posso estar errado.
melhor maneira. Considera que o racionalismo está ameaçado no século XXI
Assim, perante uma situação que surge, reagimos por atitudes mais irracionais?
instintivamente, sobreexcitando a nossa atenção em Todos nós somos irracionais, em maior ou menor grau,
busca dessa ameaça indeterminada, e quando ela não embora alguns de nós façam o possível para basear as suas
se concretiza (porque pode não existir) e também não crenças na razão e nas provas. Sempre houve quem refutasse
a conseguimos racionalizar, simplesmente inventamo- o pensamento racional e preferisse basear as suas crenças
-la. É aqui que o ramo se torna a mão e a cortina se torna em apelos mais emocionais. No século XXI, estas tendências
a teia de aranha. Na ignorância, o nosso computador foram amplificadas por uma série de fatores, como as redes
central recebe estímulos equívocos e a sua resposta é a sociais e a proliferação de teorias da conspiração, pelo que é
do seu código fonte: em caso de dúvida, alarmar e exe- essencial incentivar o pensamento crítico se quisermos evitar
cutar o plano de segurança. Ou, por outras palavras, se consequências desastrosas.
os nossos sentidos falham na sua perceção, recorremos
ao jóquer extra-percetivo, porque é evidente (o nosso
SHUTTERSTOCK

CREDITO

cérebro sabe-o!) que algo de estranho está ali.


Não existe uma razão única para ilustrar a extraor-
dinária variedade de encontros com fantasmas, mas
podemos delinear alguns dos seus padrões. Deixando
de lado os embustes recorrentes, como as fadas de Cot-
tingley ou a casa de Amityville, os fantasmas podem
manifestar-se por razões tão prosaicas como as acima
descritas, ou seja, uma má interpretação de um aconte-
cimento natural, as nossas crenças prévias, ou mesmo
a influência de campos eletromagnéticos e infra-sons
(ondas acústicas abaixo de 20 Hz), como o engenheiro
inglês Vic Tandy tentou demonstrar no final do século
passado.
Depois de ter percebido a presença de um ser es-
tranho no seu laboratório, Tandy chegou à conclusão
de que o culpado da alucinação era um exaustor que
emitia ultra-sons a 18,9 Hz, o que provocava uma ano-

SUPER 75
malia na sua visão fruto da vibração ocular. «Uma vez gressos ao basear a sua abordagem no pressuposto de
reconhecido o problema, foi feita uma modificação no que todos os estados mentais são, em última análise,
conjunto do exaustor e o nosso fantasma desapareceu», redutíveis a estados físicos dentro do cérebro». Quem
conta. Não sabemos realmente quanta experimen- melhor do que estes especialistas para resgatar os fe-
tação e quanta predisposição estiveram envolvidas nómenos paranormais das feiras de parapsicólogos e
nesta miragem, mas vale a pena notar que a sua teoria de fantasistas vários?
foi refutada por outros autores (Jason J. Braithwaite e Vejamos alguns avanços nesse sentido. Por exemplo,
M. Townsend, 2016). os que foram feitos em relação à paralisia do sono, uma
parassónia ou distúrbio que nos faz sentir que não nos
A NEUROCIÊNCIA ABRE A CORTINA. Para o psicólogo es- podemos mexer e que, por vezes, é acompanhada de
pecializado em crenças e experiências paranormais experiências hipnagógicas (alucinações visuais, audi-
Christopher C. French, com quem falamos nestas tivas e táteis). Por vezes, chegamos mesmo a ver-nos
páginas, «os neurocientistas fizeram grandes pro- fora do nosso corpo — a chamada autoscopia — mas,

Disfunções neurais?
C ertas doenças podem ser acompanha-
das de experiências paranormais». O
Dr. Saul Martínez-Horta, especialista em
os processos perceptivos dependem de
uma arquitetura neural complexa e que, em
certa medida, o cérebro se antecipa na per-
construção cultural das características pro-
totípicas de tais experiências.
Os fantasmas vivem dentro do nosso cé-
neuropsicologia clínica e diretor da Uni- ceção do mundo, não é improvável pensar rebro, houve experiências científicas que
dade de Neuropsicologia do Centro de que certas experiências perceptivas «atípi- «tenham induzido» o seu aparecimento?
Diagnóstico e Intervenção Neurocogniti- cas» possam ser o resultado de uma falha Tudo «vive» de alguma forma no nosso
va (CDINC) de Barcelona, dedica uma das pontual ou momentânea, num cérebro sau- cérebro, em termos de representação neu-
secções do seu ensaio Cérebros Rotos dável, das redes neurais que sustentam a ral de eventos internos e externos. Um
(Kailas, 2022) às «presenças, fantasmas e perceção do mundo que nos rodeia. conceito, uma memória, um cheiro, uma
outras experiências sobrenaturais», que, Por outro lado, sabemos com certeza sequência de movimentos, uma emoção,
em certos casos, podem ser a expressão de que certas doenças que afetam o cére- tudo tem uma representação neural, e a
disfunções neuronais. Ele fala-nos disso nes- bro, nomeadamente certos processos perda dessa representação, devido a uma
ta entrevista. neurodegenerativos e certas formas de lesão por exemplo, significa a perda de
Se uma pessoa vê fantasmas, isso sig- epilepsia, podem muitas vezes ser acom- função.
nifica que tem algum transtorno ou panhadas de experiências «paranormais» Assim, porque existem representações
disfunção neuronal? muito complexas e de visões extremamen- de tudo o que somos capazes de experi-
Não necessariamente. Os fenómenos te estruturadas, em ausência de um estado mentar, podemos induzir artificialmente
paranormais, incluindo experiências tão de confusão ou de delírio. Muitas destas certos estados ou provocar certas reações
surpreendentes como ver algo que pode- experiências visuais têm exatamente as utilizando, por exemplo, técnicas de esti-
ríamos conceber como «um fantasma», mesmas características ou fenomenolo- mulação cerebral, ao mesmo tempo que
têm sido relatados ao longo da história gia que historicamente acompanharam podemos induzir a disfunção de sistemas
da humanidade em múltiplos contextos, experiências como a visão de fantasmas. ou redes neuronais provocando fenóme-
culturas e em pessoas que nunca mos- Vale a pena, portanto, considerar até que nos mais inespecíficos mas de grande
traram sinais de doença neurológica. Em ponto os sintomas de doenças que sem- complexidade. Exemplo disso são algu-
todo o caso, partindo do princípio de que pre existiram desempenharam um papel na mas experiências realizadas em contexto
cirúrgico onde, através da estimulação de
ASC

determinadas regiões cerebrais, foram in-


duzidas experiências de aparições, êxtase,
terror profundo, prazer intenso, etc.
Porque é que os fenómenos paranor-
mais tendem a ser tão semelhantes em
contextos temporais e geográficos tão
diferentes?
Por um lado, há tudo o que tem a ver com
o efeito da cultura e da aprendizagem, de
acordo com a forma como concebemos
o mundo. O cérebro utiliza conhecimen-
tos prévios para antecipar o que vê e para
compreender e atribuir significado ao
que é percepcionado. Isto significa que,
inquestionavelmente, o significado adqui-
rido através da aprendizagem e da nossa
história influencia a forma como interpre-
tamos o mundo, como sentimos e o que
fazemos.

76 SUPER
GETTY

ISTOCK
Certos fenómenos poderiam
ser explicados como uma falha
pontual das redes neuronais de
um cérebro saudável, que estão
SHUTTERSTOCK

