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GUERREIR@S DO
TERCEIRO MUNDO
IDENTIDADES NEGRAS NA
MÚSICA REGGAE DA BAHIA
1ª edição
Pinaúna Editora
Salvador 2012
© 2012 by Fabricio Mota
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios
empregados, sem a expressa autorização.
Editor
Gustavo Falcón
Editora-assistente e Curadora
Bárbara Falcón
Capa, Projeto Gráfico e Editoração
Lucas Kalil
Ilustração
Luiz Fernando Pereira da Silva
Produção Gráfica
Carolina Dantas
Revisão
Clara Vieira
ISBN 978-85-65792-02-8
O site oficial do projeto disponibiliza conteúdo inédito e versões digitais dos livros.
www.sonsdabahia.wordpress.com
Direitos desta edição reservados à Pinaúna Ideias Integradas Ltda., para distri-
buição gratuita.
(71) 3624-1048 l www.pinaunaeditora.com.br
Music is the weapon of the future.
Fela Kuti, anos 70
ao meu filho João Lucas de oito anos que, assim como eu, também
está aprendendo a escrever... sobre as coisas da vida.
AGRADECIMENTOS
Não há como não registrar ainda minha gratidão ao meu filho e ami-
go, João Lucas, que nunca me negou seu terno abraço, ainda que minha
falta pudesse lhe sugerir motivo. É por ele que estou aqui também!
LADO A
APRESENTAÇÃO, 15
LADO B
REFERÊNCIAS, 183
APRESENTAÇÃO
Sonhei e fui...
Mar de cristal,
Sol água e sal,
Meu ancestral.
E eu tão singular me vi plural
Trecho da canção Sonhei, de Lenine, Bráulio Tavares e Ivan Santos
Falar em reggae nos remete a pensar no contexto social onde esse gênero
musical se constituiu primeiramente. O país atualmente chamado Jamaica é
uma das maiores ilhas do Caribe que faziam parte da engrenagem do mundo
colonial no Atlântico a partir do século XIV. Antiga colônia espanhola, mas
com forte presença de civilizações indígenas, particularmente os Taino (cha-
mados pejorativamente de Arawakes – comedores de carne – pelos coloniza-
dores), esse território foi aos poucos sendo violentamente ocupado e teve estas
16 l Fabricio Mota
Na Bahia das últimas décadas do século XX, este gênero musical compôs
a cena plural dos movimentos políticos e culturais, em consonância com o
posicionamento das militâncias negras. Tornou-se então imprescindível para
a compreensão da ressonância nacional e mundial da musicalidade4 reggae –
uma das mais emblemáticas expressões da música negra na diáspora – inves-
tigar sua existência idiossincrática na Bahia. Convergindo para esta direção,
analiso a presença estético-musical e sociocultural do gênero, e sua interface
com os processos de legitimação de uma cultura negra, a partir de novos refe-
renciais de identidade.
Por isso, advirto, que as linhas que seguirão são um esforço acadêmico de
um certo autor-sujeito, que vivenciou e se relacionou/relaciona com o univer-
so musical abordado. Considero importante salientar esse dado, pois acredito
que no debate sobre a questão das identidades nossos “lugares” são impres-
cindíveis à construção de nossas intervenções e discursos. Para tanto, imagino
que entrecruzar minha história de vida ao trabalho de pesquisa no texto que
se apresenta pode ser uma forma de traduzir, inicialmente, minha relação com
este terreno musical.
A atitude a tocou com tamanha precisão que a tensão deu lugar à sere-
nidade. A melodia vocal lhes trouxe o conforto necessário para que aquele
ritual de vida se concretizasse. Para ela (minha mãe), aquele refrão de Marley,
revisitado por Gil, é minha canção de chegada neste mundo. Para mim, esta
história que já ouvi repetidas vezes, é hoje muito mais simbólica e pode ajudar
não só a me entender, como ainda algumas questões ilustrativas da relação-
mediação da música no cotidiano das pessoas. Durante muito tempo, insisti
em tratar esta narrativa de minha origem como uma grande coincidência e/ou
gesto de carinho materno. Nos últimos anos, tenho repensado bastante esta
posição. Precisamente, ela nos serve agora como ponto de partida para uma
reflexão mais apurada sobre o impacto das musicalidades negras na sociedade
brasileira das últimas décadas, mais especialmente na Bahia.
18 l Fabricio Mota
que, de modo pouco convencional, o impacto e a popularidade da versão
em português gravada por Gilberto Gil de “No Woman, No Cry” (autoria de
Vicent Ford), imortalizada por Bob Marley & The Wailers. A sintonia do artista
brasileiro com a música afro-jamaicana demonstrava uma posição em comum
com outros músicos e intérpretes do período, que identificavam nessas trilhas
sonoras da música negra transnacional, novos referenciais identitários para
problematizar sua própria história. Esta leitura musical, ainda que sublime, é
um indício da posição de um artista negro diante da possível (re)construção de
um país recrudescido pelas desigualdades sociorraciais (SILVA, 2000).
Além disso, a alusão a um parto serve aqui como metáfora para evidenciar
que a produção-gestação deste estudo foi sem dúvida uma espécie de “parto
intelectual” seja pela dor, seja pelo rito de passagem, seja pela esperança no
fruto que se anuncia – agora em dose dupla já que o primeiro resultado des-
te exercício culminou na dissertação de mestrado defendida pelo Programa
Multidisciplinar de Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro), da Universidade
Federal da Bahia, sediado no Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), sob
orientação da etnomusicóloga e professora Angela Lühning6 – que aqui se
apresenta publicado em formato de livro.
Imagino que meu gosto pela música foi também fortemente influenciado
pelo contato com o rádio, com os muitos discos de vinil que tínhamos em casa
e com a imagem dos músicos que apareciam na TV (e sempre vibrei com as
aparições de Gilberto Gil!). Paralelo a isto, é importante destacar minha aten-
ção aos grupos de percussão (leia-se samba-reggae) que brotavam nos muitos
bairros de Salvador7. A rigor, interessava-me bastante pela possibilidade de
aprender a tocar um instrumento e compreender os princípios de organização
que transformavam ideias, sensações, impressões sobre a sociedade em algo
tão sinestésico como a canção.
20 l Fabricio Mota
propriamente na graduação. Encontrava ali alguns poucos canais de interlo-
cução que me proporcionassem maiores vôos na área da pesquisa acadêmica
sobre a música, dado que não inviabilizou que se iniciassem algumas leituras
que, mais à frente, seriam bastante produtivas ao estudo da ciência histórica
a partir da música.
22 l Fabricio Mota
amadurecer as reflexões sobre as relações raciais no Brasil e a importância
da música neste contexto. A rigor, o ingresso na pós-graduação também tem
relação explícita com meu ativismo antirracista, certo de que a luta pela inclu-
são social das populações negras tem passado pelo acesso à educação e ao
protagonismo na produção do conhecimento científico.
24 l Fabricio Mota
disciplinaridade ainda vem sendo amadurecida). A experiência do mestrado
multidisciplinar que vivenciei tem sido enriquecedora neste sentido. Dialogar
e aprender com áreas de conhecimento como a Etnomusicologia e a Antro-
pologia fortaleceram/fortalecem, a meu ver, novas perspectivas teórico-meto-
dológicas de uma História Social da Cultura, bem como do estudo da Música
e seus sujeitos.
Nesse sentido, os anos 80, que, desse ponto de vista, começam em 1979,
dado o lançamento do álbum Bahia Jamaica de Chico Evangelista e Jorge
Alfredo ao lado da gravação de “No Woman, No Cry”, imortalizada por Bob
Marley & The Wailers, e reiterada por Gilberto Gil no álbum Realce, compre-
endem, a meu ver, o momento crucial da emergência de novas alternativas e
perspectivas de organização civil em ebulição no chamado “verão da abertu-
ra”. É um contexto de onde brotam legendas partidárias às dúzias e de onde
floresce uma ambiência sociocultural fortemente mobilizada pela produção
musical. Na Bahia, e em particular em Salvador, a “trama” musical que se
anunciava, como sugeriu Guerreiro (2000), era protagonizada por uma juven-
tude negra reencorajada pela invenção de novos ideais de liberdade que os/
as levariam a percorrer a África e o Caribe negros a bordo de uma criativa re-
leitura destes territórios do Atlântico. O reggae foi uma das principais matérias-
primas neste processo.
