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Fabricio Mota

GUERREIR@S DO
TERCEIRO MUNDO
IDENTIDADES NEGRAS NA
MÚSICA REGGAE DA BAHIA

1ª edição
Pinaúna Editora
Salvador 2012
© 2012 by Fabricio Mota
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios
empregados, sem a expressa autorização.

Editor
Gustavo Falcón
Editora-assistente e Curadora
Bárbara Falcón
Capa, Projeto Gráfico e Editoração
Lucas Kalil
Ilustração
Luiz Fernando Pereira da Silva
Produção Gráfica
Carolina Dantas
Revisão
Clara Vieira

Ficha catalográfica elaborada por Solange Mattos CRB5/758

M917 Mota, Fabricio.


Guerreir@s do terceiro mundo: identidades negras na música reggae / Fabricio
Mota. - Salvador: Pinaúna, 2012.
192 p. - (Sons da Bahia, v. 2).

ISBN 978-85-65792-02-8

1. Reggae – Bahia. 2. Negros – Bahia - Identidade racial. 3. Música e sociedade –


Bahia. I. Título. II. Série.

CDD – 781.646098142 – 20.ed.

O site oficial do projeto disponibiliza conteúdo inédito e versões digitais dos livros.
www.sonsdabahia.wordpress.com

Direitos desta edição reservados à Pinaúna Ideias Integradas Ltda., para distri-
buição gratuita.
(71) 3624-1048 l www.pinaunaeditora.com.br
Music is the weapon of the future.
Fela Kuti, anos 70

Luto apenas com a música.


Bob Marley, anos 80

Surge mais um guerreiro do Terceiro Mundo.


Levantando suas armas, com seu grito de alerta...
Edson Gomes, anos 90
Dedico este livro,

à vida, in memorian, de Jorge França (Camelo), Lino de Almeida, Rick


Husband, Rogério Fátima dos Santos, Pascoal Ferreira Mota (meu tio),
Clóvis Rabelo e Edmundo Franco: guerreiros do Terceiro Mundo!

ao meu filho João Lucas de oito anos que, assim como eu, também
está aprendendo a escrever... sobre as coisas da vida.
AGRADECIMENTOS

Nunca se vence uma guerra lutando sozinho.


Raul Seixas

O exercício de agradecer é tão gratificante quanto impreciso, sobretu-


do quando se tem uma lista imensa pela frente. Por isso, antes de tudo,
agradeço aos meus guias que, movendo harmoniosamente o universo,
me puseram aqui.

Reconheço que a publicação deste livro a um público agora maior


é, mais que um esforço acadêmico inacabado, um resultado da luta de
algumas gerações pelo acesso à dignidade pela via da educação. Nesse
sentido, agradeço imensamente aos familiares numerosos (tios, tias, pri-
mos, primas e anexos), mestres, amigos e amigas pelo incentivo, apoio e
orações que se somaram ao longo dessa jornada. Em especial a Francis-
co e Dionéia – literalmente “pai e mãe, ouro de mina” – a quem devo o
sopro de vida. Tive, graças a vocês, a oportunidade de ver a escola como
estrada para a dignidade e espaço de transformação e autoconhecimen-
to. Estendo meus cumprimentos ao meu irmão Leandro e sua família,
por toda força e exemplo de perseverança e luta por dias melhores. A
gratidão e amor que guardo por vocês jamais caberão nas dimensões da
palavra escrita!

Não há como não registrar ainda minha gratidão ao meu filho e ami-
go, João Lucas, que nunca me negou seu terno abraço, ainda que minha
falta pudesse lhe sugerir motivo. É por ele que estou aqui também!

À Tatiana Farias agradeço pelas doses intensas de afeto, amor, cari-


nho e coragem nessa caminhada. Seu apoio foi ainda fundamental des-
de a digitalização dos acervos de jornais em Feira de Santana, ao longo
de sua pesquisa de mestrado, às leituras do texto em suas primeiras,
intermediárias e últimas versões. Meus agradecimentos devem abraçar
ainda outro segmento da família em Feira de Santana – Sr. Iélio, Srª. Ani-
ta e Andréia – a quem devo enorme gratidão por todo apoio e incentivo
fundamentais à concretização deste e de outros sonhos. Fico muito feliz
de ter vocês em meu destino.

Aos amigos desde os tempos da república universitária: Samuel Mar-


ques (hoje compadre), Jefferson Sobrinho, Igor Santos, Igor Rocha (Go-
dzigor) in memorian, Felipe Costa, Nilton Araújo e Rogério Macêdo. Sem
dúvidas, os cinco anos de fraterna e (in)tensa convivência e as doses
diárias de Led Zeppelin, Jetrho Tull, Bob Marley & The Wailers, Novos
Baianos, Gilberto Gil e tantos outros, me ajudaram a amadurecer algu-
mas impressões sobre o universo dos sons.

À turma da UEFS, dos bons tempos da militância estudantil, hoje co-


legas de profissão e sonhos, meu sincero abraço de agradecimento pelas
noites (bem) perdidas! Pessoas como Hugo Damasceno, Fabrício (Reis),
Luciana e Vladimir Senna, Robério Souza, Ana Clara Brito, Reginilde
Santa Bárbara, Paloma Vanderlei, Neriane Pinto, Igor José, Íris Verena,
Edivânia Alexandre e toda uma lista numerosa da qual prefiro logo me
esquivar para evitar injustiças.

Entre os docentes da UEFS, minha sincera gratidão pelas aulas de


cidadania. Posso citar entre estes/as: Elizete da Silva, Rogério Fátima
(de quem sentirei saudades eternas!), João Rocha, André Uzêda, Acácia
Batista, Eurelino Coelho, Elói Barreto, Maria Aparecida Sanches, Marco
Barzano e tant@s outr@s... Para o amigo-mestre Antonio Godi, que me
deu a honra de escrever o prefácio deste livro, agradecer é ainda pouco
diante de todo aprendizado que a sua convivência me trouxe (desde os
tempos da graduação, diga-se). Espero que este estudo possa representar
mais uma parcela de minha gratidão e reconhecimento do seu trabalho.

Muitos outros são os guerreiros e guerreiras da música corresponsá-


veis pela concretização deste livro: Clóvis Rabelo (in memoriam), Arygil,
Jorge Papapá, Dionorina, Geraldo Cristal, Jorge Dubman, Inês Regina,
Everson Coutinho, Iuri Sá, Átila Santtana, Sine Calmon, Marco Oliveira,
Jorge de Angélica, Gilsam, Marcos Rubens, Osvaldo Filho, Kamaphew
Tawá, Zavan Liv, Ras Sidney Rocha e professor Raimundo. Especialmen-
te ao Sr. Carmelito Carvalho, exímio conhecedor da música reggae no
mundo, agradeço por toda a atenção e pelas boas conversas sobre nosso
tema de maior interesse.

Agradeço ainda a tod@s companheir@s da Associação Beneficente


Revolution Reggae e Centro de Promoção da Educação, Cultura e Cida-
dania (CEPECC) de Conceição do Coité-BA pelo aprendizado de novos
jeitos de caminhar. Se houver méritos neste trabalho, eles também são
devidos a vocês, pela inspiração! Estamos firmes nessa luta! À Valquíria
Lima, cuja presença sempre me trouxe as mais positivas vibrações, um
obrigado também especial. O convite para o projeto Reggae em Ação
(2005), suas leituras, revisões e sugestões ao texto final, além das trocas
musicais, todas foram também de enorme importância ao resultado que
se apresenta.

Ao professor “Salloma” Salomão sou grato pela luz no início do


túnel... Parte da inspiração para chegar até aqui devo ao seu precioso
trabalho de pesquisa que, sem dúvidas, marcou decisivamente meus in-
teresses pelas “memórias sonoras” negras nesse país. Além dele, esten-
do meus cumprimentos ao professor Carlos Benedito Silva (Carlão) da
UFMA e todos do Centro de Cultura Negra do Maranhão. Sinto-me feliz
em contribuir, de alguma maneira, com o conjunto de estudos sobre mú-
sica negra na diáspora cujo professor foi um dos pioneiros nesse país.

À professora-orientadora Angela Lühning sou profundamente grato,


para além dos muitos conhecimentos novos, pelo enriquecedor, compre-
ensivo e paciente acompanhamento acadêmico. Sou ainda imensamente
agradecido ao corpo de funcionários e docentes do Programa de Pós-
Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro) da UFBA pela
convivência nas aulas e escadarias do Centro de Estudos Afro-Orientais
(CEAO) com pessoas como Maria do Rosário, Cláudio Pereira, Florentina
Souza e Livio Sansone (co-orientador), que renderam parte considerável
das inquietações que se enunciam neste estudo.

Aos/às colegas do Pós-Afro, meu fraterno agradecimento. Foi um pra-


zer enorme compartilhar incertezas, angústias, anseios, outras experiên-
cias e projetos de vida com Ana Rita, Juscélio, Carlos Fernandes, Carlos
Ailton, Sueli Conceição, Genivaldo, Pietro, Florismar, Tatiana Reis, Ecyla,
Fábio, Valdélio, Rose, Bel (o Josivaldo), Marlon Marcos, Edmar, Liliam
Aquino, Artemisa Odila, Nadja, Fabiana além de Sueli Borges e Bárbara
Falcón – estas que agora dividem comigo a ansiosa missão de publicar os
primeiros volumes da série Sons da Bahia.

Devo ainda incluir, entre as pessoas abraçadas por estas palavras,


meus/minhas colegas do IFBA, Campus Simões Filho, a quem agradeço
pela promissora amizade e pelas vibrações positivas, ao lado do corpo
estudantil desta instituição, com quem tenho aprendido cotidianamente
novos jeitos de aprender, de resistir e de existir. Vocês nem imaginam o
quanto são corresponsáveis pela minha formação também!

Ao nobre amigo Matheus de Jesus, minha gratidão pela disposição e


mediação com as muitas falas do universo. Axé meu caro!

Sou ainda muito grato aos/às companheiros(as) de música espalha-


dos pelo mundo e que, ao longo desta mais de uma década, vêm com-
partilhando, através da arte dos sons, algumas utopias incendiárias!

Por fim, agradeço a CAPES/CNPQ pelo incentivo através da bolsa de


estudos que, literalmente, alimentou este pesquisador e a realização de
sua obra.

E pra você que não esqueci, “aquele abraço”...


PREFÁCIO
UM MOTE NA FÁBRICA DA HISTÓRIA MUSICAL
Escrever um prefácio para a obra de um companheiro das trincheiras cul-
turais desta contemporaneidade conflituosa e misteriosa é um desafio. Decidi
optar pela crônica de nosso tempo, que motivou a pesquisa acadêmica e a
canção ardente e analista do autor. Uma primeira crônica é passional, envol-
vendo personalidades de nosso tempo ligadas à história factual, popular e
política cultural das brumas de tempos a serem desvendados e revelados. Uma
segunda pegada volta-se para um olhar acadêmico e teórico, que vê a cultura
como um ingrediente humano determinante no alto capitalismo. É nesta linha
tênue e importante que o autor nos provoca, colocando na mesa reflexões
sobre conflitos sociais e históricos diferenciados. Apontando a música rasta-
reggae como um novo “movimento social”, político e comportamental.
É fato que, com a morte de Bob Marley (11/05/1981), nascimentos tantos
estariam a serem deflagrados e desvelados. Viaja o astro e fica sua obra bri-
lhando para sempre a nos iluminar. O insólito decifra-se na primeira capital
baiana e brasileira quando o astro recebe cidadania e batismo através da ins-
tituição do Dia do Reggae em Salvador. O registro de nascimento desse novo
soteropolitano consta no decreto municipal de número 5. 817/2000. Desde
então, Marley renasce em Salvador como cidadão soteropolitano e herói polí-
tico cultural de nossa diversidade. A questão é como que tudo se configura no
nosso aqui e história. Trata-se do “I Tributo a Bob Marley”, ocorrido em maio
de 1982, um ano depois da morte em vida eterna do astro.
Esta potencialidade baiana de partilhar a vida tendo em conta as diferen-
ças e diversidades culturais reconheceria a vocação brasileira de mostrar para
o mundo a necessidade da relação fraternal e humana. E aí, a morte de um
cometa musical, em 1981, glorifica um sentido novo de pertencimento espa-
cial e cultural, denominado Diáspora Africana. Blocos afro baianos, artistas e
intelectuais pertencentes e contaminados por esse contexto estético musical
criariam o “I Tributo a Bob Marley”. A Jamaica passaria a ser e estar também
aqui, como estaremos sempre para além de nós e das fronteiras babilônicas.
Esse é o refrão da obra em questão e rima.
Foi assim, em 1982, quando importantes militantes de representações
afropopulares, a exemplo de Raimundo Bujão e Gilberto Leal, entre tantos,
negociaram com intelectuais e artistas e criaram a matriz do “I Tributo a Bob
Marley”. Sentados no chão em uma das salas da casa do historiador João J.
Reis, a militância afrocultural, contando com a participação e anuência do
sociólogo Juca Ferreira (hoje ex-Ministro da Cultura), Antonio Godi (professor,
ator e antropólogo) e intelectuais outros. Hoje, 30 anos depois, é preciso re-
memorar e ofertar para as novas gerações essas conquistas. Nessas trincheiras
históricas, foi construído esse evento com algumas ações que efetivaram a pu-
blicação de um livreto com as primeiras versões para o português das canções
de Marley, com traduções de João Reis e Antonio Risério e capa desenhada
em nanquim por Antonio Godi. Ações determinantes marcadas por instala-
ções estético-musicais no Centro Histórico de Salvador, a culminar num show
dos representantes do reggae basilar do nosso Recôncavo. Foi assim que tudo
começou a se cristalizar e ganhar formas, e histórias de lutas culturais e sociais
inusitadas no cenário de Salvador e do Recôncavo baiano. A obra aqui apre-
sentada, penso, homenageia e propaga essas conquistas das novas trincheiras
culturais e políticas.
Estudos insipientes apontam a música como elemento de identidade e
agonia sociocultural. Teorias clássicas, a exemplo de M. Weber, T. Adorno e
outros tantos a avançar na alta modernidade, têm apontado para o estudo da
música nas tramas misteriosas de nossas sociabilidades. A música, com suas
asas elétricas num contexto inesperado, destronaria sentidos de tempo e espa-
ço configurando um sentido inesperado de “diáspora”. Sentidos e conheci-
mentos sociais do viver e devir a serem reconfigurados e estudados. A canção
de Fabricio Mota tece fios de nós num tempo novo gritando pela velha e sa-
grada subjetividade de nós. Novas lutas de “movimentos sociais” movidas por
ritmos a serem compreendidos e desvelados. O mote do autor “tá na pegada”
de uma Bahia que guarda uma tradição tardia e recente de proporcionar o
difícil encontro da diversidade humana através da música.
Mas que também construiu uma epistemologia contemporânea tendo
como protagonistas estudiosos da estirpe de Milton Santos e uma antropologia
vigorosa refletindo sobre o difícil encontro histórico dos diferentes. O estudo
de Mota é desdobramento de uma academia baiana e brasileira que refletiu
sobre as culturas e suas agonias. As agonias do autor escutam os conflitos
contemporâneos de constituições de identidade com base em memórias e so-
noridades contaminantes. Esse LP de nós reverbera-se no aqui a reivindicar a
importância de uma geografia, sociologia e antropologia na Bahia, que grita
por revelar-se em música reggae. É um novo disco antropológico no ritmo dos
novos autores, dos protagonistas da “Escola de Estudos Culturais” que têm,
como compositores, Stuart Hall, Paul Gilroy e tantos outros. Tratam-se de fitas
coloridas mescladas e musicadas pronta a serem rediscutidas...

Antonio Jorge Victor dos Santos Godi


Ator. Antropólogo. Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana.
SUMÁRIO

LADO A

APRESENTAÇÃO, 15

FAIXA 1: “SURGE MAIS UM GUERREIRO DO TERCEIRO MUNDO”, 35


UMA QUESTÃO DE IDENTIDADE: A MÚSICA REMODELANDO
A PERTENÇA, 45
VIRANDO JAMAICA, 51
A BABILÔNIA DO SERTÃO E SUAS CHAMAS, 65
NAS MARGENS DO PARAGUAÇU, 69

FAIXA 2: “ÁFRICA A LA JAMAICA, MÚSICA DA RAÇA”, 83


OS GUERRILHEIROS DA JAMAICA VÃO ATACAR, 90
A ÁFRICA NO ATLÂNTICO NEGRO: OUTROS DIÁLOGOS, 103
DE BEDUÍNOS A MALÊS, 113

LADO B

FAIXA 3: OS ANOS 90 E O VERÃO DO REGGAE BAIANO, 127


1988: O ANO QUE NÃO TERMINOU, 130
QUEIMANDO TUDO COM A FOLHA DO REGGAE, 147
PORRADA DE POLÍCIA, 150

FAIXA 4 (INTERLUDE): DE JESUS A JAH, 165

FAIXA 5 (DUB VERSION): QUEM NÃO GOSTA DE REGGAE, BOM


SUJEITO NÃO É, 173

REFERÊNCIAS, 183
APRESENTAÇÃO

Sonhei e fui...
Mar de cristal,
Sol água e sal,
Meu ancestral.
E eu tão singular me vi plural
Trecho da canção Sonhei, de Lenine, Bráulio Tavares e Ivan Santos

A história e prática da música negra apontam para outras possibilidades


e geram outros modelos plausíveis [...], utilizo a analogia da música por-
que você pode viajar pelo mundo inteiro e ela ainda é negra.
Tony Morrison, citada por Paul Gilroy, 2001

O presente livro é uma impressão sobre as andanças da música. Mais es-


pecialmente, sobre uma das trilhas sonoras mais expressivas do século XX
e sua reverberação no universo sociocultural baiano: o reggae. Urdido nas
favelas urbanas de Kingston (capital da Jamaica) nos anos 60, este foi um dos
principais meios de denúncia e combate contra a exclusão social e a invisibi-
lidade dos negros, que se mundializou reassumindo novas leituras sonoras
e referenciais de identidade. Visto aqui como uma contracultura musical, foi
responsável por conectar diferentes grupos “nacionais” que engendraram, de
maneiras singulares, uma visão de mundo multicentrada do pertencimento
negro, representando um exemplo genuíno de “estilo étnico de status global”
(Cf. Gilroy, 2001).

Falar em reggae nos remete a pensar no contexto social onde esse gênero
musical se constituiu primeiramente. O país atualmente chamado Jamaica é
uma das maiores ilhas do Caribe que faziam parte da engrenagem do mundo
colonial no Atlântico a partir do século XIV. Antiga colônia espanhola, mas
com forte presença de civilizações indígenas, particularmente os Taino (cha-
mados pejorativamente de Arawakes – comedores de carne – pelos coloniza-
dores), esse território foi aos poucos sendo violentamente ocupado e teve estas

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populações nativas progressivamente dizimadas. A partir de meados do século
XVII, inicia-se um período de dominação colonial inglesa que se estenderia até
1962. Estes últimos fortaleceram o regime escravista vigente, incrementando-o
com a plantation açucareira, o que gerou intensos conflitos sociais ao longo de
toda a sua história, inclusive com a formação de comunidades de refugiados
da escravidão conhecidas como Cimaroons (ou Cimarrones) que, analoga-
mente, se assemelham às formações de quilombos do Brasil1.

Já em meados dos anos 60, a sociedade jamaicana passava pelo pro-


cesso de reestruturação nacional e vivenciava grandes mudanças em seu
cenário sociocultural que podem ser resumidas em dois planos paralela-
mente. Primeiro, a presença das bigbands de jazz e do frenético ska, res-
ponsáveis pela formação de grandes plateias de jovens desde os anos 50,
iam aos poucos dando lugar a uma formação mais compacta (no time de
músicos) que trazia uma sonoridade mais ralentada e um estilo de tocar
mais centrado nos contrapontos de guitarra e piano, acompanhados de
mântricas linhas de baixo e um estilo pulsante de tocar bateria: o rockste-
ady, representado por artistas como Ernest Ranglin, Lynn Taiti & The Jets,
Sly e Robbie, Judy Mowatt Rita Marley e outras/os, que proporcionaram
um momento de efervescência criativa na história da música jamaicana2.
Segundo, de outro lado, o contexto de extrema pobreza e exclusão im-
pulsionou a popularização da música nas classes ainda menos abastadas
e subjugadas à violência. Num misto de engenhosidade técnica e genia-
lidade musical, os resultados das gravações de estúdio eram aos poucos
levados ao grande público através de sistemas de som ambulantes que
operavam como rádios tocadas a céu aberto. Os sound systems eram
então um novo espaço de fruição musical, onde o engenheiro de som
interagia com as gravações tocadas ao vivo, acrescentando-lhes efeitos
sonoros ou mesmo alterando a ordem dos instrumentos, ao passo que
os cantores (toasters) criavam um diálogo com o público improvisando
letras e recriando as canções a cada aparição. Este fenômeno é a porta
de entrada para uma das grandes revoluções musicais legadas pela mú-
sica jamaicana ao mundo: o dub3. Em suma, a forte influência da música
jamaicana, redefiniu o panorama cultural de quase todos os continentes
sob um signo sonoro que conhecemos como reggae e sobre o qual trago
algumas reflexões.

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Na Bahia das últimas décadas do século XX, este gênero musical compôs
a cena plural dos movimentos políticos e culturais, em consonância com o
posicionamento das militâncias negras. Tornou-se então imprescindível para
a compreensão da ressonância nacional e mundial da musicalidade4 reggae –
uma das mais emblemáticas expressões da música negra na diáspora – inves-
tigar sua existência idiossincrática na Bahia. Convergindo para esta direção,
analiso a presença estético-musical e sociocultural do gênero, e sua interface
com os processos de legitimação de uma cultura negra, a partir de novos refe-
renciais de identidade.

Por isso, advirto, que as linhas que seguirão são um esforço acadêmico de
um certo autor-sujeito, que vivenciou e se relacionou/relaciona com o univer-
so musical abordado. Considero importante salientar esse dado, pois acredito
que no debate sobre a questão das identidades nossos “lugares” são impres-
cindíveis à construção de nossas intervenções e discursos. Para tanto, imagino
que entrecruzar minha história de vida ao trabalho de pesquisa no texto que
se apresenta pode ser uma forma de traduzir, inicialmente, minha relação com
este terreno musical.

Literalmente, nasci e tenho crescido sob influência do mundo da música e


seus mais fiéis representantes, dentre os quais, destaco o compositor, músico
e cantor baiano Gilberto Gil. Os discos de vinil, as fitas K7 e outras referências
desse artista em particular, sempre tiveram presença nas estantes de minha in-
fância. Mais do que isso, escuto, desde criança, que minha chegada ao mundo
foi embalada por uma de suas músicas mais tocadas nos anos 80. Pelo menos
uma vez ao ano, minha mãe, Dionéia (e sei que não se importará com a
ausência do título “Dona”) e outros familiares me relatavam um episódio que
pode ilustrar bem essa relação. Era abril de 1980, aos nove meses de gestação
do seu primogênito, ela esperava mais um tedioso domingo passar, quando
percebeu as contrações que anunciavam o rebento. Atônita, ela e meu pai
partiriam em busca de ajuda na vizinhança para que, às pressas, pudesse ser
acolhida na maternidade mais próxima. Na então deserta rua “C”, do bairro
de Mussurunga I (àquela época, recém fundado pela URBIS), em Salvador-
BA, a oportunidade de “socorro” ficava à mercê da sorte ou de algum dos
poucos vizinhos que possuísse um automóvel e se dispusesse a atendê-la. Pela
lembrança de minha mãe, um senhor da vizinhança de nome “Pedro” apon-

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tou na Rua com seu Chevrolet carregado de instrumentos musicais que ha-
viam animado um evento dominical. Apesar da sobrecarga no veículo, ele se
habilitou a prestar solidariedade, desviando o caminho de casa e conduzindo
a gestante e seu marido, em meio aos muitos “tambores, repiques e ataba-
ques” – assim lembra minha mãe sempre aos risos – até a maternidade, que
ficava a cerca de 17 km.

Recorda ainda que, tendo desembarcando no hospital, em meio às con-


trações, foi conduzida para o atendimento médico e estava visivelmente in-
tranquila, o que tornaria sua “hora” um pouco mais difícil. O auxiliar médico
que conduziu os preparativos do parto insistiu repetidas vezes por sua tranqui-
lidade, pedido que não contava com uma resposta positiva. Pelo contrário,
tomada pela dor, expectativa, ansiedade, perda de líquido – e tantos outros
sentimentos que sou incapaz de mensurar – ela se esvaiu em lágrimas. Já na
sala do parto, ouviu novos pedidos de calma e tranquilidade. Todos em vão!
Diante da situação, um dos membros da equipe médica, começou a cantar
para ela (e o bebê) uma de suas melodias prediletas:

“não, não chore mais...


menina não chore assim.
não, não chore mais...”

A atitude a tocou com tamanha precisão que a tensão deu lugar à sere-
nidade. A melodia vocal lhes trouxe o conforto necessário para que aquele
ritual de vida se concretizasse. Para ela (minha mãe), aquele refrão de Marley,
revisitado por Gil, é minha canção de chegada neste mundo. Para mim, esta
história que já ouvi repetidas vezes, é hoje muito mais simbólica e pode ajudar
não só a me entender, como ainda algumas questões ilustrativas da relação-
mediação da música no cotidiano das pessoas. Durante muito tempo, insisti
em tratar esta narrativa de minha origem como uma grande coincidência e/ou
gesto de carinho materno. Nos últimos anos, tenho repensado bastante esta
posição. Precisamente, ela nos serve agora como ponto de partida para uma
reflexão mais apurada sobre o impacto das musicalidades negras na sociedade
brasileira das últimas décadas, mais especialmente na Bahia.

Este livro é, portanto, expressamente uma tentativa de compreender al-


gumas dimensões dessa relação. Essa passagem, além de tudo, retrata ainda

18 l Fabricio Mota
que, de modo pouco convencional, o impacto e a popularidade da versão
em português gravada por Gilberto Gil de “No Woman, No Cry” (autoria de
Vicent Ford), imortalizada por Bob Marley & The Wailers. A sintonia do artista
brasileiro com a música afro-jamaicana demonstrava uma posição em comum
com outros músicos e intérpretes do período, que identificavam nessas trilhas
sonoras da música negra transnacional, novos referenciais identitários para
problematizar sua própria história. Esta leitura musical, ainda que sublime, é
um indício da posição de um artista negro diante da possível (re)construção de
um país recrudescido pelas desigualdades sociorraciais (SILVA, 2000).

Nesse sentido, a postura do profissional médico, que cantou para tranqui-


lizar as dores de um parto, reforça a presença da música na tradução das rela-
ções e conflitos do seu tempo. A releitura apropriada de Gil traduzia bem a an-
gústia de um país que vivia sob as dores de uma transição “lenta e gradual”5.
Naquela conjuntura, chorar não era mais preciso, pois a dor haveria de dar
lugar a novos tempos, como ansiavam muitos movimentos sociais.

Além disso, a alusão a um parto serve aqui como metáfora para evidenciar
que a produção-gestação deste estudo foi sem dúvida uma espécie de “parto
intelectual” seja pela dor, seja pelo rito de passagem, seja pela esperança no
fruto que se anuncia – agora em dose dupla já que o primeiro resultado des-
te exercício culminou na dissertação de mestrado defendida pelo Programa
Multidisciplinar de Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro), da Universidade
Federal da Bahia, sediado no Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), sob
orientação da etnomusicóloga e professora Angela Lühning6 – que aqui se
apresenta publicado em formato de livro.

Lembrando ainda da minha adolescência, tive entre meus familiares al-


guns ouvintes do reggae. Nas muitas vezes que estive com Carlos Feitosa (ou
simplesmente Tio Feitosa) em sua casa, na cidade de Valença, no baixo-sul
da Bahia, terra natal da porção materna de minha família, ouvíamos muitos
discos de Jimmy Cliff, Alpha Blondy e, sobretudo, Edson Gomes por quem
guardávamos uma admiração enorme, seja pela qualidade do seu trabalho,
seja pelo fato de ser “prata da casa” e, logo, trazer em suas canções os pro-
blemas de nosso tempo. Recordo-me ainda, com humor, do meu tio paterno
Pascoal Mota, que sempre me apresentava alguns cassetes com gravações de
Edson Gomes. Nas palavras dele, o reggae era a “música que fala a verdade!”,

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 19


referindo-se ao conteúdo crítico-social abordado nas letras. Essa imagem me
marcou profundamente, pois, de fato, as tais “verdades” também me causa-
ram a inquietação necessária para estar aqui.

Imagino que meu gosto pela música foi também fortemente influenciado
pelo contato com o rádio, com os muitos discos de vinil que tínhamos em casa
e com a imagem dos músicos que apareciam na TV (e sempre vibrei com as
aparições de Gilberto Gil!). Paralelo a isto, é importante destacar minha aten-
ção aos grupos de percussão (leia-se samba-reggae) que brotavam nos muitos
bairros de Salvador7. A rigor, interessava-me bastante pela possibilidade de
aprender a tocar um instrumento e compreender os princípios de organização
que transformavam ideias, sensações, impressões sobre a sociedade em algo
tão sinestésico como a canção.

Esta inquietude não me levaria a outro caminho senão o de buscar produ-


zir meus próprios sons. E, assim, entrei para o “ramo”, como muitos jovens da
minha geração, pelas bandas de garagem, tentando tocar os chamados covers
de clássicos da música rock de projeção transnacional e da música afropop em
destaque naqueles anos 90, como o reggae, que, por conseguinte, foi um dos
meus primeiros repertórios. Minha opção pelo baixo elétrico deveu-se ao in-
teresse de ingressar em algumas das tantas bandas de rock e reggae fundadas
entre 1996-97, no bairro de Mussurunga, em Salvador. Não por coincidência,
aquela era uma conjuntura de muita visibilidade para esses estilos transnacio-
nais na Bahia. Do ponto de vista do reggae baiano, esse intervalo de tempo
se constitui em um momento crucial de afirmação desses estilos musicais no
universo sociocultural de muitas cidades do estado da Bahia, como será apre-
sentado mais à frente.

O convívio com a música como entretenimento e, mais tarde, como opção


profissional foi se tornando uma realidade desde então. Aos poucos, o gosto
pelo som foi sendo complementado pelo interesse nas trajetórias das bandas
e artistas de minha preferência, em escutar os álbuns com maior atenção, em
identificar a ficha técnica dos discos. Enfim, passei a enxergar a música como
algo que tem uma conexão profunda com a realidade ao seu próprio redor.
Em fins dos anos 90, paralelo com o meu ingresso na universidade para o cur-
so de graduação em História, fui tendo acesso a novos olhares sobre a arte dos
sons. O acesso à investigação científica, nessa área específica, não aconteceu

20 l Fabricio Mota
propriamente na graduação. Encontrava ali alguns poucos canais de interlo-
cução que me proporcionassem maiores vôos na área da pesquisa acadêmica
sobre a música, dado que não inviabilizou que se iniciassem algumas leituras
que, mais à frente, seriam bastante produtivas ao estudo da ciência histórica
a partir da música.

Minhas válvulas de escape, no entanto, eram as bandas alternativas e os


eventos artístico-culturais promovidos pelo movimento estudantil. As muitas
experiências que fizeram/fazem parte de minha formação no mundo da mú-
sica me auxiliaram (e ainda auxiliam) na construção de um olhar e ouvir mais
atento às dimensões sociais que estão impressas nos conteúdos e discursos
musicais.

Dos experimentos sonoros da infância à brincadeira com o baixo8 do pre-


sente, tenho percebido que a produção de música é fundamental nos pro-
cessos de autocompreensão dos sujeitos (e me incluo neste contingente). O
presente trabalho é, portanto, uma interface acadêmico-investigativa desta
interpretação e, por isso, trata-se de uma visão particular e situada de um uni-
verso de fontes que foram escolhidas para reflexão, haja vista que todo registro
musical é passível das mais diversas leituras.

Entre a conclusão do curso (2004.2) e o ingresso no Pós-Afro (2006.1),


atuava como professor de História em escolas da rede pública e privada de
Salvador, além de programas de “capacitação” (ainda não me conformo com
esse rótulo...) de jovens e adultos, educação não formal e outras experiências
na área de educação. Paralelamente, aproveitava para alimentar algumas lei-
turas sobre música, indústria cultural, História da África, bem como ocupar-me
com o ofício de músico baixista (que felizmente não abandonei!).

No início de 2005, cursei, como aluno especial, a disciplina “Trabalhado-


res, Formação de Classe e Etnia” ministrada pela Profª. Drª. Cecília Velasco
e Cruz, que surtiu, para mim, particularmente, um efeito de transição do uni-
verso de pesquisa sobre os trabalhadores ferroviários do início do século XX
(temática herdada da iniciação científica) à leitura das relações sociais sobre
o prisma de questões como “racialização”, “identidade étnica” e cultura. Foi
naquela ocasião que li, com “outros olhos”, Kwame Appiah e Amy Guttman
(misunderstood conections!) e ainda pude rever alguns clássicos da antropolo-

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 21


gia. Em suma, aquela experiência foi interessante, pois saí da disciplina provo-
cado a desenvolver uma temática que se aproximasse de minha experiência
de vida, além de estimulado a encarar a face acadêmica do debate sobre as
relações/desigualdades raciais com mais profundidade.

Foi exatamente em 2005 que recebi a proposta que mudaria definitiva-


mente meus caminhos. A convite da amiga-professora Valquíria Lima e do
Centro de Promoção da Educação, Cultura e Cidadania (CPECC), em parce-
ria com a Associação Cultural Beneficente Revolution Reggae, ambas entida-
des da cidade de Conceição do Coité-BA, fui ministrar o módulo de abertura
do Projeto de Formação de Lideranças Negras, Reggae em Ação (realizado
entre 2005 e 2007). Esta ação foi e tem sido responsável pela descriminali-
zação do reggae (e seus protagonistas) naquela cidade, haja vista a ameaça
eminente das batidas policiais e dos grupos de extermínio que faziam, à época,
um número considerável de vítimas sob a alegação de serem “confundidos”
com marginais.

Objetivamente, o convite era direcionado ao mini-curso intitulado “Me-


mória Musical e Identidade Negra”, que deveria trazer um debate sobre a im-
portância da música na construção da identidade dos negr@s, bem como da
sobrevivência de suas tradições. Aceitei com preocupação o convite, dada a
responsabilidade delegada a mim e, para tanto, mergulhei num volume de
leituras (algumas já acumuladas desde fins da graduação) e parti na busca
de novas referências para fundamentar a ementa do curso. Nesse período,
contei com a valiosa contribuição do amigo e professor Antonio Godi que
atendia, sem rodeios, aos meus inconvenientes telefonemas e visitas vesperti-
nas inesperadas. Além dele, coincidiu restabelecer o contato via e-mail com o
professor “Salloma” Salomão Jovino da Silva, que tive o prazer de conhecer
numa conferência na Unicamp (São Paulo) em 2001. Atenciosamente, pro-
fessor “Salloma” me enviou sua dissertação de mestrado e outras referências
interessantes que foram incorporadas aos poucos ao mini-curso, bem como à,
então incipiente, proposta de pesquisa.

Meu envolvimento foi tamanho que o universo de leituras acabou sendo


aproveitado para amadurecer um projeto de pesquisa sobre a música reggae
e suas influências no universo cultural baiano. Encarei o desafio do curso de
mestrado com a esperança de ter, no programa, um espaço de debate para

22 l Fabricio Mota
amadurecer as reflexões sobre as relações raciais no Brasil e a importância
da música neste contexto. A rigor, o ingresso na pós-graduação também tem
relação explícita com meu ativismo antirracista, certo de que a luta pela inclu-
são social das populações negras tem passado pelo acesso à educação e ao
protagonismo na produção do conhecimento científico.

Caminhando nessa direção, esse estudo analisa as manifestações étnico-


identitárias de negritude presentes nos registros fonográficos da musicalidade
reggae, produzidos na Bahia nas últimas décadas. O levantamento e análise
da produção fonográfica (incluindo LPs e CDs) ligada ao reggae da Bahia, en-
tre os anos 1979 e 2003, constituem-se no material central desta pesquisa, ao
lado de entrevistas e outras fontes impressas como o jornal Folha do Reggae,
publicado em 1997. Foram analisados os elementos da linguagem musical,
utilizando fichas catalográficas contendo as variantes: ano de lançamento, gra-
vadora, nome(s) do(s) artista(s), letras, observações-comentários, textos adicio-
nais (encarte e/ou contracapa), músicos participantes, arranjador e produtor
e/ou diretor musical e artístico, observações, seguindo, portanto, um caminho
apontado por estudos anteriores (SILVA, 2000c; MORAES, 2000).

O produto fonográfico e suas partes integrantes (capa, encarte, artes grá-


ficas, textos adicionais) compõem/compuseram um universo de livre e alter-
nativa expressão dos artistas, redimensionando o alcance do registro auditivo.
Do ponto de vista da discografia analisada, em especial, percebi que muitos
significados de pertencimento e negritude foram construídos a partir das es-
tratégias discursivas estético-musicais na composição das canções (arranjos,
instrumentação, letra, etc.) e/ou nos materiais produzidos em associação ao
registro sonoro (SILVA, 2000c; HUSS, 2000).

Moraes (2000) aponta que, entre os obstáculos da investigação do “do-


cumento musical”, encontra-se o peso das tradições da metodologia clássica
que, de modo reducionista, desarticula os elementos estruturais da canção
(melodia, ritmo, andamentos) da “realidade que gira em torno dela” (p. 215).
Em outras palavras, o registro final aparentemente “aprisionado” no disco é o
resultado da interação entre variáveis internas (processo social de produção
artística) e externas (relação com o contexto de seus agentes realizadores). Na
medida em que o disco9 é resultante de percepções do artista sobre o mun-
do, sua reprodutibilidade incorpora as condições materiais e históricas de seu

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 23


tempo e são continuamente (re)construídas, impressas pelo publico ouvinte
e pensante10. Sugiro, a partir desse trabalho, portanto, que a experiência da
produção (no sentido de saber/fazer) musical seja tomada como referência na
compreensão dos discursos estético-musicais contidos no registro fonográfico.
Em outras palavras, o universo dos músicos e as estratégias intrínsecas na
produção e reprodução do som também representam experiências e perspec-
tivas que devem ser visualizadas nos estudos sobre a música como experiência
social e política.

Para tanto, foi necessário arriscar uma orientação metodológica de cunho


mais dialógico e, por vezes, descritivo, acompanhando um caminho episte-
mológico definido por Carvalho (1999) como “etnografia da sensibilidade
musical”. Fujo de algumas descrições mais densas em detrimento de analisar,
a partir de algumas experiências pessoais, os elementos discursivos que consti-
tuem a música. Destaco ainda que optei também pela transcrição das letras ao
longo do texto na íntegra, de modo a possibilitar uma compreensão melhor do
leitor, evitando anexos que poderiam por em risco a fluência da leitura.