ISTOCK
na base da perceção do mundo
que nos rodeia.
ISTOCK

Certas doenças neurodegenerativas podem provocar


alucinações visuais, sensação de presença

obviamente, os íncubos medievais e as possessões de- E o que dizer das faces de Bélmez e de outras pareido-
moníacas com que o imaginário popular gostava de lias? Se virmos o rosto de Cristo numa torrada, temos
retratar estes episódios não têm aqui qualquer papel. duas opções: montar um negócio e tentar fazer com que
«Nas autoscopias, a pessoa tem a sensação de estar num o maior número possível de incautos compre a ilusão,
plano à parte, geralmente elevado, em relação ao seu ou pedir contas ao nosso lobo temporal, em cuja face
corpo físico, que habitualmente contempla como um basal se encontra o chamado giro fusiforme, cuja função
corpo imóvel, deitado na cama. Este fenómeno é o que é precisamente o reconhecimento facial.
define as famosas «viagens astrais» no campo da abor-
dagem paranormal», segundo Saul Martínez-Horta, OS FANTASMAS E A CIÊNCIA NÃO TIVERAM OUTRO REMÉDIO
neuropsicólogo e autor do imprescindível Cérebros Ro- SENÃO CONVIVER, mesmo se a ciência os aborda com ce-
tos (2022). A verdade é que tudo se deve a uma espécie ticismo e já não os chama por esse nome ou lhes dá um
de dessincronização na fase REM (Rapid Eye Movement) significado diferente. Quando Harry Price, o primeiro
do sono, que nos leva à fronteira entre o relaxamento «caça-fantasmas» da história, abriu o Laboratório Na-
muscular total e o estado de alerta. Aqui está um fantas- cional de Investigação Psíquica em Londres, em 1926,
ma desmascarado, muito angustiante mas inofensivo. esqueceu-se, no meio de todos os ditafones, barógrafos
Outros são muito mais dolorosos. As doenças e termómetros, do mais importante: que os fantasmas
neurodegenerativas, como a doença de Alzheimer, no- «vivem» dentro de nós e ganham vida quando o equilí-
meadamente na sua fase III, a doença de Parkinson ou brio neural, sempre tão delicado, é quebrado.
a demência com corpos de Lewy, causada por depósi- Em 2014, o neurologista suíço Olaf Blanke, à frente
tos de alfa-sinucleina em certas zonas do cérebro, pode de uma equipa internacional, realizou uma experiên-
envolver, em maior ou menor grau, alucinações visuais cia para gerar a ilusão de uma presença próxima
que o doente identificaria com sensações de presença. — um fantasma — em indivíduos saudáveis. Fê-lo
Mais uma vez, existe uma explicação científica. Por através de um robô sensório-motor que emitia sinais
exemplo, no caso da doença de Parkinson, cientistas do compatíveis com os gerados por lesões ligadas a este
Instituto Federal Suíço de Tecnologia de Lausanne e do tipo de alucinação, que ocorrem sobretudo no córtex
hospital Sant Pau de Barcelona identificaram em 2021 frontoparietal. A ciência não só sabe como caçar fan-
os circuitos cerebrais responsáveis por alucinações me- tasmas, mas também como criá-los; agora só falta a
nores, que afetam 30 % dos pacientes e podem evoluir inteligência artificial escrever as suas biografias num
para alucinações mais complexas ou estruturadas. piscar de olhos. e

SUPER 77
CURIOSIDADE TECNOCULTURA

EM BUSCA DO GRANDE ALGORITMO


A TECNOLOGIA ESTÁ A TORNAR-SE CADA VEZ MAIS AUTÓNOMA E É ESSE O PERIGO QUE
CORREMOS COM A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL. OU PELO MENOS É PARA ISSO QUE OS
CIENTISTAS E ALGUNS DOS SEUS CRIADORES ALERTAM. SERÁ QUE FOMOS LONGE DEMAIS?

A IA está a avançar
demasiado depressa
e a humanidade pode
não estar preparada
para ela.
SHUTTERSTOCK

á um conceito de grande impor- Geoffrey Hinton,

H
um dos pais da
tância na inteligência artificial, IA, alertou para
que é o alinhamento. Por ali- os seus perigos.
nhamento entende-se o acordo
entre a realização de uma IA e os objetivos
para os quais foi programada. Não é, no
entanto, um conceito que tenha a ver com
o desempenho da IA, mas sim para esta não
produzir um resultado indesejável que seja
contra o interesse da humanidade no seu
todo. O alinhamento, que surgiu há décadas
como uma especulação de ficção científica,
está agora no centro do debate sobre o pro-
gresso das novas inteligências artificiais ge-
nerativas, especialmente as baseadas no Lar-
ge Language Model (LLM), como o ChatGPT,
o LLaMA ou o Google Bard. Isaac Asimov já
GETTY

se tornou um precursor desta ideia quando


enunciou em muitas
das suas obras aquilo mitir que um ser humano seja prejudicado. O ALINHAMENTO CONSISTE EM IDENTIFICAR E
que ficou conhecido -Segunda Lei: Um robot deve cumprir as ANTECIPAR OS EFEITOS INDESEJÁVEIS do pro-
como As Três Leis da ordens dadas por seres humanos, exceto as gresso tecnológico. Alguns autores acredi-
Robótica. que entrem em conflito com a primeira lei. tam que uma inteligência artificial geral
-Primeira Lei: Um -Terceira Lei: Um robot deve proteger a (AGI) não controlada pode representar
robot não deve preju- sua própria existência na medida em que uma ameaça para a humanidade como um
POR JAVIER
dicar um ser humano, essa proteção não entre em conflito com todo. As cenas distópicas de The Matrix,
MORENO nem, por inação, per- a primeira ou a segunda lei. Ghost in the Shell, Terminator ou 2001,
Matemático e escritor

78 SUPER
Uma Odisseia no Espaço transitam pelo
nosso imaginário. O filósofo Nick Bostrom
vislumbra a possibilidade de uma inteli-
gência artificial obcecada em fabricar clips
acabar por transformar toda a humani-
dade em pequenos objetos de secretária.
Recentemente, na sequência dos últimos
desenvolvimentos em matéria de IA (no-
meadamente, após o aparecimento do
ChatGPT-4), multiplicaram-se as opiniões
e as intervenções nos meios de comunica-
ção social, alertando para os perigos que
estas tecnologias podem acarretar. Talvez

SHUTTERSTOCK
a mais marcante tenha sido a carta aberta
promovida pelo Future of Life Institute e
assinada por mais de mil pessoas (entre as
quais Elon Musk e Steve Wozniak) apelan-
do a uma moratória de seis meses, durante fram, o ChatGPT reúne algoritmos conexio-
a qual a investigação de qualquer inteli- OS CIENTISTAS nistas (redes neuronais) aos simbólicos.
gência artificial para além do ChatGPT-4
seria interrompida. Esta moratória servi- APEL ARAM A Pedro Domingos, professor de Ciências da
Computação e autor de O Algoritmo Mestre,
ria para repensar as repercussões que tais
inteligências artificiais estariam a ter a UMA MORATÓRIA fantasia na sua obra sobre a possibilida-
de de surgir um algoritmo (a que chama
nível económico e político, avaliando até
que ponto poderiam contribuir para des- PARA REPENSAR algoritmo mestre) que reúna as potencia-
lidades dos algoritmos conexionistas, sim-
truir empregos, aumentar a desigualdade bolistas e analógicos. Tal algoritmo seria
económica ou produzir informações falsas AS IMPLICAÇÕES a chave da IAG de que estamos a falar.
capazes de manipular processos eleitorais. De momento, o ChatGPT teria duas das
Apenas um mês depois, Geoffrey Hinton, DA IA três pernas fundamentais deste algoritmo
considerado um dos pais da IA, deixou a mestre. Falta ainda o terceiro elemento, os
Google, a empresa onde trabalhava, para te corrida aos armamentos, há situações algoritmos analógicos. O próprio Domin-
se sentir livre para comentar os desenvol- em que os governos e as entidades regu- gos define os algoritmos analógicos como
vimentos neste domínio. Segundo Hinton, ladoras devem tomar as rédeas do assun- aqueles capazes de encontrar semelhanças
a IA está a avançar demasiado depressa e to, promovendo tratados e protocolos que entre situações diferentes e inferir novas
a humanidade pode não estar preparada garantam um mínimo de segurança aos semelhanças. Nesta tarefa, a inteligência
para ela. De facto, em algumas das suas cidadãos. Confiar, por exemplo, que um artificial deve ser capaz de selecionar ele-
declarações, lamenta mesmo ter dedicado vídeo (ou uma imagem, ou um texto) ao mentos da sua memória e colocá-los em
a sua vida à investigação neste domínio, qual eu atribuo credibilidade não foi pro- relação uns com os outros de acordo com
embora se console com a ideia de que, se duzido por uma inteligência artificial ou, um critério analógico e não lógico. Nada
não o tivesse feito (como noutros domí- se foi, que a autoria da IA esteja clara e impede de programar um extenso catálogo
nios científicos controversos), haveria al- informada no objeto digital. Caso contrá- de relações que vários objetos possam ter
guém que o fizesse. Um especialista em rio, corremos o risco de não saber onde em comum. Trata-se, afinal, de um proble-
inteligência artificial, Eliezer Yudkowski, é estamos, de dar credibilidade injustifica- ma de combinatória, de computação, em
mais contundente nas suas posições, de- da ao que deveria, no mínimo, levantar última análise. O que não pode ser progra-
fendendo a ideia de que a investigação em uma suspeita prudente. Neste sentido, a mado é um critério para essa procura, nem
sistemas superiores à versão 4 do ChatGPT carta promovida pelo Future of Life Insti- uma motivação. O pensamento humano
deve ser interrompida (e não apenas para- tute pode ser um pouco alarmista, mas a analógico — e metafórico — é muito in-
da durante um intervalo de tempo razoá- sua divulgação servirá, sem dúvida, para consciente, e é guiado por questões huma-
vel). «Pausar o desenvolvimento da IA não sensibilizar o grande público para um pe- nas como o desejo, o amor ou a carência.
é suficiente. É preciso parar tudo», chega rigo que, de outro modo, passaria prova- Emoções, afinal. E, para já, ninguém sabe
a dizer Yudkowski. velmente despercebido. como programar emoções.
Talvez o grande algoritmo de que fala
A OPINIÃO DE GEOFFREY HINTON ESTÁ EM É VERDADE QUE A FUSÃO DE WOLFRAM|ALPHA Pedro Domingos não passe de uma ente-
LINHA COM O QUE O FILÓSOFO FRANCÊS JA- COM O CHATGPT, no final de março deste léquia e as preocupações expressas pelos
CQUES ELLUL denomina de determinismo ano, veio colmatar uma falha do algorit- especialistas sobre o avanço das novas in-
tecnológico. Ellul postula que a tecnolo- mo de conversação generativo da OpenAI. teligências artificiais não sejam (para já)
gia, ao longo do tempo, se tornou cada Wolfram|Alpha é uma inteligência compu- demasiado fundadas. No entanto, após um
vez mais autónoma, independente da in- tacional-simbólica que permite trabalhar período explosivo de novos avanços neste
tervenção política e até da própria ciência com conceitos e, com isso, que a IA com- domínio, tudo indica que chegou o mo-
teórica. Independentemente da validade preenda ideias como a de que um homem é mento de nos interrogarmos. É um pon-
que dermos aos argumentos de Ellul, é mortal ou a de que George Washington não to de viragem, um momento para parar e
verdade que, tal como aconteceu com a podia utilizar um computador porque viveu pensar e tentar decidir até onde queremos
invenção da fissão nuclear e a consequen- antes da sua invenção. Com o plug-in Wol- ir e, sobretudo, em que condições. e