26 l Fabricio Mota
dispensar o “fardo” do trabalho intelectual ideal). Analisando os discos,
percebemos que haviam diferenças visíveis quanto ao teor dos discursos
identitários, nas distintas categorias e perspectivas de negritude, além das
diferentes posições ao longo das décadas.
28 l Fabricio Mota
O texto que se apresenta é, em linhas gerais, uma forma de com-
preender o processo de inserção e cristalização da música reggae no
cenário sociocultural baiano à luz de alguns registros de sua produção
musical. Para tanto, os diferentes pontos de vista sobre o universo das
fontes estão evidenciados na organização dos capítulos que faz alusão
deliberadamente à estrutura de um LP, uma das principais matérias-
primas deste estudo.
Na Faixa 5, “Quem Não Gosta de Reggae, Bom Sujeito Não É”, que
traz as considerações finais, pretende-se entrecruzar as informações e
problematizações dos capítulos anteriores (por isso o sentido dub) apon-
tando para futuros caminhos da investigação. Esse será o espaço para
traçar algumas reflexões sobre o mercado fonográfico e os espaços alter-
nativos de divulgação do reggae em Salvador.
30 l Fabricio Mota
interpretações, suas próprias versões do gênero musical afro-jamaicano.
Este fenômeno foi marcado pela disputa contra a marginalização direcio-
nada aos adeptos e admiradores do estilo em muitos espaços, como os
meios de comunicação regionais e nacionais13.
1
Uma pesquisa de fôlego sobre a história da Jamaica e, particularmente,
da cultura Rasta, foi produzida por Danilo Rabelo e defendida com tese
de doutorado em 2006. Nela, constam aspectos históricos, geopolíticos,
econômicos e antropológicos minuciosos sobre a ilha caribenha e sua
conexão com a cultura espiritual e musical do rastafarianismo. É sem dú-
vida a produção mais exaustiva já realizada no Brasil (RABELO, 2006).
Sobre a história do reggae ver também estudos clássicos como Albuquer-
que (1993), Davis & Simon (1983) e ainda White (1999).
2
Ver Rocksteady: The Roots of Reggae, Stacha Bader (Direção), 2009.
Documentário sobre a influência do rocksteady na música mundial. A
concepção da obra que encadeia as narrativas históricas dos músicos e
musicistas, produtores e outros agentes traz um rico depoimento sobre
história e música jamaicana tornando-o um registro imperdível.
3
Ver Dub Echoes, Bruno Natal (Direção), 2008.
4
O conceito de musicalidade quando utilizado aqui, remete diretamente
à formulação proposta por Salloma Silva (2000) como um conjunto de
práticas musicais e, como tal, posições político-culturais.
5
Esta foi a conhecida expressão mencionada pelo General Ernesto Geisel
para se referir à postura dos militares diante do fim do regime. Em 1979,
foi decretada também a lei da anistia que pôs, sob o manto silencioso
de uma mesma justiça os criminosos do Regime e exilados políticos (Ver
mais em GASPARI, Élio. Ditadura Derrotada: O Sacerdote e o Feiticeiro.
São Paulo: Cia das Letras, 2003).
6
MOTA, 2008.
7
Não poderia esquecer-me do Sementes do Reggae, grupo de percussão
formado no bairro de Mussurunga. Alimentei, por muito tempo, a vonta-
de de fazer parte da percussão do Sementes, mas a proibição meio tácita
da família frearam minha utopia.
8
“Brincar com o baixo” é a forma como meu filho, João Lucas, descrevia
meus momentos de estudo com o instrumento.
9
Disco refere-se a toda e qualquer obra musical, composta de até 04
canções – singles – ou mais, que constam como registro no histórico de
um artista ou um conjunto deles. Comumente, associa-se restritamente
ao disco de vinil esta definição.
10
Sobre esse debate, o clássico artigo de Walter Benjamin sobre a arte
e sua reprodução no mundo capitalista (BENJAMIN, 1960) tem uma
importância. A rigor, outros autores já têm produzido leituras sobre a
obra de Benjamim que, posteriormente, nos servirão de suporte teórico-
metodológico.
11
Esta definição foi tomada de empréstimo de Godi (1997), um dos
primeiros pesquisadores envolvidos com essa temática no viés da
socioantropologia da música, na Bahia.
12
Termo comumente utilizado para identificar o ouvinte ou músico de
reggae.
13
Por exemplo, em Salvador, há um processo contínuo de marginaliza-
ção dos tradicionais radialistas de reggae paralelo ao controle das bandas
e shows pela grande indústria cultural da música baiana que organiza o
carnaval. Atualmente é exibido pela rede pública, através da Rádio Edu-
cadora FM (107.5), o programa No Balanço do Reggae, além de alguns
em rádios alternativas. No interior do estado, movimentos sociais organi-
zados em entidades como a Associação Cultural Beneficente Revolution
Reggae, em Conceição do Coité-BA, têm sido importantes agentes mo-
bilizadores contra a violência policial e dos grupos de extermínio contra
jovens negros, além de organizarem eventos de debate sobre racismo,
cidadania e políticas públicas para saúde, educação no município.
TERCEIRO MUNDO
(Walmir Brito, 1988)
Lembra-te Marley
Céu azul reggae canção
Influências evólicas
Etílicas constelações
Sentimento que vai à Jamaica
38 l Fabricio Mota
Um negro povo a clamar à
Mãe África
Terceiro mundo é um elo unificando as nossas raízes
Lapidação da pérola Negra
O brilho da paz
O elo negro mais profundo
Corretivo ao mundo
Eu grito não apartai os negros não jamais
O sentimento que vai
À Jamaica
Um negro povo a clamar
À mãe África
40 l Fabricio Mota
modernidade, presentes nas expressões artísticas (principalmente na músi-
ca), na literatura, em suma, em constante subversão do lugar de mercado-
ria-objeto, através de criativas maneiras de “automodelagem individual” e
“libertação comunal” (GILROY, 2001. p. 100).
42 l Fabricio Mota
diante de projetos antagônicos, mas de perspectivas diferentes (e divergen-
tes, é claro) quanto à História da Modernidade e sua superação. Na análise
de Paul Gilroy, as políticas culturais negras são, grosso modo, intervenções
críticas e intrínsecas à modernidade. Tomando algumas experiências negras
no Reino Unido, Caribe, América e África (anglófonas), o autor se distancia
de qualquer argumento que corrobore com a ideia de que há um pensa-
mento descolonial comum, inerente às rotas da escravidão. Pelo contrário,
está interessado em compreender como os negros na diáspora restituíram
suas humanidades e ressignificaram seus sentidos (re)utilizando os meios e
ferramentas do próprio colonizador.
Conforme Paul Gilroy (2001), músicos e outros artistas podem ser en-
tendidos como intelectuais orgânicos21 das tradições alternativas “inven-
tadas” na diáspora. Nesse contexto, as expressões musicais constituem
um veículo fundamental, de modo que a autenticidade de seus discursos
e ações não está restrita ao universo das normas da democracia burguesa
e do mundo da escrita. Seguindo nitidamente os caminhos dos estudos
culturais, bem representados por autores como Stuart Hall, Gilroy tem
enfatizado a posição destes sujeitos na construção/legitimação dos reper-
tórios da política cultural negra à revelia dos resíduos do colonialismo das
“dispersões irreversíveis da diáspora” (HALL, 2003, p. 343); este proces-
so tem, na história musical, um registro indelével, haja vista o impacto de
expressões sonoras e estéticas de alcance transnacionais, a exemplo do
reggae e tantas outras como o jazz, blues, o funk, o rock e o rap.
44 l Fabricio Mota
lise mais complexa dos processos de formação destes centros. Além de
literalmente “enxergar” a experiência negra, apresenta um olhar crítico-
epistemológico de fundamental importância para a construção de um ou-
tro cânone, engajado com a inclusão, no mundo acadêmico, da presença
e sujeição dos(as) afrodescendentes na construção das relações sociais.