O fato de estar diante de uma gama de possibilidades de análise nos


coloca sob a responsabilidade de advertir a quem ler estas páginas sobre o
terreno espinhoso do estudo da história da música. Por isso, não cabe fundar
teses conclusivas sobre os discursos musicais investigados, tampouco tratar
com juízo de valor os registros que ora analiso. Ainda que compreenda que
o “gosto” é socialmente construído e pode ser encarado como objeto de
reflexão, gostaria de salientar que tentei me distanciar no que pude de inferir
sobre a “qualidade” das letras ou arranjos, assim como na classificação dos
registros analisados.

Para analisar a produção musical em torno do reggae na Bahia, lancei


mão, prioritariamente, de um acervo discográfico que inclui artistas de cidades
da Bahia (como Cachoeira, Feira de Santana e Salvador, principais nichos da
contracultura “rasta-reggae”11) de onde surgiu grande parte dos grupos que
definiram singularmente o estilo neste estado brasileiro. Este material constitui
um rico universo de possibilidades de estudos. A grande diversidade de falas
e abordagens representadas nos discos analisados exige um olhar e um “ou-
vir” mais interativo com as demais áreas disciplinares, algo que, de partida,
nos coloca no olho do furacão (basta lembrar que mesmo a noção de multi-

24 l Fabricio Mota
disciplinaridade ainda vem sendo amadurecida). A experiência do mestrado
multidisciplinar que vivenciei tem sido enriquecedora neste sentido. Dialogar
e aprender com áreas de conhecimento como a Etnomusicologia e a Antro-
pologia fortaleceram/fortalecem, a meu ver, novas perspectivas teórico-meto-
dológicas de uma História Social da Cultura, bem como do estudo da Música
e seus sujeitos.

É fundamental, para tanto, que situemos essa diversidade de registros


musicais na dimensão do tempo histórico. É preciso lembrar que essa é uma
tarefa bastante complexa, uma vez que as fontes em diálogo estão dispostas
em um intervalo de tempo de pouco mais de duas décadas. Escolhi, então,
dialogar com os muitos registros fonográficos produzidos nesse período para
tentar mensurar um conjunto – o máximo representativo – de artistas e discos
responsáveis pela “invenção” da leitura/interpretação baiana do reggae.

Nesse sentido, os anos 80, que, desse ponto de vista, começam em 1979,
dado o lançamento do álbum Bahia Jamaica de Chico Evangelista e Jorge
Alfredo ao lado da gravação de “No Woman, No Cry”, imortalizada por Bob
Marley & The Wailers, e reiterada por Gilberto Gil no álbum Realce, compre-
endem, a meu ver, o momento crucial da emergência de novas alternativas e
perspectivas de organização civil em ebulição no chamado “verão da abertu-
ra”. É um contexto de onde brotam legendas partidárias às dúzias e de onde
floresce uma ambiência sociocultural fortemente mobilizada pela produção
musical. Na Bahia, e em particular em Salvador, a “trama” musical que se
anunciava, como sugeriu Guerreiro (2000), era protagonizada por uma juven-
tude negra reencorajada pela invenção de novos ideais de liberdade que os/
as levariam a percorrer a África e o Caribe negros a bordo de uma criativa re-
leitura destes territórios do Atlântico. O reggae foi uma das principais matérias-
primas neste processo.

Uma vez reterritorializada, essa musicalidade viveria novos tempos


de ascensão, à medida que corriam os anos 90. Inevitavelmente, reggae
e samba-reggae implodiram o mercado fonográfico, impondo-lhe novos
agentes, sonoridades, estratégias de gravação e reprodução e, obvia-
mente, novas contradições. Essa definitiva entrada em cena não ocorreu
sem negociações e tensões e, tampouco, deram-se de igual maneira em
Salvador e nas cidades do interior da Bahia, como Cachoeira e Feira de

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 25


Santana – principais nichos desta contracultura no estado. Tamanha foi a
ebulição do verão do reggae baiano, que os anos 90, para nós, não cabe-
ria mesmo em uma década. O advento das tecnologias digitais de repro-
dução do som e a gradativa democratização (ou seria popularização?)
das tecnologias de gravação tornou possível que, até meados de 2002 e
2003, personagens importantes dessa trajetória registrassem, ainda que
tardiamente, suas memórias musicais em CDs independentes.

A opção por este marco referencial-cronológico impôs, desde o início,


algumas questões e perigos. Em primeiro lugar, a necessidade de contem-
plar um recorte tão amplo em um período de trabalho tão exíguo como o
curso de mestrado impôs algumas escolhas no tocante ao objetivo final do
trabalho de pesquisa. Sobre este aspecto, alerto que a análise das fontes
discográficas exige maior ênfase no debate sobre as potencialidades do re-
gistro fonográfico como suporte da realidade que o cerca. Por isso, a inten-
ção principal é colocar essa fonte no centro das atenções, travando mais
um debate sobre a importância deste ponto de vista para a compreensão
das relações sociais mediadas pela música. Para isso, é fundamental cruzar
as impressões sobre as fontes, bem como lançar mão da história oral como
caminho alternativo para preencher possíveis lacunas e, potencialmente,
abrir novas trilhas para estudos futuros.

Em segundo, pesava sobre meus ombros a responsabilidade de pro-


duzir um texto que contemplasse o universo de transformações compre-
endidas nesse intervalo de décadas. Esse período inclui diferentes con-
junturas e mudanças consideráveis que colocaram em efervescência a
sociedade baiana como: a ascensão dos blocos afro, a nova economia
das relações políticas resultante do processo de “abertura” até a “demo-
cratização civil”, o que inclui, por exemplo, a reestruturação dos veículos
de comunicação no estado da Bahia e o poderio de “velhos cães de
guarda” da ditadura militar sobre a imprensa baiana; as intensas trans-
formações e contradições socioespaciais na capital e interior do estado;
a emergência dos blocos de samba-reggae e suas leituras de uma negri-
tude multicentrada, que seria a principal matéria-prima para o boom da
chamada axé music. Sobre este quesito, vale destacar que uma rigoro-
sa classificação das fontes concorreu para evitar certas imprecisões (e

26 l Fabricio Mota
dispensar o “fardo” do trabalho intelectual ideal). Analisando os discos,
percebemos que haviam diferenças visíveis quanto ao teor dos discursos
identitários, nas distintas categorias e perspectivas de negritude, além das
diferentes posições ao longo das décadas.

Para dimensionar essas transformações no tempo e espaço, argumento


em favor de uma periodização que sugere alguns momentos expressivos (e
a transição entre eles) da inserção e consolidação do reggae no ambiente so-
ciocultural baiano. Reconheço e adverto de antemão que, se por um lado,
toda periodização é em si arbitrária com a dinâmica da experiência humana
ao longo da história, é, por outro, necessária quando se pretende, por vezes,
dimensionar os próprios caminhos desta mesma dinâmica. Sem mais, tentei
situar minhas reflexões em torno de alguns períodos singulares que serão apre-
sentados a seguir.

O primeiro – os anos 80 – está compreendido entre os anos 1979/80 e


1988, contexto que pode ser pensado em dois momentos distintos: primei-
ramente até meados dos anos 80, onde aparecem as primeiras expressões
de afinidade que registram a presença do gênero em questão na produção
musical baiana; em seguida, fins desta década, onde relaciono a prolifera-
ção dos blocos afro de samba-reggae e sua leitura musical transcontinental
à paulatina incorporação do reggae como um referencial étnico e identitário
dos negros, em algumas cidades da Bahia. Grande parte dessas entidades
investia na pesquisa das culturas musicais negras do Caribe e de alguns países
do continente africano, em busca de suas respectivas histórias e, obviamente,
sonoridades, o que trouxe fortes influências. Pode-se destacar uma predileção
explícita pela música cubana, jamaicana e de países africanos como parte da
formação percussiva de algumas entidades afro-carnavalescas em Salvador.
Acrescenta-se o cruzamento com as sonoridades das tradições rítmicas locais,
de forte presença nos rituais do candomblé, ao lado da crescente influência
dos meios de comunicação, paradoxalmente um forte aliado para a inserção e
ressignificação da “música mundializada”, como afirma Sansone (1997). Esse
momento de contato e inserção é o alvo dos nossos primeiros capítulos.

O segundo momento – os anos 90 – entendo como a cristalização de


uma cena “regueira” na Bahia, compreendida entre os anos de 1988/89 até
1997/98. Nesse intervalo de década, cristaliza-se uma produção singular em

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 27


torno dos estilos musicais transnacionais negros como o reggae e o rap, e
se edificam trabalhos significativos em torno do reggae, em paralelo com as
lutas em comemoração ao centenário da abolição. Identifico uma sintonia
explícita entre esses estilos transnacionais da música negra na Bahia e a po-
sição militante dos movimentos negros nesse momento em especial (SILVA,
2000). Em meados dos anos 90, insinua-se um cenário musical integrado
por inúmeros artistas identificados com o reggae, além do gradativo apare-
cimento de uma considerável produção de discos em CD (compact disc), fe-
nômeno que tem relação com os formatos digitais de gravação e reprodução
da música. Em fins dos anos 90 (que se estende até meados de 2003), uma
multiplicidade de grupos intérpretes e grupos musicais, como Adão Negro,
Sine Calmon e Morrão Fumegante, Dionorina, Geraldo Cristal, Jorge de An-
gélica, Gilsam, Nengo Vieira, registram suas experiências musicais em discos.
Esse intervalo de década é ainda o momento onde se assistiu ao que chamo
de “Verão do Reggae Baiano”, que se configurou em fins dos anos 90, com
uma enorme proliferação deste gênero nos bairros, nas bandas alternativas,
na agenda cultural das cidades e em uma escalada que galgaria o primeiro
degrau do carnaval de Salvador com a canção “Nayambing Blues”, de Sine
Calmon e Morrão Fumegante, no carnaval de 1998. Paradoxalmente, esse
é o contexto de onde emergem manifestações expressas de repressão à mú-
sica (e seus protagonistas) por parte da polícia e de segmentos da imprensa
baiana. Registra-se ainda, nesse contexto, a publicação do informativo Folha
do Reggae, fonte imprescindível onde serão discutidas estratégias de mobi-
lização e respostas dos “regueiros”12 na defesa do reggae como um produto
da cultura negra da Bahia.

Diante, portanto, dessa gama de possibilidades, o resultado apresentado


aqui reflete escolhas que foram definidas sob a pena de deixar eventuais lacu-
nas. Após a devida catalogação do material colhido, ao longo dos semestres
de pesquisa, escolhi deliberadamente o conjunto de registros sonoros e plásti-
cos que pudessem representar melhor minha argumentação. Ao longo dos ca-
pítulos, a citação recorrente das letras, capas, encartes ou mesmo das estraté-
gias discursivo-musicais não propõe uma impressão conclusiva. Pelo contrário,
espero estimular, com este trabalho, que um número maior de pessoas possa
voltar as atenções para o universo musical que ora investiga-se, para tirar suas
próprias “conclusões”.

28 l Fabricio Mota
O texto que se apresenta é, em linhas gerais, uma forma de com-
preender o processo de inserção e cristalização da música reggae no
cenário sociocultural baiano à luz de alguns registros de sua produção
musical. Para tanto, os diferentes pontos de vista sobre o universo das
fontes estão evidenciados na organização dos capítulos que faz alusão
deliberadamente à estrutura de um LP, uma das principais matérias-
primas deste estudo.

O Lado A contempla, além desta apresentação-introdução, o capítulo


intitulado Faixa 1: “Surge mais um Guerreiro do Terceiro Mundo”, no
qual se apresenta um balanço da inserção e presença do reggae no eixo
sul do Atlântico Negro, dialogando com alguns documentos musicais im-
portantes registrados no início dos anos 80.

Os desdobramentos dessa interação foram dimensionados no terreno


sociocultural baiano ao longo dos anos 80, como se pretende discutir
na Faixa 2, intitulada “África a la Jamaica, Música da Raça”. Neste, se-
rão abordadas as ressignificações sobre a África a partir das construções
musicais e dos registros fonográficos ligados à influência do reggae na
Bahia. Abordo a centralidade dos blocos afro nesse processo, bem como
o consequente nascimento do samba-reggae como uma nova linguagem
da música brasileira naquele momento. Além destas entidades, outros
artistas, em diferentes momentos, também são corresponsáveis pela in-
clusão da temática da História da África e de uma leitura multicentrada
deste continente, que inclui o Caribe e os movimentos pan-africanistas
como referenciais simbólicos que inauguraram uma nova tendência das
políticas culturais negras na Bahia (PINHO, 2004).

“Virando o disco”, passamos ao Lado B, que se inicia com a Faixa 3,


intitulada “Anos 90: O Verão do Reggae Baiano”. Aí é abordada a rela-
ção entre as canções de reggae e o surgimento de uma nova metafísica
de negritude, cujos discursos perpassam pelas canções e outros elementos
que compõem os discos. Faço uma leitura das inúmeras autoidentidades
negras presentes nos elementos estético-musicais do registro fonográfico e
sua relação com as falas dos movimentos sociais no período, enfatizando a
interação dos artistas de reggae, em sintonia com diversas posições públi-
cas dos movimentos negros nas últimas décadas. Em Interlude, “De Jesus

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 29


à Jah”, dialogo com as diferentes leituras de mundo sintonizadas com
cosmovisões religiosas e suas confluências e/ou contraposição de ideias.
Analiso também o surgimento de novas leituras híbridas da religiosidade,
professadas em muitos dos álbuns sob os quais se edifica este trabalho
de pesquisa.

Na Faixa 5, “Quem Não Gosta de Reggae, Bom Sujeito Não É”, que
traz as considerações finais, pretende-se entrecruzar as informações e
problematizações dos capítulos anteriores (por isso o sentido dub) apon-
tando para futuros caminhos da investigação. Esse será o espaço para
traçar algumas reflexões sobre o mercado fonográfico e os espaços alter-
nativos de divulgação do reggae em Salvador.

Pretende-se, portanto, com este livro, levantar algumas reflexões so-


bre o papel da musicalidade reggae como elemento articulador da luta
antirracista na Bahia recente, tomando por base, privilegiadamente, a
produção fonográfica desta expressão. A propósito, o título desta publi-
cação, Guerreir@s do Terceiro Mundo (...), tomado de empréstimo e
adaptado da canção homônima de Edson Gomes, já apresentada en-
tre as epígrafes, tenta dimensionar essa relação de enfrentamento e por
hora negociação em que se envolveram alguns sujeitos responsáveis pela
construção dessa cena musical e política no contexto em destaque. Vale
ainda destacar que o uso do símbolo “@” sugere que há, entre estes
personagens, homens e mulheres – ainda que uma reflexão devidamente
bem apurada sobre as relações de gênero e a presença das mulheres nes-
te cenário musical não estejam devidamente contempladas neste estudo
– uma lacuna por ser então preenchida em trabalhos futuros. Este recurso
é deliberadamente provocativo e sugere a ruptura na palavra escrita com
a generalização a partir do referencial masculino, tão naturalizado em
nosso cotidiano quando nos referimos a uma diversidade de gêneros.
Este recurso político me foi apresentado no primeiro congresso baiano
de pesquisador@s negr@s realizado em 2007, na UFBA.

O “discurso estético-musical rasta-reggae”, como sugeriu Godi (1997),


tem alterado os sentidos do ser negro em Salvador e outros centros urba-
nos da Bahia, haja vista a gama de artistas radicados nas mais diferentes
cidades do estado que buscaram criar, ao gosto de suas experiências e

30 l Fabricio Mota
interpretações, suas próprias versões do gênero musical afro-jamaicano.
Este fenômeno foi marcado pela disputa contra a marginalização direcio-
nada aos adeptos e admiradores do estilo em muitos espaços, como os
meios de comunicação regionais e nacionais13.

A produção ainda rarefeita de estudos que focalizem o gênero em


questão como expressão fundamental desta “contracultura” plural de
negros e negras no mundo contemporâneo e sua trajetória singular no
Brasil constitui o leit motiv da elaboração deste trabalho. No que se refere
ao universo baiano, o gradativo surgimento de estudos sobre a impor-
tância da musicalidade reggae e suas contribuições ao universo plural da
diáspora negra justificam a necessidade de materializar estas problemati-
zações através da pesquisa. Feitas estas ponderações, estendo o convite
para “cairmos no reggae”...

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 31


NOTAS

1
Uma pesquisa de fôlego sobre a história da Jamaica e, particularmente,
da cultura Rasta, foi produzida por Danilo Rabelo e defendida com tese
de doutorado em 2006. Nela, constam aspectos históricos, geopolíticos,
econômicos e antropológicos minuciosos sobre a ilha caribenha e sua
conexão com a cultura espiritual e musical do rastafarianismo. É sem dú-
vida a produção mais exaustiva já realizada no Brasil (RABELO, 2006).
Sobre a história do reggae ver também estudos clássicos como Albuquer-
que (1993), Davis & Simon (1983) e ainda White (1999).
2
Ver Rocksteady: The Roots of Reggae, Stacha Bader (Direção), 2009.
Documentário sobre a influência do rocksteady na música mundial. A
concepção da obra que encadeia as narrativas históricas dos músicos e
musicistas, produtores e outros agentes traz um rico depoimento sobre
história e música jamaicana tornando-o um registro imperdível.
3
Ver Dub Echoes, Bruno Natal (Direção), 2008.
4
O conceito de musicalidade quando utilizado aqui, remete diretamente
à formulação proposta por Salloma Silva (2000) como um conjunto de
práticas musicais e, como tal, posições político-culturais.
5
Esta foi a conhecida expressão mencionada pelo General Ernesto Geisel
para se referir à postura dos militares diante do fim do regime. Em 1979,
foi decretada também a lei da anistia que pôs, sob o manto silencioso
de uma mesma justiça os criminosos do Regime e exilados políticos (Ver
mais em GASPARI, Élio. Ditadura Derrotada: O Sacerdote e o Feiticeiro.
São Paulo: Cia das Letras, 2003).
6
MOTA, 2008.
7
Não poderia esquecer-me do Sementes do Reggae, grupo de percussão
formado no bairro de Mussurunga. Alimentei, por muito tempo, a vonta-
de de fazer parte da percussão do Sementes, mas a proibição meio tácita
da família frearam minha utopia.
8
“Brincar com o baixo” é a forma como meu filho, João Lucas, descrevia
meus momentos de estudo com o instrumento.
9
Disco refere-se a toda e qualquer obra musical, composta de até 04
canções – singles – ou mais, que constam como registro no histórico de
um artista ou um conjunto deles. Comumente, associa-se restritamente
ao disco de vinil esta definição.
10
Sobre esse debate, o clássico artigo de Walter Benjamin sobre a arte
e sua reprodução no mundo capitalista (BENJAMIN, 1960) tem uma
importância. A rigor, outros autores já têm produzido leituras sobre a
obra de Benjamim que, posteriormente, nos servirão de suporte teórico-
metodológico.
11
Esta definição foi tomada de empréstimo de Godi (1997), um dos
primeiros pesquisadores envolvidos com essa temática no viés da
socioantropologia da música, na Bahia.
12
Termo comumente utilizado para identificar o ouvinte ou músico de
reggae.
13
Por exemplo, em Salvador, há um processo contínuo de marginaliza-
ção dos tradicionais radialistas de reggae paralelo ao controle das bandas
e shows pela grande indústria cultural da música baiana que organiza o
carnaval. Atualmente é exibido pela rede pública, através da Rádio Edu-
cadora FM (107.5), o programa No Balanço do Reggae, além de alguns
em rádios alternativas. No interior do estado, movimentos sociais organi-
zados em entidades como a Associação Cultural Beneficente Revolution
Reggae, em Conceição do Coité-BA, têm sido importantes agentes mo-
bilizadores contra a violência policial e dos grupos de extermínio contra
jovens negros, além de organizarem eventos de debate sobre racismo,
cidadania e políticas públicas para saúde, educação no município.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 33


FAIXA 1

“SURGE MAIS UM GUERREIRO


DO TERCEIRO MUNDO”

E grita Jamaica, povão:


Ê Jamaica
Impere entre todos os negros
A crença no nosso poder de criar
Um novo universo
Um novo universo
Trecho da canção Rituais de Negros, de Mundão
Disco Muzenza do Reggae, 1988

Estes repertórios de práticas são aqui entendidos como novas formas de


organização e intervenção social, política e cultural dos grupos negros,
gerando novos paradigmas de identificação e visibilidade das popula-
ções negras urbanas, num processo onde as práticas em torno da música
são transpassadas pelas lutas sociais e políticas.
“Salloma” Salomão J. da Silva, 2000

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 35


A luta pela visibilidade dos anseios e projetos das populações negras
foi ponto alto nas décadas de 80 e 90 no país e, de modo singular, na
Bahia. À revelia de todos os processos institucionais e socioculturais de
segregação racial que se recompuseram ao longo da história, as expe-
riências das populações negras – em contextos os mais diversos, leia-
se – apresentam complexas estratégias e contradiscursos reveladores da
não-sujeição e da produção alternativa de conhecimento(s) e visões de
mundo na sociedade. Entre as muitas linguagens apropriadas nesse pro-
cesso tenso de afirmação de (nossas) autoidentidades, a música tem se
destacado, dada a sua importância na construção das relações sociais,
sobretudo no mundo contemporâneo, onde esse processo literalmente
se amplifica14.

A aceleração (e globalização) dos padrões industriais de produção


e consumo de mercadoria, em consonância com a presença definitiva
dos meios de comunicação e outros artefatos tecnológicos ampliaram
o abismo entre as nações da Europa e EUA em relação a países do
chamado terceiro mundo. Paradoxalmente, esse processo tornou pos-
sível novos canais globais de interlocução do protesto negro nos gran-
des centros urbanos (SILVA, 2002). Sobre o contexto da globalização,
Sansone (2004) aponta dois conjuntos de opiniões que já, há muito,
têm sido debatidas: a primeira, indicando a popularização dos estilos
cosmopolitas de vida e de uma suposta socialização dos bens de consu-
mo, outrora restritos às nações do “norte”; a segunda, assinalando os
aspectos negativos do subjugo das nações mais poderosas econômica
e politicamente, que aniquila projetos e respostas locais. Entretanto, o
autor sugere um terceiro caminho que tenta considerar um pouco de
cada um desses aspectos apontando a “heterogeneização global” – um
aumento indelével das trocas simbólicas que possibilitam outras formas
identitárias e canais de etnicidade, invertendo, de certo modo, o velho
conceito centro-periferia. Alguns elementos conjunturais – como o im-
pacto do mundo anglófono, o efeito bilateral e desigual da indústria
fonográfica, o fim dos regimes militares, a ação dos movimentos sociais
e a abertura ao turismo – ajudam a entender as transformações de uma
cultura negra conectada, a partir de então, com outros referenciais que
transcendem as experiências regionais.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 37


A confluência das contraculturas do Caribe e demais regiões da Amé-
rica Latina nos trânsitos “globais” de sons, sentidos identitários e expe-
riências residuais do colonialismo – oriundas dos mais distantes espaços
subalternizados – é um fenômeno nunca visto antes dos anos 50 do sécu-
lo XX. A cultura é potencialmente reveladora desses cadinhos no proces-
so de globalização e, portanto, um terreno de confronto, resistência (ou
mesmo dominação), como nos lembra Milton Santos (2001). Argumenta
o autor que a cultura “popular”15, além de revelar as “falas” do cotidiano
das minorias, altera o sentido e ressalta a importância dos cenários lo-
cais e regionais para a constituição da noção de valores ditos “globais”.
Numa leitura menos diplomática, Milton Santos destaca a nova centra-
lidade da “periferia” nesse processo, descentrando velhos paradigmas e
inserindo os agentes e narrativas, outrora relegados. O terceiro mundo é
visto menos como alvo das teorias do subdesenvolvimento – anos 50-60
– e mais como manifestação de desconforto às conseqüências do “novo
imperialismo” (SANTOS, 2001, p. 152).

Esse processo instala novas relações e tensões no plano da política e


está manifesto nas expressões estético-musicais, corpóreas, étnico-iden-
titárias, etc. Do ponto de vista das relações raciais, as políticas culturais
enunciam, a partir de expressões como a música, sentidos de pertenci-
mento que nos obrigam a estabelecer outras referências teórico-metodo-
lógicas para compreender esses movimentos sociais. A canção “Terceiro
Mundo” de Walmir Brito, gravada em 1988, no álbum Marley Vive da
Banda Terceiro Mundo, é uma formulação sugestiva nessa direção, pois
remonta em grande parte ao cerne desse trabalho, uma vez que define
esse espaço como um território de identificação étnica dos povos negros,
tendo a Jamaica e a África como referenciais geopolíticos, conforme se
pode observar em trechos da letra:

TERCEIRO MUNDO
(Walmir Brito, 1988)
Lembra-te Marley
Céu azul reggae canção
Influências evólicas
Etílicas constelações
Sentimento que vai à Jamaica

38 l Fabricio Mota
Um negro povo a clamar à
Mãe África
Terceiro mundo é um elo unificando as nossas raízes
Lapidação da pérola Negra
O brilho da paz
O elo negro mais profundo
Corretivo ao mundo
Eu grito não apartai os negros não jamais
O sentimento que vai
À Jamaica
Um negro povo a clamar
À mãe África

Além disso, o “silêncio” em torno da presença negra nos pro-


cessos políticos e culturais da sociedade brasileira vem, ao longo dos
anos, sendo preenchido por uma crescente produção de diversos autores
(as), com relativo engajamento nas lutas dessas populações, colocando
novas perspectivas epistemológicas às áreas de conhecimento científico,
a exemplo das Ciências Humanas.

Nesse bojo, observamos a existência de importantes estudos so-


bre música na Bahia – como a valiosa publicação de 1997 do projeto
S.A.M.BA.16 – que apontam a preocupação dos antropólogos, musicó-
logos e sociólogos baianos (raros os historiadores) em compreender este
universo temático, trazendo novas contribuições que relacionem música,
identidade negra e cultura enquanto categorias dinâmicas e não-essen-
ciais. Nesse sentido, tem sido pertinente estudar as “sonoridades” na di-
áspora negra, dialogando e problematizando a noção de Atlântico Negro
(GILROY, 1995) e suas reflexões sobre o repertório das práticas musicais
no âmbito das “tradições populares”.

Outro exemplo relevante é o trabalho de “Salloma” Salomão Silva


(2000) – intitulado “A Polifonia do Protesto Negro: Movimentos Culturais
e Musicalidades Negras Urbanas” – que trata das estratégias adotadas por
sujeitos individuais e coletivos das populações negras urbanas, utilizando
a música como veículo de mobilização. Sugere o autor uma concepção
de estudo dos movimentos sociais, identificando o fenômeno singular

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 39


configurado pelas práticas culturais negras, a partir das canções gravadas
entre os anos 70 e 80 nos espaços urbanos de Salvador, São Paulo e Rio de
Janeiro; além disto, destaca outros parâmetros de análise para o processo
político de democratização do país. Artistas da música, outrora silenciados,
têm seus olhares sobre o mundo respeitados e seus cantos de protesto audí-
veis, na proposta do autor, como ilustra a vasta produção discográfica pes-
quisada. A partir dessa dissertação, muitas reflexões podem ser articuladas
sobre a música como mediadora das demandas e anseios das populações
negras na contemporaneidade. Por outro lado, a discografia analisada pelo
autor não insere, de modo sistemático, uma análise de presença de influên-
cias como o reggae e o rap, haja vista não ser este o seu objetivo principal.
Obviamente uma das grandes contribuições desse trabalho é possibilitar que
novas análises sejam produzidas tomando a música negra como experiência
sociocultural e política na História. Este texto é, em particular, um passo a
partir da direção insinuada pelo autor. Sinto-me, portanto, com a valiosa
tarefa de dialogar com eventuais lacunas de sua reflexão.

A análise sobre tais processos político-culturais nos impõe considerar


o papel das políticas negras na construção da modernidade. Em O Atlân-
tico Negro, Paul Gilroy (2001) traz uma instigante análise das peregrina-
ções do pensamento negro, desde o contexto da colonização, mapeando
as histórias de (re)apropriação dos instrumentos dos opressores, recon-
quistando uma humanidade outrora negada.

A metáfora do “oceano” ou, mais exatamente, dos “navios negreiros”


na middle passage 17, além de amplamente influenciada pelas reflexões
de W. E. B. Du Bois, incorpora um espírito crítico para avaliar e dimen-
sionar as muitas formas de sobrevivência das culturas negras na diáspora,
a partir das mais diversas produções. Segundo Gilroy, essas metafísicas
de negritude contrariam/contrariaram a lógica do racismo e sua perversa
tendência à coisificação d@s negr@s, destituindo-lhes do status de sujeito,
humano, quiçá intelectual. O Atlântico Negro é um “campo” de tensão,
indeterminação e não-dualismo, onde subjetividades e formações culturais
se constituem em um trânsito constante e subliminar, em muitos casos, de
noções de pertencimento e negritude. O autor identifica as marcas deste
trânsito inventado e as apontam como registros de uma contracultura da

40 l Fabricio Mota
modernidade, presentes nas expressões artísticas (principalmente na músi-
ca), na literatura, em suma, em constante subversão do lugar de mercado-
ria-objeto, através de criativas maneiras de “automodelagem individual” e
“libertação comunal” (GILROY, 2001. p. 100).

Gilroy assinala o modo “sugestivo” pelo qual o mundo do Atlântico


Negro é situado a partir de uma rede entrelaçada entre o local e o glo-
bal, que transcende os limites das fronteiras nacionais e sinaliza para os
muitos sentidos da “particularidade étnica” (2001, p. 82). Este ponto, em
especial, reserva uma polêmica que atravessa toda sua obra: os limites
das identidades raciais e do absolutismo étnico nos discursos políticos
negros. Para o autor, esse legado condiciona a identidade à aspiração
de suas raízes (supostamente autênticas, naturais), o que reforça uma
visão essencialista de base ontológica. Nesse sentido, a ideia dos negros
como “grupo protonacional”, com sua cultura enclausurada, reforça a
visão mistificante de um afrocentrismo que colabora, em grande parte,
para silenciar a diversidade de expressões que a cultura negra assumiu
no mundo contemporâneo.

Em outro prisma do debate, escritores – como Aníbal Quijano – têm


articulado um novo pilar crítico do pensamento ocidental ao fundar a
noção de “colonialidade”. Ao lado de Enrique Dussell, Walter Mignolo,
Edgardo Lander, Ramón Grosfoguel e outros, ele integra o grupo de
pensadores latino americanos críticos da colonialidad del poder (LAN-
DER, 1998). De acordo com esta corrente, a modernidade é, grosso
modo, um padrão eurocêntrico de poder que alicerçou/alicerça a domi-
nação colonial/capitalista, cujo sistema de classificações sociais, sustenta-
do prioritariamente na ideia de “raça”, se estendeu pelos séculos XVI ao
XVIII-XIX e se transformou na transição para o século XX, traduzindo o
que Immanuel Wallerstein chamou de sistema-mundo18.

Quijano afirma ser a América a primeira identidade da modernidade,


inaugurando o espaço/tempo de um novo padrão mundial-colonial-ca-
pitalista. Assim, a naturalização da categoria mental de “raça” e da pers-
pectiva eurocêntrica do conhecimento foram constructos impostos pela
dominação colonial. Concomitante a esse processo, constituíra-se uma
nova estrutura global de controle das relações de produção, legitimando

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 41


uma divisão social-racial do trabalho. A colonialidad del poder, conceito
inaugurado pelo autor foi, portanto, uma das mais ativas determinações
no processo de reidentificação histórica, uma vez que foram atribuídas
às populações subjugadas novas identidades geoculturais, que ressignifi-
cam as diferenças culturais, histórias e epistemologias em prol da disputa
dinâmica pelo controle do conhecimento.

Um olhar muito próximo das interpretações de Quijano está presen-


te nos escritos de Walter Mignolo (2003). Um desafio proposto em sua
obra é compreender e analisar as epistemologias alternativas que coe-
xistiram ao longo do processo histórico de construção da modernidade
à revelia dos paradigmas do ocidente. Entretanto, não sugere uma nova
homogeneidade descolonial calcada no relativismo cultural, mas numa
contaminação da mentalidade científica, da construção do objeto na ci-
ência, parafraseando Pierre Bourdieu, em suma, numa perspectiva onde
intercalamos teoria e ação do sujeito.

Mignolo tem se preocupado em melhor compreender a “geopolítica”19


do conhecimento e a constituição de un pensamiento otro em oposição à
razão moderna e, consequentemente, ao racismo epistêmico. Trata-se de
um projeto de ruptura epistemológica deslocada do pensamento/espaço
europeus, que se firma na busca da “pluriversalidade” (outra concepção
de mundo global) como protesto universal e na descolonização do saber
e do ser, mediando a construção de um pensamento liminar20. Trata-se
de uma crítica à genealogia do pensamento único produzida pelo oci-
dente europeu, abandonando, portanto, a noção de modernidade – que,
segundo Mignolo, é um relato triunfante dos europeus que enfatiza a
superioridade e uma suposta civilidade contra a barbárie dos índios e
negros, ou seja, dos “outros”.

Relacionando essas perspectivas, é possível inferir que autores(as) dessas


correntes – pós-coloniais e descoloniais – utilizam como elemento central,
para suas reflexões, as experiências de insubordinação, sobrevivência, se-
dição e negociação dos sujeitos marginalizados em diferentes contextos do
mundo Colonial e Pós-colonial. Por outro lado, o Atlântico Negro, se apro-
veitado como projeto teórico-metodológico, navega numa direção diferente
do pensamento descolonial. Isto não significa, a meu ver, que estejamos

42 l Fabricio Mota
diante de projetos antagônicos, mas de perspectivas diferentes (e divergen-
tes, é claro) quanto à História da Modernidade e sua superação. Na análise
de Paul Gilroy, as políticas culturais negras são, grosso modo, intervenções
críticas e intrínsecas à modernidade. Tomando algumas experiências negras
no Reino Unido, Caribe, América e África (anglófonas), o autor se distancia
de qualquer argumento que corrobore com a ideia de que há um pensa-
mento descolonial comum, inerente às rotas da escravidão. Pelo contrário,
está interessado em compreender como os negros na diáspora restituíram
suas humanidades e ressignificaram seus sentidos (re)utilizando os meios e
ferramentas do próprio colonizador.

Conforme Paul Gilroy (2001), músicos e outros artistas podem ser en-
tendidos como intelectuais orgânicos21 das tradições alternativas “inven-
tadas” na diáspora. Nesse contexto, as expressões musicais constituem
um veículo fundamental, de modo que a autenticidade de seus discursos
e ações não está restrita ao universo das normas da democracia burguesa
e do mundo da escrita. Seguindo nitidamente os caminhos dos estudos
culturais, bem representados por autores como Stuart Hall, Gilroy tem
enfatizado a posição destes sujeitos na construção/legitimação dos reper-
tórios da política cultural negra à revelia dos resíduos do colonialismo das
“dispersões irreversíveis da diáspora” (HALL, 2003, p. 343); este proces-
so tem, na história musical, um registro indelével, haja vista o impacto de
expressões sonoras e estéticas de alcance transnacionais, a exemplo do
reggae e tantas outras como o jazz, blues, o funk, o rock e o rap.

Em outras palavras, estes músicos são considerados, na definição de


Gilroy (2001, p. 164) – em acordo com a perspectiva já apresentada por
Hampatê-Bá – como: “[...] guardiões temporários de uma sensibilidade
cultural distinta e entrincheirada que também têm operado como recurso
político e filosófico”. Portanto, o autor endossa a sugestão de que os
músicos e usuários de música, em sua “práxis” subversiva, representam
um tipo particular de intelectual.

A difusão transcontinental da musicalidade reggae, que, desde os


anos 60, compunha o repertório das lutas contra a violência e a invisibi-
lidade social, está associada a outras sonoridades do protesto negro con-
temporâneo (GODI, 1997, 1998, 2001; HALL, 2003; SILVA(a), 1995;

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 43


SILVA(c), 2000). Isto implica que o discurso estético-musical desse gêne-
ro, registrado nas canções dos álbuns, afasta qualquer impressão de que
essa seja uma música pura22! Trata-se, na verdade, de uma “mixagem”
que incorpora elementos do rock, rythm n’ blues e é incorporado na
cena musical destes outros estilos de matrizes negras (CARDOSO, 1997;
WHITE, 1999; DAVIS & SIMON, 1983).

No Brasil, mais precisamente no Maranhão, o trabalho produzido por


Carlos Benedito Silva observou, a partir dos depoimentos orais e um
rigoroso estudo etnográfico, os espaços das “festas de reggae” de São
Luís-MA, em meados dos anos 9023. Tentando compreender as formas
de sociabilidade mediadas e de legitimação social das populações ne-
gras, bem como suas ações/respostas à marginalização, a partir desses
territórios, o autor ressalta ainda que este processo está inserido numa
rede transnacional, onde as novas tecnologias de comunicação e repro-
dução do som desempenham papel de amplificadoras dessas memórias
musicais e aproximam, de modo singular na história humana, as experi-
ências de vida desses grupos sociais (SILVA, 1995, p. 129; ver também
GODI, 1998). Violentamente excluídos da cidadania ao longo dos sécu-
los, negros e negras construíram sua história de modo diacrítico, à revelia
de modelos oficiais – resíduos do colonialismo – e tiveram na música um
conectivo passado-presente mediador de seus anseios e visões de mun-
do. Trata-se de um “descentramento”, como propôs Stuart Hall em seu
clássico Da Diáspora, que abre caminho para importantes estratégias de
“intervenção no campo da cultura popular” (2003, p. 337).

Esta presença não se dá, como sabemos, sem confrontos e tensões.


Muniz Sodré (1988) aborda este universo e aponta a relevância do coti-
diano nas ruas como terreno dinâmico apropriado por negras e negros. O
autor tece uma crítica brilhantemente contundente ao uso de categorias
de análise que não deem conta da diversidade dos espaços urbanos como
lócus de afirmação dos grupos e de reinvenção de suas identidades raciais.
Em outros termos, Sodré descortina a dialética hegeliana (e sua referência
dualista), argumentando serem as práticas musicais, o jogo, o comércio
informal das ganhadeiras, em suma, o convívio com a “rua”, elemento
formador das “cidades”, não podendo, portanto, se dissociar numa aná-

44 l Fabricio Mota
lise mais complexa dos processos de formação destes centros. Além de
literalmente “enxergar” a experiência negra, apresenta um olhar crítico-
epistemológico de fundamental importância para a construção de um ou-
tro cânone, engajado com a inclusão, no mundo acadêmico, da presença
e sujeição dos(as) afrodescendentes na construção das relações sociais.

Mas quais elementos essas trajetórias nos oferecem para refletirmos


melhor sobre a construção de identidades negras? Qual a relação dos
processos identitários uma vez que a música conecta universos cultural-
mente distintos? É o que veremos a seguir.