SUPER 79
F I L O S O F I A

INTEG
RIDAD
E

VERDADE

M I S S O
M P R O
C

80 SUPER
ERNST
E TUGENDHAT
E A PROCURA DE UM
FUNDAMENTO ÉTICO
Defensor de que os problemas da filosofia clássica podem ser
abordados mais eficazmente através de métodos analíticos,
este filósofo demonstrou uma paixão insaciável pela ética e
refletiu sobre o modo como a linguagem proposicional abre
um horizonte epistemológico e ético-político.

Texto de SEBASTIÁN GÁMEZ MILLÁN, filósofo

U
ma das questões que atravessa a história
do pensamento filosófico ocidental, pe-
lo menos desde a viragem antropológica
atribuída a Sócrates, é a de saber como de-
vemos viver, qual o estilo mais adequado
para experimentar a vida de forma mais
rica e plena. Naturalmente, esta questão
tem sido respondida de várias formas, com
diferentes graus de sucesso.
Talvez por causa do niilismo diagnosti-
cado por Nietzsche, ao longo do século XX
parece que nos apercebemos da falta de
fundamento último, não só na filosofia, mas também nas ciências (co-
mo Nietzsche advertiu em A Genealogia da Moral, «não há ciência
sem pressupostos»), na matemática (os teoremas da incompletude
de Kurt Gödel) e, claro, na ética. Algumas destas disciplinas parecem
sobreviver bem sem a certeza do fundamento, outras, pelo contrário,
andam à procura dele.
Isto está expresso na famosa Conferência sobre Ética de Wittgens-
tein: «Se um homem pudesse escrever um livro de ética que fosse
Para Tugendhat, o facto de
realmente um livro de ética, esse livro destruiria, como uma explo-
sermos todos da mesma são, todos os outros livros do mundo. As nossas palavras, usadas
espécie, o Homo sapiens, já como fazemos na ciência, são recipientes capazes apenas de conter e
justifica a igualdade entre transmitir significado e sentido, significado e sentido naturais. A éti-
ISTOCK

os homens. ca, a ser algo, é sobrenatural e as nossas palavras apenas exprimem

SUPER 81
factos.» Sobrestimava Wittgenstein a ética? Não con-
denaria esse suposto livro as pessoas a comportarem-se
dogmaticamente da mesma forma, anulando valores
essenciais como a liberdade ou o pluralismo?
Mesmo antes, no século XIX, já existem manifestações
evidentes, quando uma das personagens de Dostoiévs-
ki em Crime e Castigo pergunta: «Se Deus está morto,
tudo é permitido», não faz se não sublinhar esta falta
de fundamento último. Mais tarde, Nietzsche elevou-a
Se Deus,
SHUTTERSTOCK

como afirmava a uma questão filosófica de primeira grandeza com a sua


Nietzsche, frase provocadora: «Deus está morto!» Desde então,
tivesse morrido, parece que estamos condenados a procurar ou a cons-
tudo seria truir um fundamento para justificar — e não desculpar
permitido? Os — as nossas ações, escolhas e decisões.
seres humanos Pois bem, uma das pessoas que mais contribuiu para
seriam então responder a estas e outras questões ligadas à viragem
obrigados a ética que se verificou após a Segunda Guerra Mundial foi
procurar uma
o filósofo Ernst Tugendhat (Brno, Checoslováquia, 1930
lógica para
— Friburgo, Alemanha, 2023), recentemente falecido.
justificar as
suas ações, Era o filho primogénito de Fritz Tugendhat e Grete Lo-
escolhas e w-Beer, eles próprios filhos de famílias judias de língua
decisões. alemã com indústrias têxteis. Os seus pais encomen-
daram aos arquitetos Ludwig Mies van der Rohe e Lilly
Reich a construção de uma casa que se tornou a famosa
Villa Tugendhat, um ícone da arquitetura do século XX
e Património Mundial da UNESCO.

A FAMÍLIA VIVEU AÍ ATÉ 1938, QUANDO A AMEAÇA DAS TROPAS


NAZIS OS OBRIGOU A FUGIR DA CHECOSLOVÁQUIA, primeiro
para a Suíça e depois para a Venezuela. Estudou filologia
clássica em Stanford (1944-1949) e, mais tarde, filosofia
em Freiburg, onde um dos professores que lhe deixou
uma marca indelével foi Martin Heidegger. Em 1956,
doutorou-se com uma tese sobre Aristóteles. Por su-
gestão do autor de Ser e Tempo, regressou aos Estados
Unidos. Em 1963, foi convidado a passar um semestre na
Universidade de Michigan, um período que Tugendhat
considerou crucial, pois, ao regressar a Heidelberg,
aprofundou a filosofia da linguagem.
Esta circunstância acaba por não ser assim tão es-
tranha, porque se trata, afinal, de uma época em que a
chamada viragem linguística, ou seja, a consciência de
que a nossa relação cognitiva com a realidade é mediada
pela linguagem, está a ganhar força. A viragem linguís-
tica tem sido atribuída principalmente a Wittgenstein e
Heidegger, embora tenha precursores como Hamann,
Herder, Humboldt e Nietzsche, entre outros.
Para além de ter dado conferências em numerosos
locais do mundo, Ernst Tugendhat foi professor e inves-
tigador nas universidades de Tübingen, na Universidade
Livre de Berlim, em Heidelberg, na Universidade Charles
de Praga e na Pontifícia Universidade Católica do Chile.
Entre outros prémios, recebeu a Cidadania Honorária de
Brno (2001) e o Prémio Meister Eckhart (2005).
Ao longo da história da filosofia moderna, para não
ir mais longe, tem havido um conflito entre os filóso-

82 SUPER
ASC

ASC
À esquerda, Ernst
Tugendhat, que foi
quem mais
contribuiu para
responder às
questões
suscitadas pela
afirmação de
Nietzsche (à
direita) de que
«Deus está morto».

Os diálogos religiosos não podem ser aceites num diálogo


antropológico racional: a crença num deus implica um pressuposto
de existência que não pode ser intersubjetivamente justificado

fos ditos continentais e o mundo anglo-saxónico, como empíricas e refletir sobre esse problema na perspetiva
observamos entre Descartes, Leibniz e Spinoza, e Loc- da filosofia linguística». Tugendhat parte da convic-
ke, Berkeley e Hume, conflito esse que se manteve ao ção de que os problemas da filosofia clássica podem ser
longo do último século através dos talentos analíticos abordados com mais sucesso e eficácia através de méto-
de Frege, Russell, Wittgenstein, Carnap ou Quine, por dos analíticos.
oposição aos continentais: Husserl, Heidegger, Gada-
mer, Foucault ou Derrida. NA SUA DUPLA QUALIDADE DE INVESTIGADOR E PROFESSOR,
São raras exceções, os filósofos que dialogaram com TUGENDHAT PREOCUPOU-SE NÃO SÓ COM A investigação fi-
ambas as tradições: tal como Paul Ricoeur e Javier losófica e, em particular, ética, mas também com a
Muguerza, Tugendhat é uma dessas raras excepções. forma de a transmitir . Assim, em 2001, em colaboração
Curiosamente, com Muguerza, um dos filósofos hispa- com Celso López e Ana María Vicuña, publicou El libro
no-americanos mais relevantes das últimas décadas, de Manuel y de Camila, uma obra para qualquer tipo
partilha o facto de ter sido um dos principais introdu- de leitor, mas dirigida especialmente a crianças e ado-
tores da filosofia analítica, um na Alemanha e outro em lescentes, na qual aborda uma série de questões éticas
Espanha; ser capaz de ler e dialogar com pensadores através do diálogo. Posteriormente, publicou Diálogo
continentais e analíticos; paixão insaciável pela ética; em Letícia, onde são reveladas as perplexidades e con-
estudo e crítica de alguns dos filósofos mais influentes tradições éticas .
das últimas décadas, como Rawls e Habermas; procura Suspeito que ambas as obras tenham sido influencia-
incessante de um fundamento ético. das por Sócrates e Wittgenstein: no que diz respeito ao
Javier Sádaba, outro dos filósofos espanhóis mais primeiro, pela arte da maiêutica, pela necessidade de o
próximos de Ernst Tugendhat, que conheceu quando diálogo ir além do que sabemos na argumentação; no
era jovem em Heidelberg, dedicou-lhe um espaço em que diz respeito ao segundo, porque os argumentos ló-
Memorias desvergonzadas (escreveu recentemente gicos não costumam persuadir com a mesma força que
o obituário no El País). Aí resume o modo de filosofar aqueles que nos desafiam através da ação e do exemplo,
em Lições de ética, um método muito próximo do seu: razão pela qual o autor do Tractatus, quando lhe per-
«Consiste em isolar um problema, um dos eternos ou guntaram como aprender ética, não recomendou livros
dos mais recentes, conhecê-lo nas suas componentes de filósofos, mas sim os contos de Tolstoi.