Rituais de negros
Uma questão de identidade
Um momento negro
Uma nova negritude [...] 24
46 l Fabricio Mota
em seus muitos produtos culturais. Representar-se como sujeito de sua história
tem sido uma árdua escolha política para as populações negras no Brasil que
tem suas subjetividades estilhaçadas desde a infância e as veem constante-
mente inferiorizadas através de rótulos e estigmas que marcam seus corpos
com símbolos de rebaixamento frente ao olhar do outro (MOTA & SILVA,
2011). Em suma, reiterar o debate sobre identidades implica problematizar um
terreno das relações sociais onde se perpetuam estereótipos e outras formas de
representação pejorativa de grupos marginalizados historicamente em nosso
país, bem como, na contramão, se insurgem modelos outros de afirmação dos
sujeitos. Nas palavras de Gilroy (2007), a “linguagem distintiva da identidade”
serve para mensurar como os vínculos de pertecimento a uma comunidade
ou grupo podem estabelecer estilos ativos e alternativos de solidariedade as-
sim como firmar politicamente novas fronteiras na sociedade.
Desse modo, a recusa por parte dos supostos guardiões da identidade na-
cional (ou maranhense) às influências “externas” da música pode constituir-se
num critério para marginalizar contraculturas da música negra na diáspora,
como é o caso do reggae, reduzido ao rótulo de música internacional e, neste
sentido, inautêntica. A presença recente deste estilo musical tem fertilizado au-
toidentidades fundamentais à (re)inserção das demandas e perspectivas das
populações negras, como destacamos, na Bahia. Visto aqui com uma das tra-
dições inventadas de expressão musical dos negros na diáspora, no contexto
contemporâneo, o reggae é uma contracultura musical (re)produzida no Atlân-
tico Negro, portanto, um gênero musical transnacional.
48 l Fabricio Mota
Pode-se afirmar que os resultados musicais produzidos no universo
das populações negras na Bahia sugerem uma reflexão mais plural da
noção de cultura e do engendramento de novas identidades. O reggae,
em especial, aponta para diversas alternativas à invisibilidade social de
um ou mais grupos identificados por sentidos, valores e símbolos étnicos
de negritude. Nesse movimento, construiu-se uma “cultura musical” – de
conteúdos críticos e estética contundente – que tem afetado, de manei-
ra especial, as dimensões identitárias e do pertencimento, e constituído,
assim, uma lógica própria de representação, pautada na inserção social
do grupo étnico-racial. Portanto, o que vem sendo chamado aqui de
identidades negras não é um conjunto de características intrínsecas (ou
naturais) aos negros e negras, mas engloba uma noção política de per-
tencimento construída na tensão entre um processo histórico de mar-
ginalização do negro na sociedade brasileira e as inúmeras respostas,
propostas e alternativas apresentadas por estas populações, como as
canções registradas nos discos que compõem os repertórios da música
negra produzida em algumas cidades da Bahia. As identidades negras
são, enfim, uma posição política plural de defesa da diversidade e que
“implica a construção de um olhar de um grupo étnico/racial ou de sujei-
tos que pertencem a um mesmo grupo étnico racial sobre si mesmos, a
partir da relação com o outro” (GOMES, 2003, p. 172).
50 l Fabricio Mota
VIRANDO JAMAICA
52 l Fabricio Mota
alternativas, ‘No Woman, No Cry’ retratava o convívio diário de rastafáris
no government yard (área governamental) em Trenchtown e a persegui-
ção policial, provavelmente ligada à questão da droga (maconha) que
eles sofriam. Essa situação eu quis transportar para o parque do Aterro,
no Rio de Janeiro, também um parque onde localizei policiais em vigília
e hippies em rodinhas tocando violão e passando fumo, como eu cos-
tumava vê-los de noite na cidade. Coincidindo com o momento e que
a abertura política estava começando, ‘Não Chore Mais’ acabou por se
referir a todo período de repressão no Brasil”34.
Para além disto, as canções que compõem esse álbum abordam algu-
mas sonoridades e temáticas que fazem parte do universo de referências
socioculturais abertamente marginalizadas na sociedade e que estão as-
sociadas à história das populações negras. Além da presença marcante
do ijexá, ritmo oriundo do candomblé tocado no espaço da rua, a temáti-
ca própria do candomblé é explícita em canções como “Longunedé”, em
que Gil canta a mitologia ancestral da divindade afro-brasileira, marca
esta registrada em outros discos anteriores e posteriores de sua carreira,
o que confere visibilidade a esta cosmovisão de matriz africana.
54 l Fabricio Mota
radialista, produtor cultural e colecionador Clóvis Rabelo, que trabalha
há mais de duas décadas com a produção e divulgação do gênero na
Bahia, ele cita um momento bastante ilustrativo dessa história quando
perguntado sobre a primeira vez que teve contato com o reggae. Nas
palavras de Clóvis Rabelo:
“[...] em 1980, ou foi 79, que eu não me lembro, quando eu fui assistir
um show de Gil na Escola de Teatro [da Universidade Federal da Bahia,
em Salvador] ele falou, voz e violão, que ele ia cantar a música de um ja-
maicano que era sucesso e ele cantou ‘No Woman no Cry’. Foi a primeira
vez que eu ouvi... E daí pra cá começou [...]”38.
“Eu, Bob e Peter precisávamos encontrar uma forma que fosse aceitável. Nós
resolvemos fazer um ritmo bem marcado que sugerisse os princípios básicos
do reggae e depois poríamos um pouco de cor aqui e ali que não afetaria o
princípio básico, mas que atrairia o mercado internacional”41.
56 l Fabricio Mota
Nas palavras do músico, percebe-se como os componentes musicais
diaspóricos foram rearranjados para compor um gênero singular. Carlos
Albuquerque, no livro O Eterno Verão do Reggae, acrescenta que o su-
cesso da canção “I Shot the Sheriff”, de Bob Marley, teria alavancado
novamente a carreira do guitarrista Eric Clapton e, em contrapartida,
provocado o maior interesse das gravadoras na música jamaicana que,
diga-se de passagem, já contava com um time considerável de músicos,
produtores, estúdios de gravação, rádios, etc.43.
58 l Fabricio Mota
e vindas para o Rio, ao longo dos anos 70, teve a oportunidade de ter
os primeiros contatos com o reggae. Nos anos 80, com a passagem de
Marley pela cidade, o músico comenta, com certo pesar, suas tentativas
infelizmente mal sucedidas de encontrar pessoalmente o artista jamaica-
no. Segundo Dionorina, o fato o estimulou a pesquisar a música de Bob
Marley. Nas palavras dele, “foi o desencontro para o encontro [...]”48.
60 l Fabricio Mota
BAHIA JAMAICA
(Chico Evangelista e Jorge Alfredo, 1979)
Quem falou
Tem a cabeça branca
A pele morena
De muitas canções
Que falam do mar
Do mar a Bahia
Tambor que bate aqui
Tambor que bate lá
Bahia-Jamaica
Um ponto de encontro
Entre eu e você
À altura da estrofe: “tambor que bate aqui, tambor que bate lá” sobre-
põe-se a sonoridade de atabaques e agogôs (em compasso 6/8), num tra-
ço característico de alguns sons rituais do candomblé, que se associa ao
argumento central da canção e que se sintetiza no refrão: “Bahia Jamaica
um ponto de encontro entre eu e você”. Esta citação de sons é sintomá-
tica de uma musicalidade identificada com a valorização das expressões
e manifestações negras. É ainda presença marcante, no Bahia Jamaica,
a marcação peculiar e característica do reggae (compasso 4/4 com o 2º e
4º tempos fortes nos instrumentos de harmonia, em contraponto com a
marcação pulsante da bateria no 3º tempo) ao lado de linhas percussivas
de ijexá, fazendo referência ao ritmo tocado pelos afoxés de Salvador.
A faixa “Reggae da Independência” que trata do 2 de Julho (marco da
Independência do Brasil, na Bahia do século XIX) é um outro exemplo
que atesta este argumento. Mais uma vez, as sonoridades dos atabaques,
xequerês e agogôs estão presentes na narrativa musical do festivo histó-
rico. O universo percussivo está fundido com outros elementos elétricos
além do híbrido violão ovation marcando o balanço (ou batida) reggae.