“UMA QUESTÃO DE IDENTIDADE”:


A MÚSICA REMODELANDO A
PERTENÇA

Rituais de negros
Uma questão de identidade
Um momento negro
Uma nova negritude [...] 24

O crescente interesse pelo estudo das identidades passou a integrar


a agenda acadêmica dos últimos 30/40 anos, sobretudo pela interven-
ção gradual dos movimentos sociais em diversas esferas da sociedade.
O próprio conceito de identidade tem sofrido mudanças substanciais
nestas últimas décadas como sinalizou Sökefeld (1999) destacando,
nesse sentido, o papel impactante da antropologia e deslocando essa
referência conceitual de sua definição original da psicologia – onde o
significado de “identidade” está associado com características da perso-
nalidade do indivíduo. Para ele, o discurso antropológico foi o respon-
sável por dimensionar a identidade como marcador do grupo entre si e
em relação ao “outro”.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 45


Paralelamente, o impacto das imigrações transformou demográfica e
culturalmente as populações entre os continentes, colocando em crise o
nacionalismo de Estado, suas ditas “fronteiras” nacionais e suas arbitra-
riedades. O meio acadêmico passa a debruçar-se sobre novas relações co-
munitárias e novos sentidos de identidade coletiva, como fez Fredrik Barth
desde a década de 60 em suas reflexões sobre os grupos étnicos, balizando
o início de uma longa jornada de debates que se mantêm pertinentes até
o presente momento25. O conceito de etnicidade, por exemplo, emergiu no
meio acadêmico das últimas décadas do século XX como uma categoria
que pudesse dar conta destas novas formas de sociabilidade, pautadas
em uma dinâmica de exclusão e inclusão que impunha aos grupos sociais
novas fronteiras. Compreender estes novos sentidos de pertencimento e as
implicações entre ser “nós” e “outro” trouxe, além de um acirramento con-
siderável das formas de segregação social, um novo relevo à “pertença”
como estratégia de sobrevivência e interação social. O grande destaque de
sua análise é considerar a identidade como expressão dinâmica e situacio-
nal dos grupos sociais que, dadas as formas de organização social, tendem
a se recriar e formar novos arranjos. Nessa abordagem, a identidade não é
um conjunto de traços culturais herdados atemporalmente pelas gerações
ao longo do tempo, mas reside na renovação e atualização dos traços de
autoinscrição, como já sinalizava Manuela Cunha (1979), provocando a
antropologia brasileira a questionar as indeterminações entre as formas de
representação do lugar dos indivíduos (suas identidades) e a cultura.

Contudo, é importante destacar que, historicamente, o debate sobre identi-


dades é revelador dos diferentes “lugares” e sujeitos que se posicionam diante
da questão, sejam est@s artistas, educador@s, ativistas etc. As formas de se
representar na sociedade e o olhar sobre a cultura e a diversidade está inti-
mamente ligado à posição dos sujeitos diante das tensões que caracterizam
o mundo que nos cerca – particularmente quando tratamos de grupos que
subvertem as formas de exclusão recriando a maneira como eram vistos e
redimensionando as formas de sociabilidade. Por isso, contruir-se identitaria-
mente traduz um esforço constante de situar-se, deslocar-se e afirmar-se em
meio a um conjunto de práticas e discursos presentes desde a infância que
são produzidos e reproduzidos por instituições como a família, a escola, as
comunidades religiosas, bem como são fortemente representados pela mídia

46 l Fabricio Mota
em seus muitos produtos culturais. Representar-se como sujeito de sua história
tem sido uma árdua escolha política para as populações negras no Brasil que
tem suas subjetividades estilhaçadas desde a infância e as veem constante-
mente inferiorizadas através de rótulos e estigmas que marcam seus corpos
com símbolos de rebaixamento frente ao olhar do outro (MOTA & SILVA,
2011). Em suma, reiterar o debate sobre identidades implica problematizar um
terreno das relações sociais onde se perpetuam estereótipos e outras formas de
representação pejorativa de grupos marginalizados historicamente em nosso
país, bem como, na contramão, se insurgem modelos outros de afirmação dos
sujeitos. Nas palavras de Gilroy (2007), a “linguagem distintiva da identidade”
serve para mensurar como os vínculos de pertecimento a uma comunidade
ou grupo podem estabelecer estilos ativos e alternativos de solidariedade as-
sim como firmar politicamente novas fronteiras na sociedade.

O livro do antropólogo Carlos Benedito Silva (2007) traz um debate insti-


gante sobre a questão das identidades locais no Maranhão e sua relação com
as influências musicais-culturais consideradas “externas”/“estrangeiras”. Ele
analisa as posições de alguns segmentos de São Luís diante da influência da
presença da música reggae na cidade. A “Jamaica brasileira”, como é chamada
a capital do estado do Maranhão, na verdade, vive há algumas décadas uma
disputa simbólica pelas identidades. Para o autor, o reggae representa, para a
elite dominante (literalmente falando), uma ameaça ao status de “Atenas bra-
sileira”. Ele apresenta um conjunto de argumentos que ratificam o estranha-
mento, entre eles, a justificativa de ser este um gênero da música internacional,
logo, contrário às raízes genuinamente brasileiras26. Um ponto relevante de seu
trabalho é analisar a relação tradição-modernidade como conflituoso “diálogo
criador”, onde o global não substitui o local. Para o autor:

“[...] tanto as rupturas da tradição quanto as contradições da modernida-


de permitem este diálogo, mostrando que mesmo nas culturas aparente-
mente “fechadas” à modernidade, a pluralidade se insinua, determinan-
do os ritmos da identidade” (SILVA, 2007, p. 42).

Tomando como referência a noção de diáspora negra como situação


de rompimento-recriação de laços identitários das populações de matriz
africana, o conceito de identidade apresenta-se do modo potencialmente
criativo e sugestivo. Nas palavras de Carlos B. Silva:

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 47


“[...] esses processos interativos possibilitam também aos diferentes gru-
pos localizados que são atingidos pela dinâmica da mundialização da cul-
tura, escolher, baseados em suas raízes étnico-culturais, novos elementos
que, a partir de uma ressignificação, passam a ser retratados como ex-
pressão de sua identidade” (SILVA, 2007, p. 45).

Desse modo, a recusa por parte dos supostos guardiões da identidade na-
cional (ou maranhense) às influências “externas” da música pode constituir-se
num critério para marginalizar contraculturas da música negra na diáspora,
como é o caso do reggae, reduzido ao rótulo de música internacional e, neste
sentido, inautêntica. A presença recente deste estilo musical tem fertilizado au-
toidentidades fundamentais à (re)inserção das demandas e perspectivas das
populações negras, como destacamos, na Bahia. Visto aqui com uma das tra-
dições inventadas de expressão musical dos negros na diáspora, no contexto
contemporâneo, o reggae é uma contracultura musical (re)produzida no Atlân-
tico Negro, portanto, um gênero musical transnacional.

É fundamental considerar que categorias como “raça” ou “cultura


negra”, que têm sido ressignificadas, podem ser interpretadas como
mais próximas da experiência concreta de autoafirmação ou combate
à invisibilidade. Portanto, pode se considerar que, no Brasil, os me-
canismos de exclusão e desigualdade passam pelo apelo à negação
racial do negro (assim como de outros grupos étnicos subjulgados
historicamente), por isso os movimentos sociais têm realçado a im-
portância da autoafirmação na noção de “raça” neste embate27. O
conceito de “raça” opera então para além do sentido universalista
raça como definição genérica/homogênea do ser humano em dife-
renciação às outras formas de vida orgânica. A produção fonográfica
analisada neste livro apresenta, repetidas vezes, o termo “raça” para
destacar/afirmar o sentido político da palavra “negra/o”.

Ainda nesse sentido, a noção de cultura também pode ser entendida


em sentido mais completo, dinâmico: um terreno igualmente ambíguo
que ganha diferentes formas de definição, de acordo com uma determi-
nada realidade social figurada. É, portanto, no interior desses limites que
me refiro à noção de “cultura negra”. As experiências de (nós) afrodes-
cendentes têm redesenhado, definitivamente, a concepção de cultura.

48 l Fabricio Mota
Pode-se afirmar que os resultados musicais produzidos no universo
das populações negras na Bahia sugerem uma reflexão mais plural da
noção de cultura e do engendramento de novas identidades. O reggae,
em especial, aponta para diversas alternativas à invisibilidade social de
um ou mais grupos identificados por sentidos, valores e símbolos étnicos
de negritude. Nesse movimento, construiu-se uma “cultura musical” – de
conteúdos críticos e estética contundente – que tem afetado, de manei-
ra especial, as dimensões identitárias e do pertencimento, e constituído,
assim, uma lógica própria de representação, pautada na inserção social
do grupo étnico-racial. Portanto, o que vem sendo chamado aqui de
identidades negras não é um conjunto de características intrínsecas (ou
naturais) aos negros e negras, mas engloba uma noção política de per-
tencimento construída na tensão entre um processo histórico de mar-
ginalização do negro na sociedade brasileira e as inúmeras respostas,
propostas e alternativas apresentadas por estas populações, como as
canções registradas nos discos que compõem os repertórios da música
negra produzida em algumas cidades da Bahia. As identidades negras
são, enfim, uma posição política plural de defesa da diversidade e que
“implica a construção de um olhar de um grupo étnico/racial ou de sujei-
tos que pertencem a um mesmo grupo étnico racial sobre si mesmos, a
partir da relação com o outro” (GOMES, 2003, p. 172).

Tomando a música como referência, percebe-se que os discursos pre-


sentes nos documentos fonográficos e canções, bem como no universo
que as cercam, edificam-se em uma dinâmica contingente de alteridade.
O impacto destas frequências musicais foi decisivo na Bahia, nos últimos
30 anos, compondo a cena plural dos movimentos políticos e culturais
em consonância com o posicionamento das militâncias negras urbanas.
Repertório das lutas contra a exclusão e a invisibilidade social, as ondas
de Kingston – capital jamaicana – reassumem novos caminhos, sonori-
dades e referenciais de etnicidade, constituindo um resultado singular de
afirmação desta cultura conectiva que atraiu diferentes grupos “nacio-
nais” e foi responsável por revisitar uma visão de mundo intercontinen-
tal, representando, logo, um exemplo genuíno de “estilo étnico de status
global” (Cf. Gilroy, 2001).

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 49


Nesse sentido, é pertinente estudar as “sonoridades” da vida cultural na
diáspora afro-latina, problematizando a noção de Atlântico Negro (ibid.) e
suas reflexões sobre o repertório das práticas musicais no âmbito das “tra-
dições populares” negras, como o faremos mais à frente. Podemos afirmar
ainda que, no bojo das expressões musicais de maior disseminação mundial
a partir da segunda metade do século XX, o reggae é um “estilo de músi-
ca negra que tem seu pertencimento em loci variados do planeta” (GODI,
1998, p. 275). Ele transcende as fronteiras linguísticas e nacionais, e enca-
deia outros laços de etnicidade sobre (e em torno da) produção artística e
histórica do negro. Incorporando novos sentidos, em sintonia com “aspectos
tenazmente locais” (SANSONE, 1997, p. 221) e para além do mundo angló-
fono, a disseminação deste gênero em águas brasileiras representa mais uma
das muitas confluências da cultura negra. Portanto, tornou-se imprescindível
à compreensão desta ressonância, investigar sua existência idiossincrática
na Bahia. Nesses ritmos, fundiu-se uma visão mítica sobre África ancestral
e contemporânea que levam em consideração a diáspora como produto e
desdobramento da escravidão e posiciona-se, acima de tudo, como laço
transnacional entre sujeitos que têm em comum as mesmas raízes, diferentes
origens e um presente semelhante. Em outras palavras,

“[...] deslocadas de suas condições originais de existência, as trilhas sono-


ras dessa irradiação cultural africano-americana alimentaram uma nova
metafísica da negritude ‘elaborada e instituída na Europa e em outros
lugares’[grifo nosso] dentro dos espaços clandestinos, alternativos e públi-
cos, constituídos em torno de uma cultura expressiva que era dominada
pela música” (GILROY, 2001, p. 175).

A irradiação do reggae colocava a Jamaica em destaque como uma


das importantes referências de sublevação do terceiro mundo, alterando
a geopolítica da cultura. A produção fonográfica, bem como as demais
fontes analisadas no período em foco neste livro são bastante elucida-
tivas do processo de subversão que marcou muito particularmente um
novo referencial político-identitário – de uma Jamaica reinventada – e
que serviu amplamente como referencial de resistência e (re)existência
da população negra, bem como em sua ação na ruptura da dinâmica
racial que operava/opera na sociedade.

50 l Fabricio Mota
VIRANDO JAMAICA

A década de 1980 chegava ao mundo com ar de novidade! Na mú-


sica brasileira, diversos artistas que agitaram os palcos e outros meios de
comunicação nos decênios anteriores se consagravam como referências
da contracultura daquele momento no país. A cena sociocultural e políti-
ca, vivenciada dentro e fora do Brasil ao longo da década de 70, era epí-
logo para os conflitos sociais que marcaram os últimos suspiros do século
XX. O esgotamento do regime totalitário-militar brasileiro e a revoada de
movimentos sociais civis, de todas as ordens, são parte de um contexto
mais geral alterado: pelo impacto das lutas civis; pela descolonização das
mentes e dos povos – no continente africano e na diáspora negra – do
arcaico domínio europeu (HALL, 2003; SILVA, 2000); pela ascensão das
ações do movimento Black Power norte-americano e pela visibilidade
emergente de novas manifestações de pertencimento negro presentes na
música, no cinema e na televisão28. Essas imagens ressignificadas foram
transformadas em símbolos e sinais de identificação dos jovens afro-
brasileiros29. As trilhas sonoras daquele período foram sensivelmente
percebidas nos repertórios de inúmeros artistas brasileiros, um resultado
criativo que é hoje parte significativa de nossa memória musical30.

A emergência de movimentos sociais que pautavam a inclusão social


do negro marcou definitivamente a história recente do Brasil. Na Bahia,
a fundação de diversas entidades político-culturais como os blocos afro
Ilê Aiyê (1974), Olodum (1979), Male Debalê (1979), Muzenza (1981),
assim como a fundação do Movimento Negro Unificado (1978), enun-
ciava a mobilização de inúmeros agentes em torno do debate das de-
sigualdades étnico-raciais, propondo assim novas políticas à sociedade
brasileira (SILVA, 2000c; RISÉRIO, 1981; GODI, 1997)31. Interagindo
com renovadas estratégias de intervenção na vida pública, esses agen-
tes propunham uma leitura para o país e seus desenhos futuros (leia-se
democratização) que levava em conta as desigualdades étnico-raciais na
história e na realidade brasileira.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 51


Os impactos destas agitações ecoaram nas décadas de 80 e 90, palco
de contínuas movimentações de artistas negros que dedicaram suas te-
máticas e atividades (música, dança, teatro, artes plásticas, literatura, poe-
sia...) à pesquisa e resgate de um passado ancestral de matrizes africanas,
identificado com a luta contra a invisibilidade social de negros e negras, o
que construiu, assim, um novo paradigma de mobilização social. Em ou-
tras palavras, os anos 80 parecem menos uma “década perdida”32 se vistos
à luz dos movimentos políticos e culturais da população negra.

É nesse contexto que o compositor-músico-cantor baiano Gilberto Gil,


um dos personagens mais influentes e controversos da música popular bra-
sileira no século XX, consolidava sua carreira pelo experimentalismo e pela
sintonia com as influências e tendências sonoras de circulação mundial. Sua
trajetória musical, iniciada nos anos 60, se entende até os dias atuais incluin-
do no currículo uma intensa participação na vida política do Brasil pré e
pós-ditadura. Cofundador do movimento tropicalista, o artista é conhecido
ativista político-cultural, inclinação que lhe rendeu intensas perseguições, al-
guns anos de exílio em Londres33 e uma vasta produção musical reconheci-
damente cosmopolita. Para além da imagem ora vanguardista, ora diplomá-
tica (haja vista sua participação como Ministro da Cultura do Governo Lula
entre 2002-2008), Gilberto Gil é, sem dúvida, uma das importantes referên-
cias na inserção e diálogo com as principais tendências da música negra de
dentro e fora do Brasil, e especialmente a música afro-jamaicana.

A regravação da canção “Não Chore Mais” (disco: Realce, 1979), ver-


são de Gil para “No Woman, No Cry”, de Vincent Ford – já citada em um
dos contos da minha vida particular – imortalizada por Bob Marley & The
Wailers e, também, pelo próprio Gil, trata de uma postura manifesta de
revolta e esperança em uma nova perspectiva de sociedade, de um novo
tempo sem a violência política que tanto marcou as sociedades do terceiro
mundo nesta segunda metade de século XX, violência esta contra a qual
Gil e Marley foram alguns de seus combatentes mais conhecidos. Essa era,
a propósito, a intenção original de Gil, como se vê em seu relato:

“Eu pensava na transposição de uma cena jamaicana para uma cena


brasileira o mais similar possível nos aspectos físico, urbano e cultural.
Emblemática do desejo de autonomia e originalidade das comunidades

52 l Fabricio Mota
alternativas, ‘No Woman, No Cry’ retratava o convívio diário de rastafáris
no government yard (área governamental) em Trenchtown e a persegui-
ção policial, provavelmente ligada à questão da droga (maconha) que
eles sofriam. Essa situação eu quis transportar para o parque do Aterro,
no Rio de Janeiro, também um parque onde localizei policiais em vigília
e hippies em rodinhas tocando violão e passando fumo, como eu cos-
tumava vê-los de noite na cidade. Coincidindo com o momento e que
a abertura política estava começando, ‘Não Chore Mais’ acabou por se
referir a todo período de repressão no Brasil”34.

Observando a letra da canção temos:

NÃO CHORE MAIS


(Gilberto Gil, 1979)
Bem que eu me lembro
Da gente sentada ali
Na grama do Aterro, sob o sol
Ob-observando hipócritas
Disfarçados, rondando ao redor
Amigos presos
Amigos sumindo assim
Pra nunca mais
Tais recordações
Retratos do mal em si
Melhor é deixar pra trás (...)
Não, Não Chore mais
Não, Não Chore mais
Menina, menina
Não chore assim35

A letra em português, com leves adaptações traduz o sentimento da


versão original gravada pelos Wailers:

(…) ’Cause I remember when we used to sit


In the government yard in Trenchtown
Oba-observing the hypocrites
Mingle with the good people we meet
Some friends we have
Some friends we lost

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 53


Along the way
In this Future you can’t forget your past
So, dry your tears
And don’t shed no tears
No Woman no Cry
No Woman no Cry 36

Há que ser considerado ainda que a metáfora da dor como transição é


um conectivo comum entre as muitas histórias de sobrevivência no Atlântico
Negro e está traduzida em muitos de seus repertórios. Esta analogia nos
remete ainda ao que Gilroy (2001) chamou conceitualmente de “sublime es-
cravo” (slave sublime): um traço característico das culturas construídas pelos
escravos – e legadas a seus descendentes – de sublimação da dor pelo prazer
no processo criativo da construção de seus modos de comunicação.

No álbum Realce, outras linguagens explícitas vão ilustrar esta inte-


ração com as novas “metafísicas de negritude” em trânsito naquele con-
texto. A capa traz uma foto de rosto do autor que enfatiza, além de sua
convidativa (e provocativa) descontração, o uso de uma estética negra
nos cabelos e adornos, inspirada nos muitos penteados afro-brasileiros
e, arrisco, nos dreadlocks afro-jamaicanos. A música reggae trouxe, com
sua ampla bagagem de signos, o uso do cabelo como forte representação
étnico-identitária37.

Para além disto, as canções que compõem esse álbum abordam algu-
mas sonoridades e temáticas que fazem parte do universo de referências
socioculturais abertamente marginalizadas na sociedade e que estão as-
sociadas à história das populações negras. Além da presença marcante
do ijexá, ritmo oriundo do candomblé tocado no espaço da rua, a temáti-
ca própria do candomblé é explícita em canções como “Longunedé”, em
que Gil canta a mitologia ancestral da divindade afro-brasileira, marca
esta registrada em outros discos anteriores e posteriores de sua carreira,
o que confere visibilidade a esta cosmovisão de matriz africana.

É uma opinião compartilhada por muitos que este é, do ponto de


vista da produção fonográfica, um dos principais marcos da chegada
do reggae no Brasil (GODI, 2000; SILVA, 2000a). Em entrevista com o

54 l Fabricio Mota
radialista, produtor cultural e colecionador Clóvis Rabelo, que trabalha
há mais de duas décadas com a produção e divulgação do gênero na
Bahia, ele cita um momento bastante ilustrativo dessa história quando
perguntado sobre a primeira vez que teve contato com o reggae. Nas
palavras de Clóvis Rabelo:

“[...] em 1980, ou foi 79, que eu não me lembro, quando eu fui assistir
um show de Gil na Escola de Teatro [da Universidade Federal da Bahia,
em Salvador] ele falou, voz e violão, que ele ia cantar a música de um ja-
maicano que era sucesso e ele cantou ‘No Woman no Cry’. Foi a primeira
vez que eu ouvi... E daí pra cá começou [...]”38.

Ainda diante destas evidências, não podemos deixar de considerar,


como o fez Godi (2001), que a presença do calypso caribenho nos anos
60-70 (forte estilo influenciador do reggae) foi um dos agentes fertili-
zadores das sonoridades afro-caribenhas no terreno cultural e musical
em muitas cidades brasileiras, como Salvador e São Luís do Maranhão
(SILVA, 1995).

Considero, portanto, que a aproximação (inseparável) do reggae com


o estilo citado, no Brasil, contou com uma conjunção de fatores que dizem
respeito ao contexto político-cultural e étnico-identitário que pairava sobre
a Bahia e outros territórios do Atlântico, em consonância com a consolida-
ção do reggae na indústria fonográfica mundial, no contexto da contracul-
tura dos anos 70. Acrescente-se a isto a condicionada entrada do gênero
na cena da música inserida no mercado mundial de entretenimento.

Essa trajetória vem sendo abordada pela bibliografia esporádica que


vem sendo produzida sobre o reggae (SIMON & DAVIS, 1983; WHITE,
1999; ALBUQUERQUE, 1997). Em todos esses trabalhos tem sido co-
mum destacar que a aceitação pública do reggae contou com um certo
trabalho de conversão do público, tentando aproximar a mensagem do
roots reggae às influências da música negra de maior circulação no mer-
cado internacional de então, especialmente o rock e o rhythm & blues.
O documentário Catch a Fire (1999) é uma fonte valiosa para apreciar
a questão, pois apresenta a trajetória de gravação do álbum dos Wailers
lançado em Londres (1972), narrada por alguns dos principais agentes

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 55


envolvidos (músicos, engenheiros de som, produtores) além de registros
raros da realidade social de Kingston e Londres à época. Esse disco39
representa um marco da indústria fonográfica mundial por inúmeras ra-
zões: o conteúdo fortemente político e declaradamente étnico-identitário
são marcas indeléveis, paralelamente ao uso de tecnologias alternativas
de gravação e mixagem, que tornaram possível produzir uma musicali-
dade híbrida, com forte apelo às populações do Atlântico Negro angló-
fono. Além disso, a inserção, em Londres, de instrumentos e sonoridades
mais conhecidas pelo público, colocava o reggae jamaicano no centro
da indústria fonográfica internacional (através da gravadora Island), for-
talecendo, consequentemente, as contraculturas negras no contexto do
capitalismo dos anos 70. Na opinião do produtor-tradutor dos Wailers,
Cris Blackwell, o grupo deveria atingir o mercado fonográfico da Inglater-
ra e EUA, apresentando-se ao mundo como um “grupo negro de rock”.
A capa de Catch a Fire com formato de isqueiro também representou
uma forte estratégia para o mercado, bem como se consolidou como
uma das obras-primas da história da indústria fonográfica. Nas palavras
dele: “Catch a Fire foi um acontecimento”40. Bunny Livingston (um dos
fundadores dos Wailers) descreve, no documentário, esses episódios com
as seguintes palavras:

“Eu, Bob e Peter precisávamos encontrar uma forma que fosse aceitável. Nós
resolvemos fazer um ritmo bem marcado que sugerisse os princípios básicos
do reggae e depois poríamos um pouco de cor aqui e ali que não afetaria o
princípio básico, mas que atrairia o mercado internacional”41.

Ainda comentando as estratégias de sedução mercadológica in-


trínsecas à edificação da música reggae, o baixista Aston “Family
Man” Barret, que teve papel crucial na formação musical dos Wai-
lers – ao lado do irmão baterista Carlton Barret – desde o início da
carreira, afirmou:

“A música reggae é a batida do coração do povo. É a linguagem universal.


E quando ele bate você não sente dor... Estávamos tentando nos expressar
com as letras na melodia. Fazendo um reggae roots com um sabor R&B
[rhythm n’blues] para que se espalhe”42.

56 l Fabricio Mota
Nas palavras do músico, percebe-se como os componentes musicais
diaspóricos foram rearranjados para compor um gênero singular. Carlos
Albuquerque, no livro O Eterno Verão do Reggae, acrescenta que o su-
cesso da canção “I Shot the Sheriff”, de Bob Marley, teria alavancado
novamente a carreira do guitarrista Eric Clapton e, em contrapartida,
provocado o maior interesse das gravadoras na música jamaicana que,
diga-se de passagem, já contava com um time considerável de músicos,
produtores, estúdios de gravação, rádios, etc.43.

É interessante considerar, com efeito, a grande inversão histórica que este


fenômeno provocou. A música reggae foi o estilo que deu, além de divisas
para a Jamaica e alguns de seus artistas, o primeiro astro pop do terceiro mun-
do e uma nova referência étnico-identitária que alteraria profundamente as
políticas culturais negras em todo o Atlântico Negro. Este fato está diretamente
associado à centralidade simbólica que a Jamaica passa a assumir entre artis-
tas e outros intelectuais orgânicos em outros países, como o Brasil.

A presença inusitada da música afro-jamaicana seria percebida pelo


registro sensível da faixa “Nine Out of Ten”, do disco Transa (1972), de
Caetano Veloso, arranjado por Jards Macalé – contemporâneo ao lan-
çamento de Catch a Fire (dos Wailers) – como sugere a letra da canção,
conquanto Caetano nunca tenha feito alusão enfática ao reggae como
contracultura musical, tal qual fez ao rock:

NINE OUT OF TEN


(Caetano Veloso, 1972)
Walk down Portobello road to the sound of reggae
I’m alive
The age of gold, yes the age of
The age of old, the age of gold
The age of music is past
I hear them talk as I walk yes
I hear them talk
I hear they say
Expect the final blast
Walk down Portobello road to the sound of reggae
I’m alive […]

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 57


Além da explícita referência, chamou-me especialmente atenção as
citações de abertura e encerramento em que se apresenta uma vinheta,
que insinua uma tentativa de reproduzir o som do reggae jamaicano
(o resultado é ainda muito próximo de um rocksteady) e que se disse-
minava pelo mundo via Londres e muito mais timidamente os EUA.
Nesse caso, a interação da sonoridade enunciando a mensagem que
se complementa pelas informações da letra é algo digno de referência
pela percepção pioneira do artista, apesar de menos indicativo de uma
relação mais próxima com a divulgação do reggae e sua inserção no
mercado fonográfico brasileiro.

É precisamente na passagem para os anos 80 que o reggae passa a


ter maior reverberação no Brasil. A sintomática gravação de Gilberto Gil
abriu, em certo sentido, as portas para o gênero no mercado fonográfico
brasileiro. Esse era, precisamente, o entendimento da gravadora alemã
Ariola (associada da inglesa Island, de Cris Blackwell), que trouxe Bob
Marley, acompanhado de Jacob Miller (Inner Circle), Junior Marvin (The
Wailers) e outros músicos jamaicanos ao Rio de Janeiro, em março de
1980, para um evento de divulgação do seu staff de artistas. Como afir-
ma Leo Vidigal, Bob Marley era a grande aposta internacional do selo no
país, sobretudo depois da bem recebida gravação de Gilberto Gil (versão
de “No Woman, No Cry”) pelo público e do lançamento do álbum Survi-
val 44, que “já estava girando nos toca-discos de 10 mil brasileiros”45.

Apesar de tratada com razoável expressão pelos veículos de imprensa


da época, segundo Vidigal (2006), a passagem de curta duração do ídolo
jamaicano também deixou marcas em sua obra musical, como atesta o
som da cuíca presente na gravação de “Could You Be Loved”, composta
por Marley durante o vôo da viagem de volta, como afirma Blackwell46.
Deixou também memórias interessantes para alguns músicos baianos da-
quele período. Moraes Moreira, um dos contratados da Ariola à época,
esteve presente em muitos momentos da visita e compôs, segundo o
próprio, uma canção-homenagem ao músico47. Para o reggaeman baia-
no Tonho Dionorina, a passagem de Marley lhe renderia, por motivos
adversos, uma busca pela obra e música reggae. Em sua entrevista, ele
comentou sobre sua impressão do episódio e relatou que entre suas idas

58 l Fabricio Mota
e vindas para o Rio, ao longo dos anos 70, teve a oportunidade de ter
os primeiros contatos com o reggae. Nos anos 80, com a passagem de
Marley pela cidade, o músico comenta, com certo pesar, suas tentativas
infelizmente mal sucedidas de encontrar pessoalmente o artista jamaica-
no. Segundo Dionorina, o fato o estimulou a pesquisar a música de Bob
Marley. Nas palavras dele, “foi o desencontro para o encontro [...]”48.

O fato é que a presença de músicos jamaicanos reconhecidos, a partir


daí, passava a fazer parte, ainda que esporadicamente, da agenda cultural
brasileira e baiana. De acordo com o Sr. Carmelito Carvalho, colecionador
há mais de três décadas e admirador confesso da vida e obra de Peter
Tosh, o cofundador dos Wailers esteve no Brasil (em 1980) participando
de um capítulo da novela Água Viva, exibida no turno da noite ao lado
do intérprete (e então ator) Fábio Júnior e da protagonista Tônia Carreiro.
Além dessa passagem, sabe-se que Tosh esteve no Brasil em outra ocasião
para uma apresentação musical no 2º Festival de Jazz de São Paulo49.

Outra presença de destaque no país, e mais especialmente na Bahia,


foi o cantor, compositor e intérprete Jimmy Cliff. Pelas correntes sonoras
do Atlântico Negro, Cliff já estabelecera uma relação com o Brasil que
remonta a fins dos anos 60, quando de sua participação no Festival Inter-
nacional da Canção (GODI, 2001) e como aponta o raro LP Jimmy Cliff
in Brazil (Philips, 1968). O registro raro (não se trata de reggae, diga-se)
contém doze faixas, dentre as quais, versões de canções da música po-
pular brasileira, interpretadas pelo então jovem cantor jamaicano como:
“Serenou”, cantada em português (pouco fluente, leia-se) e “Andança”,
numa versão intitulada “The Lonely Walker”.

Em fins dos anos 70, Jimmy Cliff apresentou ao público brasileiro o


álbum Follow my Mind (WEA, 1977), lançado inicialmente como com-
pacto, já contendo a canção “No Woman, No Cry”. O novo momento
que vivia a música afro-jamaicana em fins dos anos 70 e propriamente as
mobilizações sociais de cunho étnico-identitário protagonizadas pelos gru-
pos negros citados, trariam-no novamente ao Brasil e, mais exatamente,
à Salvador, no início dos anos 80, onde fixou residência e, durante algum
período, apresentou-se com artistas como Gilberto Gil e Lazzo Matumbi.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 59


Em suma, àquela altura o reggae era, além de convidado VIP do
mainstream das gravadoras, um estilo musical de forte conteúdo crítico-
social e étnico-identitário amplamente divulgado e “cultuado” em toda a
América, como afirmou Carlos Albuquerque (1997). A década que suce-
deu 1980 foi arena política e cultural onde o gênero também se apresen-
tou como alternativa musical. A (auto)afirmação desta musicalidade em
terreno baiano foi produto de uma série de episódios, ora de aceitação,
ora de enfrentamento que, uma vez registrados “sob o signo do som”,
para citar os “malungos” do estado vizinho50, tornaram-se alvo deste tra-
balho de pesquisa.

Compreendo, portanto, que o reggae se inscreve em uma relação


complexa de intercâmbio e invenção de novas alternativas sociais e
políticas mediadas pelo poder expressivo da música. Nesse sentido, a
interpretação que se propõe aqui tenta inserir novas questões para a
compreensão da sociedade baiana à luz, e ao som, destas tradições
inventadas no contexto recente51. Aponta exatamente para a história
de múltiplos enredos e novas tradições musicais, já há muito perce-
bida pela socioantropologia da música baiana e registrada de modo
criterioso pela antropologia episódica de Goli Guerreiro, com uma
ressalva básica: em tempos onde a disputa contra o silêncio (racializa-
do) foi demarcada pela polifonia de cantos e toques autoidentificados
com a ideia de negritude, é prudente analisar com suspeição a trama
alegre de seus tambores52.

Retomando a periodização sugerida lá atrás, percebe-se que é propria-


mente a partir desse contexto que se registra o conjunto de trabalhos mais
emblemáticos da influência do reggae no Brasil. Um dos primeiros registros
desta presença no país é o raro álbum Bahia Jamaica (1979) de Chico
Evangelista e Jorge Alfredo, que consagrou canções como “Rasta Pé” e
“Reggae da Independência” em festivais de música e nas rádios. O título
do álbum é singularmente sugestivo à época, com seu o apelo à identifica-
ção entre duas regiões do Atlântico fundidas num mesmo substantivo com-
posto (Bahia Jamaica). A faixa homônima tem uma letra extremamente
curiosa que tematiza a sabedoria ancestral das “muitas canções que falam
do mar” e o encontro dos países pelo bater dos tambores:

60 l Fabricio Mota
BAHIA JAMAICA
(Chico Evangelista e Jorge Alfredo, 1979)
Quem falou
Tem a cabeça branca
A pele morena
De muitas canções
Que falam do mar
Do mar a Bahia
Tambor que bate aqui
Tambor que bate lá
Bahia-Jamaica
Um ponto de encontro
Entre eu e você

À altura da estrofe: “tambor que bate aqui, tambor que bate lá” sobre-
põe-se a sonoridade de atabaques e agogôs (em compasso 6/8), num tra-
ço característico de alguns sons rituais do candomblé, que se associa ao
argumento central da canção e que se sintetiza no refrão: “Bahia Jamaica
um ponto de encontro entre eu e você”. Esta citação de sons é sintomá-
tica de uma musicalidade identificada com a valorização das expressões
e manifestações negras. É ainda presença marcante, no Bahia Jamaica,
a marcação peculiar e característica do reggae (compasso 4/4 com o 2º e
4º tempos fortes nos instrumentos de harmonia, em contraponto com a
marcação pulsante da bateria no 3º tempo) ao lado de linhas percussivas
de ijexá, fazendo referência ao ritmo tocado pelos afoxés de Salvador.
A faixa “Reggae da Independência” que trata do 2 de Julho (marco da
Independência do Brasil, na Bahia do século XIX) é um outro exemplo
que atesta este argumento. Mais uma vez, as sonoridades dos atabaques,
xequerês e agogôs estão presentes na narrativa musical do festivo histó-
rico. O universo percussivo está fundido com outros elementos elétricos
além do híbrido violão ovation marcando o balanço (ou batida) reggae.

É interessante como algumas imagens do disco ilustram esse sentido


de pertencimento mediado pelo “mar”. A contracapa e encarte do álbum
trazem fotografias, dentre as quais algumas em que Chico Evangelista e
Jorge Alfredo estão imersos nas águas do mar. Esta representação é pro-
fundamente simbólica, uma vez que reforça uma noção de identidade a

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 61


partir do Atlântico. Esse recurso, presente em outros registros fonográficos
da década de 80, ilustra uma posição compartilhada por outros artistas
que fazem parte dos repertórios do protesto negro na Bahia.

Entre estes, destaca-se o cantor e compositor Lazzo Matumbi, uma


das mais emblemáticas referências da música baiana fora do Brasil.
Lazzo, durante os anos 70, foi cantor do bloco afro Ilê Aiyê e ativista
da música negra. Sua contribuição à divulgação das frequências ja-
maicanas no Brasil é imprescindível. Profundamente influenciado pelo
reggae, transitou por vários países do mundo integrando o time de mú-
sicos em uma das turnês do jamaicano Jimmy Cliff53.

Lazzo entrou para o mercado fonográfico com o raro compacto sim-


ples Salve a Jamaica (1981)54, deixando muito explícita a sua aproxima-
ção com a tendência jamaicana e outras matrizes da música negra. No
entanto, em 1983, ao lançar seu primeiro LP Viver Sentir e Amar 55, o
artista revela sua inclinação polifônica buscando atingir um público bas-
tante diversificado56. A faixa de abertura “Do Jeito que seu Nego Gosta”,
de Zelito Miranda e Lazzo, projetou-o para um reconhecimento maior,
aliado ao fato de ser o disco distribuído pela gravadora multinacional
EMI-ODEON. Neste álbum, o reggae é citado entre os muitos gêneros da
música negra interpretados pelo cantor.

Um dado importante diz respeito à banda corresponsável pelos arranjos


de base do álbum, a banda Studio 5. Em muitas conversas com músicos e
produtores, bem como nas entrevistas realizadas, a Studio 5 é citada como
uma das primeiras bandas de reggae da Bahia. Não por coincidência, mui-
tos músicos dessa banda gravaram outros álbuns importantes do reggae
baiano, a exemplo de Reggae Resistência de Edson Gomes (1988), que
será analisado mais adiante. Ao se referir a este grupo, o radialista Clóvis
Rabelo, bem como outros entrevistados, mencionaram a importância dele
como um dos pioneiros a tocar o gênero na Bahia.

Na verdade, há na fala dos entrevistados uma certa polarização em


torno desse dado. O interesse em datar o pioneirismo do “fazer” reggae
na Bahia é, de certo modo, alvo da maioria dos músicos e produtores
culturais que pude dialogar. Na fala de Clóvis Rabelo, que reforça o pio-

62 l Fabricio Mota
neirismo soteropolitano, é possível perceber uma breve tensão em torno
do termo reggae. Em outras palavras, a maior visibilidade dos músicos de
Cachoeira (Edson Gomes, Geraldo Cristal, Sine Calmon, Nengo Vieira e
outros) deve-se a maior popularidade que estes ganharam no mercado
da música no estado. Entretanto, Rabelo faz uma ponderação em torno
do termo reggae que me parece plausível comentar. Ao referir-se à Studio
5 em comparação aos Remanescentes, grupo de músicos, compositores
e intérpretes da cidade de Cachoeira, Rabelo pondera:

“[...] o Studio 5 era uma banda de reggae, mas ele não tinha aquela fi-
losofia reggae, pra mim mesmo a primeira a banda de reggae mesmo foi
a Remanescente, porque os caras eram reggae, os caras ‘comia reggae’,
‘respirava reggae.”

A ênfase no Remanescentes como um grupo “legítimo” de reggae pode


estar associada à maneira como os músicos interagiam e se colocavam
diante da sociedade. Segundo Bárbara Falcón (2001), os Remanescentes
de Cachoeira se destacavam pelo estilo de vida coletiva que lhes rende-
ram, além de um aprofundamento razoável nos “fundamentos” musicais
do reggae, uma intensa resignação cristã pentecostal. De todo modo, sabe-
se que parte desse grupo de músicos atuou na Studio 5 e em parte impor-
tante das gravações de Edson Gomes no início de sua carreira57.