SUPER 83
Tradicionalmente, a metafísica tem sido considerada ral é um sistema de exigências recíprocas». Qualquer
a primeira filosofia, porque vai à raiz, ao fundamento, justificação da moral», acrescentou em 2005, numa
à origem explicativa da realidade. Pelo menos até Kant. conversa com o filósofo e amigo Javier Muguerza, pou-
Inspirado por este último, cujas três famosas questões co antes de receber o doutoramento honoris causa da
fundamentais («O que posso saber? Como me devo Universidade Autónoma de Madrid, «é, portanto, uma
comportar? O que posso esperar?») conduzem a «O justificação recíproca. Não se pode defender a posição
que é o homem?», nas últimas décadas Tugendhat rei- de um contratualista puro que apenas se justifica a si
vindicou a antropologia como a primeira filosofia. próprio e espera assim chegar a um acordo com
Precisamente em Sevilha, no congresso «A filoso- o outro. É preciso esclarecer que a moral é es-
fia no futuro dos discursos antropológicos» (2006), sencialmente igualitária e que o facto de poder
Tugendhat proferiu uma conferência intitulada A ser definida como igualitária depende da sua
antropologia como primeira filosofia. Como são os reciprocidade, ou seja, resulta de uma justifica-
humanos, não condiciona e até determina, a nossa ção recíproca».
capacidade de conhecer (epistemologia) ou como é a Muguerza respondeu que «a igualdade, em última
realidade (ontologia)? Não carece de sentido elaborar análise, assenta apenas na metafísica. Como é que a
normas morais, códigos de ética e até leis sem possuir igualdade pode ser verificada empiricamente? Ao que
um conhecimento adequado da condição humana? Tugendhat respondeu: «A igualdade não pode ser ve-
rificada empiricamente, nem se pretende que o seja. A
CASO CONTRÁRIO, CONTINUAREMOS A INCORRER EM LEIS AR- ideia de igualdade moral é que se atribui o mesmo valor
BITRÁRIAS, DISCRIMINATÓRIAS E EXCLUDENTES. Tugendhat à outra pessoa, mesmo que essa pessoa seja diferente».
costumava recordar uma passagem famosa da Política Não é uma questão de vontade», continua Tugendhat,
de Aristóteles, em que este distingue a voz dos animais «mas de justificação de como nos devemos comportar,
do logos dos humanos. É claro que a voz lhes permite e aqui o conceito de intersubjetividade aparece como
comunicar, mas o logos, que Tugendhat traduz como o ponto fundamental. É por isso que a justificação é
linguagem proposicional, permite-nos a nós, huma- recíproca. Posso ser mais forte do que o meu filho
nos, deliberar, questionar, raciocinar e, assim, exercer e ainda assim propor-lhe que nos comportemos

SHUTTERSTOCK
a liberdade e a responsabilidade. Vemos, então, que a de acordo com regras de justificação recíproca.
partir de um traço antropológico, a linguagem pro- No que diz respeito à igualdade, mesmo
posicional, abre-se um horizonte epistemológico e que sejamos física e psicologicamente di-
ético-político. ferentes, mesmo que as nossas culturas e
Este título foi uma surpresa para muitos, mas Tugen- circunstâncias sociais sejam diferentes,
dhat, na sua aventura filosófica e antropológica, procura voltamos à antropologia: o facto de
o comum na diversidade. Considera que os fenómenos sermos da mesma espécie, Homo sa-
religiosos não podem ser aceites num diálogo antropo- piens, dotados de um certo número
lógico racional, uma vez que a crença num deus implica de qualidades comuns, como a
um pressuposto de existência que não pode ser intersub- estrutura do corpo e do cérebro,
jetivamente justificado. Por misticismo, pelo contrário, a consciência de si, a razão ou
entende um fenómeno humano que não remete para a liberdade, não será razão
algo de sobrenatural, «é simplesmente uma atitude de suficiente para justificar a
recolhimento em si mesmo, na qual a pessoa recupera a igualdade? A reciprocida-
consciência de si e do mundo como um todo, tomando de não inclui de algum
assim consciência da sua própria insignificância e uma modo a igualdade e a
consciência não egocêntrica dos outros seres». equanimidade?e
Não é por acaso que filósofos como Russell ou Witt-
genstein, ou cientistas como Einstein, se ocuparam do
misticismo ou da religião cósmica. No final de A Natu-
reza Humana, o filósofo Jesús Mosterín afirmava: «A
ciência sem misticismo corre o risco de permanecer
uma mera ginástica metodológica. O misticismo sem
ciência degenera facilmente em auto-engano e supers-
tição. Só a conjunção do conhecimento científico com o
sentimento místico nos permite aspirar a alcançar esse
estado de exaltação lúcida e de plenitude vital em que
consiste a comunhão com o Universo».
Confúcio formulou a primeira regra de ouro da hu-
manidade: «Não faças aos outros o que não gostarias
que te fizessem a ti». Tanto esta regra como a formula-
ção de Kant do imperativo categórico, que constitui o
fundamento teórico dos direitos humanos, assentam na
reciprocidade: «Age de forma a tratares sempre os outros
como fins em si mesmos e nunca apenas como meios».
No prefácio do seu livro Problemas, Tugendhat evo- Para o filósofo, a moral é
ca John Rawls para responder à questão do fundamento essencialmente igualitária e o
da ética (utilizo aqui o termo como sinónimo de «mo- facto de poder ser definida
ral», quando em rigor não o é; Paul Ricoeur explicou de como igualitária depende da
forma esclarecedora a diferença entre os dois): «a mo- sua reciprocidade.

84 SUPER
JOSE MANUEL

ALBUM
À esquerda, o filósofo espanhol Javier Muguerza (1936-
2019), amigo de Tugendhat. À direita, Ludwig Wittgenstein
(1889-1951), filósofo austríaco, naturalizado britânico.

«A igualdade não pode ser provada


empiricamente, nem tal se pretende.
A ideia de igualdade moral é que se
concede o mesmo valor à outra
pessoa, mesmo que essa pessoa seja
diferente», afirmava Ernst Tugendhat

SUPER 85
Z O O L O G I A

SHUTTERSTOCK

86 SUPER
OS
ICTIOSAU R
LEVIATÃS DO PASSADO
O seu tamanho impressiona e imaginar os oceanos com este animal a povoar as suas águas é
bastante inquietante. Este gigante marinho, do qual ainda há muito por descobrir, transformou-se
para passar da terra ao meio aquático, adaptando habilmente o seu corpo para se tornar um predador
eficaz: as patas transformaram-se em barbatanas e o corpo tornou-se curto e hidrodinâmico. O seu
estudo permite-nos observar o pulsar da vida, a sua evolução e as suas extinções.

Texto de ANGEL LEÓN PANAL, biólogo

SUPER 87
SHUTTERSTOCK

Esqueleto fóssil de
um pliossauro do
Museu de História
Natural de
Londres. Estes
animais eram
carnívoros com
cabeças grandes e
mandíbulas
poderosas.