62 l Fabricio Mota
neirismo soteropolitano, é possível perceber uma breve tensão em torno
do termo reggae. Em outras palavras, a maior visibilidade dos músicos de
Cachoeira (Edson Gomes, Geraldo Cristal, Sine Calmon, Nengo Vieira e
outros) deve-se a maior popularidade que estes ganharam no mercado
da música no estado. Entretanto, Rabelo faz uma ponderação em torno
do termo reggae que me parece plausível comentar. Ao referir-se à Studio
5 em comparação aos Remanescentes, grupo de músicos, compositores
e intérpretes da cidade de Cachoeira, Rabelo pondera:
“[...] o Studio 5 era uma banda de reggae, mas ele não tinha aquela fi-
losofia reggae, pra mim mesmo a primeira a banda de reggae mesmo foi
a Remanescente, porque os caras eram reggae, os caras ‘comia reggae’,
‘respirava reggae.”
A MÃO DA LIMPEZA
(Gilberto Gil, 1984)
O branco inventou que o negro
Quando não suja na entrada
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Que mentira danada, ê
Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o negro penava, ê
64 l Fabricio Mota
Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza
A BABILÔNIA DO SERTÃO
E SUAS CHAMAS
66 l Fabricio Mota
As inúmeras referências nos jornais impressos a respeito das manifesta-
ções da cultura negra de Feira de Santana, entre as quais o reggae é identi-
ficado63, entrecruzadas com algumas informações oriundas de entrevistas64,
permitem considerar que a presença da música afro-jamaicana, naquele
contexto urbano, remonta, como em outras regiões do país, a fins dos anos
70 e início dos 80. A influência e cristalização da musicalidade reggae naque-
le contexto, como em quase todos, não se deu sem fraturas e enfrentamen-
tos. Ao longo dos anos 80, a produção gradativa de reggae esteve lado a
lado com as movimentações dos afoxés e outras entidades ligadas à política
cultural negra. Inúmeras canções gravadas por artistas de Feira de Santana
são oriundas dos repertórios dessas entidades. Para além disso, parte con-
siderável dos compositores e intérpretes (como Gilsan, Jorge de Angélica,
Dionorina, Nunes Natureza, Nilton Rasta e outros) participou como cantores
dos afoxés, além dos mesmos serem corresponsáveis por essas entidades.
Em suma, ao longo das últimas décadas, o reggae era um dos elos de uma
rede de musicalidades negras que vem compondo o ambiente sociocultural
também de Feira de Santana. Em uma entrevista do compositor Carlos Pita
ao jornal Feira Hoje, é interessante observar sua impressão e interpretação
poética da influência do ritmo, alterando cena urbana do lugar:
“ […] ouvi uma vez numa rádio AM de Feira, não lembro se foi na Rádio
Carioca. [...] ouvi essa música e fiquei apaixonado pelo ritmo, mas não
tive mais possibilidade de ouvir”67.
“A primeira vez que ouvi ‘Stir it Up’ com The Wailers, Bob Marley can-
tando, assim... Era uma música que me chamava a atenção e me prendia
toda vez que eu ouvia. Às vezes quando eu ouvia, ouvia sempre no pro-
grama de Big Boy, que era um programa que tinha de madrugada, de
dez à meia noite na Rádio Mundial do Rio... Eu ficava procurando pra
ouvir, porque nesse tempo só ouvia rádio. Depois começou a aparecer
aquelas radiolas de seis pilhas da Phillips, mas não era todo mundo que
tinha. Uma vez nós nos juntamos três amigos pra comprar. Aí, cada fim
de semana, ficava na mão de um. E durante a semana se juntava tudo em
um lugar pra ficar ouvindo (risos!). Era legal”68.
68 l Fabricio Mota
formações do mundo. Se o rádio, os discos e, em certo modo, a TV, foram
meios facilitadores da inspiração, pela imagem e sons, com os referenciais
transnacionais das culturas negras, foi a vivência das contradições sociais
que incendiaram os ideais desses artistas. Um dos primeiros exemplos é a
fundação das bandas Gana e Esperança que, já durante a década de 80,
mostravam seus acordes na cidade. A Gana, fundada por Jorge de Angéli-
ca, tinha em sua formação, além do parceiro Tonho Dionorina, um time de
músicos que foram responsáveis pela popularização do reggae, sobretudo
entre os bairros populosos da cidade, que tinham o grande público alvo:
Nunes Natureza, Paulo Monge, Enfezado, Nilton Rasta, Meire, Pi e outros.
A banda Esperança, liderada por Gilsam, militante negro também ligado
aos afoxés da cidade (inclusive até o presente) é outro exemplo da presen-
ça reggae na produção musical de Feira de Santana.
70 l Fabricio Mota
Detalhe da Localização das Cidades Conectadas pela Produção da
Música Reggae na Bahia
REMANESCENTE
(Nengo Vieira & Tin Tim Gomes, 1992)
Das margens do Paraguaçu
Em plena América do Sul
Só remanescente ficará
Só remanescente ficará
É a semente do amor
Que brota nesta geração
Buscando a luz, a paz, a vida e a união
E o Senhor já diz em sua palavra
E com sua autoridade
Só remanescente ficará
Só remanescente ficará
Só remanescente ficará, meu Deus!
72 l Fabricio Mota
Paralelamente, emerge da mesma cidade o compositor e cantor Edson
Gomes que, ao longo dos anos 80, despontou como grande aposta da
música reggae no Brasil, fato que se consolidou com o lançamento de seu
primeiro álbum, em 1988. Um dos mais conhecidos músicos do gênero no
Brasil começou sua vida profissional como auxiliar de pedreiro na área da
construção civil71. O gosto pelo futebol o projetou para atuação no time
Cruzeiro (de Cachoeira) pelo qual disputou campeonatos locais72.
“Em 1983, eu percebi que o reggae era o veículo certo para levar mi-
nhas ideias e convicções. Como um elemento negro, eu tinha a opção do
samba, mas não achava este gênero com tradição de luta pelos direitos
dos oprimidos. Então, busquei um gênero musical que casasse com meu
propósito de protestar contra todas as discriminações”74.
74 l Fabricio Mota
Capa de Raça Humana (WEA,
1984). A sonoridade deste disco evi-
dencia a permanente aproximação
de Gilberto Gil com o reggae jamai-
cano. Entre as faixas, “Vamos Fugir”
contou com a gravação e arranjos
dos músicos dos Wailers, banda fun-
dada por Bob Marley.
76 l Fabricio Mota
NOTAS
14
O uso do termo “amplificar”, aqui na condição de verbo, é livremente
deliberado e faz referência aos amplificadores: aparelhos eletrônicos de
processamento e reprodução das frequências sonoras, muito utilizados a
partir das primeiras décadas do século XX.
15
O termo “cultura popular” (seus usos e abusos) vem sendo debatido com
vigor por autores e autoras das Ciências Humanas ao longo das últimas dé-
cadas. Não se pretende revisar esta temática no momento. De todo modo
– sem mergulhar nesse profundo debate (mas molhando os pés!) – prefiro
abreviar meus comentários e partilhar da forma como é utilizado o termo por
Milton Santos, além de autores como Mikhail Bakhtin, Carlo Ginzburg e E. P.
Thompson: uma espécie de discurso “de baixo” (SANTOS, 2001, p. 144).
16
SANSONE & TELES, 1997. Obra citada.
17
A “passagem do meio” é uma expressão que designa o trecho mais
longo e sofrido da travessia dos navios negreiros no Atlântico.
18
WALLERSTEIN, 1974; citado por GROSFOGUEL, 1992.
19
Ver DUSSEL, Enrique, 1977.
20
O autor usa a noção de “Pensamiento Fronteiriço”, na versão origi-
nal em espanhol. Na edição traduzida para o português, consta a ideia
de pensamento “Liminar”. Durante sua participação no IX Fábrica de
Ideias, curso avançado de Relações Raciais realizado pelo CEAO em Sal-
vador e Cachoeira (julho/agosto de 2006), Mignolo aproveitou o ensejo
para reforçar essa “errata”.