Opinião diferente atesta o cantor e compositor Jorge de Angélica, que


registra uma versão diferenciada e bem disposta do marco inaugural do
reggae baiano. Segundo ele, a primeira expressão musical do gênero fei-
to na Bahia teria nascido em Feira de Santana com a fundação da ban-
da Gana, em início dos anos 80. Jorge de Angélica é enfático ao situar
sua militância no reggae anos antes da aparição de Edson Gomes como
reconhecido representante baiano do gênero. Sua fala revela, como Ra-
belo, um interesse explícito na hegemonia da fundação do reggae. O que
nos parece é que as diferentes narrativas fundacionais revelam também
a disputa em torno da construção da memória.

O interessante nessas posições é notar que há em comum um mesmo


marco cronológico, qual seja, o início dos anos 80. Isto me leva a consi-
derar que, se por um lado, há um interesse político na disputa pela he-

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 63


gemonia do marco inaugural, há também em comum um contexto que
se apresentava favorável à incipiente proliferação do reggae como uma
música executada por músicos baianos. Em suma, é propriamente nesse
contexto que começam a brotar os grupos musicais identificados com a
proposta desta musicalidade58.

Sintomaticamente, ainda nos anos 80, novamente Gilberto Gil traria ao


público outra referência importante para a edificação da influência do reggae
na música brasileira. O lançamento de Raça Humana (1984) tem forte influ-
ência das tecnologias de gravação e sonoridades utilizadas pelos jamaicanos.
Este disco, coproduzido por Liminha, inclui uma faixa gravada com os Wailers
nos estúdios Tuff Gong de Kingston. “Vamos Fugir”, a faixa gravada com os
jamaicanos, é uma das canções de maior destaque na obra.

No entanto, outros elementos chamam a atenção nesse registro. O


primeiro deles é o uso de timbres de guitarra e sintetizadores, além de
realçadas frequências graves e linhas sinuosas de contrabaixo, a exem-
plo da canção homônima ao álbum. Além destes aspectos, relevantes à
compreensão da gama de sentidos em diálogo na produção de uma obra
fonográfica, Raça Humana traz uma canção muito ilustrativa da posição
do artista frente às políticas culturais afrodescendentes:

A MÃO DA LIMPEZA
(Gilberto Gil, 1984)
O branco inventou que o negro
Quando não suja na entrada
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Que mentira danada, ê
Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o negro penava, ê

64 l Fabricio Mota
Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza

Esta leitura musical da História do Brasil, às avessas da historiografia


oficial, denuncia a segregação sociorracial e aborda a participação d@s
negr@s desde as ocupações socialmente desprivilegiadas à edificação de
uma sociedade “limpa” do racismo.

Em linhas gerais, fica visível que a produção fonográfica deste primei-


ro período dialogava com um sentido de antirracismo, que reivindicava o
reconhecimento do racismo pela sociedade como um problema histórico
por ser reparado. As manifestações nos discos são ecos de sucessivas
movimentações sociais nos mais diversos contextos urbanos do país.

A BABILÔNIA DO SERTÃO
E SUAS CHAMAS

O silêncio em torno dos movimentos sociais negros na região de Feira


de Santana (particularmente no contexto da reafricanização) está ainda
por ser preenchido pelos estudos acadêmicos, dado que também se refle-
te na lacuna de estudos que tratem do universo sociocultural desta cidade
– um dos principais centros de confluência do Brasil. Respondendo a esta
demanda, alguns trabalhos produzidos recentemente chamam a atenção.
Investigando as experiências das mulheres negras na virada do século
XIX para XX, o valioso estudo de Karine Damasceno (2011) aponta para
o embrião de uma trajetória de resistência – e (re)existência – da popula-
ção negra pobre de Feira de Santana, concomitante com o processo de
transformação urbana do período. Com abordagem pioneira, a historia-

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 65


dora sinaliza para a ativa participação da população negra, notadamente
das mulheres, impondo suas formas de sobrevivência numa sociedade
visivelmente marcada pelas hierarquias da escravidão59.

Outro trabalho recentemente produzido é a tese de Josivaldo Pires de


Oliveira, defendida em 2010, que tomou como objeto de investigação as
“práticas de curandeirismo” e o universo das religiões de matriz africana
em Feira de Santana na sua convivência tensa com as práticas de repres-
são policial presentes na cidade em meados do século XX, noticiadas na
imprensa e registradas em um universo de fontes judiciais. Mapeando a
presença dos candomblés na vida espiritual da sociedade feirense, o autor
descortina dados sobre a participação dos adeptos nos mais variados es-
paços de sociabilidade concomitante ao surgimento de diversas (e brutais)
formas repressão deste universo “mágico-curativo”, embasadas ora nos
discursos higienistas ainda em voga no Brasil dos anos 40 a 70 do século
passado, ora nos termos do Código Penal de 194060.

Ainda que, no plano da produção científica, esses enfrentamentos ve-


nham sendo abordados progressivamente, do ponto de vista dos afoxés
e outras agremiações culturais da cidade, os anos 80 e 90 foram tempos
de agitação. Ao longo dessas décadas, a cidade foi palco de intensas
mobilizações político-culturais emergentes em torno da “cultura popular”
regional, ao lado de uma singular valorização da negritude e seus agentes
como referencial identitário, como atesta a proliferação de inúmeras en-
tidades ligadas à militância antirracista em paralelo à crescente influência
dos estilos musicais transnacionais na produção cultural local, como indi-
ca o surgimento das primeiras bandas de reggae61.

A completa escassez de materiais sobre esta temática é um dado mais do


que sugestivo da necessidade de se pensar sobre a mesma. Analisando al-
guns dos principais jornais da cidade, dei-me conta da urgente necessidade
de produzir um sistemático estudo sobre a produção cultural de seus agentes
nos conflitos sociorraciais62. Ainda que, provisoriamente, não me dedique
a suprir com riqueza de detalhes esta lacuna, pretendo dialogar com alguns
desses indícios para compreender quais enredos estão por trás da presença
singular do reggae na cidade, que é um dos nascedouros do estilo na Bahia,
e sua relação com os movimentos sociais negros no contexto em foco.

66 l Fabricio Mota
As inúmeras referências nos jornais impressos a respeito das manifesta-
ções da cultura negra de Feira de Santana, entre as quais o reggae é identi-
ficado63, entrecruzadas com algumas informações oriundas de entrevistas64,
permitem considerar que a presença da música afro-jamaicana, naquele
contexto urbano, remonta, como em outras regiões do país, a fins dos anos
70 e início dos 80. A influência e cristalização da musicalidade reggae naque-
le contexto, como em quase todos, não se deu sem fraturas e enfrentamen-
tos. Ao longo dos anos 80, a produção gradativa de reggae esteve lado a
lado com as movimentações dos afoxés e outras entidades ligadas à política
cultural negra. Inúmeras canções gravadas por artistas de Feira de Santana
são oriundas dos repertórios dessas entidades. Para além disso, parte con-
siderável dos compositores e intérpretes (como Gilsan, Jorge de Angélica,
Dionorina, Nunes Natureza, Nilton Rasta e outros) participou como cantores
dos afoxés, além dos mesmos serem corresponsáveis por essas entidades.
Em suma, ao longo das últimas décadas, o reggae era um dos elos de uma
rede de musicalidades negras que vem compondo o ambiente sociocultural
também de Feira de Santana. Em uma entrevista do compositor Carlos Pita
ao jornal Feira Hoje, é interessante observar sua impressão e interpretação
poética da influência do ritmo, alterando cena urbana do lugar:

“Feira de Santana é a babilônia do Sertão e o que lhe separa do mar são


os verdes canaviais do Recôncavo, onde muito da cana plantada nasceu
da dor de mais uma chicotada. É que a história se apaga na veloz e pouco
se falam dos nossos ancestrais [...]. Nessa cidade do ‘reconsertão’, nessa
‘babylouca new caatinga’, eu sinto a presença de reggae, eu vejo jubas de
leão, eu vejo rastas […]”65.

As palavras do artista instigam um olhar mais amplo sobre as influências


destas novas sonoridades negras mundializadas em fruição com elementos de
identificação (intra) regional, como sugerem os interessantes encontros semân-
ticos. Sua ênfase no amargo passado da plantation do Recôncavo está articu-
lada a sua leitura do contemporâneo, onde a presença da estética negra – nas
“jubas de leão” e nos “rastas” – insinua a “presença de reggae”.

Para tentar reconstituir, no entanto, uma História do Reggae de Feira


de Santana é precípuo considerar o universo sociocultural-musical da cida-
de – as micaretas, lavagens, festas de largo, bandos anunciadores e, mais

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 67


especificamente, o surgimento das escolas de samba e posteriormente dos
afoxés – e a relação/conflito que envolve a presença dos afrodescendentes66.
Para não cair em hipóteses imprecisas e “achismos” desnecessários, evitarei
uma genealogia detalhada dessas entidades. Desse modo, atento mais para
as descrições sobre a relação dos afoxés e o surgimento do reggae na cidade,
como o farei didaticamente no capítulo posterior.

É importante levar em conta também a relevância do rádio, no re-


ferido contexto, como veículo de comunicação e aproximação com as
muitas tendências musicais em trânsito no Atlântico Negro, logo, como
um dos ”meios” para aquele novo contato-interação cultural/musical.
Segundo Jorge de Angélica, por exemplo, foi o rádio que o colocou pela
primeira vez diante do som do reggae:

“ […] ouvi uma vez numa rádio AM de Feira, não lembro se foi na Rádio
Carioca. [...] ouvi essa música e fiquei apaixonado pelo ritmo, mas não
tive mais possibilidade de ouvir”67.

Por caminhos diferentes, para Dionorina, o rádio também foi o seu


primeiro mediador com o mundo da música (alguns de seus familiares
foram cantores de rádio e o próprio também se apresentava como cantor
infantil) e, efetivamente, com o reggae:

“A primeira vez que ouvi ‘Stir it Up’ com The Wailers, Bob Marley can-
tando, assim... Era uma música que me chamava a atenção e me prendia
toda vez que eu ouvia. Às vezes quando eu ouvia, ouvia sempre no pro-
grama de Big Boy, que era um programa que tinha de madrugada, de
dez à meia noite na Rádio Mundial do Rio... Eu ficava procurando pra
ouvir, porque nesse tempo só ouvia rádio. Depois começou a aparecer
aquelas radiolas de seis pilhas da Phillips, mas não era todo mundo que
tinha. Uma vez nós nos juntamos três amigos pra comprar. Aí, cada fim
de semana, ficava na mão de um. E durante a semana se juntava tudo em
um lugar pra ficar ouvindo (risos!). Era legal”68.

É plausível registrar que em Feira de Santana (e em outras cidades


certamente), tinha-se o hábito de ouvir, além dos programas de produção
local, os programas de rádio de inúmeras regiões do Brasil e outros países,
a exemplo das locuções da BBC de Londres, para sintonizar-se com as in-

68 l Fabricio Mota
formações do mundo. Se o rádio, os discos e, em certo modo, a TV, foram
meios facilitadores da inspiração, pela imagem e sons, com os referenciais
transnacionais das culturas negras, foi a vivência das contradições sociais
que incendiaram os ideais desses artistas. Um dos primeiros exemplos é a
fundação das bandas Gana e Esperança que, já durante a década de 80,
mostravam seus acordes na cidade. A Gana, fundada por Jorge de Angéli-
ca, tinha em sua formação, além do parceiro Tonho Dionorina, um time de
músicos que foram responsáveis pela popularização do reggae, sobretudo
entre os bairros populosos da cidade, que tinham o grande público alvo:
Nunes Natureza, Paulo Monge, Enfezado, Nilton Rasta, Meire, Pi e outros.
A banda Esperança, liderada por Gilsam, militante negro também ligado
aos afoxés da cidade (inclusive até o presente) é outro exemplo da presen-
ça reggae na produção musical de Feira de Santana.

É central também a interação de alguns representantes das religiões


de matriz africana na construção desse processo. Basta lembrar que o
candomblé foi um dos principais mananciais identitários para se construir
os discursos estético-musicais que são apresentados pelos blocos afro e
afoxés e, neste caso, para a produção local do reggae em particular. Ade-
mais, a filiação direta e indireta desses artistas no culto afro-brasileiro
marcaria singularmente suas leituras musicais69.

NAS MARGENS DO PARAGUAÇU

Um porto de considerável presença das sonoridades afro-jamaicanas


foi, e é, sem dúvida, a cidade de Cachoeira. Situada no Recôncavo baia-
no, Cachoeira faz parte de um conjunto de cidades interconectadas, no
passado colonial, pelas atividades produtivas das plantagens de cana-
de-açúcar e fumo. De todo modo, a paisagem urbana da cidade tem
sido profundamente alterada pelas novas influências e sonoridades das
culturas de massa que, nas últimas décadas do século XX, têm sido forte
demarcador de identidades entre os jovens.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 69


Localização das Cidades Conectadas pela Produção da Música Reggae na Bahia
(Cachoeira/São Félix, Feira de Santana e Salvador)

70 l Fabricio Mota
Detalhe da Localização das Cidades Conectadas pela Produção da
Música Reggae na Bahia

A compreensão desta presença estético-musical vem sendo exausti-


vamente analisada pelo trabalho de Bárbara Falcón, que desde 2001 de-
senvolve pesquisas sobre música e etnicidade entre os grupos da cidade
e, mais especialmente, sobre o reggae de Cachoeira (FALCÓN, 2001).
Basta citar que artistas como Edson Gomes, Tin Tim Gomes, Sine Cal-
mon, Nengo Vieira, Geraldo Cristal e outros são radicados nesta cidade;
eles são (auto) identificados pela autoria de um modo genuíno de “fazer”
– no sentido de tocar – reggae: o chamado “reggae resistência”.

Segundo Falcón, a integração do ritmo jamaicano na cidade dá-se


por influência de uma conjunção de fatores que incluem: a nova inserção
da indústria fonográfica no cotidiano, uma afinidade étnico-identitária,
uma vez que a temática da valorização do negro ganha reverberação
em uma sociedade marcada por formas veladas, e não menos cruéis, de
discriminação sociorracial. Como desdobramento desse contato, nasceu

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 71


o Remanescentes, experiência comunitária musical e religiosa que reunia
musicistas interessados em meditar sobre o evangelho bíblico cristão, sob
a mediação da música reggae. Como ponto de encontro e referência,
estava a residência do músico Nengo Vieira, no bairro da Federação, em
Salvador, no Alto das Pombas, nº 53, onde se reuniam outros artistas à
época. Este grupo acompanhou artistas como Lazzo e Edson Gomes,
com quem gravou os primeiros álbuns de carreira.

A rigor, a música era um veículo de intermediação para a pregação


evangélica à qual se dedicava o grupo e em torno da qual se reuniam os
músicos Sine Calmon, Marcos Oliveira, Tin Tim Gomes e Nengo Vieira,
fundadores do Remanescentes. Nas palavras de Vieira:

“Era tipo um albergue, onde as pessoas conviviam num ambiente sadio,


um ambiente de coletivo, solidário. Se tinha um prato de comida dividia
igualmente pra todo mundo e isso a gente fazia na prática mesmo. E essa
praticidade foi que nos serviu de suporte não só pra hoje, como para o
momento em que nós fundamos o grupo Remanescentes, com a proposta
de evangelizar as pessoas, pregar a palavra de Deus, na verdade”70.

Em uma das canções do Remanescentes, fica registrada a característi-


ca do grupo e sua inclinação comunitária, religiosa e musical:

REMANESCENTE
(Nengo Vieira & Tin Tim Gomes, 1992)
Das margens do Paraguaçu
Em plena América do Sul
Só remanescente ficará
Só remanescente ficará
É a semente do amor
Que brota nesta geração
Buscando a luz, a paz, a vida e a união
E o Senhor já diz em sua palavra
E com sua autoridade
Só remanescente ficará
Só remanescente ficará
Só remanescente ficará, meu Deus!

72 l Fabricio Mota
Paralelamente, emerge da mesma cidade o compositor e cantor Edson
Gomes que, ao longo dos anos 80, despontou como grande aposta da
música reggae no Brasil, fato que se consolidou com o lançamento de seu
primeiro álbum, em 1988. Um dos mais conhecidos músicos do gênero no
Brasil começou sua vida profissional como auxiliar de pedreiro na área da
construção civil71. O gosto pelo futebol o projetou para atuação no time
Cruzeiro (de Cachoeira) pelo qual disputou campeonatos locais72.

A influência da música negra brasileira lhe rendeu, no início de sua


carreira, o apelido de Tim Maia, por causa das canções deste, que é
uma de suas principais referências. Ao longo dos anos 70, atuava como
intérprete em conjuntos musicais da cidade de Cachoeira onde venceu
algumas premiações em festivais estudantis. Ao lado do parceiro Nengo
Vieira, foi aos poucos conhecendo a música afro-jamaicana e arriscando
as primeiras releituras do gênero. Em início dos anos 80, já se apresenta-
va em alguns eventos do circuito artístico-cultural de Salvador, onde foi
aos poucos ganhando visibilidade73. Nas palavras do artista:

“Em 1983, eu percebi que o reggae era o veículo certo para levar mi-
nhas ideias e convicções. Como um elemento negro, eu tinha a opção do
samba, mas não achava este gênero com tradição de luta pelos direitos
dos oprimidos. Então, busquei um gênero musical que casasse com meu
propósito de protestar contra todas as discriminações”74.

Em 1985, a premiação no festival Canta Bahia como melhor intérprete


lhe rendeu a gravação do primeiro compacto com a canção “Rastafary”.
Já nesse período, a rejeição de alguns segmentos da imprensa baiana, a
exemplo da FM Itapoan, freava saltos maiores do artista. Somente em
1987, a premiação do Troféu Caimmy, novamente como melhor intér-
prete, abriu-lhe as portas para a gravação do primeiro disco lançado em
1988, o Reggae Resistência cujo título demonstra a completa adoção do
reggae como estilo definidor da carreira de Edson Gomes75.

De todo modo, essa paulatina descoberta do reggae remonta a um


conjunto de processos que guardam relação com outros movimentos
político-culturais negros da Bahia. É o que será tratado a seguir.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 73


Imagens do clássico Bahia Jamaica (1980)
de Chico Evangelista e Jorge Alfredo.

Encarte do LP (3l0 x 60cm).

74 l Fabricio Mota
Capa de Raça Humana (WEA,
1984). A sonoridade deste disco evi-
dencia a permanente aproximação
de Gilberto Gil com o reggae jamai-
cano. Entre as faixas, “Vamos Fugir”
contou com a gravação e arranjos
dos músicos dos Wailers, banda fun-
dada por Bob Marley.

Lazzo. Viver, Sentir e Amar. Pointer, 1983.

Lazzo. Atrás do Pôr do Sol. Nosso Som,


1988.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 75


Cartaz do I Reggae in Bahia Festival
(REBAFE), em 1988. Entre as atra-
ções: Edson Gomes, Braga Jamaica,
Lazzo Matumbi, Banda Gana, Banda
Frutos e Orvalhos, e outros além dos
blocos afro Ilê Aiyê, Muzenza, Olodum,
Filhos de Gandhy e Obá Guiné.

Cartaz do show Bahia Negra realizado


em julho de 1988, em Feira de Santana.

Cartaz de divulgação do show Pro-


cura-se de Tonho Dionorina e Banda
Gana realizado em setembro de 1986,
no Feira Tênis Clube.

76 l Fabricio Mota
NOTAS

14
O uso do termo “amplificar”, aqui na condição de verbo, é livremente
deliberado e faz referência aos amplificadores: aparelhos eletrônicos de
processamento e reprodução das frequências sonoras, muito utilizados a
partir das primeiras décadas do século XX.
15
O termo “cultura popular” (seus usos e abusos) vem sendo debatido com
vigor por autores e autoras das Ciências Humanas ao longo das últimas dé-
cadas. Não se pretende revisar esta temática no momento. De todo modo
– sem mergulhar nesse profundo debate (mas molhando os pés!) – prefiro
abreviar meus comentários e partilhar da forma como é utilizado o termo por
Milton Santos, além de autores como Mikhail Bakhtin, Carlo Ginzburg e E. P.
Thompson: uma espécie de discurso “de baixo” (SANTOS, 2001, p. 144).
16
SANSONE & TELES, 1997. Obra citada.
17
A “passagem do meio” é uma expressão que designa o trecho mais
longo e sofrido da travessia dos navios negreiros no Atlântico.
18
WALLERSTEIN, 1974; citado por GROSFOGUEL, 1992.
19
Ver DUSSEL, Enrique, 1977.
20
O autor usa a noção de “Pensamiento Fronteiriço”, na versão origi-
nal em espanhol. Na edição traduzida para o português, consta a ideia
de pensamento “Liminar”. Durante sua participação no IX Fábrica de
Ideias, curso avançado de Relações Raciais realizado pelo CEAO em Sal-
vador e Cachoeira (julho/agosto de 2006), Mignolo aproveitou o ensejo
para reforçar essa “errata”.
21
A acepção desse conceito é eminentemente gramsciana; Hall é o
autor contemporâneo que percebeu a contribuição deste pensador ita-
liano aos estudos culturais na dimensão da presença negra na diáspora
(Cf. HALL, 2003).
22
Além disso, a propagação do reggae ilustra certa cissiparidade, haja
vista as inúmeras variáveis como o ragga, roots reggae, raggamuffin, dub
poetry (DAVIS & SIMON, 1983; ALBUQUERQUE, 1997).

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 77


23
SILVA, Carlos B. R. Da Terra das Primaveras à Ilha do Amor: Reggae,
Lazer e Identidade Cultural. São Luís: EDUFMA, 1995.
24
MUZENZA. Muzenza do Reggae, Continental, 1988.
25
BARTH, F. “Grupos Étnicos e suas Fronteiras” In: POUTIGNAT &
STREIFF-FENART, 1998.

Ver Ritmos da Identidade: Mestiçagens e Sincretismos na Cultura do


26

Maranhão (SILVA, 2007).


27
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e Democracia.
São Paulo: Editora 34, 2002. pp. 47-77.
28
O interessante documentário Wattsax: Woodstock da Música Negra,
registra o festival de música negra realizado na cidade de Watt nos Es-
tados Unidos, em 1972, com narração e entrevistas de Richard Prior.
Retrata ainda o cotidiano dos jovens negros no país, da música à religio-
sidade. É um registro precioso dos anos 70!
29
Cf. Silva, 2000.
30
O surgimento de novas variáveis do samba, como o samba rock, samba
funk e sua identificação com a juventude negra, no período, é um dado
que atesta essa informação (SILVA, 1984; SILVA, 2000). A dissertação de
mestrado de Luciana Xavier (no prelo), defendida no programa de Pós
Graduação da FACOM/UFBA é uma das mais recentes produções sobre
o tema. Veremos mais adiante que o samba-reggae é um dos descenden-
tes destas hibridações musicais.
31
A proliferação dos blocos afrocarnavalescos remonta à criação dos blo-
cos de índios, desdobramentos das escolas de samba dos anos 60, em
um contexto permeado por variáveis tecnológicas e midiáticas (cinema,
televisão, gibis) e profundas modificações no território urbano de Salva-
dor (GODI, 1991).
32
Sobre esse conceito ver, GOHN, M. da Gloria. Movimentos Sociais e
Educação. São Paulo: Cortez, 1994.
33
Em muitas entrevistas Gil refere-se a alguns episódios de sua vida em
Londres, como um tempo de sentimentos ambíguos: por um lado, a an-
gústia do exílio, por outro a convivência com a contracultura musical de

78 l Fabricio Mota
grande circulação na Europa (naquela época o epicentro da indústria
fonográfica mundial).
34
RENNÓ, Carlos (org.). Gilberto Gil -Todas as Letras. São Paulo: Cia
das Letras, 1996.
35
FORD, Vicent. Versão Gilberto Gil. In: GIL, Gilberto. Realce, Elektra,
1979.
36
Ibid.
37
Em uma das falas do líder espitiritual rastafári Mortimo Planno, quando
perguntado sobre a vida de Bob Marley, ele enfatiza a centralidade das
tranças como representação de insurgência. Segundo ele, para conter
o “açoite as tranças” de Marley “era preciso cortar-lhes a cabeça”. Ver:
Catch a Fire. Coleção Classic Álbuns, Série 2. Eagle Rock Entertainment,
1999. Agradeço aos amigos do Grupo Cultural Revolution Reggae (Con-
ceição do Coité-BA) pela sugestão e aos professores Paulo Neto e Pinzol
da UNEB (Campus Juazeiro) pela cópia deste material em DVD.
38
Entrevista com Clóvis Rabelo (14/11/2006).
39
Bob Marley & The Wailers. Catch a Fire. Island Records, 1972.
40
Ibid. Este álbum não foi publicado no Brasil com estas características. Ao
que parece, também não o foi na Jamaica como sugere a informação de
Carlos Albuquerque sobre o impacto de Catch a Fire no mercado da música
de Kingston. Ao referir-se ao disco, ele menciona a capa em que aparece
Bob numa fotografia de rosto, ostentando um longo “cigarro de ganja”.
41
In: Catch a Fire. Classic Álbuns, 1999 [tradução: Legendas Videolar].
42
Ibid.
43
ALBUQUERQUE, 1997; ver também WHITE, 1999.
44
Bob Marley & The Wailers. Survival. Island Records (distribuidora Ariola),
1979.
45
VIDIGAL, Leo. “O Rei no Rio: Dreads no Verão da Abertura”. Revis-
ta Bizz, Ed. 201, maio de 2006. Ver também ALBUQUERQUE, 1997,
pp. 71-78. A visita incluiu compras de materiais esportivos, partida de

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 79


futebol com artistas contratados da Ariola (dentre os quais, Chico Buar-
que, Toquinho e Moraes Moreira) e, obviamente, participação na festa
de centenas de convidados no Morro da Urca, além da hospedagem
no opulento Copacabana Palace, recepção digna de um dos maiores
popstars da época.
46
Ibid. p. 78.
47
ALBUQUERQUE, 1997, p.78.
48
Entrevista com Dionorina (24/11/2007).
49
Entrevista com Sr. Carmelito Carvalho (14/12/06). Estes fatos também
ganharam os comentários de Carlos Albuquerque que acrescenta alguns
episódios da polêmica passagem de Tosh pelo Brasil (1997, pp. 103-
104). Na visão do autor, além dos inesquecíveis e mântricos shows, as
outras aparições de Tosh “deram o que falar”. No auge de sua militância
pela legalização da maconha, o cantor e compositor jamaicano ganhou
comentários profundamente pejorativos na imprensa, tais como os do
Jornal do Brasil: “Agora eu tenho que acreditar na abertura. O Maluf
pagando esse criolo pra vir aqui dizer isso?” – comentou um não identi-
ficado jornalista (ibid.).
50
O termo “malungo” significa companheiro e foi inspirado no Daruê Ma-
lungo, grupo afropercussivo sediado em Olinda-PE, forte influenciador dos
engenheiros musicais do movimento manguebeat em Pernambuco. Aten-
tos para as sonoridades afropercussivas de Olinda-Recife e sintonizados
nos ecos de blocos afro e do samba-reggae da Bahia, sem perder as ante-
nas com o dub jamaicano e o afrobeat de Lagos (Nigéria), deram vida, no
ápice do anos 90, a um dos momentos mais expressivos da história recente
da música brasileira. Ver QUEIRÓZ, 2000. O fragmento foi extraído da
canção “Voyager”. Nação Zumbi, Futura. Trama, 2005.
51
Ver HOBSBAWN, Eric. & RANGER, Terence. A Invenção das Tradi-
ções. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
52
GUERREIRO, Goli. A Trama dos Tambores: A Música Afro-pop de
Salvador. São Paulo: Editora 34, 2000 (Coleção Todos os Cantos). A au-
tora aborda as trajetórias da música afropercussiva da Bahia nas últimas
décadas do século XX e sua ascensão para um formato afro-pop-elétrico,

80 l Fabricio Mota
que provocou uma enorme polarização da Bahia como centro produtor
de música e culturas musicais no Brasil.
53
Fonte: www.lazzo.com.br. Site visitado em 21/12/07.
54
Lazzo Matumbi. Salve a Jamaica. Fermata, 1981.
55
Lazzo Matumbi. Viver Sentir e Amar. Pointer Discos, 1983.
56
No texto da contracapa tem-se: “ritmo, balanço, voz, arranjos e sen-
timento, tudo isso num fabuloso disco, cheio de emoção e vontade de
mostrar um trabalho capaz de agradar a todos. [...]”, texto de José Mau-
rício Machine.

FALCÓN, Maria Bárbara Vieira. O Reggae no Recôncavo Baiano. Re-


57

manescentes do Paraguaçu. Música e Identidade Cultural em Cachoeira.


Monografia de Conclusão de Curso. Salvador: UFBA, Departamento de
Antropologia, 2001.
58
É importante citar que, nesse período, são lançados em outras regiões
do Brasil trabalhos importantes com os de Luís Vagner, também um dos
pioneiros a gravar reggae no país ainda em meados dos anos 80.
59
DAMASCENO, Karine Teixeira. Mal ou Bem Procedidas: Cotidiano de
Transgressão das Regras Sociais e Jurídicas em Feira de Santana, 1890-
1920. Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2011.
60
OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. Adeptos da Mandinga: Candomblés,
Curandeiros e Repressão Policial na Princesa do Sertão, Feira de Santa-
na-BA, 1938-1970. Tese de Doutorado. Salvador: UFBA, 2010.
61
Entrevista com Dionorina (24/11/2007). Entrevista com Jorge de An-
gélica (02/08/2008).
62
Agradeço imensamente à Tatiana Farias pelo auxílio solidário na di-
gitalização das muitas dezenas de páginas e recortes de jornal, quan-
do de sua pesquisa no arquivo da Biblioteca Municipal de Feira de
Santana.
63
É recorrente nos jornais a associação entre o reggae como expressão
“do gueto”, “da periferia”, “dos negros do gueto”.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 81


64
Entrevista com Dionorina (24/11/2007). Entrevista com Jorge de An-
gélica (02/08/2008).
65
Matéria: “Contraste da Miséria e da Beleza”. In: Jornal Feira Hoje,
21/03/89.
66
Entrevista com Jorge de Angélica (02/08/2008).
67
Ibid.
68
Entrevista com Dionorina (24/11/2007).
69
Jorge de Angélica registra sintomaticamente que “uma mãe-de-santo”
teria financiado alguns instrumentos musicais para incentivar a formação
da primeira banda de reggae de Feira de Santana. Possíveis conexões
políticas entre a produção musical e o campo religioso em que se ins-
creviam estes artistas serão mencionadas mais a frente no capítulo de
interlúdio.
70
VIEIRA apud FALCÓN, 2001, p. 29. Entrevista em 10/08/01.
71
Ibid.
72
“Perfil Edson Gomes”. Folha do Reggae, nº 02, Fevereiro de 1997.
73
A exemplo do projeto “Bairro a Bairro” com a banda Studio 5. In:
Folha do Reggae, ibid.
74
Revista On line. Agradeço a Bárbara Falcón pela atenção com este e
tantos outros materiais de grande utilidade para esta pesquisa.
75
Ibid. Nas entrevistas com Clóvis Rabelo (14/11/2006) e Jorge de An-
gélica (02/08/2008) e outras fontes impressas, como o jornal citado aci-
ma, é frequente a informação de que Edson Gomes vai, paulatinamente,
aderindo à música reggae como estilo musical definitivo. O próprio com-
positor destaca os caminhos dessa opção.

82 l Fabricio Mota
FAIXA 2

“ÁFRICA A LA JAMAICA,
MÚSICA DA RAÇA”
Don’t care where you come from
As long as you’re a black man
You’re an African
No mind your nationality
You have got the identity
Of an African
[…] ’Cause if you come Trinidad
And if you come from Nassau
And if you come from Cuba
You’re an African
No mind your complexion
There is no rejection
You’re an African

Trecho da canção African de Peter Tosh

[...] mesmo remetendo a fatores que teriam sido criados no passado, o


processo contínuo de (re)construção das identidades étnicas está em co-
nexão com as ideias [e conflitos] da globalização e da fragmentação do
mundo pós-moderno. Portanto, embora o passado – e neste caso especí-
fico, o passado africano – seja constantemente resgatado, é a experiência
comum dos atores no presente, na chamada ‘alta modernidade’, que
produz a matéria-prima para a construção das identidades.

Patrícia Pinho, 2004, p. 67

Nasci no Brasil, mas me considero africano.

Edson Gomes, em 2006


A (re)invenção da África e do ser negro na diáspora, sob o ponto de
vista da música reggae da Bahia, constitui o ponto central deste capítulo.
Dialogo aqui com a produção musical do reggae e sua filiação com o
samba-reggae na Bahia, tentando compreender a construção situada de
imagens em torno de uma história da África e seus “descendentes” na
diáspora negra, no contexto das décadas de 80 e 90, que foram reapro-
veitadas como marco étnico-identitário pelos movimentos negros.

As muitas expressões de identidades negras insinuam que os séculos


de colonização e colonialismo não imputaram as permanências histó-
ricas, epistemológicas e culturais das muitas populações subjugadas à
escravidão, se bem que lhes impôs cicatrizes marcantes. A busca pelos la-
ços matriciais e ancestrais diacríticos que “preservados”, de certo modo,
constituem o universo das culturas negras na diáspora, sempre inseriu a
África como referencial político, geográfico, histórico, simbólico. Cabe,
neste capítulo, inferir sobre a (re)construção das identidades negras em
conexão com novos usos e sentidos políticos e simbólicos do termo “Áfri-
ca” no contexto da globalização, ou seja, representações singulares de
um território heterogêneo e multifacetado.

Para além de um tema acadêmico, este é um processo que tem mobi-


lizado milhares de agentes, desde as multinacionais capitalistas aos mo-
vimentos sociais, em prol da construção das tais novas perspectivas e
contornos mundiais. De fato, não podemos compreender a nova ordem
global (ou “globalitarismo”) sem levar em conta os séculos de coloniza-
ção e subjugo das monarquias nacionais européias sobre as Américas
e o continente africano. Além disto, creio que tem se tornado cada vez
mais impreciso falar em globalização no singular, uma vez que crescentes
estudos vêm apontando a relevância das conexões e trocas “sul-sul” pro-
blematizando, portanto, a noção de centro-periferia como modelo expli-
cativo único e as novas respostas a este cenário multicentrado.

Alguns autores, como Sansone (2000), têm provocado outras hipóte-


ses sobre a relação global-local, enxergando o papel, ainda que incipien-
te, das “trocas horizontais”, nos fluxos globais de símbolos e mercadorias
na base da cultura negra. Para ele, as interpretações em torno da “Áfri-
ca” e dos símbolos de matriz africana têm papel central na produção de

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 85


uma nova geopolítica da cultura, onde a Bahia é um centro referencial.
Este fenômeno estaria ligado ao surgimento de uma série de “políticas
de identidade”, o que chama de “nova onda étnica”, que foi desdo-
bramento do processo de redemocratização do país, a partir dos anos
80. Sansone aponta ainda que parte desta identificação com um tipo de
“África”, que se tem no Brasil e, particularmente, na Bahia, foi produzi-
da sob influência dos muitos pesquisadores estrangeiros – como Melville
Herskovits, Roger Bastide e Pierre Verger – cujos olhares quase sempre
atentavam para os “traços culturais”, “hábitos sociais” e outras formas
de “africanismos”76.

A respeito dos olhares sobre a cultura africana, que pode ser tranquilamente
lida como afro-americana também, Femi Ojo-Ade ressalta dois extremos inter-
pretativos: de um ponto de vista “escandalosamente falso e racista”, inspirado
nos “conquistadores”, a visão reducionista de um “ethos africano” primitivo,
quintessencial e selvagem; de outro lado, os “defensores da África” (de todas
as partes do mundo, inclusive alguns intelectuais africanos) que “acabaram
proclamando-a como monólito paradisíaco e idílico”, o que “não é menos
escandaloso por sua natureza simplista” (OJO-ADE, 1995, pp. 37-38). A ava-
liação descontente de Ojo-Ade é tão cabível quanto questionável, pois instiga
perguntarmos sobre as relações sociais que são/foram pano de fundo destas
posições. A premissa do “conquistador”, tão longamente ratificada, dispensa
maiores comentários, uma vez que há, ainda, infelizmente, larga produção
bibliográfica e paradidática que lhes dá suporte como analisado no trabalho
memorável de Ana Célia da Silva (2001)77. Tentando entender o outro lado
da questão, acrescento que há, no interior de determinadas visões, mais do
que puro simplismo. No terreno da cultura baiana dos anos 90, o esforço
político-cultural de valorização das imagens em torno da África, na dimensão
da produção musical, projetou, em muitos casos, uma visão largamente miti-
ficada, mas não necessariamente estanque. A predominante crença em uma
“África-fonte-de-todo-saber”, presente nos discursos dos blocos afrocarnava-
lescos, como identificou Patrícia Pinho (2004), é um exemplo concreto desse
fenômeno. Analisando criticamente essas “falas” e sob a análise dos docu-
mentos fonográfico-musicais, mais adiante, sugiro que alguns discursos “afro-
centrados” são menos uma declaração simplista e mais uma resposta possível
ao mito sobrepairante da “Europa-fonte-de-todo-saber”. Há muitos sentidos

86 l Fabricio Mota
em jogo neste novo olhar, para além da dualidade aparente, sobretudo se
considerada a intensa mobilização artística no enfrentamento das ostensivas
imagens depreciativas do negro, presentes em grande parte das produções
veiculadas pelos meios de comunicação da sociedade brasileira ao longo das
últimas décadas do século passado78.

Esse processo de disputa no campo dos significados (e para além


dele), inscrito entre os anos 70 e 80, é compreendido aqui como “reafri-
canização” que, segundo Osmundo Pinho, é:

“[...] a nova inflexão dada à agência [agency] social, política e cultural


afrodescendente em Salvador [e em outras cidades da Bahia como pude
observar, acrescento], marcada pelo uso de símbolos ligados à africani-
dade e por uma interação determinada com a modernização seletiva bra-
sileira, caracterizada, ao mesmo tempo, pela conexão desterritorializada
com fluxos simbólicos mundiais e da diáspora” (2005, pp. 127-128).