E
m 10 de maio de 1941, a Luft- local para se apoderar da peça completa, que acabaria
waffe, a força aérea nazi, por incluir um enorme crânio, com um focinho alon-
sobrevoou Londres durante gado, vários dentes e olhos grandes, juntamente com
o último ataque Blitz. Milha- a parte da frente do corpo do animal. Anning vendeu
res de bombas devastaram a o fóssil por cerca de 23 libras, que usou para sustentar
capital britânica. O edifício a família.
do Royal College of Surgeons Onde é que, entre todos os outros seres vivos, se encai-
foi um dos afetados, tendo xava um animal destes? Foi esta a questão que se colocou
sido atingido três vezes e in- a Everard Home, anatomista do Royal College of Sur-
cendiando-se de seguida. As geons e cunhado de Hunter, ao analisar em pormenor
chamas espalharam-se pelos a peça encontrada pelos Annings. Na realidade, os fós-
corredores, laboratórios e sa- seis de ictiossauros eram conhecidos pelo menos desde
las até chegarem ao Hunterian Museum, propriedade 1669. No entanto, eram pistas escassas que só serviam
do cirurgião John Hunter, que albergava milhares de para desnortear os que tentavam desvendar o mistério,
peças anatómicas e de história natural. Nessa noite, dando origem a todo o tipo de especulações. Em 1814,
mais de dois terços dessa coleção ficaram reduzidos Home descreveu o espécime num artigo publicado na
a uma massa carbonizada, incluindo uma peça icóni- Philosophical Transactions, onde referiu que poderia
ca da paleontologia: o primeiro fóssil completo de um ser uma espécie de crocodilo. No entanto, a semelhan-
ictiossauro. ça com os peixes fê-lo hesitar. O exame subsequente de
Já em 1812, as nações europeias estavam envolvidas outros fósseis apenas serviu para aumentar o mistério.
noutro conflito, as guerras napoleónicas. No entanto, Finalmente, em 1819, Home chegou a uma conclusão.
longe dos campos de batalha e dos gabinetes onde se Nessa altura, a teoria da evolução ainda não tinha surgi-
decidia o destino do continente, uma estranha criatu- do. Por outro lado, a scala naturae ou cadeia dos seres,
ra estava prestes a surgir para capturar a imaginação ideia segundo a qual havia uma hierarquia que ordenava
da sociedade inglesa. Aconteceu quando uma rapariga todas as formas de vida , ainda estava em vigor . Segun-
de treze anos conseguiu escavar um estranho fóssil em do este ponto de vista, a criatura poderia representar
Lyme Regis, uma cidade costeira de Dorset. No ano an- um elo entre répteis e anfíbios, razão pela qual a batizou
terior, o seu irmão Joseph tinha encontrado os restos de Proteosaurus, dada a suposta semelhança das suas
mortais numa falésia. Mary Anning regressou então ao vértebras com um grupo de salamandras conhecidas

88 SUPER
Os ictiossauros que habitaram os oceanos do Triássico
representam os primeiros gigantes da Terra

como proteídeos. No entanto, em 1818, o naturalis- converterem em verdadeiros leviatãs do passado. Ao


ta alemão Charles Konig tinha proposto outro nome, longo da história da vida, apenas alguns animais ver-
Ichthyosaurus ou peixe-lagarto, que acabaria por ser tebrados atingiram pesos superiores a 20 toneladas: os
aceite pela comunidade académica. saurópodes ou dinossauros de pescoço comprido, o tu-
A investigação de Home foi possível graças à recolha de barão megalodon segundo alguns estudos, os cetáceos,
vários fósseis, incluindo o primeiro exemplar completo liderados pela baleia azul (Balaenoptera musculus) e
de um ictiossauro. Embora tenha sido destruído du- os ictiossauros que habitaram os oceanos do Triássico.
rante a Segunda Guerra Mundial, a publicação de 1819 Estes representam os primeiros gigantes da Terra.
incluía um desenho que nos permitiu conhecer o seu Imaginemos o nosso planeta há cerca de 251 milhões
aspeto. Sabemos também que foi descoberto em Lyme de anos. A vida está a entrar no Triásico, deixando pa-
Regis e, além disso, que estava relacionado com duas ra trás o Permiano, depois de ter sofrido o pior evento
personagens ligadas à história da paleontóloga pioneira de extinção da história, do passado e do futuro. Cerca
Mary Anning: pertencia à coleção do coronel Thomas de 90% das espécies desapareceram, enquanto os so-
James Birch e tinha chegado às mãos de Home graças breviventes partiram à conquista do supercontinente
à intermediação do geólogo Henry de la Beche. Todos Pangéia e do ainda mais enorme oceano Pantalássico.
estes indícios sugerem que Anning foi a descobridora do Alguns milhões de anos mais tarde, há cerca de 246
icónico fóssil que, à primeira vista, se assemelha a um milhões de anos, a evolução já forjou gigantes mari-
peixe ou a um golfinho com quatro barbatanas. nhos. Os restos do Cymbospondylus youngorum, cujo
crânio tinha o tamanho de um piano de cauda, foram
PELA SUA APARÊNCIA PECULIAR, OS ICTIOSSAUROS ESTIVERAM encontrados em Fossil Hill, no estado americano do
NO TOPO DA LISTA DE DESEJOS DE NATURALISTAS, cientistas e Nevada. De acordo com um estudo publicado em 2021,
colecionadores do século XIX. No entanto, esta popu- estima-se que este ictiossauro poderia ter atingido 17
laridade durou pouco tempo, pois acabariam por ser m de comprimento. Como é que os ecossistemas do
ofuscados pelos «lagartos terríveis» ou, como lhes Triássico suportavam animais tão grandes? O krill e o
chamou o paleontólogo Richard Owen em 1841, pelos plâncton nutritivos de hoje, que fornecem o sustento
dinossauros. No entanto, sabemos atualmente que es- das baleias, não estavam presentes nesse período. Em
tes répteis não só prosperaram durante o Mesozoico vez disso, depois de analisar o registo fóssil, determi-
— uma era que compreende os períodos Triássico, Ju- nou-se que o C. youngorum fazia parte de rede trófica
rássico e Cretáceo — como também evoluíram até se capaz de comer lulas, peixes e até répteis marinhos

Há 251 milhões
de anos, 90% das
espécies tinham
desaparecido e
as sobreviventes
lutavam para
colonizar o
supercontinente
Pangéia e o
SHUTTERSTOCK

oceano
Pantalassa.

SUPER 89
O maior dos ictiossauros conhecidos, o Shastasaurus
sikanniensis, pode ter atingido 21 metros de comprimento

mais pequenos, presas que, por sua vez, eram alimen- ros de Berlim, no Nevada, foram encontrados os restos
tadas por uma população abundante de amonites. de cerca de 37 exemplares de Shonisaurus popularis,
Os paralelos entre estes leviatãs do Triássico e as baleias, uma espécie que viveu há cerca de 230 milhões de anos e
ambos representando ramos evolutivos que deixaram a que chegou a atingir 15 m de comprimento. Qual a razão
terra, são incríveis. O maior de todos os ictiossauros co- desta congregação de fósseis? Durante muito tempo,
nhecidos até à data é o Shastasaurus sikanniensis, que as explicações apontavam para um encalhe em mas-
viveu há cerca de 210 milhões de anos. Este animal pode sa ou para o envenenamento por proliferação de algas
ter atingido um comprimento de 21 m e pesava cerca tóxicas. No entanto, de acordo com uma investigação
de 80 toneladas. Foi descoberto na Colúmbia Britâni- recente publicada em 2022, o local representa um sí-
ca, no Canadá, pela paleontóloga canadiana Elizabeth tio onde os ictiossauros deram à luz durante milhares
Nicholls, em 1992. O corpo do S. sikanniensis era lon- de anos, uma vez que eram animais vivíparos. Ou seja,
go e esguio, e tinha uma cauda adaptada esses répteis marinhos faziam grandes migrações pelo
para nadar lentamente. Por esta razão, oceano para se reproduzir, deslocando-se a locais espe-
provavelmente alimentava-se de pe- cíficos geração após geração.
quenos animais, que abocanhava em
grandes bocados, graças a poderosos COMO É QUE OS RÉPTEIS TERRESTRES SE TRANSFORMARAM
músculos da língua. Vejamos outro EM FASCINANTES CRIATURAS MARINHAS? No século XX, os
exemplo. No Parque ictiossauros continuavam a atormentar a paleontolo-
Estadual dos gia com incógnitas. Foi em 1982 que investigadores
Ictiossau- da Universidade de Hokkaido encontraram parte da
resposta a nordeste de Honshu, a principal ilha do
Japão. Tratava-se de dois esqueletos quase completos
de Utatsusaurus, um réptil do Triássico Inferior com
cerca de 3 m de comprimento. O paleontólogo Ryo-
suke Motani, depois de estudar os fósseis em 1995,
descreveu o animal como um «ictiossauro, seme-

Muitos dos
grandes répteis
deixaram a terra
e adentraram-se
no meio marinho,
sofrendo
alterações
morfológicas,
fisiológicas e
SHUTTERSTOCK

etológicas na sua
evolução.