21
A acepção desse conceito é eminentemente gramsciana; Hall é o
autor contemporâneo que percebeu a contribuição deste pensador ita-
liano aos estudos culturais na dimensão da presença negra na diáspora
(Cf. HALL, 2003).
22
Além disso, a propagação do reggae ilustra certa cissiparidade, haja
vista as inúmeras variáveis como o ragga, roots reggae, raggamuffin, dub
poetry (DAVIS & SIMON, 1983; ALBUQUERQUE, 1997).
78 l Fabricio Mota
grande circulação na Europa (naquela época o epicentro da indústria
fonográfica mundial).
34
RENNÓ, Carlos (org.). Gilberto Gil -Todas as Letras. São Paulo: Cia
das Letras, 1996.
35
FORD, Vicent. Versão Gilberto Gil. In: GIL, Gilberto. Realce, Elektra,
1979.
36
Ibid.
37
Em uma das falas do líder espitiritual rastafári Mortimo Planno, quando
perguntado sobre a vida de Bob Marley, ele enfatiza a centralidade das
tranças como representação de insurgência. Segundo ele, para conter
o “açoite as tranças” de Marley “era preciso cortar-lhes a cabeça”. Ver:
Catch a Fire. Coleção Classic Álbuns, Série 2. Eagle Rock Entertainment,
1999. Agradeço aos amigos do Grupo Cultural Revolution Reggae (Con-
ceição do Coité-BA) pela sugestão e aos professores Paulo Neto e Pinzol
da UNEB (Campus Juazeiro) pela cópia deste material em DVD.
38
Entrevista com Clóvis Rabelo (14/11/2006).
39
Bob Marley & The Wailers. Catch a Fire. Island Records, 1972.
40
Ibid. Este álbum não foi publicado no Brasil com estas características. Ao
que parece, também não o foi na Jamaica como sugere a informação de
Carlos Albuquerque sobre o impacto de Catch a Fire no mercado da música
de Kingston. Ao referir-se ao disco, ele menciona a capa em que aparece
Bob numa fotografia de rosto, ostentando um longo “cigarro de ganja”.
41
In: Catch a Fire. Classic Álbuns, 1999 [tradução: Legendas Videolar].
42
Ibid.
43
ALBUQUERQUE, 1997; ver também WHITE, 1999.
44
Bob Marley & The Wailers. Survival. Island Records (distribuidora Ariola),
1979.
45
VIDIGAL, Leo. “O Rei no Rio: Dreads no Verão da Abertura”. Revis-
ta Bizz, Ed. 201, maio de 2006. Ver também ALBUQUERQUE, 1997,
pp. 71-78. A visita incluiu compras de materiais esportivos, partida de
80 l Fabricio Mota
que provocou uma enorme polarização da Bahia como centro produtor
de música e culturas musicais no Brasil.
53
Fonte: www.lazzo.com.br. Site visitado em 21/12/07.
54
Lazzo Matumbi. Salve a Jamaica. Fermata, 1981.
55
Lazzo Matumbi. Viver Sentir e Amar. Pointer Discos, 1983.
56
No texto da contracapa tem-se: “ritmo, balanço, voz, arranjos e sen-
timento, tudo isso num fabuloso disco, cheio de emoção e vontade de
mostrar um trabalho capaz de agradar a todos. [...]”, texto de José Mau-
rício Machine.
82 l Fabricio Mota
FAIXA 2
“ÁFRICA A LA JAMAICA,
MÚSICA DA RAÇA”
Don’t care where you come from
As long as you’re a black man
You’re an African
No mind your nationality
You have got the identity
Of an African
[…] ’Cause if you come Trinidad
And if you come from Nassau
And if you come from Cuba
You’re an African
No mind your complexion
There is no rejection
You’re an African
A respeito dos olhares sobre a cultura africana, que pode ser tranquilamente
lida como afro-americana também, Femi Ojo-Ade ressalta dois extremos inter-
pretativos: de um ponto de vista “escandalosamente falso e racista”, inspirado
nos “conquistadores”, a visão reducionista de um “ethos africano” primitivo,
quintessencial e selvagem; de outro lado, os “defensores da África” (de todas
as partes do mundo, inclusive alguns intelectuais africanos) que “acabaram
proclamando-a como monólito paradisíaco e idílico”, o que “não é menos
escandaloso por sua natureza simplista” (OJO-ADE, 1995, pp. 37-38). A ava-
liação descontente de Ojo-Ade é tão cabível quanto questionável, pois instiga
perguntarmos sobre as relações sociais que são/foram pano de fundo destas
posições. A premissa do “conquistador”, tão longamente ratificada, dispensa
maiores comentários, uma vez que há, ainda, infelizmente, larga produção
bibliográfica e paradidática que lhes dá suporte como analisado no trabalho
memorável de Ana Célia da Silva (2001)77. Tentando entender o outro lado
da questão, acrescento que há, no interior de determinadas visões, mais do
que puro simplismo. No terreno da cultura baiana dos anos 90, o esforço
político-cultural de valorização das imagens em torno da África, na dimensão
da produção musical, projetou, em muitos casos, uma visão largamente miti-
ficada, mas não necessariamente estanque. A predominante crença em uma
“África-fonte-de-todo-saber”, presente nos discursos dos blocos afrocarnava-
lescos, como identificou Patrícia Pinho (2004), é um exemplo concreto desse
fenômeno. Analisando criticamente essas “falas” e sob a análise dos docu-
mentos fonográfico-musicais, mais adiante, sugiro que alguns discursos “afro-
centrados” são menos uma declaração simplista e mais uma resposta possível
ao mito sobrepairante da “Europa-fonte-de-todo-saber”. Há muitos sentidos
86 l Fabricio Mota
em jogo neste novo olhar, para além da dualidade aparente, sobretudo se
considerada a intensa mobilização artística no enfrentamento das ostensivas
imagens depreciativas do negro, presentes em grande parte das produções
veiculadas pelos meios de comunicação da sociedade brasileira ao longo das
últimas décadas do século passado78.
Essa ligação memorial com a África foi tematizada por algumas enti-
dades carnavalescas em Salvador e outras agremiações do gênero entre
fins do século XIX e início do XX. Raphael Vieira Filho (1997) anali-
sa entre os “folguedos negros” a presença marcante de clubes como
os Pândegos da África e Clube da Embaixada Africana. Este último,
fundado em 1895, desfilou nos festivos do carnaval de 1897, homena-
geando a Independência do Império da Etiópia, diante da notícia da
vitória deste sobre as tropas italianas na luta contra o neocolonialismo
europeu em 1896.
88 l Fabricio Mota
Colonialismo Europeu e Império Otomano no Continente Africano em 1914
OS GUERRILHEIROS DA JAMAICA
VÃO ATACAR
90 l Fabricio Mota
continente. Ainda neste contexto, destacam-se as lutas em prol dos direi-
tos civis em toda a América, com maior visibilidade nos Estados Unidos,
além das trilhas sonoras consoantes com este fenômeno: o funk, soul
music e o reggae que ganhava proeminência no mercado fonográfico e
programas de rádio.
92 l Fabricio Mota
a operar “como uma manifestação cultural que os identificava de alguma
forma (pelos tipos de roupa, dança, música, etc.)”86, impressão que é
marca definitiva de sua produção intelectual.
Toda Negrada
Não vai sobrar nenhum
Dançando Reggae
Sexta-feira no Olodum [...]91
94 l Fabricio Mota
maior visibilidade nas rádios ou lojas de disco, sendo executado “nas vitro-
las de alguns negros antenados e imersos na militância étnica” ou girando
nos prostíbulos e bares do antigo “Maciel-Pelourinho”, território de Salvador
onde nasce a entidade carnavalesca e que se tornou, posteriormente, um
dos cartões de visitas da cidade92. A sintonia com o universo afro-caribenho
ficou registrada também em canções entoadas no carnaval de 1986 (com o
tema “Cuba”), como “Um Povo em Comum Pensar”, de Suka, que evoca
uma noção imaginada de identidade negra latino-americana:
96 l Fabricio Mota
Esse tipo de referencial esteve presente em grande parte dos discur-
sos estético-musicais do reggae produzido no Brasil (dadas as propor-
ções, na Jamaica também). Nadando contra as correntes, a busca pela
“África mãe”, inseria a Jamaica como parada obrigatória e, posterior-
mente, como destino propriamente dito. Vista como terra do reggae e
de ícones da música negra como Bob Marley, Peter Tosh, Jimmy Cliff
e Linton Kwesi Johnson, a Jamaica, e sua história moderna, também
foi alvo de inúmeras canções dos blocos afro e de artistas ligados ao
gênero na Bahia, situadas entre os anos 80 e 90.