Identifico que a busca pela África como paradoxo e contracultura do


extremo ocidente, remonta também aos movimentos negros na virada dos
séculos XIX para XX, destacadamente com o surgimento e circulação das
ideias pan-africanistas. A América foi o expoente do nascimento e divulga-
ção das ideias de retorno à África (HOWE, 2000), como ilustra a gama de
movimentos pan-africanistas e lideranças que recolocaram as demandas e
questões das populações negras nos debates internacionais de direitos hu-
manos. A atuação e as produções de intelectuais, como Marcus Garvey,
Aimé Cesáire, W. E. B. Du Bois e tantos outros que investiram profunda-
mente em compreender os muitos legados herdados das sociedades africa-
nas pelos seus descendentes espalhados no Novo Mundo, confirmam esta
opinião. Neste esforço, contribuíram para a constituição de novas tradições
sedimentadas numa “África imaginada”, vista do Caribe (e outras margens
do Atlântico) que agitaram os primeiros tempos do século XX, colocando
“na mesa das novas sociabilidades uma compreensão de alteridade mar-
cada pela pluralidade étnica”79. Estes movimentos ressignificaram a noção
pejorativa e essencialista construída (pelas muitas linhagens do pensamento
social europeu) em torno da História da África e de seus sujeitos de origem,
destacando as contribuições dos negros para a construção da modernida-
de.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 87


De maneira incisiva esses movimentos colocavam em cheque o pa-
radigma evolucionista da ciência racial em voga no período ao passo
que desmontavam a trajetória do pensamento racial no período colonial,
onde era amplamente questionável a capacidade racional do negro afri-
cano (DESAI, 2001, pp. 20-21).

Observando um mapa do continente africano, adaptado do origi-


nal publicado em 1914, fica nítido o violento projeto anticivilizatório
do imperialismo defendido pelas nações européias – assentado nas
teorias raciais do século XIX – pela representação geopolítica da pre-
sença destes Estados. Curiosamente estão fora dessas demarcações a
Libéria – Estado construído sob a prerrogativa de fundar uma nação
de “retornados” da escravidão no Atlântico Norte – e o Império da
Etiópia. Este último foi palco de um episódio representativo para a
produção de um novo referencial sobre a África imaginada e, portan-
to, das nascentes ideias pan-africanistas.

Essa ligação memorial com a África foi tematizada por algumas enti-
dades carnavalescas em Salvador e outras agremiações do gênero entre
fins do século XIX e início do XX. Raphael Vieira Filho (1997) anali-
sa entre os “folguedos negros” a presença marcante de clubes como
os Pândegos da África e Clube da Embaixada Africana. Este último,
fundado em 1895, desfilou nos festivos do carnaval de 1897, homena-
geando a Independência do Império da Etiópia, diante da notícia da
vitória deste sobre as tropas italianas na luta contra o neocolonialismo
europeu em 1896.

O Manifesto da Embaixada publicado nos jornais Correio de Notícias


(27/02/1897) e A Bahia (28/02/1897) registra a posição política na ho-
menagem da entidade a partir da organização do cortejo:

“[...] o préstito está assim organisado:

Seguir-se-há bem organisada banda de musica, preparada pela ‘digna co-


lônia africana desta cidade’ para acompanhar a Embaixada. Trajará notá-
vel costume algeriano, executando em seu trajecto os dobrados Fortunato
Santos, Menelik, Makonem, etc. [...] Dois Trombeiros trajando costume
abyssinio, anunciarão a passagem do victorioso Menelik, negu dos negus,

88 l Fabricio Mota
Colonialismo Europeu e Império Otomano no Continente Africano em 1914

Mapa adaptado do original de WESSLING, 1998

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 89


que por homenagem ao Rei da Zululandia empunhará o glorioso estandar-
te da Embaixada Africana [...]. O negus dos negus será acompanhado por
dois ministros, os quaes trajarão rico vestuário de gala. [...] seis Ras [chefes
etíopes] empunhando espadas formarão a guarda de honra Imperial”80.

A homenagem a Menelik II, então imperador da Etiópia, comprova a


ligação dos negros de Salvador com os acontecimentos do continente africa-
no em fins do século XIX, fenômeno que se revela também no relativo fluxo
de africanos entre os portos de Lagos (Nigéria) e Salvador81. Cabe salientar
ainda que a Embaixada e outros clubes negros da época mostravam uma
imagem da África que convergia estrategicamente para os ideais de “civiliza-
ção” da sociedade, presentes nos desfiles do “Carnaval Moderno da Bahia”.
Esta estratégia representava uma contraposição sociorracial à hegemonia da
elite dominante – representada pelos clubes freqüentados, exclusivamente,
pelos “brancos”, como o “Cruz Vermelha”, que ganhava notória aceitação
pública, como se registra nos veículos da imprensa local82.

Sabemos que esse fato histórico trouxe/incitou na América as ideias


de “retorno” mítico sobre a África (a começar pelo nascimento do pan-
africanismo na Jamaica), cujos registros aparecem em grande parte da
produção musical do reggae. De todo modo, o olhar para esse exemplo,
deve guardar as devidas proporções que o distanciam, no tempo históri-
co, do contexto que ora se apresentava em fins do século XX, sob o qual
venho tecer as análises a seguir.

OS GUERRILHEIROS DA JAMAICA
VÃO ATACAR

Na Bahia da segunda metade do século XX, as intensas mobilizações


em torno de novas identidades negras inspiradas numa concepção “afri-
cana” de mundo têm relação com o contexto dos movimentos pela des-
colonização “das mentes e povos” do continente africano (HALL, 2000)
– o que incluía guerras civis em quase todos os territórios nacionais do

90 l Fabricio Mota
continente. Ainda neste contexto, destacam-se as lutas em prol dos direi-
tos civis em toda a América, com maior visibilidade nos Estados Unidos,
além das trilhas sonoras consoantes com este fenômeno: o funk, soul
music e o reggae que ganhava proeminência no mercado fonográfico e
programas de rádio.

O álbum Survival de Bob Marley & The Wailers (Island, 1979) é um


registro sintomático deste momento. Além de pautar, ao longo de todo o
repertório, o estado das lutas de libertação nacional no continente afri-
cano, às voltas da década de 70, o material gráfico da obra, produzido
pelo art designer Neville Garrick, é profundamente representativo desse
debate ora apontado. No front da capa, a imagem do mórbido interior de
um navio negreiro (slave driver) contrasta com o título da obra – Survival
– que se superpõe a esta. Como pano de fundo, imagens das diferentes
bandeiras de nações africanas que conquistaram a independência sob o
custo das tortuosas guerras civis, ao longo do século XX.

No Brasil, esse processo contou com a movimentação de inúmeros


ativistas negros das mais diversas áreas e artes e foi amplamente marca-
do pelo registro musical, como analisou “Salloma” Silva (2000). As mui-
tas Áfricas reinventadas aqui foram reveladas ao longo de um processo
onde parte da produção cultural e, portanto, a música erguiam-se contra
a nova ofensiva do capitalismo pós-guerra sobre o continente africano
e tomava-o como referência contra toda a desigualdade sociorracial da
sociedade brasileira. Em outras palavras, as canções, e seus sujeitos (pro-
tagonistas ou coadjuvantes), se colocavam contra “a memória de uma
certa ocidentalidade americana e de uma nacionalidade brasileira em-
branquecida” fazendo reapropriações da historiografia e trazendo novas
leituras fundamentadas em um referencial sobre a África, que destoava
do establishment e sintonizava-se com determinados segmentos da pro-
dução intelectual negra83.

Para além dessas novas tradições, a influência das sonoridades ne-


gras (e seus conteúdos político-culturais) alteraria substancialmente esse
processo de autoafirmação. Nas valiosas notas de Carnaval Ijexá, Anto-
nio Risério (1981) registrou esse novo cenário-cadinho de africanidades,
onde coexistiam as revisitadas tradições de matriz africana em consonân-

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 91


cia com a circulação global de ritmos afro-americanos, no contexto da
segunda metade da década de 70. Estas matrizes transnacionais em rela-
ção ao enfrentamento da realidade local-nacional foram a matéria-prima
para o surgimento dos blocos afro e, mais especificamente, do Ilê Aiyê.
Essa leitura criativa foi profundamente incômoda à sociedade dominante
da época, como fica evidenciado em um dos registros da imprensa local,
veiculados no jornal A Tarde, sobre o desfile do Ilê Aiyê, em 1974:

“Conduzindo cartazes onde se liam inscrições tais como: ‘Mundo Negro,


‘Black Power’, ‘Negro para você’, etc., o bloco Ilê Aiyê, apelidado de ‘Blo-
co do Racismo’, proporcionou um feio espetáculo neste carnaval. Além
da imprópria exploração do tema de imitação norte-americana, revelando
uma enorme falta de imaginação, uma vez que em nosso país existe uma
infinidade de motivos a serem explorados, os integrantes do Ilê Aiyê – to-
dos de cor – chegaram até a gozação dos brancos e demais pessoas que
observavam o palanque oficial. [...] Não temos, felizmente, problemas ra-
ciais. Esta é uma das grandes felicidades do povo brasileiro. A harmonia
que reina entre as parcelas provenientes das diferentes etnias constitui, está
claro, um dos motivos de inconformidade dos agentes de irritação que bem
gostariam de somar aos propósitos da luta de classes o espetáculo da luta
de raças. Mas isto no Brasil eles não conseguem”84.

A reação do jornal (que traduz a impressão dos agentes e, de certo


modo, de parte do público leitor) revela uma ideologia dominante cal-
cada no “mito da democracia racial”, que contestava o uso da temática
norte-americana, no tocante à questão das relações raciais. Esse fenô-
meno dos movimentos negros pôde ser registrado em inúmeros outros
estados brasileiros e foi percebido pelas atenções de alguns intelectuais
antenados com o novo quadro. Osmundo Pinho (2005) ressalta que,
contemporâneo à publicação de Risério, Carlos Benedito R. Silva apre-
sentara, pioneiramente, uma comunicação sobre o movimento Black
Soul de Campinas no Grupo de Trabalho “Temas e Problemas da Po-
pulação Negra no Brasil”85, onde analisava que as formas modernas e
transnacionais da cultura negra passavam a operar como articuladoras/
mediadoras da identidade negra, para além das formas “tradicionais” de
cultura negra, entendidas como “de origem africana”. As formas moder-
nas e transnacionais de cultura negra passariam, a partir desse momento,

92 l Fabricio Mota
a operar “como uma manifestação cultural que os identificava de alguma
forma (pelos tipos de roupa, dança, música, etc.)”86, impressão que é
marca definitiva de sua produção intelectual.

Não posso deixar de comentar o uso aparentemente polarizado que


termos como “tradição” e “modernidade” revelam; a meu ver, menos
uma hierarquia (e dicotomia) entre eles e mais a tentativa de entender a
dinâmica que girava no interior das transformações socioculturais do pe-
ríodo. Enxergando com os olhos de hoje, compreendo que utilização do
termo “tradição”, já àquela época, não implicava a manifestação estática
de expressões da cultura, o que se revela na aplicação do termo “moder-
no”, que pode ser traduzido como “invenção de novas tradições”, ten-
dência que mais tarde seria amplamente debatida por alguns teóricos87.

Em suma, essa tendência – sintomática de um novo olhar acadêmico


sobre a música – passou a fazer parte de inúmeros outros trabalhos das
Ciências Humanas e Sociais Brasileiras (GODI, 1991 e 2001; PINHO,
1997; LIMA, 1997; VEIGA, 1998; VIANNA, 1988 e 1995; GUERREIRO,
2001; SANSONE, 1997 e 2004; e muitos outros) que buscavam compre-
ender o processo de mundialização da música, suas singularidades e rea-
propriações no terreno da cultura brasileira. Seguindo essa trilha, hoje, é
profundamente frutífero problematizar a relação entre as tais influências
“modernas e transnacionais” e o florescimento de novas metafísicas de
negritude, aliadas aos seus muitos usos simbólicos das imagens locais e
globais sobre a África e, posteriormente, sobre a Jamaica, registradas nas
canções do reggae produzido na Bahia.

Nesse sentido, a história do reggae na Bahia confunde-se, em grande


parte, com os muitos capítulos da história do movimento negro88 baia-
no, registrados nas canções dos blocos afro. Sua presença e cristalização
como referência cultural-musical no cenário baiano, na década de 80,
remonta, portanto, aos movimentos culturais negros do decênio anterior,
onde os blocos afro foram grandes agentes multiplicadores89. Se a funda-
ção do Ilê Aiyê apontava para um novo capítulo da participação negra
na luta por direitos civis e pelo fim das desigualdades raciais no Brasil,
a fundação dos blocos Olodum e Malê Debalê, em 1979, e Muzenza,
em 1981, representa mais um passo nesta direção com uma flagrante

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 93


diferença: estes últimos são corresponsáveis pelo diálogo com a música
reggae e seu manancial simbólico, bem como pela reinterpretação recor-
rente das sonoridades da música no contexto da mundialização. Se, nos
anos 70, houve a influência das musicalidades de tendência globalizante
da diáspora negra, que estiveram mais ao alcance do comportamento e
menos interferindo nas formas musicais locais, os anos 80 assistiram às
mesclas inusitadas das raízes do samba com o reggae (GODI, 2001).

No livro Reinvenções da África na Bahia, Patrícia Pinho (2004) consi-


dera a nova centralidade dos países do Caribe (Cuba e Jamaica mais es-
pecialmente) e EUA como material-referencial simbólico para as canções e
estéticas dos blocos afro, mais precisamente em fins dos anos 80. Naquele
contexto, algumas entidades começavam a inserir, em seus repertórios, can-
ções que contemplavam e enalteciam “países reconhecidamente marcados
por uma forte cultura negra”, em especial do Caribe, interagindo com uma
noção de identidade com a África, que incluía a própria diáspora africana
como manancial simbólico (PINHO, 2004, p. 39). Neste sentido, a Jamaica
e Cuba passam a ser um novo referencial, na geopolítica da negritude, que
foi sendo apropriado ao universo cultural baiano, trazendo por parte dos
músicos uma busca pelas sonoridades negras destes territórios do Atlântico.

Na produção musical desse período, vislumbrou-se uma multiplici-


dade de apropriações da historiografia que, vista de ponta a cabeça,
interagia com novas leituras da África como “comunidade imaginada”90,
no contexto da diáspora. No carnaval de 1982, o Olodum nos dá um
exemplo desta leitura desfilando com o tema “Guiné Bissau – Estrela
da Revolução Africana” e entoando a canção “Reggae do Olodum”, de
Alírio Tumbaê, que menciona em um dos trechos:

Toda Negrada
Não vai sobrar nenhum
Dançando Reggae
Sexta-feira no Olodum [...]91

A memória das lutas anticolonialistas no continente africano aqui está


fundida a uma identidade negra que encontra, no reggae, um elemento
aglutinador. Cabe lembrar que, a essa altura, o gênero ainda não gozava de

94 l Fabricio Mota
maior visibilidade nas rádios ou lojas de disco, sendo executado “nas vitro-
las de alguns negros antenados e imersos na militância étnica” ou girando
nos prostíbulos e bares do antigo “Maciel-Pelourinho”, território de Salvador
onde nasce a entidade carnavalesca e que se tornou, posteriormente, um
dos cartões de visitas da cidade92. A sintonia com o universo afro-caribenho
ficou registrada também em canções entoadas no carnaval de 1986 (com o
tema “Cuba”), como “Um Povo em Comum Pensar”, de Suka, que evoca
uma noção imaginada de identidade negra latino-americana:

Olha esse som latino


É de lá de Cuba
Onde pra ter direitos
Nada nos custa não
Latinamente um povo negro a cantar
Bate em minha mente
Um povo em comum pensar [...]93

Cuba é vista, inusitadamente, como referência política e étnico-identitá-


ria. A canção traz uma leitura do quadro da política internacional, em sin-
tonia com a posição geopolítica do país caribenho no contexto da Guerra
Fria – um estado socialista, acossado pelo embargo econômico dos EUA e
visto, por outro lado, por centenas de movimentos sociais como experiência
democrática a ser seguida. Em associação com estas questões, a imagem
construída em torno do canto latino de “um povo negro em comum pensar”
sugere uma identificação polifônica, quando provoca o ouvinte a levar em
conta os traços de africanidade que une as duas realidades nacionais. Exem-
plo parecido aparece em “Sueños Lejos” (1986), de Tosta Passarinho:

Canta Cuba Olodum


Cuba encanta
Espanta os males, pra beleza conquistar
Cuba te vejo daqui
Mesmo sem ter ido lá
Meu passaporte brasileiro carimbado
Me proibindo de em Cuba entrar
É uma ofensa a Cuba
Um desrespeito a mim
Vejo o projeto Mamnba94

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 95


Sou mais o projeto Mamnba
Mama Cuba
Mambo Cuba
No carnaval daqui e de lá
Mama Cuba
Mambo Cuba
Manda um fiel, Fidel
Voar pra cá
Pra essa zorra melhorar95

A celebração da “Cuba Revolucionária” presente nesta canção con-


tracena com as muitas chamadas identitárias a partir de expressões como
“Mama Cuba”, que parece parafrasear “Mama África”. Este dado me ins-
tiga a considerar o caráter dinâmico e situado do uso político dessas ca-
tegorias identitárias de negritude, reinventadas na diáspora. O argumento
de Suka e tantos outros compositores, entoado pelo Olodum em praça
pública, vai ao encontro de outras tentativas de mapear possíveis conexões
(“comum pensar”) afro-latino. Não é à toa que Lélia González (1988) tenha
se preocupado em compreender essa relação buscando uma categoria de
análise que mensurasse a história e vida das populações afrodescendentes
no contexto (afro) latino-americano, tema ainda pouco explorado.

A categoria de “amefricanidade” é a tentativa de propor uma sínte-


se analítica dos impactos do colonialismo europeu sobre os continentes
africano e americano (e seus agentes), e dos novos impactos da reestru-
turação social decorrente do processo de emancipação política iniciado
no século XIX, que reificou uma “nova” hierarquia racial baseada na
ideologia da “superioridade branca” (LANDER, 2000; QUIJANO, 2000;
HANCHARD, 2001). Gonzáles (1988) reconhece – e este é um ponto
crucial do artigo – a experiência histórica que envolve os continentes e
problematiza a emergência de relações sociais (e de identidades) fundi-
das neste “espaço”, que tornaria plausível pensar em laços comuns entre
as populações negras da América Latina. Arriscaria dizer que, por cami-
nhos diferentes e motivações próximas deste compositor-músico, está em
jogo a compreensão de nossas diferenças, tomando por base o traço de
africanidade como similitude à realidade caribenha. Imagino que este é
um debate que ainda pode render mais considerações.

96 l Fabricio Mota
Esse tipo de referencial esteve presente em grande parte dos discur-
sos estético-musicais do reggae produzido no Brasil (dadas as propor-
ções, na Jamaica também). Nadando contra as correntes, a busca pela
“África mãe”, inseria a Jamaica como parada obrigatória e, posterior-
mente, como destino propriamente dito. Vista como terra do reggae e
de ícones da música negra como Bob Marley, Peter Tosh, Jimmy Cliff
e Linton Kwesi Johnson, a Jamaica, e sua história moderna, também
foi alvo de inúmeras canções dos blocos afro e de artistas ligados ao
gênero na Bahia, situadas entre os anos 80 e 90.

Entre os blocos afro de Salvador, o Muzenza, fundado em 1981,


tem uma singular relação com a musicalidade reggae. Mais conheci-
do como “Muzenza do Reggae” ou “O Mestre do Reggae”96 foi uma
das entidades que se mobilizou em torno da valorização da música e
cultura afro-jamaicana como contracultura negra da diáspora, dando
um sinal maior de afinidade estética, política e musical (VEIGA, 1997).
É o que se verifica no LP intitulado Muzenza do Reggae gravado em
198897. O elenco de questões abordado nas canções deste álbum sina-
liza, obviamente, para o contexto em que se inseriu o mesmo. Não se
pode esquecer que 1988 foi palco de tensões das mais diversas ordens
no Brasil e na América Latina.

No quadro internacional, assistia-se, por um lado, à crescente e anun-


ciada derrocada do Leste (soviético) europeu e, por outro, aos muitos
levantes guerrilheiros armados que efervesciam na América Latina, em
países como a Bolívia, Venezuela e Nicarágua, além dos conflitos civis
em países do continente africano como Moçambique, Angola e África
do Sul. No Brasil, vivia-se sob a expectativa da promulgação de uma
constituição nacional, que foi produto de intensas movimentações civis
com o fim do Regime Militar e que renderia os princípios norteadores do
tão esperado pleito eleitoral presidencial, depois de décadas de violência
política e social. Do ponto de vista dos movimentos negros, esse foi um
momento crucial de disputa contra as comemorações do centenário da
publicação da Lei Áurea e seu silêncio à história do negro e, consequen-
temente, às políticas de reparação social e reconhecimento do racismo
como um problema da sociedade brasileira.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 97


É propriamente sob este prisma que as 10 faixas do álbum desenrolam
suas mensagens de protesto. O disco apresenta uma leitura da África, men-
cionando o quadro das guerras civis, em sintonia com a luta antirracista na
Bahia e sob a mediação da Jamaica e da música reggae como referenciais.

A autodenominação “Guerrilheiros da Jamaica” é um exemplo sugestivo


dessa leitura multicentrada. O termo “guerrilheiro”, nesse contexto, pode estar
associado à popularidade das guerrilhas armadas em todo o continente ame-
ricano. A conjunção com o termo jamaicano revela uma apropriação criativa
de uma identidade nacional que serve como recurso étnico-identitário.

É interessante notar, no entanto, que não está presente neste, nem em ou-
tros exemplos, a busca por uma identidade supranacional latino-americana,
mas étnico-referenciada, com a imagem da América Central afro-jamaicana
difundida pela música reggae. Na canção “América Central” (composição e
interpretação de Nego Tenga), esta conexão fica bastante explícita:

América Central
América Nagô
América Jamaica
Onde o Rei Bob Marley descansou [...]98

Em canções como “Guerrilheiros da Jamaica” (Ythamar Tropicália e


Roque Carvalho) e “Sexta-feira” (Tatau), o uso da Jamaica deixa explíci-
ta a leitura de uma identidade negra que tem na África e neste país fortes
referências simbólicas para a edificação do pertencimento negro. Nesta
última, apresenta-se uma leitura interessante que insere os garis, cate-
goria profissional que cuida dos serviços de higiene sanitária da cidade,
como um segmento representativo desta nova metafísica de negritude:

SEXTA-FEIRA
(Tatau, 1988)
Sexta, sexta, sexta-feira
Os Guerrilheiros da Jamaica vão atacar
Sexta, sexta, sexta-feira
De carnaval
Eu vou, eu vou
De Muzenza

98 l Fabricio Mota
As tropas amarram os canhões
Muzenza traz a munição
Os garis nos faz alertar
Que os Guerrilheiros da Jamaica vão atacar.
Os garis nos faz alertar
Que os Guerrilheiros da Jamaica vão atacar99

A Jamaica retratada nas canções é um referencial de identificação étnica,


musical e geopolítica. Em quase todos os casos, esta interrelação é represen-
tada através do ícone do reggae, o jamaicano mais conhecido em todo o
mundo, Bob Marley, que é motivo de inúmeras citações musicais. Na canção
“Brilho e Beleza” o intérprete faz uma referência direta à imagem construída
em torno do músico, visto como rei pelos agentes do bloco afro.

A figura de Bob Marley, amplamente conhecida da indústria cultural


nos anos 70 e 80, aos poucos foi convertida num poderoso referencial de
identificação com a cultura negra local, figurando ao lado de outros tantos
“reis” negros e/ou africanos que habitaram o universo polifônico do protesto
negro brasileiro. Godi (2001) argumenta que a morte de Bob Marley em
11 de maio de 1981 teve também enorme repercussão no calendário do
movimento negro baiano. Desde então, o mês de maio deixa de guardar ex-
clusivamente a comemoração (e as reações contrárias também) da Abolição
e passa a ser identificado por uma tradição recente, revigorada pelos tributos
a Bob Marley. Em Salvador, o 11 de Maio é o “Dia do Reggae”, conforme
decretado pela Câmara Municipal da Cidade.

Entre representações míticas da África e da Jamaica e autonarrativas


“apocalípticas”, como sugere Ericivaldo Veiga (1997), o Muzenza teceu, e
ainda o faz, parte considerável das redes que trouxeram o reggae para o
cenário cultural musical de Salvador. Uma das canções mais conhecidas
do Bloco traça uma imagem exuberante da passagem deste na Avenida:

[...] E a infinidade do seu canto trouxe vida


Pra essa raça tão sofrida
Raça negra, raça negra
Criticada e oprimida
Mas com fé com brilho o Muzenza desceu
E diga valeu

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 99


E no beco o menino gritou: Muzenza
É amor, é amor, é amor: Muzenza
E do céu Bob Marley Cantou: Muzenza
Iô, iô, iô, iô, iô, iô, iô, iô, iô: Muzenza
E a terra tremeu
E o céu mudou de cor
Mudou de cor
E o bloco do reggae chegou
Muzenza Jamaica-Salvador
Yes, Jamaica Salvador

Ainda enfatizando a Jamaica em seu universo temático, o bloco afro


Olodum, como já citado, também tem sua parcela de contribuição nesse
processo. Em inúmeras canções do carnaval de 1989 (que tematizou a
Etiópia), estiveram presentes refrões e citações da história do Império
Etíope, em conexão com a proliferação do pan-africanismo e sua relação
com a música reggae100. Um dos exemplos é a canção “Denúncia”, de
Tita Lopes e Lazinho, cujo texto chama a atenção:

Simplesmente ensinando consciente


Abalando a estrutura mundial
Núbia Axum a Etiópia resistente
União poderosa e cultural
Olodum revela à comunidade
História que o opressor sempre ocultou
Menelik II venceu a batalha
Travada em árdua África Negra
Expulsando italianos de Axum
Livrando-a do colonizador
A sua façanha logo se espalhou
Outro rei importante se tornou
Haile Selassiê
É Ras Tafari
Reinou na Etiópia
Virou filosofia
A Jamaica acolhia
E o reggae surgia
Impondo outra forma negra de lutar [...]101

100 l Fabricio Mota


A questão central desta canção é informar-denunciar o silenciamento
da historiografia ocidental (encarnada na expressão “colonizador”) diante
da narrativa mítica e teórica que dá conta do surgimento do rastafaria-
nismo na Jamaica. Remonta, para tanto, à guerra travada pelo Império
da Etiópia – situado no nordeste do continente africano – governado por
Melenik II em fins do século XIX, que freou o avanço das tropas italianas e
garantiu a independência em plena ofensiva neocolonialista européia.

Este episódio foi profundamente ressignificado pela vigorosa atuação dos


missionários negros batistas da Jamaica que associavam o relato mítico e his-
tórico de personagens da cultura judaico-cristã (o Rei Salomão e a Rainha de
Sabá) à terra prometida e seus descendentes vivos na Etiópia. O tom profético
do sionismo negro, em ascensão no mundo anglófono, e seu ascetismo in-
tramundano conclamavam os afrodescendentes a “olhar para a África”, vista
como “terra prometida”, de onde “em breve um Rei negro seria coroado” e
traria a redenção102. Alguns autores (SILVA, 1995; ALBUQUERQUE, 1997;
WHITE, 1999) apontam que este argumento ganhou corpo e alma quando
foi coroado Ras Tafari Makonnen, autoproclamado Imperador da Etiópia e
(auto)intitulado “Rei dos Reis”, “Leão Conquistador da Tribo de Judá” que
adotaria em seguida o nome Hailé Selassiê (“O Poder da Santíssima Trinda-
de”) e cujo manancial simbólico seria frequentemente utilizado pelos rastafáris
e reggaemans de todo mundo nas décadas que se seguiram.

Os desdobramentos desse processo fizeram parte dos conflitos inter-


nacionais entre 1939-45, a chamada Segunda Guerra Mundial, quando
a Itália, sob então regime totalitário nazi-fascista, invade novamente a
Etiópia, fato retratado na canção “Etiópia” de Edson Gomes & Banda
Cão de Raça, lançada em fins dos anos 90. A narrativa-denúncia do
massacre promovido pelo estado fascista italiano é resgatada e associada
com o silenciamento da historiografia sobre a África:

ETIÓPIA
(Edson Gomes, 1997)
[...]
Lá na escola não contaram nada
Fizeram questão de esconder
Hoje eles passam como filhos do Deus bom

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 101


A gente vai passando como filhos do mal
[...]
Quando Mussolini invadiu a Etiópia
Foi um rolo compressor esmagador
Com seu exército poderoso
Contra inofensivos guerreiros nativos
Nesta canção, ainda prevalece, entretanto, uma imagem do africano
“etíope”, retratado como vítima, um pouco diferente de outras retratadas
pelo próprio autor ao longo de sua carreira. Guardadas as devidas críti-
cas, entendo que este registro é sintomático da centralidade em torno da
temática do continente africano e sua ênfase na Etiópia e no pan-africa-
nismo, para além da década de 80. No mesmo ano em que foi lançado
o álbum Apocalipse (EMI-ODEON, 1998) de Edson Gomes, o Olodum
teve como tema do carnaval “Roma Negra. Gladiadores da Negritude”.

Inúmeras canções revisitavam a História da África e a História Moderna


da Jamaica, colocando o reggae como “outra forma negra de lutar”, como
conclui a canção citada anteriormente103. Com exceção do Ilê Aiyê, que op-
tou, inclusive até o presente, pela busca das tradições mais ligadas ao conti-
nente africano, sob a releitura da experiência estética e política do candom-
blé, a fundação do Malê Debalê (1979), Muzenza (1981) e Olodum (1979)
trouxeram novos capítulos de um pertencimento à distância (long-distance
belonging104) com a África e a Jamaica, que fertilizariam a consolidação do
reggae na Bahia. Não quero dizer, com isso, que a presença decisiva do
reggae seja consequência direta do trabalho dos blocos afro. Prefiro arriscar
que foi por interação que estes universos culturais-musicais afrodescenden-
tes se entrelaçaram, dentro de um contexto de produtivas reelaborações cul-
turais, mediadas pela música. Por um lado, a crescente presença do reggae
no mercado fonográfico brasileiro alterou o ambiente sociocultural na Bahia,
por outro, em um contexto fecundo de profundas agitações em torno da
valorização do negro e sua história, o discurso estético-musical do primo-
afro-jamaicano trazia consigo uma leitura multicentrada da “África”, que foi
profundamente reaproveitada. A teoria do Atlântico Negro é bastante pro-
fícua para analisar esse fenômeno, uma vez que revela que existem outros
polos de africanidade ou negritude “fora da África Mãe ou para além da
hegemonia do mundo anglófono”, como assinala Pinho (2004, p. 56). Essa

102 l Fabricio Mota


leitura pode ser percebida de diferentes modos, como alguns citados, em
diversos registros do reggae produzido no Brasil, em especial na Bahia. Em
“Dance Reggae”, Edson Gomes se refere ao reggae como “música da raça”
(negra), corresponsável por esta nova inflexão em torno da África (vista da
Bahia) e inspirada na Jamaica. A “África a la Jamaica”, expressão que parti-
cularmente sintetiza o espírito central deste capítulo, serve de parâmetro para
compreendermos tantas outras canções que trilharam o mesmo argumento.

A ÁFRICA NO ATLÂNTICO NEGRO:


OUTROS DIÁLOGOS

Sem dúvida, a presença da musicalidade reggae e seu universo estético-


musical pan-africanista constituíram-se em um poderoso referencial para a
produção da música baiana, no interior dos blocos e, paulatinamente, no sur-
gimento das primeiras expressões sonoras de um reggae in Bahia. É importan-
te considerar que essa tendência não esteve circunscrita aos limites territoriais
da Bahia, ganhando eco em outros registros musicais do período, tampouco
foi manifesta apenas no interior da produção musical dos blocos afro.
Algumas leituras mais esporádicas acabaram por registrar esse contex-
to. A canção “Porto das Raças”, composição de Djalma Oliveira e Mariano
Carvalho, gravada por Egma, na coletânea Reggae in Bahia (Brasildisc,
s/d) é uma tentativa de retratar essa nova conjuntura sociocultural:
Parece que a Jamaica
Fez porto em Salvador
E toda negra baiana quer cantar
Iô iô
Do solo de Mãe África
Emana tanta dor
Pelos guetos, pelos becos
Pelourinho Salvador
Iô iô iô iô iô iô

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 103


De todo modo, há que se considerar que a história social do reggae em ter-
ras (e águas) brasileiras influenciou – e foi influenciada por – essas novas “lei-
turas de mundo” (literalmente falando), que descolaram a visão idílica sobre o
continente africano para uma imagem diaspórica multicentrada, a qual insere
o Caribe e o sul dos EUA como elos matriciais de ancestralidade e identidade
étnica, em consonância com os debates incitados pelas militâncias negras ur-
banas dos principais centros, ao longo de toda a década de 80.
O disco homônimo do grupo Obina Shok, gravado em 1986, é um
exemplo dessa relação referencial com a diáspora. Amplamente conhe-
cido e divulgado pelo público e crítica pelo hit de sucesso “Vida” (faixa
01), com participação dos baianos Gilberto Gil e Gal Costa, este produ-
to fonográfico merece atenção pelos seus elementos estético-musicais e
pela sonoridade polirrítmica que o constitue. Lendo-o e ouvindo-o com
detalhes, não resisti em inseri-lo neste hall de discussões, ainda que este
não faça, a rigor, parte do conjunto de registros fonográficos produzidos
na Bahia ou a partir de musicistas baianos. De todo modo, sua referência
é aqui fundamental como argumento em seguida.
Ao analisar o encarte e capa desse trabalho, reforço o argumento de
que a afirmação étnico-identitária transcende o registro auditivo e se faz
representar nas muitas linguagens estético-discursivas do disco (SALLO-
MA, 2000). Além da capa, composta pela foto de apresentação desta-
cando três músicos negros que ostentam penteados e adereços “afro” – o
que, a meu ver, é assaz representativo – o encarte é também uma fonte
frutífera para compreendermos o uso das linguagens visuais na produção
de referenciais identitários de negritude. De um lado, temos o conjunto
de letras e informações técnicas tendo como pano de fundo o desenho
caricático de um jovem negro portando a tiracolo um instrumento elé-
trico de corda (aparentando ser uma guitarra). No lado posterior, a ima-
gem de toda a banda está em composição com o enorme fundo verde
do Oceano Atlântico, num mapa mundi, em silhueta onde se destacam,
nitidamente, a América do Sul e Central, incluindo as ilhas do Caribe e
a costa atlântica do continente africano. Curiosamente, o “eixo norte”
do mapa mundi está muito brevemente representado pelo sul dos EUA
e, do lado diametralmente oposto, segundo essa “cartografia”, estão as
penínsulas ibérica e itálica.

104 l Fabricio Mota


A imagem que, sem dúvidas, fala por si, é representação visual da
tendência polifônica presente nas muitas sonoridades negras que com-
põem a obra musical. No universo de sete canções, três têm nítida influ-
ência e instrumentação reggae, ao lado de outros exemplos inspirados na
rumba cubana e no zouk antilhano.
A pulsação rítmica da bateria, num casamento com linhas fortes de
contrabaixo, e marcação, em contratempo, dos sintetizadores anunciam a
“pegada”105 reggae à brasileira da faixa 03, “Africâner Brother Bound”106.
A letra sugere a solidariedade, ou “irmandade”, com os sul africanos
negros (africaneers) diante do apartheid à vista em todos os meios de
comunicação ao longo dos anos 70 e 80:
Africaner Brother Bound
Quanto tempo ainda mais
Já durou até demais
Que não devia ser jamais
Poeta calou por um dia ou dois
Bandeira arriada pra descansar
O batuque ficou pra depois
Que o coração desenfrear
Quem é que no mundo pode impedir
O sol de nascer e de brilhar
A palmeira de crescer, crescer
A noite na mata de clarear
Do lado da gente, nós e nós e nós
Na luta feroz até o fim
A vitória deixará pra trás
Um tempo de guerra, tempo ruim

Os conflitos sociais da África do Sul e seu decretado apartheid 107 passam


a ser uma das fortes referências apropriadas sobre as lutas no continente
africano, em fins dos anos 80 e 90. A palavra cantada que tematiza os ter-
rores dos “irmãos” da África e relaciona-os à luta feroz “do lado da gente”,
na margem brasileira do Atlântico, ganha novo sentido com o arranjo con-
tagiante do ritmo afro-jamaicano, numa leitura multicentrada dos conflitos
raciais e numa dimensão transnacional e diaspórica. A “experiência comum
desses atores no presente” fornece as questões para a construção de uma

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 105


identidade negra que se pretende transnacional. Imagem semelhante está
presente em um conjunto de canções que tematizam a luta antirracista fazen-
do deferência aos conflitos raciais da África do Sul. A canção “Lubambo”,
gravada na coletânea Reggae in Bahia (Brasidisc, s/d) pelo autor e intérprete
Fred Vieira, também toma partido do conflito sul-africano:

LUBAMBO
(Fred Vieira, s/d)
Ei homem branco de Joanesburgo
Você é quem tem que estender a mão
Eu não
Ah África
Ninguém vai tomar
Pois sua riqueza
É do povo do lugar

Em outro exemplo, o autor e intérprete Edson Gomes conclama o


ouvinte e o “Recôncavo”108 à luta pela “libertação” das desigualdades
raciais, buscando sintonizar-se com os movimentos internacionais pela
liberdade do ativista Nelson Mandela:
RECÔNCAVO
(Edson Gomes, 1990)
Recôncavo
Pela libertação do homem negro na América
E pelo repúdio do homem branco na África
Vamos lutar pela libertação
Vamos lutar
Avante irmão
Vamos lutar pela libertação
Por uma África livre
Por uma África liberta
Por uma África unida
E todo apoio a Nelson Mandela
Sistema nazista, sistema do diabo
Somos a voz da libertação
Vamos à luta avante
Somos a voz da libertação
Vamos à luta avante

106 l Fabricio Mota


Vale destacar que o termo “irmão” pode ser visto como um recurso
político e étnico-identitário para situar o negro num quadro de desigual-
dades sociorraciais que transcendem o limite do local e contra as quais
a canção se ergue. A temática do apartheid revela uma relativa sintonia
com as pautas dos movimentos negros que, espalhados pelo mundo,
encontram no caso sul-africano uma nova matéria-prima para problema-
tizar as desigualdades raciais de seu lugar de origem.
Em um de seus comentários sobre as identidades negras na diáspora,
Paul Gilroy parte do exemplo sugestivo da gravação da “Proud of Man-
dela”, realizada em Londres, nos anos 1990109, que, em suas palavras,
liga “em uma só música África, América, Europa e Caribe” (2001, p.
197). Reconstruída a partir da matéria-prima de Chicago, a canção, sen-
sivelmente kingstoniana, rende homenagens ao ícone global da diáspora
(Nelson Mandela). Cabe destacar, como o faz o autor afro-britânico, que
a luta e libertação do líder sul-africano o tornou um ícone global da luta
dos afrodescendentes, nas mais diversas regiões o mundo, interconecta-
das pelo Atlântico Negro. É o que se confirma em algumas gravações do
reggae na Bahia, dentre as quais cito a faixa “Bongô Man”, registrada no
segundo disco do compositor e intérprete Jorge de Angélica110:
BONGÔ MAN
(Jorge de Angélica, 2002)
Toque o Bongô Man
Em homenagem ao Rei
Mandela, Mandela
Nelson Mandela
Semente jogada ao chão
Pouco a pouco germinou
Fertilizada pelo sangue
Que muitos negros homens
Derramaram
Batalhas foram travadas
Com heroísmo e amor
Se passaram 360 anos
De regime apartheid
Vários anos de prisão
Até que o Leão sul africano de Pretória

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 107


Se libertou
Eu lhe peço por favor
Olha me toque o Bongô
Toque o Bongô Man [...]