90 SUPER
90 - Muy Interesante
lhante a um lagarto com barbatanas». Pouco depois,
na China, foi descoberto outro ictiossauro primitivo,
batizado de Chaohusaurus. Ambas as pistas permi-
tiram-nos situar os nossos protagonistas na árvore
evolutiva dos répteis.
Após estes primeiros passos dados na costa, os ictios-
sauros acabariam por abraçar o ambiente marinho, à
medida que eram moldados pela evolução. Tentemos
delinear este maravilhoso percurso, que envolveu mu-
danças morfológicas, fisiológicas e etológicas. As patas,
adaptadas à vida em terra, deram lugar a barbatanas. A
forma do corpo foi-se tornando cada vez mais curta e
mais hidrodinâmica, para evitar a resistência à natação,
e nalgumas espécies houve mesmo o desenvolvimento O paleontólogo Martin
de barbatanas dorsais. Esta caraterística, juntamente Sander, da Universidade
de Bona, junto ao crânio
com a vantagem oferecida pelo sangue quente, tornou- de um Cymbospondylus

VELZJUARBEJ
-os animais muito rápidos. youngorum.
Uma vez que continuavam a respirar ar, as adaptações
foram-se aperfeiçoando, permitindo-lhes mergulhar
durante períodos de tempo mais longos para capturar
presas a maiores profundidades. Isto exigiu também
uma visão adaptada a um ambiente onde a quan- do um possível recorde para todos os animais. Do mais
tidade de luz é menor. Por esta razão, os pequeno para o maior, podemos comparar este valor
ictiossauros acabariam por desenvolver com os olhos do elefante africano (5 cm), da baleia azul
olhos grandes. Por exemplo, o Ophthal- (15 cm) ou da lula gigante (25 cm).
mosaurus, que viveu no Jurássico,
tinha olhos com até 23 cm de diâme- O DECLÍNIO DOS ICTIOSSAUROS. Do ponto de vista de um
tro. Mas os maiores olhos eram os do banhista, ou de uma presa indefesa, os mares jurássicos
Temnodontossauro, a criatura do não devem ter sido muito tranquilizadores. A lista de
Jurássico encontrada pelos An- predadores incluía os plesiossauros, répteis marinhos
ning, que tinham um diâmetro de pescoço comprido, cujo comprimento do corpo va-
de cerca de 26 cm, estabelecen- riava entre 2 e 17 metros. Neste grupo, encontramos
os pliossauros, carnívoros com cabeças enormes e um
comprimento de corpo até 15 m, que, graças às suas
poderosas mandíbulas, caçavam um grupo diversifica-
do de animais em mar aberto. Por outro lado, tubarões
como o Hybodus, que chegavam a atingir 2 m de com-
primento e atuavam como predadores oportunistas,
viviam em águas pouco profundas. Mas as criaturas
mais pequenas, ou as que tinham mais probabilidades
de acabar na ementa, também não ficavam muito atrás.
Por exemplo, a evolução tornou mais rápidas algumas
linhagens de peixes. Este foi o ambiente enfrentado pe-
los ictiossauros, que não tiveram um bom começo no
novo período.
Há cerca de 201 milhões de anos, ocorreu um evento de
extinção que dizimou 76% das espécies, marcando o
fim do Triássico. Após esse acontecimento, os colossais
ictiossauros foram relegados para o esquecimento. Em
contraste, os ictiossauros mais pequenos e mais rápidos
prosperaram num ambiente mais competitivo. Foi para
este mundo, onde os répteis pareciam ter-se transmu-
tado em peixes, que Anning e os seus contemporâneos
olharam.
Entre o final do Jurássico e o início do Cretáceo, os
ictiossauros enfrentaram novamente uma época tur-
bulenta. A Pangea estava a desintegrar-se e o clima
global começava a aquecer, provocando a subida do
nível do mar, enquanto outras alterações se faziam
sentir nos ecossistemas. Ainda assim, a evolução
também se fez sentir nestes répteis marinhos, que
evoluíram para espécies caçadoras mais hidrodinâ-
micas e hábeis. Um exemplo disso é o Kyhytysuka
sachicarum, um hipercarnívoro de 5 m de compri-
mento, cujos dentes eram capazes tanto de cortar
como de esmagar as presas. Durante o Cretáceo, al-

SUPER 91
Fóssil de
Ictiossauro do
Museu do Estado
do Nevada. Estes
animais podem
ter desaparecido
devido ao
aumento da
temperatura da
superfície do mar.
Em baixo, um
NEVADA STATE MUSEUM

ictiossauro do
Museu de
História Natural
de Londres.

AGE
go acabou por quebrar o ramo dos ictiossauros. A sobrancelhas de espanto, traçar a história dos ictiossau-
questão da extinção destas criaturas é ainda objeto ros permite-nos também vislumbrar o pulsar da vida,
de debate académico. A única coisa que sabemos com impulsionada pela evolução e marcada pelas extinções.
certeza é que ocorreu 30 milhões de anos antes do fa- É uma visão instigante, pois imaginamos criaturas se-
moso impacto catastrófico, que destruiu o mundo dos melhantes a peixes a navegar num oceano igualmente
dinossauros, mas também o dos plesiossauros. Porque estranho.
é que o declínio dos nossos protagonistas chegou mais
cedo? Uma das primeiras hipóteses apontava para a DESDE A SUA DESCOBERTA, NO SÉCULO XIX, APÓS DÉCADAS DE
baixa diversidade do grupo nessa altura, razão pela DEBATE E DE REGISTOS FÓSSEIS, a paleontologia conseguiu
qual não teriam sido capazes de competir num cená- desbravar o terreno para contemplar a árvore evolutiva
rio repleto de predadores. No entanto, sabemos agora dos ictiossauros. Mas o puzzle ainda está em constru-
que as suas linhagens não eram tão pequenas duran- ção, o que significa que podemos esperar atualizações
te este período. Uma segunda hipótese, avançada por surpreendentes desta história no futuro.
paleontólogos como Valentin Fischer, destaca o papel Com base no registo fóssil, várias pistas parecem indicar
das alterações climáticas que modificaram drastica- que leviatãs ainda maiores do Triássico estão ainda por
mente o ambiente. O Cretáceo Superior foi marcado descobrir. Em maio de 2016, a mandíbula inferior de um
por uma série de flutuações climáticas, associadas enorme ictiossauro que viveu há 205 milhões de anos
ao vulcanismo e ao movimento dos continentes, que foi encontrada numa praia em Somerset, Inglaterra.
aumentaram a temperatura da superfície do mar, Depois de comparar estes restos com fósseis de Shas-
elevaram o nível do mar e provocaram episódios de tasaurus sikanniensis, os investigadores concluíram
anoxia ou falta de oxigénio nos ecossistemas aquáti- que tinha cerca de 26 m de comprimento. Por outras
cos, entre outros efeitos. Este cenário teria produzido palavras, era tão grande como uma baleia azul. Outra
o desaparecimento dos ictiossauros em duas fases, pista foi encontrada nos Alpes suíços, onde paleontólo-
uma inicial há cerca de 100 milhões de anos e uma fi- gos desenterraram o maior dente de ictiossauro jamais
nal após cerca de cinco milhões de anos. encontrado, juntamente com uma vértebra também de
O paleoantropólogo Richard Leakey afirmou que «a vi- tamanho considerável.
da, vista através de uma janela paleontológica, é como Entretanto, em março de 2023, uma equipa de
uma imagem de caleidoscópio, para a qual a mudança paleontólogos suecos e noruegueses anunciou a des-
não é apenas natural, mas inevitável». Para além dos coberta do mais antigo ictiossauro conhecido. Os
factos curiosos, dos leviatãs que nos fazem arquear as seus restos foram encontrados em 2014 a oeste de

92 SUPER
Os ictiossauros são considerados sobreviventes de uma
extinção em massa e não sucessores ecológicos

SHUTTERSTOCK
Durante o
Cretáceo, as
alterações
climáticas
modificaram
abruptamente o
ambiente. O
Cretáceo
Superior esteve
associado a
flutuações como
o vulcanismo e o
movimento dos
continentes.

Spitsbergen, a maior ilha do arquipélago ártico de Para além dos fósseis de ictiossauros, os feitos de An-
Svalbard. Trata-se, concretamente, de onze vérte- ning incluem a descoberta, em 1823, do primeiro fóssil
bras pertencentes a uma cauda cujo dono ainda não completo de um plesiossauro. Este espécime, cujo
foi nomeado e que viveu há cerca de 250 milhões de longo pescoço era constituído por 35 vértebras, cau-
anos. Portanto, este animal habitou a Terra apenas sou uma grande agitação na comunidade científica.
dois milhões de anos após a catastrófica extinção Inicialmente, o naturalista Georges Cuvier chegou a
do Permiano, há cerca de 252 milhões de anos. Este classificar a notícia como uma falsificação. Pouco de-
pedaço de árvore foi inesperado porque, segundo os pois, em 1828, Anning desenterrou o esqueleto parcial
investigadores, «o seu grande tamanho e estrutura de um pterossauro, o primeiro a ser descoberto fora
óssea interna» parecem indicar que estamos peran- da Alemanha. Inspirado por estas criaturas, em 1830 o
te uma espécie totalmente adaptada a um estilo de geólogo Henry de la Beche desenhou Duria Antiquior,
vida oceânico. Por esta razão, defendem que deve- um Dorset mais antigo, uma imagem considerada a
mos considerar a linhagem dos ictiossauros como primeira recriação da vida pré-histórica baseada em
«sobreviventes da extinção em massa, em vez de su- registos fósseis.
cessores ecológicos» do Permiano. As importantes contribuições científicas de Anning
foram ofuscadas por uma sociedade académica que,
O PRIMEIRO FÓSSIL COMPLETO DE ICTIOSSAURO FOI DESTRUÍ- embora se baseasse nos seus fósseis, se recusava a dar
DO NO DECURSO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL. No entanto, crédito ao trabalho realizado por mulheres. A sua vida
em 2016, os paleontólogos Dean R. Lomax e Judy A. foi também marcada por problemas financeiros.
Massare encontraram uma cópia em gesso do mesmo Por esta razão, em 1820, o coronel Thomas James Bir-
fóssil no Museu Peabody de História Natural da Uni- ch organizou um leilão onde vendeu a sua coleção de
versidade de Yale, que tinha sido esquecido entre as fósseis para ajudar a família de Anning com os lucros.
prateleiras e o pó. Com este dinheiro, juntamente com as suas poupan-
Graças à ilustração incluída por Everard Home no seu ças, a caçadora de fósseis conseguiu comprar uma casa
artigo de 1819, identificaram o que poderia ser con- com uma montra onde, em 1826, abriu o Anning’s
siderado como um dos legados da paleontóloga Mary Fossil Depot. Aí se podia admirar o esqueleto de um
Anning. Algum tempo depois, em 2019, Lomax en- ictiossauro e comprar fósseis de amonites ou belem-
controu outro molde igualmente abandonado entre nites, entre outras criaturas. Era certamente um sítio
as coleções do Museu de História Natural de Berlim. que valeria a pena visitar. e