É interessante notar, no entanto, que não está presente neste, nem em ou-
tros exemplos, a busca por uma identidade supranacional latino-americana,
mas étnico-referenciada, com a imagem da América Central afro-jamaicana
difundida pela música reggae. Na canção “América Central” (composição e
interpretação de Nego Tenga), esta conexão fica bastante explícita:
América Central
América Nagô
América Jamaica
Onde o Rei Bob Marley descansou [...]98
SEXTA-FEIRA
(Tatau, 1988)
Sexta, sexta, sexta-feira
Os Guerrilheiros da Jamaica vão atacar
Sexta, sexta, sexta-feira
De carnaval
Eu vou, eu vou
De Muzenza
98 l Fabricio Mota
As tropas amarram os canhões
Muzenza traz a munição
Os garis nos faz alertar
Que os Guerrilheiros da Jamaica vão atacar.
Os garis nos faz alertar
Que os Guerrilheiros da Jamaica vão atacar99
ETIÓPIA
(Edson Gomes, 1997)
[...]
Lá na escola não contaram nada
Fizeram questão de esconder
Hoje eles passam como filhos do Deus bom
LUBAMBO
(Fred Vieira, s/d)
Ei homem branco de Joanesburgo
Você é quem tem que estender a mão
Eu não
Ah África
Ninguém vai tomar
Pois sua riqueza
É do povo do lugar
ESTRANGEIRO
(Edson Gomes, 1990)
Estou aqui
Estou bem distante do teu convívio
Eu estou aqui
Estou bem distante, mas estou sabendo
Que se passa contigo
É o mesmo que se passa comigo
Eu ando aqui pela Baby(lônia)
Eles me chamam de brasileiro
Porém eu me sinto um estrangeiro
Trabalho, trabalho e nada é nada não (2x)
JAMAICA FM
(Carlos Pita/Dionorina, 1994)
Quando eu tava naquela
Naquela esquina
Ouvindo um reggae
Num radinho de pilha
Quando eu tava naquela
Naquela esquina
Querendo ser feliz e beijar minha menina
Quando alguém cantou:
Africana sensação
O negro é bacana
A cor não engana
Aumenta este rádio
Que esse som tá em Luanda
De repente me senti
Na terra das primaveras
Jamaica FM
Encontrei com Peter Tosh
Numa esquina, de bobeira
“Até nos blocos de bacanas a negrada não podia participar, né? A gente
ficava de fora mesmo. Não tinha negócio de estória, não: ou ia puxar corda
Se é válido considerar que “uma imagem vale mais do que mil pa-
lavras”, a capa do LP Música das Ruas de Dionorina (Stalo Discos,
1994) endossa esta máxima, dada a sua contextualidade. Para além
do valor estético, a capa – cartão de visitas de uma obra fonográfica –
demonstra um uso político do produto fonográfico para expressar sua
leitura situada dos movimentos negros urbanos. Ao centro, repousa a
imagem da face do artista e seus longos (e conhecidos) dreadlocks 122,
num contraste de preto e branco (uma espécie de fotolito) e em uma
combinação estilizada com a imagem de uma cobra coral, em cores
vivas que é a própria extensão do seu cabelo. A leitura iconográfica de
Pedro Kraff, bem recebida pelo artista, remonta à memória das lutas
contra as desigualdades sociorraciais, nas mais diversas instâncias da
sociedade feirense, mais notadamente na micareta.
COBRA CORAL
(Jorge de Angélica, 1998)
O negro do Pomba quando sai da Rua Nova
Ele traz na cinta uma cobra coral
É uma cobra coral
É uma cobra coral123
BAHIA NEGRA
(Jorge de Angélica)
Oh Oh Oh Bahia Negra
A luz da alvorada te deseja
Oh Bahia Mãe
Eu esse ano
“Quando a gente chegou lá pra fazer o orçamento, a gente nem entramos. Ela nos
atendeu [pelo lado de fora] fechou a grade lá, abriu outra, trancou... Recebeu a
gente assim fora, meio sestrosa... Dois negão, rasta... Ela subestimou a gente”.
76
SANSONE, 2004, p. 100. Ver também: SANSONE, 2000.
77
Desta autora ver: Desconstruíndo a Discriminação do Negro no Livro
Didático. Salvador, EDUFBA, 2001. Não nos esqueçamos que a altera-
ção na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, provocada pela
lei 10.639/1997 e novamente modificada em maio de 2008, resulta de
intensas mobilizações para reparar, a partir da educação e dos materiais
didáticos, esta dívida histórica.
78
Ver o interessante documentário de Joel Zito de Araújo A Negação do
Brasil: O Negro na Teledramaturgia Brasileira, além da publicação em
formato de livro com título homônimo.
79
Como lembrou Antonio Godi em uma homenagem póstuma ao poeta
e militante precursor do movimento negritud, Aimé Cesáire : “Abril vai e
Aimé fica”. Jornal A Tarde. Salvador, 24/05/08.
80
In: VIEIRA FILHO, 1997, p. 45.
81
Livro de Entrada e Saída de Passageiros do Porto de Salvador (1896-
1897). In: SANSONE & TELES (orgs.), 1997, p. 47.
82
Ver as análises de Raphael Vieira Filho sobre os jornais da época no
artigo já citado (2007, pp. 48-49).
83
“Salloma” Salomão (2000, p. 80) destaca a interessante conexão entre
as imagens sobre a África (a partir do Egito), presentes em inúmeras can-
ções, com a conhecida tese (de doutoramento) de Cheik Anta Diop que
também “recupera” as relações do Egito com os povos africanos.
84
SOUZA JÚNIOR, 2008, pp. 21-22. Sobre o impacto desse primeiro
desfile na imprensa baiana ver SILVA, Jônatas C. da. História de Lu-
tas Negras: Memória do Surgimento do Movimento Negro na Bahia. In:
REIS, João José (org.). Escravidão e Invenção da Liberdade. São Paulo:
Brasiliense, 1988, pp. 275-288.
NE, Lívio & SANTOS, Jocélio Teles dos (orgs.). Ritmos em Trânsito:
Sócio-Antropologia da Música Baiana. São Paulo, Salvador: Dynamis
Editorial, Programa A Cor da Bahia e Projeto S.A.M.BA, 1997.
97
Muzenza. Muzenza do Reggae. Continental, 1988.
98
Ibid.
99
Ibid.
100
Gostaria de lembrar, em tempo, que as canções que são apresentadas pe-
las entidades carnavalescas em Salvador são apreciadas ao longo dos meses
que antecedem a festa momesca nas “quadras” onde os blocos ensaiam:
o Malê Debalê, sediado nas imediações do Parque Lagoa do Abaeté, no
bairro de Itapuã; o Olodum, na conhecida terça da Benção; no Pelourinho e
o Ilê Aiyê, no Curuzu, coração do imenso bairro da Liberdade. Foi fundada,
nos últimos anos, a “Senzala do Barro Preto” que comporta um complexo
de atividades socioeducativas, além do espaço destinado aos shows. A partir
das primeiras gravações em LP das canções destes blocos, o rádio e o mer-
cado de discos passam a ser mais um espaço de disputa pela visibilidade (e
auditibilidade) das canções e, obviamente, da divulgação das entidades.
101
In: RODRIGUES & MENDES (orgs.), 2005.
102
Palavras do Reverendo James Morris Webb, de Chicago proferidas
por Marcus Garvey numa igreja de Kingston em 1927, segundo WHITE,
1999 (citado por ALBUQUERQUE, 1997).