Levo em consideração, portanto, que o uso do termo apartheid, en-


contrado nas canções de reggae (e samba-reggae) produzidas na Bahia,
deve ser encarado como analogia às desigualdades sociorraciais presen-
tes na sociedade baiana. O que pode parecer um anacronismo é, a rigor,
um uso deliberadamente “exagerado” de um termo que, pelo impacto,
provocava a sociedade a reconhecer o racismo como um problema.

De outro modo, o exemplo da canção “Brazilian Style” toca mais especi-


ficamente na questão da influência do reggae como propulsor de novas nar-
rativas sobre as identidades. Curiosamente, esta canção opera um confronto
que foi alvo das análises de Carlos Benedito da Silva (2007) sobre a questão
das influências identitárias “externas” e seus usos e rejeições pela sociedade
maranhense. Em linhas gerais, a canção provoca uma interpretação que
coloca o reggae como style (estilo de vida, comportamento, identidade) bra-
sileiro. No texto da letra proposta em inglês tem-se:

Wherever you are going


Is still Obina Son
Everybody likes it
These musics blow you mind
We play tin “robado” style
Brazilian Style
Reggae music of the way
Put your troubles away

O uso do idioma inglês para descrever/se referir a um “estilo” brasileiro


pode ter muitas conotações. Uma interpretação possível seria encarar como
uma estratégia para atingir um mercado externo ao Brasil – o que não se
pode duvidar, haja vista o reggae ser um gênero matricialmente do mundo
anglófono e o inglês uma língua franca. Acrescente-se o impacto do merca-
do fonográfico, controlado pelos EUA e Reino Unido, e hegemonia cultural
anglófona (SANSONE, 2004), e esta tese torna-se ainda mais plausível. Ou-
tra leitura considera, por outro lado, a circulação e cristalização do reggae no

108 l Fabricio Mota


Brasil e o surgimento de novos canais de comunicação com o público (e os
músicos, acrescento) que transcende a barreira do idioma nacional e alteram
o idioma inglês (e os elementos culturais que o cercam e constitui) a partir
de releituras “glocais”111 das influências “dominantes”. Por ambos os lados,
é a busca por uma identidade que, por mais que seja externa/de origem, é
atualizada pelas experiências locais e conta com certa aceitação do público,
como sugere a canção: “Everybody Likes It” (Todo Mundo Gosta Disto). Há
que se considerar ainda que o apelo discursivo desta composição se aproxi-
ma, em muito, do argumento musical de Peter Tosh (na epígrafe) quando su-
gere o termo “african” como identidade negra transnacional – em que toda
pessoa negra, independente da origem nacional, é um africano (african):

Don’t care where you come from


As long as you’re a black man
You’re an African
No mind your nationality
You have got the identity
Of an African […]112

Essa foi também a leitura registrada em algumas obras de Edson Gomes


como atestam as canções “Estrangeiro” e “Meus Direitos”, respectivamente
gravadas em 1990 e 1995. A primeira reforça um pertencimento à distância,
já mencionado, onde o narrador-participante relata sua condição de estran-
geiro em sua própria terra, num texto que se direciona a um sujeito somente
identificado ao final da canção. Atentando para o texto da letra tem-se:

ESTRANGEIRO
(Edson Gomes, 1990)
Estou aqui
Estou bem distante do teu convívio
Eu estou aqui
Estou bem distante, mas estou sabendo
Que se passa contigo
É o mesmo que se passa comigo
Eu ando aqui pela Baby(lônia)
Eles me chamam de brasileiro
Porém eu me sinto um estrangeiro
Trabalho, trabalho e nada é nada não (2x)

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 109


Eu vivo aqui num submundo
Buracos, favelas, guetos imundos
Eles me chamam de brasileiro
Porém eu me sinto um estrangeiro113 [...]

A mensagem desta canção é completada pelo arranjo musical que a


cerca. O andamento marcadamente ralentado, suavizado pelos contra-
pontos de sopro, ao lado de uma performance vocal que sugere intros-
pecção ao ouvinte, dá à canção uma aura de lamento e contrariedade
que reforça a ideia expressa no texto. As sonoridades impressas pelos
músicos e musicistas, e aprimoradas no processo de mixagem dão, à
canção, um sentido que, a rigor, não está explícito na letra. Nos trechos
finais da canção, o momento de maior evolução vocal, a palavra “África”
é repetida, numa evolução vocal que insinua um estado de êxtase, re-
forçado por um acorde de guitarra “distorcida” (artificialmente): “África,
África, África... / Iô, Iô, Iô, Iô, Iô/ África, África, África...”

Em outro exemplo, como a canção “Meus Direitos”, a ligação, literal-


mente umbilical, com a África (nas palavras do autor-intérprete, “mamãe
África”) é o ponto de partida para uma canção-denúncia sobre as desi-
gualdades a que são alvos os negros no Brasil, ao longo da história.

[...] Quanto tempo que a gente tá aqui


No Brasil
Tanto tempo que a gente está assim
Sem ter educação
Sem ter oportunidade
Sem ter habitação
Sem ser membro da sociedade
Somos alvo da incoerência
Vítimas da prepotência
Dos racistas

Ainda que persistam expressões como “vítima” ou “somos alvo”, o


argumento central da canção corrobora uma imagem de alteridade do
negro diante de direitos que são seus e pelos quais deve lutar. Arrisco esta
interpretação acrescentando, novamente, a importância do arranjo na
construção do discurso musical. O andamento mais acelerado e as linhas

110 l Fabricio Mota


de baixo mais rápidas acabam por dar à obra um tom mais vibrante que,
interagindo com a palavra cantada, completam e alteram o sentido da
mensagem escrita na letra.

Quando perguntado, em conversa informal na capital baiana, no ano


de 2007, sobre seu trabalho como baixista da banda Cão de Raça, o
músico Osvaldo Filho – que acompanha Edson Gomes desde a turnê
de divulgação desse álbum – enfatizou a busca por influências mais ja-
zzísticas no uso do instrumento. De acordo com ele, Edson buscava um
som de baixo que acompanhasse as nuances do vocal, estando menos
focalizado (e não desligado, favor não confundir) da bateria, como é
mais convencionalmente conhecido114.

No LP Música das Ruas 115, Dionorina, artista radicado na cidade Fei-


ra de Santana, apresenta duas canções que travam mais explicitamente
este debate116. A faixa de abertura do álbum, “Jamaica FM” (de Carlos
Pita), aborda uma situação cotidiana de maneira inusitada:

JAMAICA FM
(Carlos Pita/Dionorina, 1994)
Quando eu tava naquela
Naquela esquina
Ouvindo um reggae
Num radinho de pilha
Quando eu tava naquela
Naquela esquina
Querendo ser feliz e beijar minha menina
Quando alguém cantou:
Africana sensação
O negro é bacana
A cor não engana
Aumenta este rádio
Que esse som tá em Luanda
De repente me senti
Na terra das primaveras
Jamaica FM
Encontrei com Peter Tosh
Numa esquina, de bobeira

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 111


Aqui tem palmeira
No meu sonho flutuando
Sem perder a correnteza
Sunsplash
Pois existe a babilônia
Mas o negro tem beleza

Sob a ótica desta canção, o “ouvinte” é retratado como sujeito na rela-


ção com os meios de comunicação, destacadamente com o rádio, símbolo
ontológico da propagação e circulação da música no século XX. O reggae
tocado no rádio desperta para uma “africana sensação”: sentimento de or-
gulho negro (“o negro é bacana, a cor não engana”), que tem a diáspora
como pano de fundo, haja vista a sintonia com a África Atlântica (tendo
Luanda, capital de Angola, como referência) e a repentina impressão de se
estar na “Terra das Primaveras” – leia-se São Luís do Maranhão, também
conhecida como Jamaica brasileira. A argumentação intrigante e complexa
desta canção ilustra um contradiscurso, a partir da canção que, obedecendo
à lógica do conflito, opera com um sentido de pertencimento negro que
encurta distâncias. Segundo Osmundo Pinho (2005), essa sintonia com a
África, e outros referenciais geopolíticos da diáspora, é uma perspectiva dos
afrodescendentes diante de um campo racializado, em parte pelos agentes
negros, que optam por se identificarem como africanos, mas, sobretudo:

“[...] pelas instâncias da hegemonia política que se instalaram como um


poder branco e como um representante local, colonial, do ‘branco univer-
sal’ sediado em uma Europa sobrepairante”117.

Nesse confronto, a denúncia das muitas formas de silenciamento é uma


alternativa política central118. Há episódios dessas lutas sobre os quais ain-
da paira um enorme silêncio. No momento a seguir, trago para o foco das
lentes deste trabalho, algumas histórias dos movimentos negros na cidade
de Feira de Santana, um dos nascedouros da música reggae na Bahia.

112 l Fabricio Mota


DE BEDUÍNOS A MALÊS

Em linhas gerais, a afirmação das expressões da cultura negra em


Feira de Santana perpassa pela relação com o calendário festivo da ci-
dade. A exemplo da micareta do Município, considerada a mais antiga
do Brasil, o espaço das festas deve ser considerado como palcos centrais
de onde se podem apreender valiosas interpretações sobre a dinâmica
da urbe. A festa, vista aqui como espaço de sociabilidade (TINHORÃO,
1972; JANCSÓ/KANTOR, 2001; GODI, 1997; MOURA, 2001), é um
terreno onde se reproduzem e subvertem as hierarquias e distinções de
raça, classe e gênero. A participação efetiva ou segregada no(s) espaço(s)
da festa incide diretamente sobre as muitas formas de interação (e repre-
sentação desta) de seus/suas agentes, o que implica em um quadro de
permanente tensão, ora no plano dos elementos simbólicos, ora no en-
frentamento físico entre os grupos, que refletem e são, ao mesmo tempo,
reflexo do quadro das relações sociais.

A disputa pela participação nos espaços lúdicos, cívicos, de celebra-


ção da religiosidade e outros revela outros focos do confronto pela visibi-
lidade dos afrodescendentes, em outras tantas dimensões da sociedade
em que eles estão inseridos, seja através de entidades organizadas, seja
através da “fantasia” (MOURA, 2001), ou quaisquer formas alternativas
e inusitadas. No caso em questão, há uma relação direta entre a produ-
ção musical sintonizada com elementos da cultura negra e a disputa pela
presença do negro na sociedade.

Esses episódios remontam às décadas anteriores em que os blocos e


escolas de samba119 eram uma das principais formas de participação nas
festas, em um contexto que já anunciava os indícios da contradição que
seria propulsora para o surgimento dos blocos afro120. Segundo Jorge de
Angélica, os afoxés surgem como resposta ao quadro de explícita segre-
gação dos negros na festa. Em suas palavras:

“Até nos blocos de bacanas a negrada não podia participar, né? A gente
ficava de fora mesmo. Não tinha negócio de estória, não: ou ia puxar corda

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 113


como, na época, chamavam os puxadores de corda ... Eram os beduínos. Ou
ia ser beduíno dos brancos, pra aproveitar, ou... A gente não tinha oportuni-
dade, ou ia puxar corda pra aproveitar uma merrequinha e também brincar
ali humilhadamente ou... A gente procurou largar a corda dos caras lá, dos
blocos de bacanas, e formamos o nosso bloco, os nosso afoxés”121.

Como parte de um processo mais amplo, a fundação do Afoxé Pomba de


Malê e de outras entidades com o mesmo perfil é reveladora de uma nova
leitura de negritude e africanidade que pairava sobre a Bahia dos anos 80,
por razões conjunturais já abordadas. Foi parte constitutiva desse fenômeno, o
fortalecimento dos laços com o candomblé, haja vista a participação decisiva
dos terreiros na fundação e articulação das entidades, bem como a assunção
de um “novo” discurso de autoidentificação étnica e orgulho negro.

Se é válido considerar que “uma imagem vale mais do que mil pa-
lavras”, a capa do LP Música das Ruas de Dionorina (Stalo Discos,
1994) endossa esta máxima, dada a sua contextualidade. Para além
do valor estético, a capa – cartão de visitas de uma obra fonográfica –
demonstra um uso político do produto fonográfico para expressar sua
leitura situada dos movimentos negros urbanos. Ao centro, repousa a
imagem da face do artista e seus longos (e conhecidos) dreadlocks 122,
num contraste de preto e branco (uma espécie de fotolito) e em uma
combinação estilizada com a imagem de uma cobra coral, em cores
vivas que é a própria extensão do seu cabelo. A leitura iconográfica de
Pedro Kraff, bem recebida pelo artista, remonta à memória das lutas
contra as desigualdades sociorraciais, nas mais diversas instâncias da
sociedade feirense, mais notadamente na micareta.

A música “Cobra Coral” composta originalmente para o desfile do


Afoxé Pomba de Malê explica melhor o sentido político desse uso:

COBRA CORAL
(Jorge de Angélica, 1998)
O negro do Pomba quando sai da Rua Nova
Ele traz na cinta uma cobra coral
É uma cobra coral
É uma cobra coral123

114 l Fabricio Mota


Ao descrever o olhar discriminatório com que eram recebidos os
integrantes dos afoxés ao se aproximarem e apresentarem no circuito
festivo da micareta de Feira, o compositor associa simbolicamente o
animal peçonhento como provocador de uma reação de temor mani-
festada pelo público – e por que não dizer pelo poder público – diante
de uma agremiação composta majoritariamente por homens e mulhe-
res negros/as oriundos do bairro da Rua Nova. Este uso metafórico nos
dá uma medida da percepção desses sujeitos, a partir das fronteiras
raciais impostas na construção do evento público. A cobra coral é, por-
tanto um símbolo-resposta à segregação racial, uma leitura política dos
espaços de sociabilidade festiva e, para além deles, da cultura de Feira
de Santana e suas contradições.
Cabe destacar ainda que a Rua Nova é considerada por muitos mo-
radores e pelos meios da imprensa local como um “reduto” da cultura
negra, seja pelo perfil étnico-racial dos habitantes, seja pelo reconheci-
mento de elementos representativos de uma cultura negra (auto)identi-
ficada nos afoxés e terreiros de candomblé. Essa imagem muitas vezes
associada à ideia de “gueto” por alguns segmentos da imprensa fei-
rense, por exemplo, guarda uma profunda ambivalência, pois também
serviu para estigmatizar o bairro na opinião pública como um reduto de
violência e criminalidade, imagem que as agremiações comunitárias e
entidades do movimento negro vêm desconstruindo ao longo de mais
de duas décadas124.
Além de “Cobra Coral”, outros registros de afirmação identitária,
cristalizados sob o formato canção nos discos de reggae, são oriun-
dos do desfile dos afoxés, dentre as quais se pode destacar “Bahia
Negra”, também de autoria de Jorge de Angélica, como se vê no
trecho a seguir:

BAHIA NEGRA
(Jorge de Angélica)
Oh Oh Oh Bahia Negra
A luz da alvorada te deseja
Oh Bahia Mãe
Eu esse ano

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 115


Vou mostrar como é que é
O afoxé
Essa dança tão linda
Que vem do Papua
Da Nova Guiné
África

Em conversa com a historiadora e pesquisadora Ana Rita Machado,


militante negra, professora da Universidade do Estado da Bahia e radi-
cada em Feira de Santana, ela declarou que considera “Bahia Negra”
uma das canções de maior expressão entre os afoxés e que ganhou mais
expressão local com a gravação de Jorge.

Cabe mencionar ainda que há, no imaginário social em Feira de San-


tana, uma presença muito marcante de símbolos do universo pan-árabe
– muitos dos cordões tinham nomes com essas características (Ali Babá,
Escravos do Oriente, além da própria expressão “beduíno” para identifi-
car os “cordeiros”). A leitura do afoxé da Rua Nova está situada com a
África islâmica, dos malês, escravos responsáveis por uma rebelião social
que teve grande reverberação na sociedade baiana do século XIX, bem
como na historiografia brasileira125.

Em linhas gerais, não quero aqui reduzir uma série de trajetórias de


lutas ao exemplo desta agremiação afrocarnavalesca. Pelo contrário, uti-
lizo esse exemplo dada a conexão entre os demais encontrados e o en-
volvimento de um grupo de músicos (alguns entrevistados) com essa en-
tidade em especial. Imagino, no entanto, que um estudo mais detalhado
dos movimentos político-culturais negros de Feira de Santana nas últimas
décadas pode, com rigor, preencher esta lacuna.

Por fim, observando as muitas leituras e tecidas nas canções de reggae


e samba-reggae em torno da África e da Jamaica na diáspora, percebe-se
a importância destas expressões musicais na busca pela construção de
novos referenciais críticos da história do negro, situada na desconstrução
de certos estereótipos e estigmas em torno dessas “noções de lugar” que,
arbitrariamente, incidiam sobre a sociedade como imagens depreciativas
da memória e história dos afrodescendentes. Apesar disso, não defendo

116 l Fabricio Mota


que as imagens construídas em torno desses referenciais geopolíticos são
em si suficientes. Deixo bem explícito meu entendimento de que, à luz
de uma determinada época, a produção dessas identidades imaginadas
serviu de substrato para que novos caminhos crítico-interpretativos sobre
o passado ancestral do negro, seus laços com o continente africano e as
muitas histórias da África pré-colonial e contemporânea pudessem fazer
parte da rede de temas e questões da sociedade brasileira.

Olhando para o presente, filio-me à causa de que é o acesso à educa-


ção e à informação que pode preencher estas lacunas e imprecisões que
ainda deixam névoas sobre nosso passado. Sem dúvida, os olhares sobre
a “África” de dentro e fora do continente, do mundo de hoje, jamais se-
riam os mesmos sem a experiência inventiva que nossa sociedade assis-
tiu e que rendeu frutos (musicais) que carecem uma divisão mais justa.

Esse é, a meu ver, um mérito da obra de Patrícia Pinho sobre as rein-


venções da África na Bahia: mostrar o desequilíbrio entre o alcance liber-
tário das ideias utópicas sobre a África e o processo de transformação da
cultura em mercadoria.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 117


Capa e contracapa do LP Música das
Ruas (Stalo Discos, 1994), resultado
do prêmio de melhor show no Troféu
Caymmi, ano VIII.

Banda Terceiro Mundo. Marley Vive.


EMI-Odeon, 1988.

118 l Fabricio Mota


Jorge e sua mãe, a Srª.
Angélica (que o inspirou
a adotar o seu nome ar-
tístico) em sua residência
no bairro da Rua Nova.
Dona Angélica, como é
mais conhecida, é uma
das importantes perso-
nagens na luta pela afir-
mação da música reggae
e demais elementos da
cultura negra em Feira
de Santana.

O compacto Sopa de Papelão (Inde-


pendente, 1998), primeira gravação de
Jorge de Angélica, trouxe canções como
“Bahia Negra”, executadas originalmen-
te nos desfiles do Afoxé Pomba de Malê,
e “Gangue”, esta última um manifesto
contra a violência e a impunidade.

O processo de gravação do disco con-


tou com alguns entraves que, nas pala-
vras de Jorge de Angélica, começaram
na chegada ao estúdio:

“Quando a gente chegou lá pra fazer o orçamento, a gente nem entramos. Ela nos
atendeu [pelo lado de fora] fechou a grade lá, abriu outra, trancou... Recebeu a
gente assim fora, meio sestrosa... Dois negão, rasta... Ela subestimou a gente”.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 119


Os álbuns Som Luxuoso e Muzenza
do Reggae, lançados em 1988 pela
gravadora Continental, trazem gra-
vações das músicas tocadas nos en-
saios e desfiles carnavalescos. Entre
as referênciais estéticas, símbolos que
remontam à História do Reggae como
o Leão – em alusão ao Leão da Tribo
de Judá, cultuado pelos Rastafáris – e
a bandeira da Jamaica.

Obina Shok. Obina Shok. RCA,


1986 (Encarte). Através da imagem,
os artistas dialogam com uma pers-
pectiva identitária situada na diás-
pora africana no Atlântico, recurso
fortemente usado no período.

120 l Fabricio Mota


NOTAS

76
SANSONE, 2004, p. 100. Ver também: SANSONE, 2000.
77
Desta autora ver: Desconstruíndo a Discriminação do Negro no Livro
Didático. Salvador, EDUFBA, 2001. Não nos esqueçamos que a altera-
ção na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, provocada pela
lei 10.639/1997 e novamente modificada em maio de 2008, resulta de
intensas mobilizações para reparar, a partir da educação e dos materiais
didáticos, esta dívida histórica.
78
Ver o interessante documentário de Joel Zito de Araújo A Negação do
Brasil: O Negro na Teledramaturgia Brasileira, além da publicação em
formato de livro com título homônimo.
79
Como lembrou Antonio Godi em uma homenagem póstuma ao poeta
e militante precursor do movimento negritud, Aimé Cesáire : “Abril vai e
Aimé fica”. Jornal A Tarde. Salvador, 24/05/08.
80
In: VIEIRA FILHO, 1997, p. 45.
81
Livro de Entrada e Saída de Passageiros do Porto de Salvador (1896-
1897). In: SANSONE & TELES (orgs.), 1997, p. 47.
82
Ver as análises de Raphael Vieira Filho sobre os jornais da época no
artigo já citado (2007, pp. 48-49).
83
“Salloma” Salomão (2000, p. 80) destaca a interessante conexão entre
as imagens sobre a África (a partir do Egito), presentes em inúmeras can-
ções, com a conhecida tese (de doutoramento) de Cheik Anta Diop que
também “recupera” as relações do Egito com os povos africanos.
84
SOUZA JÚNIOR, 2008, pp. 21-22. Sobre o impacto desse primeiro
desfile na imprensa baiana ver SILVA, Jônatas C. da. História de Lu-
tas Negras: Memória do Surgimento do Movimento Negro na Bahia. In:
REIS, João José (org.). Escravidão e Invenção da Liberdade. São Paulo:
Brasiliense, 1988, pp. 275-288.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 121


85
PINHO, Osmundo. 2005, p. 133.
86
Esta análise foi reforçada em artigo publicado posteriormente. Ver SIL-
VA, Carlos Benedito Rodrigues. “Black Soul: Aglutinação Espontânea e
Identidade Étnica”. In: Encontro da Associação Nacional de Pós-Gra-
duação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), 4, 1984, Caxambu,
MG. Ciências Sociais: Compêndio de Comunicações. Caxambu, 1984.
V. 2. 1984, citado por PINHO, 2005, p. 133.
87
Ver HOBSBAWN & RANGER, 1997.
88
Volto a lembrar que o movimento negro é aqui compreendido como o
conjunto de mobilizações políticas, culturais, acadêmicas e artísticas que se-
dimentavam suas bandeiras de luta pela afirmação do “ser” negro como
catalizador da luta antirracista no Brasil do século XX, o que insere toda
sorte de manifestações livres à fundação de entidades afrocarnavalescas e
do chamado Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978. Sobre
a história do MNU ver: Movimento Negro Unificado. MNU: 1978-1988: 10
Anos de Luta contra o Racismo. São Paulo: Confraria do Livro, 1988.
89
Sobre esta trajetória, o trabalho de Godi (2001) é, sem dúvida, a me-
lhor síntese que se tem. Cf. “Reggae in Bahia: A Case of Long-distance
Belonging”. In: DUNN & PERRONE, 2001.
90
Parafraseando o sugestivo trabalho de ANDERSON, Benedict. Nação
e Consciência Nacional. São Paulo: Ática, 1989.
91
In: Olodum, Carnaval, Cultura e Negritude (1979-2005). RODRIGUES, João
Jorge & MENDES, Nelson (orgs.), 2005, p. 339. Agradeço imensamente à
Profª. e colega Joelma pela sugestão (e empréstimo!) deste precioso material.
92
GODI, 2001. Os trechos citados são traduções livres do artigo publica-
do originalmente em inglês.
93
In: Olodum, Carnaval, Cultura e Negritude (1979-2005). RODRIGUES,
João Jorge & MENDES, Nelson (orgs.), 2005, p. 320.

O Projeto Mamnba (Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos


94

Negros da Bahia) foi realizado entre os anos de 1982 a 1987, sob a

122 l Fabricio Mota


coordenação dos antropólogos Ordep Serra (UFBA) e Olympio Serra. A
partir de um convênio entre a antiga Fundação Nacional Pró-Memória e
a Prefeitura Municipal de Salvador, o levantamento contabilizou cerca de
duas mil sedes de cultos afro-brasileiros somente na cidade de Salvador.
Ver: SERRA, Ordep. “Monumentos Negros: uma Experiência”. Salva-
dor: UFBA, Revista Afro-Ásia, nº 33, 2005, pp. 169-205.
95
Ibid. p. 319.
VEIGA, Ericivaldo. “O Errante e Apocalíptico Muzenza”. In: SANSO-
96

NE, Lívio & SANTOS, Jocélio Teles dos (orgs.). Ritmos em Trânsito:
Sócio-Antropologia da Música Baiana. São Paulo, Salvador: Dynamis
Editorial, Programa A Cor da Bahia e Projeto S.A.M.BA, 1997.
97
Muzenza. Muzenza do Reggae. Continental, 1988.
98
Ibid.
99
Ibid.
100
Gostaria de lembrar, em tempo, que as canções que são apresentadas pe-
las entidades carnavalescas em Salvador são apreciadas ao longo dos meses
que antecedem a festa momesca nas “quadras” onde os blocos ensaiam:
o Malê Debalê, sediado nas imediações do Parque Lagoa do Abaeté, no
bairro de Itapuã; o Olodum, na conhecida terça da Benção; no Pelourinho e
o Ilê Aiyê, no Curuzu, coração do imenso bairro da Liberdade. Foi fundada,
nos últimos anos, a “Senzala do Barro Preto” que comporta um complexo
de atividades socioeducativas, além do espaço destinado aos shows. A partir
das primeiras gravações em LP das canções destes blocos, o rádio e o mer-
cado de discos passam a ser mais um espaço de disputa pela visibilidade (e
auditibilidade) das canções e, obviamente, da divulgação das entidades.
101
In: RODRIGUES & MENDES (orgs.), 2005.
102
Palavras do Reverendo James Morris Webb, de Chicago proferidas
por Marcus Garvey numa igreja de Kingston em 1927, segundo WHITE,
1999 (citado por ALBUQUERQUE, 1997).
103
Trecho da canção citada In: RODRIGUES & MENDES (orgs),
2005, p. 279.
104
Cf. GODI, 2001.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 123


105
Esta expressão é comumente utilizada pelos músicos para definir um
determinado estilo musical a partir do arranjo.

Canção de Jean Pierre, Henrique Hermeto e Gilberto Gil. In: Obina


106

Shock. Obina Shok, RCA, 1986.


107
Regime de distinção racial pela exclusão-separação direta entre ne-
gros e brancos existente também em algumas regiões dos EUA.
108
O Recôncavo é entendido, em linhas gerais, como a região predomi-
nante da sociedade açucareira, nos primeiros séculos da colonização, e
que hoje compreende um conjunto de cidades (dentre as quais Cachoeira,
terra natal de inúmeros artistas de reggae como Edson Gomes) num pe-
rímetro de cerca de 80 quilômetros de Salvador. Em seu livro Segredos
Internos, Stuart Schwartz destaca, no entanto, que há inúmeras opiniões e
imprecisões para definir este termo (São Paulo: Cia das Letras,1988).
109
Gravada originalmente pelo trio vocal The Impressions de Chicago nos anos
1960, com o título “I’m so Proud” (Eu Sou tão Orgulhoso). O autor destaca
ainda que este grupo inspirou grande parte dos artistas jamaicanos daquela dé-
cada, dentre os quais o mais conhecido, os Wailers (GILROY, 2001. p. 197).
110
Jorge de Angélica. Confiança em Deus. Independente, 2000.
111
SANSONE, 2004.
112
Peter Tosh. Equal Rights. Virgin Records/CBS, 1977.
113
“Estrangeiro”. In: Edson Gomes. Recôncavo, EMI, 1990.
114
Uma audição da gravação de “Sociedade Falida” de Edson Gomes
atesta esta impressão (Edson Gomes. Resgate Fatal. EMI, 1995).
115
O LP foi produto da premiação do Troféu Caymmi, importante con-
curso da música baiana que deu visibilidade à grande parte dos/as ar-
tistas baianos de projeção no cenário atual. Em 1986, Edson Gomes e
Nengo Vieira também foram vencedores deste festival. Música das Ruas
foi o show que deu nome ao disco, primeiro LP da carreira do artista.
116
Dionorina. Música das Ruas. Stalo Discos, 1994.

124 l Fabricio Mota


117
PINHO, 2005, p. 129.
118
É o caso da faixa “New York Time: A bomba H já explodiu/ Na África/
New York Times não deu nada/ é tudo ilusão da raça humana/ New York
Times não deu nada” (Dionorina. Música das Ruas. Stalo Discos, 1994).
119
Para citar algumas das principais agremiações: Cordão Império Feirense;
Ali Babá e Os 40 Ladrões; Tanque da Nação; Escola de Samba Escravos do
Oriente, da Rua Nova, sob coordenação da Ialorixá Mãe Socorro, persona-
gem importante da história recente de Feira de Santana; Escola de Samba
Padre Ovídio. Cf. Entrevista com Jorge de Angélica (02/08/2008).

Para o caso de Feira de Santana, o termo “afro” é sintomático de uma


120

emergente autoidentificação étnica destas entidades.


121
Ibid.
122
Termo que define as tranças que constituem um dos penteados que
identifica o reggae. Usa-se, de modo mais genérico, termos como “cabe-
lo rasta” ou, simplesmente, “rasta”.
123
Foi gravada posteriormente no disco Sacasó (Zero Bala, 1998).
124
Fica em suspenso investigar a relação entre a popularização dos afoxés e
a produção de um olhar criminalizador (sobretudo por parte da imprensa e
dos órgãos públicos) sobre a Rua Nova. Não se pode desconsiderar índices
nítidos de violência urbana neste e em outros bairros da cidade, tampouco
atribuir-lhes motivações estritamente intrínsecas às suas fronteiras internas.
Para completar a provocação e endossar minha preocupação com o tema,
sugiro apreciar as reflexões de Wacquant sobre o crescimento de sistema
carcerário e sua relação direta com o crescimento dos movimentos pelos
direitos civis dos negros nos EUA (WACQUANT, L. “Crime e Castigo nos
Estados Unidos: De Nixon a Clinton”. In: Revista de Sociologia e Política.
Curitiba, nov. 1999, nº 13, pp. 39-50).
125
REIS, João José. Rebelião Escrava na Bahia: O Levante dos Malês
(1835). Edição revista e ampliada. São Paulo: Cia das Letras, 1996.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 125


FAIXA 3

OS ANOS 90 E O VERÃO
DO REGGAE BAIANO

Eu quero um Reggae
Que me leve ao paraíso, eu quero
Eu quero um Reggae
Que me traga uma nova ordem eu quero
Eu quero um Reggae
Como ponto de partida
Eu quero um Reggae
Trecho da canção Novo Reggae de Paulinho Ganaê e J. Magalhães

Se o lance tá na cor
A coisa é essa,
Sinta Reggae, Reggae, Reggae
Se o lance tá na cor
A coisa é essa, é essa, é essa:
Cantando e reggando
Pra quem quiser ver...
Sinta e Kaya, gravada por Sine Calmon e Morrão Fumegante, 1997
Se, ao longo dos anos 80, a sociedade baiana, e brasileira, interagiu
com a presença gradativa da música reggae, pelas rádios, TV ou através
dos discursos e estética dos blocos afro, é sem dúvida no intervalo de dé-
cada entre 1988 a 1998 que o estilo ganha sua definitiva “consagração”
no ambiente sociocultural e no mercado fonográfico. Seja pelo uso de
novas técnicas de gravação que registraram, por exemplo, o Muzenza,
em 1988, e outras gravações do samba-reggae, então “aprisionado” nos
estúdios WR em Salvador, seja pela proliferação de bandas que arrisca-
vam seus próprios vôos no ritmo afro-jamaicano.

Do início a meados dos anos 90, podia-se ouvir, além da marcante


batida do então consagrado samba-reggae, os acordes de outros grupos
de artistas como Adão Negro, Sine Calmon e Morrão Fumegante, Diono-
rina, Geraldo Cristal, etc., que, aos poucos, cristalizavam suas experiên-
cias musicais em registros fonográficos. O número crescente de registros
está associado ao surgimento (e popularização) de novas possibilidades
de gravação (digital), bem como pela maior circulação de discos interna-
cionais de reggae no Brasil como apontam alguns colecionadores126.

Essa sintomática mudança seria evidenciada também pelas lentes de


antropólogos e sociólogos, jornalistas e críticos de música que se volta-
vam sobre alguns aspectos desse fenômeno “novo”. Os principais traba-
lhos sobre o gênero emergem, sintomaticamente, ao longo desse perío-
do (CUNHA, 1991; GODI, 1997, 1998, 2001; ALBUQUERQUE, 1997;
WHITE, 1999; PINHO, 1997 e 2001).

No programa de Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia,


dois trabalhos em especial discutem, com atenção, algumas nuances da
presença reggae na Bahia. Marcos Rubens Santos (2001) analisa as respos-
tas à discriminação sociorracial dos negros em Salvador, a partir da estética
do reggae. Para além disso, seu trabalho consegue mapear os espaços de
circulação e apreciação do público “regueiro”127 de Salvador, com base em
uma rigorosa pesquisa de campo. É importante destacar que o autor era (e
ainda é) um músico de relativa expressão na Bahia. Guitarrista da banda
Adão Negro, vivenciava, à época, todo o processo de transformação e
cristalização do reggae em uma cultura musical de presença definitiva na
sociedade baiana, mais destacadamente entre a juventude negra.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 129


Outra representante acadêmica desta nova sensibilidade à socioantro-
pologia da música foi (é) Bárbara Falcón, já mencionada, que, em mono-
grafia sobre os “Remanescentes” – artistas que formaram uma comunidade
religiosa e musical na cidade de Cachoeira – aponta ineditamente para o
surgimento de novas trajetórias de vida mediadas pelo expressivo contato
com a música reggae e seu arcabouço filosófico, religioso e político.

Para além desse dado, em cada esquina, beco ou bar das cidades na
Bahia – particularmente Salvador, Feira de Santana e Cachoeira – se
podia escutar, a qualquer momento, a pulsação grave do som jamaicano
em coletâneas comercializadas pelos camelôs, contendo compilações dos
principais representantes do estilo. Em outros cantos, os gritos de “fogo
na Babilônia”, entoados por homens e mulheres de todas as idades im-
punham um novo sentido de territorialidade que despertou o desagrado
dos segmentos mais conservadores da elite baiana. Entre processos e
batidas policiais, o reggae se colocava como uma alternativa vivaz da
música negra na Bahia, como se confirmou, entre outros elementos, pela
explosão da canção “Nayambing Blues”, de Sine Calmon e Morrão Fu-
megante no carnaval de 1998. A este momento de efervescência socio-
cultural-musical, chamo de “Verão do Reggae Baiano”. Estes e outros
enredos serão particularmente alvo deste capítulo.

1988: O ANO QUE NÃO TERMINOU

1988 inaugura, precisamente, os anos de cristalização de uma cena


reggae produzida na Bahia, como enuncia a movimentação de artistas
do gênero entre inúmeras cidades do interior (exponencialmente Feira de
Santana e Cachoeira) e capital (Salvador). Havia, nestes territórios, uma
emergente produção local de reggae, que ganhava, aos poucos certa vi-
sibilidade e popularidade na Bahia. Se por um lado, “a porta abria para
Salvador, era estreita para as bandas do interior”, como enfatiza o cantor
e compositor Jorge de Angélica. A música reggae foi um dos elementos

130 l Fabricio Mota


propulsores de novos espaços de produção e organização contracultural
na atlântica “cidade mundial”128. A realização do I Reggae in Bahia Festi-
val, em 1988, nos dá ainda a impressão de que o gênero, à altura de 1988
e pelos anos 90 afora, constituía-se em um dos principais porta-vozes da
luta antirracista dos negros e negras, na Bahia e no Brasil. Esse momento
decisivo, registrado por alguns segmentos nacionais da opinião pública129,
explica, como desdobramento, a gravação sintomática do álbum Reggae
Resistência, primeiro disco de Edson Gomes, gravado nos estúdios da WR,
em Salvador, por um time responsável pelo amadurecimento do reggae
baiano, ao longo dos anos 80. A assinatura da gravadora EMI-Odeon era
sintomática do interesse renovado nas produções “glocais” de estilos trans-
nacionais da música negra, como atesta o lançamento contemporâneo da
coletânea Hip Hop Cultura de Rua, com Thayde e DJ Hum, Mc/Dj Jack,
Código 13 e outros (Gravadora Eldorado, 1988).

A expressão “Reggae Resistência” é uma definição utilizada em Cacho-


eira na Bahia para definir o reggae roots feito sob as medidas da “tradição
clássica” do som jamaicano, legadas por seus representantes mais conheci-
dos (particularmente Bob Marley e Peter Tosh). Uma audição crítica deste
álbum revela suas (do artista e demais envolvidos) enormes consonâncias
com as sucessivas mobilizações sociais negras em torno do ano de 1988.
Além da explícita contraposição às comemorações do centenário da Aboli-
ção no Brasil (que dividia opiniões no período130), o disco de Edson Gomes
nos dá pistas em torno da permanência de sentidos étnico-identitários de
negritude, na diáspora. Na letra de “Sistema do Vampiro”, faixa de abertura,
travam-se algumas questões que merecem atenção, como se pode conferir:

SISTEMA DO VAMPIRO
(Edson Gomes, 1988)
Esse sistema é um vampiro
Ah! O sistema é um vampiro
Esse sistema é um vampiro
Todo povo ficou aflito
Esse sistema é um vampiro
Ah! O sistema é um vampiro
Vive sugando todo povo
Vem cá, meu Deus, desça de novo

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 131


Ouça meu grito de socorro
Pai, escuta a voz desse teu povo
Que clama
Um centenário de falsa libertação
Cativeiro mental
Estamos metidos nos buracos
Estamos jogados nas favelas da vida
Pendurados lá no morro
Velho pai, só nos resta teu socorro
Ah, sim!
Estamos largados nas calçadas
Nós não temos nem morada
Não temos nada!131

Ao referir-se ao “centenário de falsa libertação” (os 100 anos do decreto da


Lei Áurea e a extinção “formal” do trabalho cativo), Edson Gomes utiliza uma
categoria muito emblemática para a análise das influências da música reggae
na Bahia: a expressão “cativeiro mental”132, apresentada por Bob Marley (bas-
ta lembrar da famosa “Redemption Song”: “emancipate yourself from mental
slavery [...]”. Este conceito compreende a escravidão como processo de vio-
lência cultural que transcendeu o status da sociedade escravista e revelou-se
como permanência no mundo contemporâneo. Através do reggae (que impli-
ca num conjunto de práticas e vivências mediadas pela música), a categoria
definida pelo intelectual negro jamaicano é reapropriada em um contexto de
profunda tensão social no Brasil, sendo traduzida/ressignificada pelo artista
baiano em um marco crucial da indústria fonográfica no país.