SUPER 93
C I N E M A

Na versão de 1976 de
King Kong, do
realizador John
Guillermin, várias
atrizes foram
consideradas para
interpretar a
protagonista, mas no
final foi escolhida uma
empregada de mesa
desconhecida,
Jessica Lange.

ASC

90 ANOS
DE KING KONG
E OUTRAS «MACACADAS» CINEMATOGRÁFICAS
94 SUPER
A figura deste gorila gigante atrai-nos em igual medida pela sua força
poderosa e pela sua vulnerabilidade. Esta personagem mítica da história
do cinema é, por vezes, furiosa e, por vezes, incrivelmente sensível, e isso
seduz-nos. Os símios sob a forma humana lançam sobre nós um feitiço
inexplicável, e a sétima arte aproveitou-se disso.

Texto de ASIER MENSURO, historiador de arte e especialista em banda desenhada.

O
macaco está presente na ficção O guião do filme é obra do escritor britânico Ed-
desde os tempos mais remotos. gar Wallace, que elabora um primeiro argumento
Basta pensar em Hanuman, o com Merian C. Cooper, que também realiza o filme
herói símio do Ramayana, um juntamente com Ernest B. Schoedsack. Infelizmente,
poema épico sânscrito escrito Wallace morre, pelo que James Ashmore Creelman
entre 750 e 700 a.C., para com- e Ruth Rose, a mulher de Schoedsack, aperfeiçoam
preender que esta relação é muito a sua história, dando-lhe a sua forma final de argu-
antiga. mento cinematográfico.
A figura do macaco huma- King Kong é uma das maiores personagens da his-
noide, o macaco selvagem dos tória do cinema; algo que o filósofo Fernando Savater,
livros de maravilhas que de- «cinéfago» declarado (que é a minha forma preferi-
ram origem a mitos que sobrevivem até hoje, como o da de designar aqueles que devoram o cinema com
dos yetis ou das civilizações impossíveis de tribos de fruição), compreende e explica maravilhosamente:
macacos isolados nas profundezas da selva, é particu- «Porque é que a figura gigantesca e peluda de King
larmente significativa para o tema em questão. Kong nos comove, e até nos comove especialmente,
Como afirma o realizador Arturo Montenegro, a re- de uma forma mais intensa e inexplicável do que a de
ferência mais antiga é possivelmente a do almirante outros monstros no ecrã? Porque nos aparece de duas
cartaginês Hanon (século V a.C.). Na crónica da sua formas contrastantes: é imensamente forte, como to-
viagem a África, a expedição terá tido de enfrentar abo- dos nós gostaríamos de ser. Mas também imensamente
rígenes selvagens. Uma tribo de seres peludos e pouco vulnerável, como cada um de nós, na nossa intimida-
refinados, que, devido à sua baixa cultura e espírito be- de, sabemos que somos [...]».
licoso, foram batizados de «gorilas». A força de Kong é evidente. A cena em que quebra as
Tudo isto, e mil referências mais, que vou deixar de suas grossas correntes quando é exibido como atração
fora, são o terreno fértil que pode considerar-se ante- de feira em Nova Iorque transforma-o numa espécie
cedente do King Kong, o grande símio gigante que em de Sansão que se liberta das suas amarras graças à sua
2023 celebra o seu aniversário, pois serão 90 anos desde
a sua aparição nos ecrãs de todo o mundo, mudando pa-
ra sempre a história do cinema.

WILLIS O’BRIEN, CRIADOR DE KING KONG. Willis O’Brien é um


dos grandes nomes do cinema de efeitos especiais. Es-
treou-se com a curta-metragem O Dinossauro e o Elo
Perdido, Uma Tragédia Pré-histórica (1915), na qual foi
recriada em stop motion uma curiosa e maléfica criatu-
ra símia, semelhante a um gorila, com o divertido nome
de Wild Willie, deixando claro que a sua obsessão pelos
símios já vinha de longe.
Depois de ter tido sucesso com O Mundo Perdido
(1925) de Harry O. Hoyt, trabalhou em vários projetos
para a R.K.O. Pictures que nunca chegaram a ser con-
cretizados, mas um esboço de O’Brien de uma ideia
ainda por desenvolver chamou a atenção de Merian C.
Cooper. É a mão de um macaco gigante a prender uma
bela rapariga. É o germe do futuro King Kong.
ASC

SUPER 95
força proverbial. Mas é a sua natureza vulnerável que
eleva a personagem a outro nível, pois o ponto fraco
do titã-macaco é o amor. Savater, mais uma vez, ex-
plica-o lindamente: «O gorila gigante vive solitário
e soberano na ilha dos sonhos, povoada por criatu-
ras fantásticas. Aí não abundam as loiras, por isso ele
apaixona-se com as suas enormes patas pela primeira
que lhe é oferecida [...] Depois é roubada e ele terá de
a perseguir até à grande cidade, uma selva feita de as-
falto e arranha-céus cujos perigos ignora. «A cidade
não é para mim», pensará o já destronado rei Kong. A
rapariga também não será para ele, apesar de a amar
tanto, e descobre isso quando está no topo do mundo.
[...] Kong aperceber-se-á de que só pode ser noivo da
morte, não da loira. Acordará do seu sonho ao cair do
topo do arranha-céus, como nós por vezes acordamos
de um pesadelo com uma estranha sensação de queda
no estômago... O amor fica no alto, nós caímos».
A verdadeira magia do filme reside em dar uma alma
ao que não é mais do que um boneco articulado; e, nesse
sentido, Willis O’Brien e a sua equipa podem ser consi-
derados os verdadeiros artífices do filme.
King Kong estreia-se em Nova Iorque, a 7 de março
de 1933, no Radio City Music Hall, com grande sucesso.
Do outro lado do país, na Califórnia, dois adolescentes
ASC

chamados Ray Harryhausen e Ray Bradbury planeiam Fray Wray, estrela do primeiro filme de King Kong. Peter Jackson
levar o carro da mãe do primeiro para escapar até um ofereceu-lhe uma participação especial no seu filme de 2005, mas
cinema local que exibia King Kong. Quando vêem no ela recusou.
ecrã o macaco gigante empoleirado no topo do Empire
State Building, as suas vidas mudam para sempre. Ali,
fazem um juramento solene. Os dois serão sempre ami-
gos e a fantasia dominará as suas vidas. de ficção científica, como Fahrenheit 451 ou Crónicas
O primeiro torna-se o mais famoso técnico de efei- Marcianas.
tos especiais de stop motion de todos os tempos (com a
permissão de O’Brien); e o segundo, um distinto escri- SEQUELAS E REMAKES DE KING KONG. O sucesso de King Kong
tor, conhecido pelos seus famosos romances e histórias levou a R.K.O. a produzir imediatamente uma seque-
la intitulada The Son of Kong (1933), desta vez dirigida
a solo por Ernest B. Schoedsack e com O’Brien e a sua
equipa encarregues dos efeitos especiais. Como se po-
de deduzir do título do filme, a expedição que capturou
o King Kong original regressa à Ilha da Caveira, onde
consegue capturar a cria do macaco gigante. A criatura,
também criada pelo mestre O’Brien, tem pêlo albino,
um tamanho um pouco mais discreto e um caráter mais
afável e brincalhão do que o seu progenitor. O filme tem
um bom desempenho nas bilheteiras, embora não se
aproxime em qualidade nem em receitas de bilheteira
do título original.
Como não há duas sem três, O’Brien e Schoedsack
participam num último filme protagonizado por um
macaco gigante. Trata-se de The Great Gorilla (1949),
cuja novidade mais notável foi a incorporação de um jo-
vem Ray Harryhausen como parte da equipa técnica de
efeitos especiais do filme.