103
Trecho da canção citada In: RODRIGUES & MENDES (orgs),
2005, p. 279.
104
Cf. GODI, 2001.
OS ANOS 90 E O VERÃO
DO REGGAE BAIANO
Eu quero um Reggae
Que me leve ao paraíso, eu quero
Eu quero um Reggae
Que me traga uma nova ordem eu quero
Eu quero um Reggae
Como ponto de partida
Eu quero um Reggae
Trecho da canção Novo Reggae de Paulinho Ganaê e J. Magalhães
Se o lance tá na cor
A coisa é essa,
Sinta Reggae, Reggae, Reggae
Se o lance tá na cor
A coisa é essa, é essa, é essa:
Cantando e reggando
Pra quem quiser ver...
Sinta e Kaya, gravada por Sine Calmon e Morrão Fumegante, 1997
Se, ao longo dos anos 80, a sociedade baiana, e brasileira, interagiu
com a presença gradativa da música reggae, pelas rádios, TV ou através
dos discursos e estética dos blocos afro, é sem dúvida no intervalo de dé-
cada entre 1988 a 1998 que o estilo ganha sua definitiva “consagração”
no ambiente sociocultural e no mercado fonográfico. Seja pelo uso de
novas técnicas de gravação que registraram, por exemplo, o Muzenza,
em 1988, e outras gravações do samba-reggae, então “aprisionado” nos
estúdios WR em Salvador, seja pela proliferação de bandas que arrisca-
vam seus próprios vôos no ritmo afro-jamaicano.
Para além desse dado, em cada esquina, beco ou bar das cidades na
Bahia – particularmente Salvador, Feira de Santana e Cachoeira – se
podia escutar, a qualquer momento, a pulsação grave do som jamaicano
em coletâneas comercializadas pelos camelôs, contendo compilações dos
principais representantes do estilo. Em outros cantos, os gritos de “fogo
na Babilônia”, entoados por homens e mulheres de todas as idades im-
punham um novo sentido de territorialidade que despertou o desagrado
dos segmentos mais conservadores da elite baiana. Entre processos e
batidas policiais, o reggae se colocava como uma alternativa vivaz da
música negra na Bahia, como se confirmou, entre outros elementos, pela
explosão da canção “Nayambing Blues”, de Sine Calmon e Morrão Fu-
megante no carnaval de 1998. A este momento de efervescência socio-
cultural-musical, chamo de “Verão do Reggae Baiano”. Estes e outros
enredos serão particularmente alvo deste capítulo.
SISTEMA DO VAMPIRO
(Edson Gomes, 1988)
Esse sistema é um vampiro
Ah! O sistema é um vampiro
Esse sistema é um vampiro
Todo povo ficou aflito
Esse sistema é um vampiro
Ah! O sistema é um vampiro
Vive sugando todo povo
Vem cá, meu Deus, desça de novo
Edson Gomes & Banda Cão de Raça, assim como tantos outros intelectuais
da época, assumiram uma posição explícita diante do contexto de 1988. Para
além de ser o ano das “comemorações” do centenário da abolição formal da
escravidão no Brasil, foi um momento de grandes debates sobre a organização
do estado civil e seus instrumentos legais de garantia de direitos. As militâncias
negras urbanas se insurgiam, levantando a necessidade de reconhecer a im-
portância dos negros para a construção do país e a necessidade de reparar as
dívidas históricas com essas populações, bem como estimular novas produções
historiográficas nesta direção (SILVA, 2000c). Na faixa “História do Brasil”,
constrói-se uma interpretação histórica crítica do marco da colonização.
ABOLIÇÃO
(Lazzo e Capinam, 1988)
Abolição!
Abolição, a lição do meu avô
Que casou com minha avó
E que pariu a minha mãe
E com meu pai
Com meu pai fazendo amor
Fez do prazer a flor da dor
A beleza negra que eu sou
Acabar com a tristeza
Com a pobreza e o apartheid
Não fazer da humanidade, a metade da metade
Parte branca e parte negra
Abolição!
Abolir essa careta
Que esconde a natureza
E que me faz ser teu irmão
E a lição, a lição do meu avô
Foi ser dono do meu ser
Foi saber o que eu sou
A lição da liberdade
Da verdade de zumbi (Zumbi meu pai!)
Lá da Serra da Barriga
Da barriga onde eu nasci
Abolindo a velha intriga
Guerreando pra sorrir134
LAMENTO
(Lazzo e Gileno Félix, 1988)
Meu Deus, até quando a gente vai poder suportar
Uma falsa igualdade em que é sutil mentir
E não nos conceder o direito
Meu deus quanto tempo a gente vai ter que esperar
Uma longa avenida livre de todos preconceitos
Se em cada esquina há um estranho olhar
Discriminador acusando um suspeito
Eu não!
Meu deus quanto tempo a gente vai ter que esperar
Pra doce raça humana ter iguais direitos?
Será que eles não sabem
Que a chuva que cai do céu
Não escolhe
Vem e molha todos nós
E que o povo há de fazer
Seu próprio mandamento
E o tempo há de sentir
O que vem do firmamento
E a cada sol nascer
Nascerá sempre um novo movimento
Nascerá!
Salve o deus da música
CAPTURADOS
(Edson Gomes, 1990)
Somos filhos dos escravos
Não temos vergonha de assumir
Somos filhos dos capturados
Não temos vergonha de admitir
Somos filhos dos escravos
Estamos afins
De tirar essa máscara
Revelando a história
De um povo roubado, adulterado
E negado a ser feliz
Um povo castrado, lesionado
E negado a ser feliz
Somos filhos dos escravos
Estamos afins
De arrancar essa máscara
Revelando a história
De um povo que habita
FATO CONSUMADO
(Edson Gomes, 1995)
Toda miséria que o povo passa
Quem vai pagar?
Toda essa fome que o povo passa
Quem vai pagar?
Por todo esse sangue derramado
Nas pedras do Pelô
De cada homem chicoteado
Nas pedras do Pelô [...]
LUCAS DA FEIRA
(Gilsam, 2002)
Que pode um homem e o sistema vil
Que pariu a besta e a opressão
Quem viu
A estrela da redenção
Nos olhos da noite contra o açoite
Um homem vil
Quem viu
Como tantos outros homens
A estrada que se abriu
Para conduzir sua gente
ADÃO NEGRO
(Arthur Cardoso, 1998)
Apartheid disfarçado todo dia
Quando me olho não me vejo na TV
Quando me vejo estou sempre na cozinha
Ou na favela submissa ao poder
Já fui mucama
Mas agora sou neguinha
Minha pretinha, nós gostamos de você
IDENTIDADE
(Jorge França, 2003)
Ei, meu irmão negro!
Não tenha medo de ser você
Não renegue a sua cor
Ela te acompanhará onde você for
Ela faz parte da sua identidade
Assuma, enfrente a sua verdade [...]
Nunca acredite em que diz que você não é belo
Mas pregue a paz entre o branco, o negro, o vermelho e o amarelo
E lute contra a discriminação
Esse é o seu destino, vamos lá meu irmão...146
Para esse diretor, houve um “cansaço” com relação a axé music, promovi-
do pela falta de qualidade das músicas dos blocos de trio que, com raras exce-
ções, englobam conotações racistas, como na música da banda Tiete Vips que
diz: “a ti ba ba, a ti be be, nego nagô fede mais do que sariguê”. No entanto,
o reggae não vem para competir, mas para ocupar seu espaço no carnaval de
Salvador como forma de manifestação qualitativa do povo negro.
PORRADA DE POLÍCIA
CAMELÔ
(Edson Gomes, 1997)
Sou camelô
Sou do mercado informal
Com minha guia sou
Profissional
Sou bom rapaz
Só não tenho tradição
Em contrapartida sou de boa família
Olha doutor
Podemos rever a situação
Pare a polícia
Ela não é a solução não
Não sou ninguém
Nem tenho pra quem apelar
Só tenho meu bem
Que também
Não é ninguém
Quando a polícia cai em cima de mim
Até parece que sou fera
Até parece...