Edson Gomes & Banda Cão de Raça, assim como tantos outros intelectuais
da época, assumiram uma posição explícita diante do contexto de 1988. Para
além de ser o ano das “comemorações” do centenário da abolição formal da
escravidão no Brasil, foi um momento de grandes debates sobre a organização
do estado civil e seus instrumentos legais de garantia de direitos. As militâncias
negras urbanas se insurgiam, levantando a necessidade de reconhecer a im-
portância dos negros para a construção do país e a necessidade de reparar as
dívidas históricas com essas populações, bem como estimular novas produções
historiográficas nesta direção (SILVA, 2000c). Na faixa “História do Brasil”,
constrói-se uma interpretação histórica crítica do marco da colonização.

132 l Fabricio Mota


HISTÓRIA DO BRASIL
(Edson Gomes, 1988)
Eu vou contar pra vocês
Certa história do Brasil
Foi quando Cabral descobriu
Este país tropical
Um certo povo surgiu
Vindo de um certo lugar
Forçado a trabalhar neste imenso país
E era o chicote no ar
E era o chicote a estalar
E era o chicote a cortar
E era o chicote a sangrar
Um, dois, três, até hoje dói
Um, dois, três, bateu mais de uma vez
Por isso é que a gente não tem vez
Por isso é que a gente sempre está
Do lado de fora
Por isso é que a gente sempre está
Lá na cozinha
Por isso é que a gente sempre está
Está fazendo
O papel menor
Ou o papel pior133

Ao contar uma “certa história do Brasil”, Edson Gomes realça o traba-


lho forçado (escravo) como elemento indelével deste processo, cujas mar-
cas persistem até o presente (“era o chicote no ar, era o chicote a sangrar/
um, dois três, até hoje dói/ um dois três, bateu mais de uma vez”). Neste
sentido, a canção traça um panorama da situação d@s negr@s, ocupando
posições marginais na sociedade, fazendo sempre “o papel menor ou o
papel pior”. Nesse contexto, esta canção soa como contradiscurso à histo-
riografia conservadora que encarava o centenário da abolição como data
comemorativa do fim da escravidão, silenciando o papel de negros e ne-
gras na construção deste processo. Os solos de guitarra (ao longo de toda
a canção) dão ainda o ar de contestação e “distorção” de uma verdade
velada (não é à toa o uso de pedais de efeito overdrive para alterar a so-
noridade harmônica, próprio dos grupos de rock).

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 133


Posição muito próxima está registrada no álbum Atrás do Pôr do Sol,
de Lazzo, lançado pela gravadora Nosso Som e distribuído pela multina-
cional BMG-ARIOLA. Este é, sem dúvida, um dos discos com a sonoridade
mais próxima do reggae já lançados pelo artista. Curiosamente, é também
um álbum marcado por canções que explicitam as desigualdades raciais e
apontam na direção de perspectivas também insinuadas pelos movimentos
sociais da época. A primeira canção do álbum, “Abolição”, é também um
manifesto contra as comemorações “oficiais”. Nas palavras do artista:

ABOLIÇÃO
(Lazzo e Capinam, 1988)
Abolição!
Abolição, a lição do meu avô
Que casou com minha avó
E que pariu a minha mãe
E com meu pai
Com meu pai fazendo amor
Fez do prazer a flor da dor
A beleza negra que eu sou
Acabar com a tristeza
Com a pobreza e o apartheid
Não fazer da humanidade, a metade da metade
Parte branca e parte negra
Abolição!
Abolir essa careta
Que esconde a natureza
E que me faz ser teu irmão
E a lição, a lição do meu avô
Foi ser dono do meu ser
Foi saber o que eu sou
A lição da liberdade
Da verdade de zumbi (Zumbi meu pai!)
Lá da Serra da Barriga
Da barriga onde eu nasci
Abolindo a velha intriga
Guerreando pra sorrir134

A canção problematiza a “Abolição”, sugerindo-a como lição/posição


política igualitária ensinada pelas gerações anteriores. O jogo de palavras
e a inversão de sentidos edificam um contradiscurso à leitura hegemô-

134 l Fabricio Mota


nica do centenário da Lei Áurea, demarcando uma posição comum a
alguns segmentos das militâncias negras urbanas (SILVA, 2000).

A importância da afirmação/valorização do ser negro é um argumen-


to central do artista. Ao entrecruzar a referência a sua genealogia com a
Serra da Barriga, onde se situou o Quilombo de Palmares, Lazzo estabe-
lece uma alusão explícita de ligação com um passado de lutas anticolo-
niais, que deveria ser reinserido naquele contexto, em que ainda se fazia
necessário “guerrear pra sorrir”.

A canção que encerra o mesmo disco também é um manifesto antirracista.


Em “Lamento”, Gileno Félix e Lazzo abordam as formas de discriminação
racial que representam um obstáculo à igualdade de direitos na sociedade:

LAMENTO
(Lazzo e Gileno Félix, 1988)
Meu Deus, até quando a gente vai poder suportar
Uma falsa igualdade em que é sutil mentir
E não nos conceder o direito
Meu deus quanto tempo a gente vai ter que esperar
Uma longa avenida livre de todos preconceitos
Se em cada esquina há um estranho olhar
Discriminador acusando um suspeito
Eu não!
Meu deus quanto tempo a gente vai ter que esperar
Pra doce raça humana ter iguais direitos?
Será que eles não sabem
Que a chuva que cai do céu
Não escolhe
Vem e molha todos nós
E que o povo há de fazer
Seu próprio mandamento
E o tempo há de sentir
O que vem do firmamento
E a cada sol nascer
Nascerá sempre um novo movimento
Nascerá!
Salve o deus da música

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 135


Forte pra lutar
Contra a opressão
Contra a discriminação
Contra o aparttheid
E dai-nos a paz
(Choro nas minhas cordas)135

A partir desses registros, podemos mensurar a importância da música


na mediação de sentidos identitários de negritude e antirracismo. É pos-
sível ainda sugerir que os discos de reggae produzidos na Bahia repre-
sentam expressões do ativismo político dos negros entre os anos 80/90.
Os anos que seguiram também são protagonizados por inúmeros artistas
que colocaram, através da produção musical deste gênero, temáticas re-
lativas ao combate do racismo.

Um número considerável de artistas que, ao longo das décadas anterio-


res, construíam a cena reggae, passava a registrar suas canções em discos
com selos “independentes”, gravados a partir de tecnologias e softwares
mais acessíveis. A respeito deste conjunto de fontes é importante destacar
que não tenho privilegiado as informações sobre a circulação no grande
mercado. É notório que estes registros fonográficos atingem um grupo às
vezes pequeno de consumidores, o que, de início, parece inviabilizar maio-
res reflexões acerca deste material. Por outro lado, as gravações de artistas
como Ras Ciro Lima, Ubaldo Warú, Geraldo Cristal, Zavan Liv, Gilsan,
Jorge de Angélica, etc., guardam valiosas impressões sobre o contexto pelo
qual nos debruçamos e são, portanto, fontes primárias para compreender
os enredos da versão baiana do gênero. Portanto, privilegio, aqui, ouvir e
ver os sujeitos para além do critério quantitativo, ou de sua maior ou me-
nor vendagem de discos.

Em outras palavras, “o que se vê” ou o que é invisibilizado, ainda ga-


nha muita relevância no mundo contemporâneo, logo, o racismo e a luta
antirracista se constituem em torno e em conflito com esses sentidos. Este
exemplo faz relembrar ainda Maurice Halbwachs, em suas considerações
sobre o papel dos músicos na construção da “memória coletiva”. Ele
argumenta que a “lembrança” dos músicos são as únicas conservadas
“numa memória coletiva que se estende no espaço e no tempo, tão longe

136 l Fabricio Mota


quanto sua sociedade” (1990, p. 185). Entretanto, seu posicionamento
representa, à luz de novas reflexões, alguns limites, uma vez que conside-
ra todas as formas outras de memória coletiva seccionadas do tempo his-
tórico, logo, restringindo sua herança ao tempo de vida dos indivíduos.

Segundo Ahmed Hampatê-Bá (1982), essas raízes podem ser ainda


mais remotas, como aponta seu valioso A Tradição Viva que trata das
tradições e formas de organização social persistentes em determinadas
regiões do continente africano, ancoradas na oralidade. As tradições
orais/musicais têm papel central na produção de conhecimentos, na or-
ganização social e na legitimação das identidades e visões de mundo.
Acompanhando esta opinião, destacamos que a oralidade aqui é com-
preendida em seu amplo papel para o legado cultural e político de um
ou mais grupos sociais. Portanto, os discursos estético-musicais e “falas”
compõem as memórias de uma inventada tradição recente que serve
como recurso político para legitimar os grupos e suas demandas sociais.
É como aponta o historiador e músico “Salloma” Salomão Silva:

“Os compositores retomaram as ligações com as práticas Griot ou Doma


[...] que são formas destinadas à preservação da memória na forma de
canções [...]. O encontro dos compositores e militantes negros com a his-
tória da África antiga e do Brasil colonial gerou um estilo inédito de can-
ções urbanas, que se encontravam em sincronia com as proposições de
alguns grupos negros” (SILVA, 2000, p. 80).

Em inúmeras canções (o que inclui as apresentadas até o momento neste


capítulo), esse recurso é amplamente visível e merece ser considerado. É im-
portante considerar que na arena da chamada cultura baiana (que transcende,
sem dúvida, o espaço metropolitano de Salvador), a música incorporou novos
sentidos, de acordo com as diferentes formas de reprodução em sintonia com
“aspectos tenazmente locais” da história, tais como as experiências musicais
do Recôncavo, a presença da musicalidade de matriz africana nos rituais de
candomblé e a emergente e híbrida sonoridade dos blocos afro e afoxés. Mú-
sicos e musicistas são, no sentido amplo apontado por Geertz, intérpretes das
tendências da música mundializada e recriadores destes estilos à luz das ten-
sões e visões de mundo que lhes está ao alcance, ocupando, portanto, o lugar
de pensadores(as), ativistas e sujeitos críticos que subvertem as hierarquias e

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 137


“fazem a cabeça” (em diversos sentidos) de jovens e adultos que identificam,
nas canções, abordagens em torno de seu próprio cotidiano.

É possível situar, ainda, acompanhando passos sugeridos por Sil-


va (2000), um conjunto de canções que tematizaram o “resgate do
passado” como forma de enunciar uma identidade de ser-estar negro
na sociedade contemporânea, revisitando a historiografia e inserin-
do outros personagens subversivos e episódios de sedição pela luta
antirracista/antiescravista no passado colonial brasileiro. Zumbi dos
Palmares, Lucas da Feira, entre outros, foram os protagonistas dessas
novas narrativas musicais.

Talvez pela carreira “melhor sucedida”, o cantor e compositor Edson Go-


mes apresente um número maior de exemplos espalhados entre seus 14 lan-
çamentos (incluindo as muitas coletâneas). Entre as músicas existentes e mais
elucidativas (“História do Brasil”136 já foi devidamente mencionada), há a can-
ção “Capturados”, cujo texto da letra aborda o reconhecimento da identidade
negra como estratégia de identificar a ideologia da democracia racial:

CAPTURADOS
(Edson Gomes, 1990)
Somos filhos dos escravos
Não temos vergonha de assumir
Somos filhos dos capturados
Não temos vergonha de admitir
Somos filhos dos escravos
Estamos afins
De tirar essa máscara
Revelando a história
De um povo roubado, adulterado
E negado a ser feliz
Um povo castrado, lesionado
E negado a ser feliz
Somos filhos dos escravos
Estamos afins
De arrancar essa máscara
Revelando a história
De um povo que habita

138 l Fabricio Mota


Lá dentro do gueto
Capital da miséria
Crianças que vivem
Circulando nos sinais
São aprendizes de marginais
Somos filhos dos escravos
Somos filhos dos capturados
Somos, somos, somos e somos137

O verbo “ser”, tão evidenciado pelo autor, é sintoma de uma posi-


ção política que visualiza, no passado, a figura do escravo como sujeito
histórico – restituído de sua humanidade – para a identificação com o
“ser” negro, no contexto contemporâneo. Chama ainda mais à atenção,
a ênfase na filiação com o ancestral negro, como estratégia de “revelar”
uma historiografia atenta para as desigualdades sociorraciais que pesa-
ram sobre os afrodescendentes e, consequentemente, sobre seus filhos
do presente. Longe de querer esvaziar ou esgotar as metáforas do artista,
arrisco que a estrofe final, que se refere às crianças, sugere uma estratégia
poético-musical para evidenciar o argumento central da canção.

Essa leitura do passado é profundamente reveladora de uma nova per-


cepção sobre o presente que evidenciava as hierarquias raciais como perma-
nência histórica da realidade brasileira e da autoafirmação (“somos...”) como
resposta ao mito da democracia racial e da não violência; bem como das for-
mas historicamente construídas do racismo que opera em torno de um sistema
complexo que institui a inferiorização do negro e a exclusão das esferas do
poder e, por conseguinte, dos mecanismos de legitimação destas esferas.

Além disso, o uso simbólico de elementos de circulação no imaginário


social também foi alvo da criativa obra musical em foco. Utilizando o disco
(em sua dimensão plástica) como espaço de interação, Recôncavo ostenta um
encarte que guarda, de um lado, as letras do álbum e, de outro, uma imagem
imponente de um time de futebol formado pelos músicos e outros agentes en-
volvidos na produção da obra. O futebol, um dos esportes de maior símbolo
de mobilização nacional e identificação do Brasil no exterior, é retratado de
modo, se não transgressor, minimamente identificado com a estética negra138.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 139


Entre os muitos centenários celebrados na virada para a década de
90 – o da Abolição em 88, o da República em 89 – esteve em suspenso a
questão dos ícones da memória nacional e seu efêmero calendário. Silva
(2000) destaca que a entrada, no cenário nacional, de questões relativas às
identidades negras, naquele contexto, foi um aspecto propulsor das mobili-
zações que culminaram ao redor do ano de 1995, contexto em que se des-
tacava a disputa política pela afirmação do 20 de Novembro como data
comemorativa do tricentenário da Morte de Zumbi (20 de novembro de
1695). Ressalta ainda que a movimentação político-cultural, nos anos que
antecederam este episódio, foi pauta da fala cantada dos grupos negros de
inúmeras cidades do Brasil, entre os quais, aqueles ligados ao movimento
Hip Hop (destacadamente em São Paulo). Esta nova presença afro-musi-
cal urbana teria sido – na leitura plausível de Silva (2000) – sensivelmente
percebida por Gil e Caetano Veloso que, na ocasião, apresentaram a can-
ção “Haiti”, como música de trabalho do recém-lançado Tropicália 2 139.
Na Bahia, esse processo também marcou algumas faixas da discografia
do reggae. Em “Música das Ruas”140, Dionorina canta sua percepção do
“novo Zumbi” na sinestésica “1695”:

1695 (MEDO NUNCA)


(Dionorina, 1994)
Há algo no ar da praça
Um grito que pairou no tempo
Que a raça nos traz
Refletindo um navio negreiro
Com os olhos do tempo
Novo quilombo se formando
A resistência do som tropical
Somos negros mesmo
Somos nossos pais
Somos dentes tão claros
Somos de todo gás
Por traz dos canaviais
Um lamento batalhador
Oh não
Metáfora de escravidão
O desemprego e a corrupção no meu país

140 l Fabricio Mota


Oh não oh não
Libertai a carne e o espírito
Mas preservem meu coração
Oh não
1695,
1695, louca diáspora universal
1695, banzos e malês retratam o que eu digo
1695: novos “Zumbis” apostam na paz [mil...]
Chama que teima em luzir o seu brilho
Nossa esperança ilustrando um cartaz
Medo nunca
Medo nunca mais
Não, não, não
Medo nunca
Medo nunca mais
Não, não, não

Na leitura do compositor e intérprete, há em questão um sentimento


de pertencimento étnico que paira no ar e no tempo (como “um espectro
que ronda...”) e que remete ao passado do negro no Brasil, no que se re-
fere à experiência dos quilombos, entendidos como territórios de sedição
e resistência. Essa análise do passado nos remete às reflexões de Walter
Benjamin, oportunamente lembrada nas epígrafes de Gilroy (2001), a
respeito da história e sua incursão sobre o tempo. Diz-nos Benjamin que
“articular historicamente o passado não significa aceita-lo ‘do jeito que
ele realmente era’. Significa apropriar-se de uma memória quando ela
eclode em um momento de perigo” (GILROY, p. 351, 2001).

Essa “memória viva” do quilombo e seu referencial-mor Zumbi indicam


uma contra-história em que se sublevaram contra uma historiografia neo-
ocidental que, a rigor, impunha contra parcela considerável da população
brasileira (negros e negras), a sombra do silêncio. A posição desse e de ou-
tros compositores, a partir de seus textos musicais, revela-se em consonância
com o contexto em que os (novos) movimentos sociais negros no Brasil
apostavam, dentre outras bandeiras, na alteração do calendário cívico e,
com ele, da interpretação histórica que silenciava a importância de negros e
negras para a edificação do Brasil e de uma história do negro na diáspora.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 141


Paralelamente, o arranjo da canção proporciona um ambiente pro-
fundamente melancólico (blues), reforçado por incursões esporádicas
de melodias de guitarra em escala pentatônica que respondem à cada
avanço das estrofes. Esta impressão sonora completa o texto musical,
instaurando uma imagem singularmente ambivalente: por um lado, a
memória de um passado (da plantation) marcado pela dor, como demar-
ca a postura vocal combinada com a vibrante resposta das estrofes finais:
“medo nunca mais!”.

Não se pode deixar de considerar a percepção implícita de uma críti-


ca às contradições da política nacional, na transição em marcha para um
processo de alinhamento com as políticas do neoliberalismo, tendência
que aparece em outros autores do gênero no ano seguinte141.

Em 1995, com o lançamento de Resgate Fatal, Edson Gomes traz em


“Zumbi dos Palmares” uma homenagem ao tricentenário. Vejamos a seguir:

ZUMBI DOS PALMARES


(Edson Gomes, 1995)
Zumbi,
Rei dos Palmares
Um grito de dor
Liberdade
Zumbi
Rei dos Palmares
Um lutador
Líder de valor
Você, o nosso precursor
De lá para cá outro não se viu
De lá para cá ninguém assumiu
Você
Um grande lutador
A nossa luta não acabou
Eis aqui a retomada
Vamos então encher a praça
Gritar de novo
Gritar com raça
Deliberada

142 l Fabricio Mota


Sou Zumbi dos Palmares
É o Zumbi dos Palmares
Eu Zumbi dos Palmares
Zumbi
Até mesmo o sol
Se eles pudessem
A gente pagaria
Zumbi
Até mesmo a chuva
Se eles pudessem
A gente pagaria
Não temos
Como estudar
E a cada dia se alimentar
Não temos
Onde trabalhar
E a cada dia mais difícil
Se alimentar
Você
Um grande lutador
A nossa luta não acabou
Eis aqui a retomada
Vamos então encher a praça
Gritar de novo
Gritar com raça
Deliberada
Sou Zumbi dos Palmares
É o Zumbi dos Palmares
Eu Zumbi dos Palmares
Ao longo desses anos todos que nós estamos no Brasil
Ainda não somos livres

A canção evidencia uma leitura de mundo que, voltando-se ao pas-


sado, identifica, por um lado, a permanência das desigualdades sociorra-
ciais e, por outro, a identificação com Zumbi (precursor, lutador, líder de
valor) como referencial histórico e étnico-identitário de luta contra essa
realidade. A canção sugere ainda um tom de mobilização em torno do
tema, sinalizando para a opinião do artista diante da bandeira dos mo-

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 143


vimentos negros urbanos. Ainda neste álbum, o passado escravista serve
de referência à leitura das desigualdades do presente, como o exemplo
da faixa “Fato Consumado”:

FATO CONSUMADO
(Edson Gomes, 1995)
Toda miséria que o povo passa
Quem vai pagar?
Toda essa fome que o povo passa
Quem vai pagar?
Por todo esse sangue derramado
Nas pedras do Pelô
De cada homem chicoteado
Nas pedras do Pelô [...]

A referência aos levantes de escravos e outras formas de resistên-


cia à dominação colonial fizeram/fazem parte das mensagens do reggae
baiano. Uma das leituras curiosas desse processo é a canção “Lucas da
Feira”, de Gilsam, gravada (já tardiamente) em 2002, em seu álbum in-
dependente Reggae para Todos. Lucas da Feira é o nome como ficou co-
nhecido o liberto Lucas Evangelista142, que nasceu em Feira de Santana
na primeira metade do século XIX e cuja história, rigorosamente silencia-
da pelos grupos dominantes da cidade nos últimos séculos143, vem sendo
retomada por alguns segmentos dos movimentos negros há algumas dé-
cadas. A leitura do compositor e intérprete Gilsam é uma delas:

LUCAS DA FEIRA
(Gilsam, 2002)
Que pode um homem e o sistema vil
Que pariu a besta e a opressão
Quem viu
A estrela da redenção
Nos olhos da noite contra o açoite
Um homem vil
Quem viu
Como tantos outros homens
A estrada que se abriu
Para conduzir sua gente

144 l Fabricio Mota


Quem viu
Pelas veredas encandescentes
Lucas da Feira
Filho da Libertação
Cinturão do agreste
De tantos algozes semeiam vozes de resistência
Contra a opulência
Do ditador comum
Lucas da Feira
Filho da libertação

Aos olhos do cantor, pedagogo e ativista negro, Lucas da Feira é um


personagem cuja história foi silenciada, pois revela o protagonismo de um
negro liberto que se levantou contra o sistema colonial. Em muitas conver-
sas com Gilsam, ele enfatizou que há, na verdade, bastante resistência em
produzir uma história do passado colonial que problematize a condição do
negro no contexto de Feira de Santana e do Sertão, de um modo geral144.

Em suma, os exemplos apresentados de canções sinalizam para uma


tendência mais geral adotada por outros compositores e intérpretes que,
ao longo dos anos 90 (que, a meu ver, se estende para além da década
propriamente dita), tentaram dialogar e propor novos parâmetros à his-
toriografia que pudessem, a partir da análise do passado, produzir uma
leitura crítica da situação do negro na sociedade contemporânea.

Há, paralelamente, um universo de canções mais sintonizadas


com a denúncia do racismo brasileiro e da democracia racial, como es-
creveu o compositor e músico Artur Cardoso:

ADÃO NEGRO
(Arthur Cardoso, 1998)
Apartheid disfarçado todo dia
Quando me olho não me vejo na TV
Quando me vejo estou sempre na cozinha
Ou na favela submissa ao poder
Já fui mucama
Mas agora sou neguinha
Minha pretinha, nós gostamos de você

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 145


Levante a saia e saia correndo pro quarto
Na madrugada patrãozinho quer lhe vê
Será que um dia eu serei a patroa?
Sonho que um dia isso possa acontecer
Ficar na sala, não ir mais para a cozinha
Agora digo o que vejo na TV:
Um som negro,
Um Deus negro,
Um Adão negro,
O negro no poder

A ideologia da democracia racial, denunciada na expressão “apar-


theid disfarçado todo dia” é associada pelos mecanismos de invisi-
bilização social (como a TV) e pela manutenção de espaços (sócio)
racialmente hierarquizados (como a representação da “sala” e da “co-
zinha”). Alguns comentários já foram feitos sobre esta percepção, de
inspiração freyreana, que incide sobre a ideia de que a “cozinha” está
para os escravos, negros, mulheres, assim como a “sala” para os se-
nhores, brancos, homens. Uma criativa leitura desta relação dualista
foi feita por Carlos Albuquerque (1997), que denomina de “racismo
sonoro” o hábito de considerar os instrumentos rítmicos como parte
da “cozinha” na formação das bandas, em sua breve análise sobre o
dub (e a nova centralidade-liberdade para o baixo e bateria) vertente
mais psicodélica da música jamaicana145.

Comentários à parte, Artur Cardoso, cofundador da banda Adão Ne-


gro (que é um nome, de saída, sugestivo) propõe uma contranarrativa
de questões estruturais e cotidianas da sociedade. Este recurso, visível em
outras leituras musicais do contexto, enuncia a presença de uma metafí-
sica de negritude mais edificada em torno do orgulho negro do que pro-
priamente na imagem do negro como vítima, uma mudança substancial,
eu diria, do ponto de vista das estratégias discursivas e das perspectivas
dos grupos negros urbanos. Ainda que o artista não faça mais parte do
Adão Negro (dado que é, no mínimo, intrigante e que não pode ser de-
vidamente contemplado nesta pesquisa) esta é uma das mais conhecidas
canções do reggae baiano, desde fins dos anos 90.

146 l Fabricio Mota


Em outra canção, o militante, compositor e baixista Jorge França re-
alça, entre outras questões que também mereceria destaque, a relevância
da autoafirmação do negro para a constituição de uma “identidade” na
luta contra o racismo:

IDENTIDADE
(Jorge França, 2003)
Ei, meu irmão negro!
Não tenha medo de ser você
Não renegue a sua cor
Ela te acompanhará onde você for
Ela faz parte da sua identidade
Assuma, enfrente a sua verdade [...]
Nunca acredite em que diz que você não é belo
Mas pregue a paz entre o branco, o negro, o vermelho e o amarelo
E lute contra a discriminação
Esse é o seu destino, vamos lá meu irmão...146

Este tipo de referência, presente em outras gravações, permite men-


surar a relevância da produção local da música reggae na construção
de novos sentidos de pertencimento negro e repostas à desigualdade
sociorracial. Essa manifestação esteve presente em outros materiais,
como o informativo Folha do Reggae.

QUEIMANDO TUDO COM A


FOLHA DO REGGAE

Completando esse quadro, a mobilização político-cultural em torno


da divulgação do gênero em estudo também foi registrada em fontes
como o informativo Folha do Reggae, publicado em Salvador, no verão
de 1997. Ainda que publicado em apenas três edições, os exemplares
desse impresso são uma fonte de extrema importância, pois apresentam

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 147


uma agenda movimentada de eventos, lançamentos de discos, informa-
ções sobre a presença dos blocos de reggae e samba-reggae no carna-
val (representados em blocos tais como Resistência Ativa, Ska Reggae,
Amantes do Reggae e Muzenza do Reggae, de Salvador), além de entre-
vistas com músicos como Nengo Vieira, Edson Gomes e Sine Calmon.

No expediente do jornal, entre editores e colaboradores, estavam per-


sonagens da militância negra na Bahia com Raimundo Bujão, Samuel
Vida, Antonio Godi, Índio do Olodum e outros. Além de artigos acadê-
micos sobre música rasta-reggae e pertencimento negro, era publicada,
em cada edição, a tradução para o português de canções de Bob Marley,
elaboradas pelo historiador João José Reis147.

Entre as matérias, destaca-se a que trata da presença dos blocos


de reggae no carnaval (intitulada no periódico de “arrasta-reggae”),
ocupando espaços outrora negados no circuito da festa momesca, bem
como trazendo para o enfrentamento questões de cunho étnico-iden-
titário. É importante destacar que o reggae chegava, naquele contex-
to, instaurando um contraponto aos blocos de trio (da chamada axé
music), no que diz respeito a manifestações de racismo no interior do
evento público, como informa a Folha do Reggae, a partir de entrevista
com Rosiel Santana, diretor do Muzenza:

“O Muzenza resgatou neste carnaval o direito de sair na rua durante o dia,


chegando no domingo e terça às 16h na Avenida. Para Rosiel Santana, a
importância do reggae é muito grande no carnaval, pois o ritmo é tocado
até pelos blocos de trio resgatando a autoestima do povo afro-baiano.
Segundo ele, a partir do momento que se mostra o que se tem de bom, a
sociedade deixa de resistir e passa a acreditar, ‘o que era coisa de preto se
transforma em algo valorizado pela sociedade’. [...]”148.

Para esse diretor, houve um “cansaço” com relação a axé music, promovi-
do pela falta de qualidade das músicas dos blocos de trio que, com raras exce-
ções, englobam conotações racistas, como na música da banda Tiete Vips que
diz: “a ti ba ba, a ti be be, nego nagô fede mais do que sariguê”. No entanto,
o reggae não vem para competir, mas para ocupar seu espaço no carnaval de
Salvador como forma de manifestação qualitativa do povo negro.

148 l Fabricio Mota


Em linhas gerais, pode-se considerar que a Folha do Reggae se ca-
racterizava como um veículo da mídia impressa alternativa com ênfase
na divulgação do cenário artístico-musical em torno do reggae produzi-
do dentro e fora da Bahia; na denúncia dos casos de racismo e outras
formas de segregação na sociedade que atingiam mais diretamente os
negr@s149. Como um manifesto político-cultural e étnico-identitário com
atenção às mobilizações do movimento negro baiano e outros campos
dos movimentos sociais, o informativo dialogava com a valorização da
estética e cultura negras, mediadas pela música.

A existência desta fonte evidencia que a cristalização da música reggae


no cenário sociocultural da Bahia não se deu sem enfrentamentos e toda
sorte de formas de repressão e retaliação. Curiosamente, é no “Verão do
Reggae Baiano” que se levantam, de um lado, artistas, profissionais libe-
rais, pequenos empresários150 e, de outro, segmentos da justiça e outros
órgãos do Estado, num enfrentamento simbólico e, muitas vezes, judicial
que envolveu casos polêmicos como o ocorrido com o músico e compo-
sitor Sine Calmon e a banda Morrão Fumegante, noticiado por inúmeros
veículos da imprensa baiana e nacional, e pelo informativo em foco.

A primeira edição do Jornal traz uma matéria sobre a controvérsia


iniciada, em 1996, pelo Delegado Itamir Casal, da Delegacia de Tóxicos
e Entorpecentes, e fomentada pela juíza Dayse Lago, da 1º Vara Priva-
tiva de Tóxicos, que condenou Sine Calmon a cumprir pena em regime
fechado por suposta apologia e uso de drogas, uma vez que, no entendi-
mento dos ditos defensores da “lei”, o próprio nome da banda (Morrão
Fumegante) fazia alusão ao “baseado”151. Na versão do líder da Banda, a
expressão foi inspirada nas escrituras bíblicas – não nos esqueçamos da
ligação deste com os Remanescentes nos anos 80 – no Livro de Mateus,
Capítulo 12: “Não esmagará a cana quebrada, nem apagará o morrão
que fumega até que se triunfe o Juízo”152.

A rigor, o sentido da nomenclatura em questão despertava para uma


série de posições subversivas que, de certo modo, afrontavam o poder
local e reconfiguravam as relações de poder e segregação, sob as quais se
assentavam as desigualdades na Bahia. Osmundo Pinho (1997) perce-
beu este caráter contestatório implícito na questão ao analisar os espaços

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 149


de lazer e consumo de música no Pelourinho, a exemplo do Bar do
Reggae. Faço minhas as suas considerações de que os gritos de “fogo
na Babilônia”, o consumo de ganja, bem como a proliferação destes
espaços ligados ao reggae se configuravam também como territórios
de contestação antirracista, antirrepressão e antimoralista, fundando
uma alternativa que, pelo desapego à ordem e apoio de uma parcela
de jovens (inclusive não-negros e de classe média) incomodava alguns
segmentos mais conservadores de nossa sociedade153.

Paradoxalmente, a ação desses magistrados surtia efeito reverso, con-


tribuindo para a divulgação e maior popularidade do artista. É preciso
destacar que os sucessivos episódios, envolvendo a polícia e o artista
baiano, acabaram por provocar inúmeros agentes da militância negra
na cidade, o que seguramente também contribuiu para a popularização
de seu trabalho. De todo modo, a abordagem coercitiva destes agentes é
ponto corrente na história do reggae e foi frequentemente pontuado em
um conjunto de canções que serão comentadas a seguir.

PORRADA DE POLÍCIA

Todo camburão tem um pouco de navio negreiro.


O Rappa, 1994

As manifestações de racismo e outras desigualdades sociais associadas


à violência policial são temas frequentemente encontrados no universo de
canções do reggae baiano, sobretudo a partir de 1988, contexto de franco
acirramento dos movimentos negros urbanos na sociedade brasileira (prol
e contra o centenário da Abolição, e para além deste), ocasião de amargas
crises econômicas e políticas no cenário nacional, como assinalam as in-
tensas mobilizações sociais do período. Wacquant (s/d) tem sugerido haver

150 l Fabricio Mota


uma relação entre o aumento da repressão policial em conformidade com
a crescente presença da afirmação dos movimentos sociais negros e suas
estratégias político-culturais, no contexto dos EUA. Não acredito que seja
possível concluir que esse fenômeno se evidencie em Salvador e outras
cidades da Bahia por força das mesmas razões. Entretanto, partindo das
evidências observadas a partir da análise dos registros musicais em foco,
sugiro que há pelo menos um indício a ser seguido.

Na Bahia, alguns episódios de discriminação envolvendo músicos, pro-


dutores e, em muitos casos, o “regueiro” em geral também foram pauta das
falas dos entrevistados, o que evidencia a tensão em torno da afirmação e
cristalização do reggae como estilo de vida, na condição de subcultura. Ten-
tando compreender os muitos “perfis” do “regueiro” soteropolitano, Marcos
Santos destaca que a experiência (profundamente desagradável, leia-se) de
passar pelo baculejo, é interpretada pelos sujeitos como uma “encenação de
sua condição de excluído, de marginal, de oprimido pela Babilônia”154.

Outras leituras musicais reforçaram essa impressão, evidenciando uma


postura de afirmação de uma identidade que se reforça numa dinâmica
de alteridade. Gravações numerosas registraram situações de repressão
direta e indireta, bem como a marginalização ostensiva desse “aparelho”
de estado, incidindo sobre a cena sociocultural em que o reggae se inse-
ria como contracultura musical alternativa.

Edson Gomes é o autor com um número maior de canções registra-


das, fato que pode se explicar por ser este o músico com maior número
de discos gravados. Analisando sua obra, evidencio alguns exemplos que
servem para ilustrar, com efeito, as presentes reflexões. O disco Campo
de Batalha (EMI-ODEON, 1992) é um exemplo sugestivo dessa leitura
crítica. O título da obra já sugere uma interpretação das relações sociais a
partir de um conjunto de tensões em que se inscrevem as “posições dos
sujeitos”, como sugeria, analogamente, Foucault. A faixa de abertura, a
canção “Criminalidade”, inaugura o disco ao som de uma sirene policial
que demarca nitidamente o tom de denúncia. A letra da canção destaca
a criminalidade como situação de violência urbana provocada por um
conjunto de fatores, dentre os quais se insere a “falta de segurança” e a
atuação do aparelho policial em conformidade com este quadro:

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 151


CRIMINALIDADE
(Edson Gomes, 1992)
É tanta violência na cidade
Brother tanta criminalidade
As pessoas se trancam em suas casas
Pois não há segurança nas vias públicas
E nem mesmo a polícia pode impedir
Às vezes a polícia entra no jogo
A gente precisa de um super-homem
Jah Jah Jah
Que faça a mudança imediata
Jah Jah Jah
Pois nem mesmo a polícia pode destruir
Certas manobras organizadas
Ah ah ah
É tanta violência na cidade
Brother tanta criminalidade
A lua não é mais dos namorados
Os velhos não curtem mais as praças
E quem se aventura
Pode ser a última
E quem se habilita
Pode ser o fim
A gente precisa de um super-homem
Jah Jah Jah
Que faça a mudança imediata
Jah Jah Jah
Pois nem mesmo a polícia pode destruir
Certas manobras organizadas
Não, tudo um dia vai passar
Sei que tudo um dia vai mudar

Seguramente, por ser um dos músicos de reggae de maior vi-


sibilidade no Brasil, Edson Gomes foi alvo da abordagem policial
em situações diversas. Em entrevista concedida em 2006, para uma
revista virtual, o músico relata dois episódios de constrangimento
ocorridos nos anos 90:

“No CD [Apocalipse], abordei na música “Fogo na Babilônia”, uma situ-


ação que ocorreu comigo. Em 1997, a polícia civil forjou um mandado
de busca e apreensão. Invadiram minha casa em busca de droga e me

152 l Fabricio Mota


imobilizaram e reviraram a casa em busca de drogas. Outra situação que
aconteceu foi quando eu e meu irmão Bráu fomos a uma imobiliária alu-
gar um apartamento. Então, quando saímos com o cara da imobiliária, no
caminho, fomos parados pela polícia armados de metralhadoras e man-
daram descer do carro alegando estarem procurando um carro roubado
que parecia com o que estávamos” (Revista Musical On-Line, 2006).

A canção-denúncia citada, além de evidenciar essas informações re-


flete uma posição discursiva onde o autor-sujeito se coloca como crítico
destas relações de desigualdade. Ainda no álbum Apocalipse, Gomes
gravou “Camelô”, uma das canções de trabalho155 que teve ampla re-
percussão na imprensa e em outros espaços de divulgação. A canção
aborda a violência dos órgãos públicos contra os trabalhadores do mer-
cado informal – em meados dos anos 90, mais de 54% da população
economicamente ativa de Salvador156:

CAMELÔ
(Edson Gomes, 1997)
Sou camelô
Sou do mercado informal
Com minha guia sou
Profissional
Sou bom rapaz
Só não tenho tradição
Em contrapartida sou de boa família
Olha doutor
Podemos rever a situação
Pare a polícia
Ela não é a solução não
Não sou ninguém
Nem tenho pra quem apelar
Só tenho meu bem
Que também
Não é ninguém
Quando a polícia cai em cima de mim
Até parece que sou fera
Até parece...

Naquele contexto, a gestão municipal do então prefeito Antônio Im-


bassahy, representante da extrema direita baiana, promovia mais um pro-

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 153


jeto modernizante para a cidade, a partir de uma política de “limpeza” do
centro urbano de Salvador. Além das demissões em massa157, em nome
do “enxugamento” da máquina administrativa, a prefeitura intensificou
os chamados “rapas”, mutirões fiscais encarregados pela manutenção do
espaço urbano que, sob esta alegação, retiravam (com o uso da força)
centenas de trabalhadores autônomos da cidade, momento que foi devi-
damente retratado pelo músico.

A canção, nesse contexto, é uma fala situada e, como tal, se revela


como contradiscurso à ordem hegemônica. Esta abordagem tem sido
marca inconfundível do trabalho de Edson Gomes, ao longo de mais de
20 anos. Em muitas outras canções, o autor-intérprete tematiza a violên-
cia policial de maneira contundente, o suficiente para lhe ter causado
alguns episódios assaz desagradáveis, como citado acima.