KING KONG NO PAÍS DO SOL NASCENTE. O sucesso de


King Kong levou ao seu relançamento nos cinemas
em 1938, um momento que o realizador japonês Sôya
Kumagai aproveitou para filmar a sua própria versão;
um filme intitulado The King Kong that Appeared in
Edo, que não foi preservado até hoje e que conhecemos
através de anúncios na imprensa e algumas fotografias
publicitárias do filme. Assim, o primeiro grande símio
ASC

nipónico sobrevivente é King Kong vs. Godzilla (1962),


Merian C. Cooper, Willis O’Brien, Fay Wray e Ernest B. Schoedsack, realizado para a produtora Toho. Foi realizado por
durante as filmagens de King Kong. Ishirô Honda, o famoso criador de Godzilla e mestre do

96 SUPER
o rei macaco sobe ao topo das Torres Gémeas, inaugu-
radas em 1973.
A segunda diz respeito à escolha da atriz para inter-
pretar a loira Ann Darrow. Bo Derek, Barbra Streisand
e Cher fizeram audições para o papel, bem como duas
jovens atrizes que eram algo desconhecidas na altura,
Melanie Griffith e Meryl Streep. Mas, no final, o produ-
tor optou por outra desconhecida que trabalhava como
empregada de mesa e modelo para pagar os seus estudos
de representação: Jessica Lange, que se estreou no cine-
ma com este filme, iniciando uma carreira de sucesso.
Em 1986, De Laurentiis rodou uma sequela intitulada
King Kong 2, dirigida pelo próprio Gillermin, com uma
jovem Linda Hamilton no papel feminino principal, que
se revelou um retumbante fracasso de bilheteira.
Com o desenvolvimento da tecnologia digital no sé-
culo XXI, o cinema de Hollywood sente que é altura de

ASC
trazer de volta King Kong. O projeto cabe a Peter Jack-
Imagem promocional do filme japonês King Kong que apareceu son, um verdadeiro especialista no género fantástico,
em Edo (1938) de Sôya Kumagai. conhecido mundialmente pela sua trilogia de filmes que
adapta O Senhor dos Anéis.
Jackson sabe que é fundamental encontrar a atriz cer-
ta para interpretar o papel de Ann Darrow, uma vez que
kaijû eiga (um subgénero do cinema fantástico japonês a história de King Kong se baseia na química entre a bela
protagonizado por monstros gigantes). e a fera. Finalmente, o papel cabe à bela e talentosa Nao-
A origem deste projeto é mais do que curiosa. Wil- mi Watts. Jackson, um fã de Fay Wray, a atriz original,
lis O’Brien e Cooper tinham tentado, sem sucesso, oferece-lhe uma participação especial no filme, mas a
lançar um novo título protagonizado pelo macaco gi- veterana atriz de 94 anos recusa o convite devido à sua
gante. Era uma tarefa difícil, pois o filme opunha dois saúde debilitada.
grandes monstros do cinema ocidental: King Kong e
Frankenstein.
Quando o filme falhou, R.K.O. vendeu os direitos ci-
nematográficos ao Japão, e o projeto foi assumido pela
Honda, que manteve o macaco gigante, mas substituiu
o monstro imortal de Mary Shelley pela sua própria
criatura, Godzilla.
Tanto Honda como o técnico de efeitos Eiji Tsuburaya
estão conscientes de que trabalham com dois ícones da
história do cinema. Na tradição dos filmes de monstros
japoneses, não recorrem à técnica de stop motion, mas
a um ator vestido de lagarto mutante, Haruo Nakajima,
acompanhado por Shoichi Hirose, que veste um fato de
Kong.
O confronto entre os dois titãs começa de forma es-
petacular, com King Kong a saltar de para-quedas (ou
algo semelhante feito com balões aerostáticos) sobre o
Monte Fuji — como teria sido bom ter o macaco original
empoleirado no Empire State Building!
Segue-se uma batalha de golpes, na qual Godzilla,
graças ao seu hálito radioativo, se aguenta muito me-
lhor do que o tiranossauro que enfrenta Kong na versão
de 1933.
O filme tornou-se um verdadeiro fenómeno de mas-
sas no Japão, facilitando a filmagem de novas produções
japonesas protagonizadas pelo grande macaco. Isto le-
vou a uma série animada de 26 episódios realizada por
Hiroshi Ikeda em 1966, seguida de um novo projeto
cinematográfico filmado por Honda, intitulado King
Kong Escapes ( 1967).

DUAS NOVAS LOIRAS DEPOIS DE FAY WRAY. O marco seguinte


na carreira cinematográfica do macaco gigante é o re-
make do título original, também intitulado King Kong,
ASC

realizado em 1976 por John Gillermin. Cartaz do filme King Kong, de 2005, do realizador Peter Jackson,
Esta película apresenta duas novidades de destaque: a no qual o papel de Ann Darrow é interpretado pela atriz Naomi
primeira é trazer a ação para o presente, razão pela qual Watts e o do monstro por Andy Serkis.

SUPER 97
ASC

ASC
À esquerda, Jane, o macaco Cheetah e Tarzan, as estrelas indiscutíveis da saga de filmes de Tarzan protagonizados por Johnny
Weissmüller. À direita, cartaz do filme Gorillas in the Mist, com Sigourney Weawer, sobre a vida de Dian Fossey.

Em 2017, o cinema de Hollywood produz King Kong Barnaby Fulton, um médico que faz experiências
e a Ilha da Caveira, realizado por Jordan Charles com chimpanzés num laboratório para encontrar
Vogt-Roberts, e em 2021 chega o último filme a prota- a pílula da eterna juventude. Um dos macacos mis-
gonizar o macaco gigante, Godzilla vs. Kong, de Adam tura acidentalmente vários ingredientes, obtendo
Wingard. o resultado desejado e desencadeando uma série de
É interessante notar que o título deste remake apre- situações cómicas sofridas por todos os que experi-
senta em primeiro lugar a criatura criada pela Honda, mentam a fórmula.
que ao longo dos anos igualou, ou mesmo ultrapassou Este não é o único caso em que um macaco dá um
em popularidade, o grande King Kong de Hollywood. toque cómico a um filme. Veja-se, por exemplo, o oran-
gotango Clyde, companheiro do sério Clint Eastwood
OUTROS MACACOS NO CINEMA. Quando David O. Selznick, em Die Hard (1978) de James Fargo e na sua sequela, The
produtor da R.K.O., oferece o papel de Ann Darrow a Big Fight (1980) de Buddy Van Horn.
Fay Wray, diz-lhe que o seu parceiro é a maior estre- O meu favorito é Louie, o rei macaco louco, que dan-
la de Hollywood. A atriz pensa que vai atuar com Clark ça com o urso Baloo no desenho animado da Disney O
Gable, mas o produtor referia-se ao macaco gigante. Livro da Selva (1967). Não podemos esquecer Stanley
Embora King Kong seja, sem dúvida, a estrela símia Kubrick, que mostra o hominídeo que cria a primeira
mais conhecida da sétima arte, existem outros filmes tecnologia da humanidade no seu 2001 Uma Odisseia
importantes protagonizados por macacos. no Espaço (1969); nem Charlton Heston, que tem de
Embora esta lista seja necessariamente incompleta, lidar com toda uma civilização de macacos que domi-
vale a pena mencionar o chimpanzé Jiggs (que inter- na o mundo e escraviza os humanos em Planeta dos
preta a macaca Cheetah), que acompanhou Johnny Macacos (1968).
Weissmüller em Tarzan of the Apes (1932). Após a sua Deixo para o fim um dos meus filmes preferidos, Go-
morte em 1938, é substituído por outro chimpanzé cha- rillas in the Mist (1988), de Michael Apted, que aborda
mado Mike. a figura da naturalista Dian Fossey (interpretada por Si-
Também gosto de I Feel I’m Getting Younger (1952), gourney Weaver) e o seu trabalho com estes primatas
de Howard Hawks, em que Cary Grant dá vida ao Dr. no Ruanda. e

O macaco, para além de desempenhar o papel de monstro, tem


sido utilizado na história do cinema com uma vertente cómica,
protagonizando filmes em que desencadeia situações engraçadas
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A QUÍMICA ORGÂNICA
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PÁG. 42

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1ª GUERRA MUNDIAL
PÁG. 80

TECNOLOGIA
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FUSÃO NUCLEAR A
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PÁG. 36

HISTÓRIA
A ÚLTIMA NOITE
DE GIACOMO
CASANOVA
PÁG. 88

CRIMINOLOGIA
PORQUE É QUE
AS CRIANÇAS

MORFOLOGIA
MATAM?
PÁG. 74

GALÁCTICA
N.º 303

PORTUGAL NA
QUE FORMA TÊM AS GALÁXIAS E PORQUÊ? 1ª GUERRA MUNDIAL

SUBSCRIÇÃO ANUAL SUBSCRIÇÃO ANUAL


versão impressa versão digital

39 E/ano 19 E/ano

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