PORRADA DE POLÍCIA
(Dionorina/Jorge Magalhães, 1994)
É no fundo da fome
Que a boca lambe a mesa farta de pavor
É na fome e na dor
Como porrada de polícia
Quem mora no morro
GANGUE
(Jorge de Angélica, 1998)
Gangue perseguindo gangue...
Morros e favelas
Pega fogo, corre sangue
Com essa briga de gangue
Gangue perseguindo gangue...
Inocentes não tem nada a ver
É quem vai pagar
É quem vai morrer
A publicação tinha
como marca o engaja-
mento político-cultu-
ral de editores, auto-
res e colaboradores.
126
Cf. entrevista de Sr. Carmelito (14/12/2006).
127
Refiro-me a este termo, seguindo a classificação de Santos (2001) para
quem há inúmeras manifestações do ser regueiro em Salvador. Em linhas
gerais, pode-se considerar que tanto frequentador@s dos shows quanto o
transeunte urbano, o qual deambula ostentando suas marcas de identifi-
cação étnica – como as dreadlocks e outros tantos sinais – eram, e ainda
são, alvo de discriminação sociorracial. Define assim, portanto, além do
ouvinte e admirador da música reggae, o público que freqüenta os shows,
os músicos e mesmo os menos sintonizados com a mensagem rastafári.
Sem dúvida, esta é uma questão que desperta bastante polêmica entre os
colecionadores, músicos ou ouvintes mais ligados, de maneira militante, à
circulação e divulgação do reggae na Bahia.
128
O excelente comentário de Patrícia Pinho sobre este conceito é digno
de referência. Para a autora, o estudo das relações negras transnacionais
deve considerar “os elementos de continuidade e ruptura em relação às
hierarquias modernas de poder, riqueza, valorização e reconhecimento”,
o que torna possível a cidades como Salvador emergirem como cen-
tros radiadores de elementos da cultura negra, “expandindo o mapa do
Atlântico Negro” e perturbando a colonialidade do poder, traço que a
confirma como “cidade mundial” (PINHO, 2004, p. 57).
129
“A Bahia virou Jamaica”, Folha de São Paulo, Ilustrada, 31/01/1988,
citado por GUERREIRO, 1997, pp. 97-113.
130
GIL, Gilberto. “Querem esvaziar os Festejos do Centenário da Aboli-
ção”. In: Jornal Feira Hoje, 13/01/1988.
131
Edson Gomes. Reggae Resistência. EMI-Odeon, 1988.
132
A rigor, outros artistas também fizeram uso desse conceito produzido
na diáspora, entre eles Paulinho Ganaê em seu CD independente gravado
em 1997, intitulado “Independência em Mente”. No encarte, as palavras
de Ganaê são: “da mesma forma que Zumbi é o eco de Ganga Zumba
DE JESUS A JAH
ADULTÉRIO
(Edson Gomes, 1990)
Rastafary
Se desligando desse sistema
E da coisa imunda que nos envenena
Cunha (ibid.) aponta ainda que, entre muitos jovens rastas de Sal-
vador, a interpretação acerca desses processos revelava um tipo carac-
NAUM JAH
(Ras Ciro Lima)
Naum Jah
O Senhor nos consolou
Naum Jah
Na batida do tambor
Foi o sangue de Jesus
Que lavou o meu tambor
Meu coração ele é um tambor
Que está batendo I
É um louvor
De Jesus à Jah
Rastafári I
Foi o Sangue de Jesus
Que lavou o meu tambor
158
Tambores utilizados originalmente nas celebrações Rastafári. O tam-
bor grave é o solista, enquanto os demais são responsáveis pelo ciclo
intermitente da batida que identifica a musicalidade rasta.
159
Sugiro audição da faixa “Somos Libertos” do álbum homônimo.
160
Selo Bola Music, 2006.
Manifestando e contaminando
Pelos fones nunca surdos
Microfones nunca mudos
Através das entidades sampleadas
Que dançam o absurdo
Do canteiro da galáxia nervosa
Falando para o ouvido do mundo:
Plugue-se, ligue-se
Vá longe... longe […]
Voyager, Nação Zumbi, 2005
Peço perdão por mais uma longa citação, mas não resisti reproduzi-la,
uma vez que entendo ser esta uma definição, no mínimo, coerente sobre
a importância da produção musical jamaicana e sua propagação no ter-
ceiro mundo, na segunda metade do século XX, alterando a geopolítica
da cultura. Mais que isso, sugere uma leitura da história da arte que situa
a inventividade da arte africana e dos seus descendentes na diáspora,
como paradigma alternativo à modernidade. Identifico-me ainda com a
percepção do(s) autor(es) quanto à importância do músico como artesão
dos conceitos e sujeito proeminente nas novas sociabilidades produzidas,
dentre outras questões, pela relação como o universo da música. Para
Vianna, os produtores do dub são filósofos, no sentido sugerido por De-
leuze e Guatarri, “sintetizadores de pensamentos” (ibid.).
161
Delay é o termo técnico usado para designar o retardo de sinais em cir-
cuitos eletrônicos, geralmente o atraso de som nas transmissões via satélite.
No meio musical, é um equipamento que possui como função provocar a
sensação de atraso do som emitido pelo instrumento musical em relação ao
tempo real de transmissão do sinal sonoro. Assim o usuário pode controlar o
tempo de atraso e a quantia de repetições do som após cada atraso. O uso
deste recurso acústico foi mundialmente popularizado pelos DJs jamaicanos
que proliferaram a cultura dub reverb, que, por sua vez é um efeito mecâni-
co-acústico produzido através de um equipamento que simula a passagem
do som como se refletido numa grande câmara, um ambiente de paredes
fechadas, que prolonga o tempo de audição de determinada frequência
sonora. Estes usos tecnológicos foram e são responsáveis por uma grande
mudança sensível na produção musical contemporânea, fazendo parte de
qualquer set de efeitos de músicos (instrumentistas ou DJs) em todo o mun-
do, bem como nos mais complexos equipamentos de sonorização.
162
Ver alguns exemplos nas obras de Augustus Pablo (as canções “East of
River Nile” gravadas em três versões no álbum homônimo) e King Tubby
(as canções “King Tubby’s Dub” e “Turnable Dub”, gravadas no álbum
Bring the Dub Come).
“A música reggae é o batimento cardíaco do povo. E tem uma coisa
163
boa: quando ela bate você não sente dor”. In: Catch a Fire, 1999 (Ví-
deo). Obra citada.
164
Entrevista com Clóvis Rabelo, 2006.
165
Decreto Municipal 5.817/2000. Ver GODI, A. J. V. S. “O Reggae Ra-
lando nos Oito”. Jornal A Tarde, Maio de 2008.
166
Parte importante do movimento inspirado no manguebeat, oriundo
de Olinda e Recife, este artista, que acompanha bandas como Nação
Zumbi, gravou seu próprio álbum entitulado “Vitrola Adubada” (2008),
além de atualmente gravar discos de inúmeros artistas ligados direta ou
indiretamente à música reggae no Brasil.
ENTREVISTAS
CARVALHO, Carmelito de. Entrevista concedida em 14/dez/2007. Entrevistado-
res: A. J. V. S. Godi, Clóvis Rabelo e Fabricio Mota. Salvador-Ba.
DIONORINA. Entrevista concedida em 24/nov/2007. Entrevistador: Fabricio
Mota. Feira de Santana-Ba.
DE ANGÉLICA, Jorge. Entrevista concedida em 02/08/2008. Entrevistador: Fa-
bricio Mota. Feira de Santana-Ba.
GOMES, Edson. Entrevista concedida em 2006. Salvador, Revista Musical On-line.
RABELO, Clóvis. Entrevista concedida em 14/nov/2006. Salvador-Ba. Entrevis-
tadores: A. J. V. S. Godi e Fabricio Mota.
DISCOGRÁFICAS
Adão Negro, Disco: Adão Negro, 1998-2000.
________, Disco: Só Diretoria. Independente, 1999.
________, Disco: Vence Tudo: Gravadora: Atração Musical, 2003.
________, Disco: Vence Tudo Ao Vivo. Gravadora: Atração Musical, 2005.
Banda Terceiro Mundo, Disco: Marley Vive. Gravadora: EMI Odeon, 1988.