Parece sintomático que esse período, em especial, guarde um nú-


mero considerável de canções que abordem esse problema, haja vista
o contexto de cristalização do reggae como estilo étnico-estético-musical
redefinindo o panorama das identidades sociais neste fim de século XX.
Atesta, a meu ver, o confronto em torno da apropriação do gênero (e sua
bagagem cultural) pelos segmentos marginalizados na sociedade baiana,
encorajados por esses novos ritmos e, de outro lado, os representantes de
uma “velha ordem” social que identificava, nestas manifestações, uma
certa ameaça ao status quo. Em outras palavras, o conjunto de canções
registradas ao longo dos anos 90 é emblemático das contradições que
giravam em torno da afirmação do ritmo no cenário sociocultural baiano.
Não à toa, esse foi tema da segunda faixa do primeiro disco de Diono-
rina, de 1994 (o LP Música das Ruas). A canção “Porrada de Polícia” é
uma referência emblemática da percepção do artista sobre o problema:

PORRADA DE POLÍCIA
(Dionorina/Jorge Magalhães, 1994)
É no fundo da fome
Que a boca lambe a mesa farta de pavor
É na fome e na dor
Como porrada de polícia
Quem mora no morro

154 l Fabricio Mota


Tristes projetos de vida
Se corre pro osso
É presunto na pista
Se fica é pirão pra polícia
Ninguém quer polícia pra ordenar a fila
Representantes armados do sistema
É no fundo da fome
Que a boca lambe a mesa farta de pavor
É na fome e na dor
Como porrada de polícia
Não dá pra chorar
Quando mais forte é o desejo de comer
Guerreiros da redenção da raça humana
Detenham o trem da babilônia
Porque não param o trem
Da Babilônia

O apelo-denúncia à violência policial é ponto alvo desta canção. Cabe


registrar que o termo “violência” deve ser compreendido de maneira am-
pla, para além da moléstia física, como qualquer manifestação de arbitra-
riedade do corpo policial diante da sociedade em geral. Relaciona ainda a
crescente violência policial à miséria e outras mazelas, velhas conhecidas
de nosso país. Posição semelhante e muito mais explícita foi registrada por
outros artistas, dentre os quais, cabe o exemplo do reggaeman feirense
Jorge de Angélica, que, em seu primeiro disco, gravado em 1998 (Sopa de
Papelão), traz uma análise pontual sobre o problema na canção “Gangue”.
É uma análise pontual do problema:

GANGUE
(Jorge de Angélica, 1998)
Gangue perseguindo gangue...
Morros e favelas
Pega fogo, corre sangue
Com essa briga de gangue
Gangue perseguindo gangue...
Inocentes não tem nada a ver
É quem vai pagar
É quem vai morrer

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 155


Com essa briga de gangue
Gangue perseguindo gangue...
Confrontos
Em que se confundem
Pessoas de bem
Honesta e trabalhadora
Lhe dão tiro de 12
PT e metralhadora
Comentem muita injustiça
Tantos fora da lei
Como a própria polícia
Quanta ignorância
Os miseráveis matam as mulheres
Também matam as crianças
É gangue de marginais
Gangue de policiais
Pois eles armados
São todos, são todos
Todos iguais
E a gente nunca sabe
Quem mata mais
São balas perdidas
Gangue perseguindo gangue
Gangue perseguindo gangue...

A violência, no interior dos bairros periféricos, nos centros urbanos do


Brasil é uma infeliz realidade. Não tem sido diferente na cidade de Feira de
Santana, onde vive o artista e de onde tirou inspiração para as questões
identificadas na canção. Em sua análise, a polícia é comparada às quadrilhas
de criminosos que sitiam os bairros periféricos da cidade e, deste modo, cor-
responsável pelos altíssimos índices de mortalidade que atingem esta parcela
da população urbana. Esta posição rendeu ao músico inúmeros casos de
perseguição conforme o próprio informou em sua entrevista:

“Tivemos muitos problemas com a polícia. O pessoal do reggae era opri-


mido. Quando eu fiz a música ‘Gangue Perseguindo Gangue’ fui abor-
dado por uma patrulha de polícia no dia do show que queria que eu
descesse do palco pra me espancar, me fazer covardia. Naquele dia, Deus

156 l Fabricio Mota


providenciou anjos em forma de sargento, de cabo que chamou a patru-
lha... Pra ir embora do show, a viatura teve que dar uma certa cobertura
até próximo de casa. O sargento Valdir chamou “eles” e explicou, [ação
que] abrandou os ânimos e modificou o raciocínio dos policiais” (DE
ANGÉLICA, Jorge. Entrevista concedida em 02/08/2008).

Este episódio demonstra que o enfrentamento com a polícia se dava


a partir de uma dinâmica própria de relativa negociação e conflito. O
Sargento Valdir, citado, foi, segundo Jorge de Angélica, um dos primeiros
colecionadores de discos de reggae na cidade e cofundador do fã-clube
Marcus Garvey, sediado no bairro da Mangabeira. Ainda segundo o mú-
sico, o referido policial contribuiu, ainda que de maneira indireta, para
amenizar a perseguição aos “homens rastas” da cidade, alvo de rotinei-
ras abordagens públicas. Obviamente este dado não está dissociado da
maior popularização da música reggae nos centros urbanos da Bahia.

Em suma, essas e outras vivências registradas e problematizadas nas


faixas dos discos do gênero, ora analisados, fazem refletir sobre a impor-
tância do reggae como discurso étnico-identitário de denúncia às mani-
festações de racismo e outras formas de violência.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 157


Periódico Folha do
Reggae, publicado em
Salvador, no ano de
1997. Seu conteúdo
trazia matérias sobre a
presença rasta-reggae
no carnaval baiano,
entrevistas com artis-
tas, agenda cultural,
lançamento de discos,
traduções (para o por-
tuguês) de canções de
Bob Marley e outros
atrativos para o público
“regueiro”.

A publicação tinha
como marca o engaja-
mento político-cultu-
ral de editores, auto-
res e colaboradores.

158 l Fabricio Mota


Reggae Resistência (EMI-Odeon, 1988) foi o primei-
ro disco de Edson Gomes & Banda Cão de Raça e
um dos pioneiros a ganhar a classificação de Reggae
Nacional nas prateleiras do mercado fonográfico bra-
sileiro (Cf. Godi, 2001).

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 159


CD Fogo na Babilônia de Sine Cal-
mon e Morrão Fumegante (Atração
Fonográfica, 1997). A citação bíblica
é sintomática das tensões envolven-
do a banda e alguns segmentos mais
conservadores da sociedade baiana.

CD Mata Atlântica de Nengo Vieira e


Tribo d’Abraão (Independente, 2001).

Capa e contracapa do disco de Geraldo Cristal. (Geraldo Cristal. Reggaessência.


Independente, 2002).

160 l Fabricio Mota


NOTAS

126
Cf. entrevista de Sr. Carmelito (14/12/2006).
127
Refiro-me a este termo, seguindo a classificação de Santos (2001) para
quem há inúmeras manifestações do ser regueiro em Salvador. Em linhas
gerais, pode-se considerar que tanto frequentador@s dos shows quanto o
transeunte urbano, o qual deambula ostentando suas marcas de identifi-
cação étnica – como as dreadlocks e outros tantos sinais – eram, e ainda
são, alvo de discriminação sociorracial. Define assim, portanto, além do
ouvinte e admirador da música reggae, o público que freqüenta os shows,
os músicos e mesmo os menos sintonizados com a mensagem rastafári.
Sem dúvida, esta é uma questão que desperta bastante polêmica entre os
colecionadores, músicos ou ouvintes mais ligados, de maneira militante, à
circulação e divulgação do reggae na Bahia.
128
O excelente comentário de Patrícia Pinho sobre este conceito é digno
de referência. Para a autora, o estudo das relações negras transnacionais
deve considerar “os elementos de continuidade e ruptura em relação às
hierarquias modernas de poder, riqueza, valorização e reconhecimento”,
o que torna possível a cidades como Salvador emergirem como cen-
tros radiadores de elementos da cultura negra, “expandindo o mapa do
Atlântico Negro” e perturbando a colonialidade do poder, traço que a
confirma como “cidade mundial” (PINHO, 2004, p. 57).
129
“A Bahia virou Jamaica”, Folha de São Paulo, Ilustrada, 31/01/1988,
citado por GUERREIRO, 1997, pp. 97-113.
130
GIL, Gilberto. “Querem esvaziar os Festejos do Centenário da Aboli-
ção”. In: Jornal Feira Hoje, 13/01/1988.
131
Edson Gomes. Reggae Resistência. EMI-Odeon, 1988.
132
A rigor, outros artistas também fizeram uso desse conceito produzido
na diáspora, entre eles Paulinho Ganaê em seu CD independente gravado
em 1997, intitulado “Independência em Mente”. No encarte, as palavras
de Ganaê são: “da mesma forma que Zumbi é o eco de Ganga Zumba

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 161


na luta pela liberdade, nós devemos ser o eco libertário de Zumbi na luta
contra a escravidão mental, tendo sempre a independência em mente”.
133
Ibid.
134
Lazzo. Atrás do Pôr do Sol. Nosso Som/BMG-ARIOLA, 1988.
135
Ibid.
136
Edson Gomes. Reggae Resistência. EMI-Odeon, 1988.
137
Edson Gomes. Recôncavo. EMI, 1990.
138
O futebol é uma das paixões declaradas de Edson Gomes (e de astros
como Bob Marley, por coincidência). Anualmente, ele realiza, nas come-
morações de seu aniversário, uma partida protagonizada pelos músicos
e amigos, e que, nos últimos tempos, tem contado com presenças ilustres
como o jamaicano Gregory Isaacs, em ocasião de sua turnê pelo Brasil.
Este evento foi retratado no vídeo-documentário que faz parte (nos Ex-
tras) do primeiro DVD da carreira do artista. Edson Gomes. Ao Vivo em
Salvador (Duplo). Atração Fonográfica, 2005.
139
Caetano Veloso & Gilberto Gil. Tropicália 2. Poligram, 1993.
140
Dionorina. Op. cit.
141
GENTILLI, P. & SADER, E. Pós-neoliberalismo. As Políticas Sociais e o
Estado Democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
142
LIMA, Zélia de Jesus. Lucas Evangelista: O Lucas da Feira. Es-
tudo sobre a Rebeldia Escrava em Feira de Santana (1807-1849).
Dissertação de mestrado. Salvador: FFCH/UFBA, 1990. Este estu-
do, único até o presente, destaca a trajetória e as muitas imagens
em torno deste personagem negro, considerado um bandido social,
enforcado publicamente na primeira metade do século XIX, em Fei-
ra de Santana.
143
Em nota, Igor Santos comenta sobre a resistência das famílias feiren-
ses a batizar os filhos com o nome Lucas: “O nome Lucas foi evitado
no batismo das crianças e se construiu, através das classes dominantes,
uma memória de extremo negativismo [e racismo] em torno da memória
deste ex-escravo” (SANTOS, 2007, p. 28).

162 l Fabricio Mota


144
Sobre a sociedade escravista-colonial no Sertão da Bahia ver o rico traba-
lho do Prof. Erivaldo Neves. NEVES, Erivaldo F. Das Sesmarias ao Minifún-
dio: Uma Comunidade Sertaneja. Feira de Santana: UEFS, 2000. Não me
custa advertir também sobre o clássico POPINO, Rolie. Feira de Santana:
Ed. Itapuã, 1968.
145
Nas palavras de Albuquerque: “Afinal, porque guitarra, teclados e vo-
cais são sala? E desde quando a música é uma kitchenette? Na Jamaica,
essa discussão não existe. Lá o ritmo é livre, sempre senhor absoluto das
suas ações” (ALBUQUERQUE, 1997, p. 97).
FRANÇA, Jorge. Canção “Identidade”. Banda The Sheriff, Velha Raiz,
146

Álbum Independente, 2003.


147
Jornal Folha do Reggae, nº 01, 02 e 03. Fui informado que, no início dos
anos 80, foi produzido um pequeno livro contendo traduções (inglês-portu-
guês) das canções de Bob Marley e outros artistas afro-jamaicanos produzidas
pelo historiador/professor referido em parceria com Antonio Godi, responsá-
vel pelas ilustrações.
148
Jornal Folha do Reggae, nº 02, 1997.
149
Como exemplo, assinalamos a matéria “Demissões na Prefeitura: O
Negão Dança mais uma Vez”, que denunciava os cortes de vagas de tra-
balho anunciados em 1997 pelo então prefeito de Salvador. Jornal Folha
do Reggae, nº 03, Salvador, 1997, p. 03.
150
Só para citar, o periódico contava com apoio de pequenas e médias
empresas do comércio, a exemplo do Hotel Pelourinho (local de mui-
tas apresentações de reggae nos anos 80-90, em Salvador); Lojas Wave
Beach, que comercializa produtos e roupas para a prática do surf, o que
aponta para uma parcela importante do público “regueiro” da cidade, os
surfistas (ver SANTOS, 2001); Grão de Arroz, restaurante macrobiótico,
dentre outros.
151
Denominação popular para designar o cigarro de maconha.
152
Seguramente, por força destes episódios, essa passagem está inscrita
na capa do CD Fogo na Babilônia de Sine Calmon e Morrão Fumegante
(Atração Fonográfica, 1997).

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 163


Ver mais em PINHO, Osmundo de A. The Songs of Freedom: Notas Et-
153

nográficas sobre Cultura Negra Global e Práticas Contraculturais Locais. In:


SANSONE, Livio & TELES, Jocelio (orgs.), 1997 (obra citada).
Baculejo é abordagem-revista indisfarçavelmente preconceituosa da polícia
154

(SANTOS, 2001, p. 78).


155
Faixa do disco selecionada pelo produtor (em geral) e/ou musicista(s)
para divulgação. Em geral, é a faixa que deve ser incentivada nas rádios
e outros meios de comunicação como portifólio do disco lançado.
156
Sobre este tema, ver a publicação organizada pelo Sindicato dos Bancá-
rios: GOMES, Álvaro (org.). O Trabalho no Século XXI: Considerações para
o Futuro do Trabalho. São Paulo: Ed. Anita Garibaldi; Bahia: Sindicato dos
Bancários da Bahia, 2001.
157
O jornal Folha do Reggae publicou breve matéria sobre as medidas
autoritárias da Prefeitura Municipal em 1997.

164 l Fabricio Mota


FAIXA 4 (INTERLUDE)

DE JESUS A JAH

Uma audição das fontes tem revelado a necessidade de compreender,


de maneira mais aprofundada, a relação entre religiosidade e produção
musical no contexto em foco, uma vez que a experiência religiosa se
apresenta de maneira bastante singular nas canções e mesmo declara-
ções públicas dos artistas. É fundamental considerar que não me pro-
ponho, pelo menos por hora, a analisar densamente os caminhos dessa
relação, mas apontar, a título de reconhecimento, os campos religiosos
que se apresentam nos materiais analisados. Uma leitura sobre o assunto
será abordada no livro de Bárbara Falcón que compõe o terceiro volume
da série Sons da Bahia.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 165


Pensar a religião, nesse contexto, implica correr os riscos apontados no estu-
do de Marco Davi Oliveira (2004) sobre a participação dos negros no universo
religioso pentecostal brasileiro. Segundo o autor, a enorme presença quan-
titativamente negra entre os adeptos destas religiosidades tem-se convertido
num fenômeno que merece maior atenção. Curiosamente, na Bahia, parte
considerável dos músicos de maior projeção (comercial) da música reggae são
pentecostais ou tem alguma ligação com este campo religioso. A rigor, esta re-
lação já faz parte da história social do gênero desde suas origens jamaicanas.

A trajetória da música reggae está, desse modo, indissociada dos cami-


nhos da filosofia rastafári. A História Moderna da Jamaica tem, entre suas
páginas, a presença dos movimentos pan-africanistas como uma das influ-
ências mais marcantes no universo político e cultural da Ilha. De certo modo,
a divulgação do ritmo no mundo proliferou a cultura rasta pelos continentes.
Através da cultura rasta, por sua vez, o reggae tornou-se uma das principais
trilhas sonoras do Atlântico Negro, definindo o perfil de parcela considerável
dos grupos sociais em centros urbanos de países do chamado primeiro mun-
do, a exemplo de Londres, na Inglaterra (SANSONE, 1988).

Na Bahia, se o gênero foi um dos mais emblemáticos elementos arti-


culadores de “estilos de vida diferenciados”, a presença da ideologia ras-
tafári também resultou em “uma gama de versões”, como sugeriu Olívia
Gomes da Cunha (1993). Neste estudo realizado no início dos anos 90,
a autora já observava que a influência da música afro-jamaicana havia
alterado profundamente as formas de identificação étnica, de modo que
o uso do termo “rasta” havia sido incorporado como autoinscrição de
negritude e antirracismo de cunho político, ora laico, ora religioso.

Esse tipo de impressão ficou em muitas gravações do período. Em 1990,


quando do lançamento do álbum Recôncavo, o cantor e compositor Ed-
son Gomes se posicionava, nessa perspectiva, com a canção “Adultério”:

ADULTÉRIO
(Edson Gomes, 1990)
Rastafary
Se desligando desse sistema
E da coisa imunda que nos envenena

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 167


E que adultera a nossa sina
Rastafary
Cantando reggae em cada esquina
A coisa linda que nos alucina
E que faz ficar tão boa a vida
Eles querendo mudar nossa sina
Nos injetando a inconsciência
Dizendo que é a democracia
Grande piada conto de fada (Rastafary)
Disso sabemos (Rastafary)
Por isso vivemos
A violência em toda cidade
Ninguém jamais viu a liberdade
A repressão em toda cidade
Ninguém jamais viu a liberdade

O termo “Rastafary” é encarado, neste caso, como sinônimo de autoi-


dentificação étnica e política, não necessariamente ligado a um conteúdo
religioso. De todo modo, a existência de espaços alternativos como a
Legião Rastafári – uma primeira tentativa de aglutinar interessados pelo
rastafarianismo e a música reggae no bairro da Liberdade – e, posterior-
mente, a busca por um contato maior com o conhecimento da Bíblia,
trouxe expressões idiossincráticas de uma religiosidade híbrida. Nesta
busca, muitos jovens passam a frequentar igrejas pentecostais de Salva-
dor e vivenciam uma série de conflitos, dada a postura (estética inclusi-
ve) diante do estudo da Bíblia. Segundo Cunha (1993), citando Burdick
(1989), tratam-se de “ambivalências e contradições de uma aparente
igualdade racial”. Mesmo inseridos em igrejas – como a Igreja Pentecos-
tal Jesus Nazareno – a convivência desses jovens foi sempre marcada
por episódios de discriminação. Ainda assim, para muitos jovens rastas,
o acesso ao espaço de produção da música era frequentemente vetado,
seja na formação da banda, seja na escolha dos repertórios. Ainda que
o reggae fosse inserido como um dos “ritmos” no culto, a presença dos
“regueiros” ao uso da Palavra foi quase sempre restrita.

Cunha (ibid.) aponta ainda que, entre muitos jovens rastas de Sal-
vador, a interpretação acerca desses processos revelava um tipo carac-

168 l Fabricio Mota


terístico de ascetismo intramundano – para lembrar Weber (1905) – que
encarava a igreja como “extensão do mundão”, logo, de seus vícios e
contradições.

Para além da experiência da Legião Rastafári, é possível destacar,


ao longo dos anos 90, alguns exemplos dessa concepção particular de
rastafarianismo-pentecostalismo registrados na produção fonográfica. É
importante notar que há uma distinção central entre esta vivência reli-
giosa do rasta “convertido”, ou cristãos, e os chamados “crentes”: ao
defender o princípio da salvação pela fé – que remonta à gênese dos
movimentos reformistas na Europa do século XVI – num contexto onde
o conflito religioso perpassa a dimensão racial, emerge uma nova iden-
tidade étnico-religiosa, que rejeita a submissão ao pastor e às regras das
igrejas, em detrimento da busca estrita pela ligação espiritual, através do
conhecimento bíblico e do culto à Palavra.

É o que se apresenta no disco de Ras Ciro Lima entitulado Hailé


Sellasiê I (2001). Os componentes gráficos do álbum, lançado em CD,
remontam à iconografia judaico-cristã que serve de referencial simbóli-
co para o rastafarianismo. Este material é um registro interessante para
ilustrar o conjunto de trabalhos ligados à filosofia rastafári produzidos na
Bahia. Entre as canções, pode-se destacar a faixa “Naum Jah”:

NAUM JAH
(Ras Ciro Lima)
Naum Jah
O Senhor nos consolou
Naum Jah
Na batida do tambor
Foi o sangue de Jesus
Que lavou o meu tambor
Meu coração ele é um tambor
Que está batendo I
É um louvor
De Jesus à Jah
Rastafári I
Foi o Sangue de Jesus
Que lavou o meu tambor

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 169


Esta canção ilustra bem a aproximação entre o universo cristão-
pentecostal e a matriz pan-africana do rastafarianismo. Com efeito,
a alusão à figura de “Jesus” não se opõe à referência à “Jah”, repre-
sentação maior do sionismo negro, mas se locupletam como partes
de uma mesma cosmovisão. A sonoridade tipicamente inspirada nos
burru drums 158 jamaicanos sugere a peculiar experiência de um rasta-
farianismo tenazmente local.

Em outros casos, vê-se com maior expressividade uma musicalida-


de fundamentalmente cristã, a exemplo do trabalho de Nengo Vieira.
Este que foi um dos fundadores dos Remanescentes de Cachoeira e um
dos arranjadores e/ou compositores dos principais trabalhos de Edson
Gomes e Sine Calmon. Vieira revela em seu trabalho uma vertente fun-
damentalmente cristã159. Atualmente, ele é uma das lideranças religiosas
da Bola de Neve Church, de onde gravou, ao vivo, seu mais recente
trabalho Avivamente160.

Em linhas gerais, pode-se considerar que há muito para ser investi-


gado, no que diz respeito às relações e tensões envolvendo a temática
das religiões e a produção da música reggae na Bahia. Utilizo estes
poucos exemplos para sugerir que este é um caminho profícuo para
análises futuras.

170 l Fabricio Mota


NOTAS

158
Tambores utilizados originalmente nas celebrações Rastafári. O tam-
bor grave é o solista, enquanto os demais são responsáveis pelo ciclo
intermitente da batida que identifica a musicalidade rasta.
159
Sugiro audição da faixa “Somos Libertos” do álbum homônimo.
160
Selo Bola Music, 2006.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 171


FAIXA 5 (DUB VERSION)

“QUEM NÃO GOSTA DE REGGAE,


BOM SUJEITO NÃO É...”

Manifestando e contaminando
Pelos fones nunca surdos
Microfones nunca mudos
Através das entidades sampleadas
Que dançam o absurdo
Do canteiro da galáxia nervosa
Falando para o ouvido do mundo:
Plugue-se, ligue-se
Vá longe... longe […]
Voyager, Nação Zumbi, 2005

Vamos amigo, lute


Senão a gente acaba perdendo
O que já conquistou […]
Lili, Edson Gomes, 1990

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 173


Se a música é repleta de sentidos que remetem ao contexto em que foi
produzida, sua reverberação também potencializa novas formas de leitura
e apropriação. O debate que se propôs neste livro foi uma tentativa de
compreender algumas dimensões dessas questões: mais especialmente, a
construção/legitimação das identidades negras mediadas pela música. Ao
analisarmos a presença e fruição de culturas musicais transnacionais como
o reggae, deparamo-nos com uma série de releituras que atualizam os sen-
tidos estéticos, étnicos e políticos, ou mesmo os distorcem. Obviamente, os
caminhos e as lacunas apontadas por este estudo evidenciam seu caráter
não conclusivo, além de sugerir o quão bem vindas e necessárias são as
novas contribuições sobre esta área das reflexões sobre a música negra.

Esta situação remete analogamente à apreciação de uma obra fono-


gráfica, quando da audição de sua última faixa. Com é sabido, a faixa
de despedida não implica pôr fim à viagem sinestésica que a música
proporciona. Curiosamente, essas faixas têm sido utilizadas em muitos
discos (inclusive os de reggae), para uma releitura da própria obra ou
parte dela, em um novo arranjo onde se (re)aproveitam fragmentos e
mesmo sonoridades dispersas, numa edição não-linear dos sons, além
de sugerir novas questões. Esta faixa-capítulo se propõe nesta direção.
Não trato aqui de uma consideração final-definitiva sobre a temática,
mesmo porque isso seria impossível. Apresento, no entanto, algumas su-
gestões e futuros caminhos por onde, acredito, seja possível percorrer nos
estudos sobre as “memórias sonoras” negr@s na Bahia, em particular a
música reggae.

Há, interligado ao surgimento dessa musicalidade afro-jamaicana,


outras expressões que ganharam destaque na produção musical das úl-
timas décadas, ainda que se desconheça a validade destas. Refiro-me a
uma filosofia musical mencionada nas primeiras linhas deste livro, que foi
criada por músicos-produtores jamaicanos como King Tubby, Augustus
Pablo, e Lee “Scratch” Perry, com recursos tecnológicos ainda precários
à altura dos anos 60: o dub. Para além de novas técnicas de gravação e
edição, e mesmo reprodução ao vivo, o dub é uma interface mais psico-
délica da música jamaicana, reconhecido pela presença irrevogável do
baixo aliado ao ritmo da bateria – quase sempre “temperada” com efei-

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 175


tos sonoros provocados pelos efeitos delay e reverb – e pelas sinuosas
e mântricas frases dos instrumentos harmônicos. Aparentemente, trata-
se da repetição de pequenas melodias, mas, observando com cuidado,
percebe-se estar diante de uma montagem/edição de sons em que o en-
genheiro de som ganha liberdade no processo de criação e potencializa
a circularidade sonora, criando um ambiente profícuo para novas inter-
venções. É, portanto, uma nova forma de conceber a música, onde os
elementos sonoros podem ser combinados de muitas formas diferentes
sem que haja, portanto, uma relação estrita com a versão original.

Em um ensaio jornalístico publicado em 2003, Hermano Vianna


analisa a importância do dub na produção contemporânea da música,
definindo-o como um procedimento filosófico, ou seja, mais que um es-
tilo ou forma musical, um “modo de agenciamento de formas”, citando
Jean Laude. Na análise de Vianna (2003):

“Segundo Laude, o que interessava a Picasso na ‘arte negra’ não era o


exotismo ou o primitivismo, mas sim a maneira mais-que-moderna que
as máscaras e as estatuetas africanas propunham para pensar o mun-
do visual, onde a combinação, as redes de sentido e a ‘montagem’ têm
mais importância que a organização via linearidade da lei da perspectiva”
(VIANNA, Hermano. “A Filosofia do Dub”. Jornal Folha de São Paulo,
Caderno Mais! 09/11/2003, p. 05).

Peço perdão por mais uma longa citação, mas não resisti reproduzi-la,
uma vez que entendo ser esta uma definição, no mínimo, coerente sobre
a importância da produção musical jamaicana e sua propagação no ter-
ceiro mundo, na segunda metade do século XX, alterando a geopolítica
da cultura. Mais que isso, sugere uma leitura da história da arte que situa
a inventividade da arte africana e dos seus descendentes na diáspora,
como paradigma alternativo à modernidade. Identifico-me ainda com a
percepção do(s) autor(es) quanto à importância do músico como artesão
dos conceitos e sujeito proeminente nas novas sociabilidades produzidas,
dentre outras questões, pela relação como o universo da música. Para
Vianna, os produtores do dub são filósofos, no sentido sugerido por De-
leuze e Guatarri, “sintetizadores de pensamentos” (ibid.).

176 l Fabricio Mota


Não pretendo me alongar nesse debate, apesar de achar frutífero que
novos trabalhos sobre a temática que ora me dedico levem em conta esta
interface. Na última década, esta é uma das influências marcantes entre
os muitos dos registros do reggae gravado na Bahia. De certo modo,
a música brasileira recente tem forte influência desta “filosofia dub” ou
“cultura do baixo” (no sentido sugerido por Linthon Kwesi Johnson em
seu álbum Bass Culture), como insinua a crescente onda do rap no Bra-
sil, que já dura mais de 20 anos. Em Salvador, mais recentemente, há um
incipiente e produtivo cenário inspirado nos clássicos do dub, protagoni-
zado por coletivos de toasters e DJs como o MiniStereo Público e bandas
promissoras e inventivas como o a Dubstereo, que já merecem atenção
das lentes das Ciências Humanas.

É central que levemos em consideração que há uma dimensão sen-


sorial fundamental na música reggae que também merece ser analisada
com maiores detalhes nos estudos posteriores. Para José J. de Carvalho
(1999), cabe aos estudos musicológicos inserir a interpretação das mu-
danças na percepção do ouvinte à gama de questões que tornam possí-
vel compreender a produção e circulação da música popular no contexto
paradoxal da globalização. Segundo o autor, este quesito remonta, dire-
tamente, às transformações nos processos de gravação e na relação dos
músicos com o produto final. Para Carvalho (1999), o princípio geral do
equilíbrio sonoro definido pelos produtores e empresários das gravadoras
remonta ao famoso “Panopticum” de Bentham, discutido por Foucault,
onde o músico em geral está alijado do produto final, inclusive no que
tange aos benefícios financeiros de seu trabalho. Tem se produzido um
senso “padronizado” do fazer musical, seja pela duração da canção – que
deve se adequar às regras do mercado fonográfico ou do tempo (exíguo)
do rádio – seja pelas concepções das diferentes sonoridades.

A meu ver, a presença do reggae no mercado fonográfico mundial,


e mais especificamente na Bahia, minimamente, instabilizou essas rela-
ções, trazendo uma nova sensibilidade que opera como recurso político
e filosófico e se apresenta em novas metafísicas do corpo. Seguramente,
essa dimensão da sensibilidade musical é um dos elementos que explica
o conhecido estado de êxtase em que se envolve o público dos shows do

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 177


gênero – entre os quais os inúmeros a que assisti neste intervalo de pouco
mais de dois anos, em Salvador e Feira de Santana. Observei que, para
muitos ouvintes de reggae, a “batida” – que entendo como interação
ritmo-melodia – é um dos elementos mais significativos de identificação
com o ritmo. Acho um reducionismo gritante (para não falar no pre-
conceito) atribuir restritamente ao consumo de cannabis, essa relação.
Acrescento que é, por outro lado, fundamental enxergar a relação po-
tencialmente inventiva que pode haver entre alteração dos estados de
consciência e os processos de produção artística, como algo produtivo,
em contraposição à onda conservadora que criminaliza tais práticas.

Voltando à História do reggae, fica muito nítido que a produção de


novas sensibilidades sempre foi um tema presente na concepção dos mú-
sicos. A citação de Aston “Family Man” Barret sobre o significado dessa
música parece sugerir um sentido mais político, ainda que nas entreli-
nhas, do que meramente se apresenta .

Em um momento de sua entrevista, o produtor e radialista Clóvis


Rabelo destaca, entre as experiências difíceis no processo de gravação
do álbum Reggaessência de Geraldo Cristal, a resistência dos técnicos de
gravação em valorizar as frequências graves em detrimento de um mode-
lo de equalização mais aceito pelo mercado. Contou-nos Rabelo: “Teve
técnico que disse que não botasse o nome no encarte, porque daquele
jeito não assinaria a mixagem, porque poderia se queimar”.

Entendo, portanto, que a questão da sensibilidade musical na produ-


ção musical do reggae é mais uma das janelas deixadas por este trabalho
para reflexões mais apuradas, posteriormente.

Analisando as fontes, ficou evidente a problemática existente entre o


reggae e as relações no mundo do trabalho e suas contradições. Entre
o universo de temas versados pelas canções, inserem-se muitas leituras
que situam a exploração, as sedições e metamorfoses das relações de
trabalho no espaço urbano. É fundamental que se possa refletir melhor
do que se fez aqui sobre as diferentes representações dos compositores e
intérpretes sobre as relações de trabalho e suas desigualdades.

178 l Fabricio Mota


Há, entre as canções, discursos-posições críticos à Babilônia (leia-se
capitalismo contemporâneo) que não dissociam o fim da exploração de
classe da problemática em torno da superação do racismo na sociedade
brasileira. Essas leituras são primordiais à compreensão, tanto dos meca-
nismos de exclusão, quanto do acesso ao universo das relações de pro-
dução, bem como das estratégias de sobrevivência dos sujeitos. Como
apontado em estudos como os de Silva (2001), o forte apelo político do
reggae, presente nas letras e em toda sorte de símbolos de identificação,
acaba por interferir em outras identidades sociais como as identidades
profissionais. As culturas musicais vêm operando de maneira singular na
formação dos comportamentos entre os grupos jovens nos centros urba-
nos de diversos países, como Inglaterra e Brasil, e alterando, inclusive,
suas relações com o mundo do trabalho. Portanto, um olhar e ouvir mais
interessado nessas questões pode também render um estudo sugestivo.

Outro caminho possível diz respeito às relações de gênero no uni-


verso da música e sua produção. O silêncio em torno da presença das
mulheres na produção musical do reggae baiano se constitui em uma
lacuna por ser preenchida. Ainda que a profissão de músico tenha maior
presença masculina, há que se perguntar sobre a atuação das mulheres.
Em geral, compondo as bandas como backing vocals ou atuando como
produtoras culturais (como Jussara Santana e Cristiane Calmon) de
algumas bandas. A presença feminina pode/deve ser alvo de um estudo
mais detalhado. Entre a discografia analisada, o trabalho de Zavan Liv,
o disco Mil Olhos, é um registro sintomático de que essa temática pode
ser produtivamente desenvolvida.

Como foi apontado na Faixa 02, o enorme silêncio do mundo aca-


dêmico diante dos movimentos sociais negros no contexto da reafricani-
zação na cidade de Feira de Santana deve ser urgentemente quebrado.
O diálogo com alguns/algumas de seus/suas protagonistas, nestas últi-
mas décadas, tem revelado inúmeras agitações sociais em combate à
violência contra @s negr@s na cidade. Aliado a este dado cruel, a farta
documentação que se apresenta a partir dos jornais, além do acervo de
história oral sob tutela do CEDOC/UEFS, são motivos de sobra para
referendar novas e mais ricas análises.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 179


Além disso, admito que muito sobre o reggae e seus sujeitos no con-
texto da cidade de Cachoeira poderia ainda ser abordado. Poupei ener-
gias sobre esta temática, uma vez que o trabalho de Bárbara Falcón,
publicado agora em livro como parte desta Série em que me incluo, vem
problematizando essas questões. Assim como esta temática, poder-se-á
também abordar, com maior rigor, a importância dos meios de comuni-
cação, mais especialmente o rádio, para a afirmação do gênero no ce-
nário sociocultural baiano dos anos 80 e 90 e suas transformações. Os
trabalhos de Clóvis Rabelo, Ray Company, Lino de Almeida e tantos
outros foram, e ainda são, parte decisiva desta história. Guardo ainda
as minhas expectativas para o surgimento de trabalhos que venham a
preencher esta lacuna.

Conforme exposto, a discografia em torno do reggae é um forte enun-


ciado da presença desta cultura musical no interior das relações sociais
e suas contradições. Estou certo de que o estudo da relação identidade-
música pode ser desenvolvido à luz de questões outras que não foram
abordadas aqui. Não acredito que todo o sentido da música reggae esteja
restritamente vinculado ao universo das manifestações de antirracismo e
negritude. Minha preocupação, no entanto, é no gradativo esvaziamento
da perspectiva do pertencimento negro que, ao longo das últimas déca-
das, edificou este e tantos outros estilos musicais.

Os tempos de hoje são ainda um momento importante para se pensar


sobre a história recente da música na Bahia e da música brasileira. Em
artigo publicado no jornal A Tarde em 2008, Antonio Godi comentou
a falta de apoio das políticas públicas aos músicos e associações cultu-
rais ligadas ao ritmo em Salvador, no momento em que se comemoram
oito anos da aprovação do decreto municipal que transformou o 11 de
Maio no Dia do Reggae. Ainda que estejamos vivendo um novo mo-
mento de forte influência jamaicana na música brasileira – como atestam
discos recentemente gravados de artistas como Vanessa da Mata, Céu,
Curumin, Lucas Santtana e mesmo a consolidação de um novo perfil
técnico-sonoro como proposto por Buguinha Dub – o quadro ainda é de
grande exclusão dos grupos do gênero dos espaços públicos, do calendá-
rio musical e das políticas públicas na Bahia. Não nos esqueçamos que

180 l Fabricio Mota


há pouco mais de 20 anos do lançamento de obras importantes como
o primeiro álbum de Edson Gomes ou Marley Vive, da Banda Terceiro
Mundo e ainda há três décadas do lançamento do álbum Bahia Jamaica
de Jorge Alfredo e Chico Evangelista, bem como da fundação do Movi-
mento Negro Unificado, existem muitas batalhas nessa “guerra cultural
contemporânea” por serem travadas. Coincidências à parte, o reggae
continua definindo comportamentos, subjetividades, sonoridades e, sem
dúvida, novas identidades.

Foi seguramente embalado por estas influências que o compositor


pernambucano Jorge Du Peixe lançou a provocação que intitula esta
faixa-capítulo de considerações finais, à plateia de um show da Nação
Zumbi, em 2008, na cidade de Salvador: “quem não gosta de reggae,
bom sujeito não é”. Faço minhas as palavras dele...

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 181


NOTAS

161
Delay é o termo técnico usado para designar o retardo de sinais em cir-
cuitos eletrônicos, geralmente o atraso de som nas transmissões via satélite.
No meio musical, é um equipamento que possui como função provocar a
sensação de atraso do som emitido pelo instrumento musical em relação ao
tempo real de transmissão do sinal sonoro. Assim o usuário pode controlar o
tempo de atraso e a quantia de repetições do som após cada atraso. O uso
deste recurso acústico foi mundialmente popularizado pelos DJs jamaicanos
que proliferaram a cultura dub reverb, que, por sua vez é um efeito mecâni-
co-acústico produzido através de um equipamento que simula a passagem
do som como se refletido numa grande câmara, um ambiente de paredes
fechadas, que prolonga o tempo de audição de determinada frequência
sonora. Estes usos tecnológicos foram e são responsáveis por uma grande
mudança sensível na produção musical contemporânea, fazendo parte de
qualquer set de efeitos de músicos (instrumentistas ou DJs) em todo o mun-
do, bem como nos mais complexos equipamentos de sonorização.
162
Ver alguns exemplos nas obras de Augustus Pablo (as canções “East of
River Nile” gravadas em três versões no álbum homônimo) e King Tubby
(as canções “King Tubby’s Dub” e “Turnable Dub”, gravadas no álbum
Bring the Dub Come).
“A música reggae é o batimento cardíaco do povo. E tem uma coisa
163

boa: quando ela bate você não sente dor”. In: Catch a Fire, 1999 (Ví-
deo). Obra citada.
164
Entrevista com Clóvis Rabelo, 2006.
165
Decreto Municipal 5.817/2000. Ver GODI, A. J. V. S. “O Reggae Ra-
lando nos Oito”. Jornal A Tarde, Maio de 2008.
166
Parte importante do movimento inspirado no manguebeat, oriundo
de Olinda e Recife, este artista, que acompanha bandas como Nação
Zumbi, gravou seu próprio álbum entitulado “Vitrola Adubada” (2008),
além de atualmente gravar discos de inúmeros artistas ligados direta ou
indiretamente à música reggae no Brasil.

182 l Fabricio Mota


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VIDEOGRÁFICAS
A Negação do Brazil. Dir.: Joel Zito de Araújo, 2000.
Adão Negro. Ao Vivo na República do Reggae. Salvador, Atração Musical, 2006.
Catch a Fire. Rock Entertainment (Classic Albuns, Collection), London, 1999.
Cérebros e Mãos Negras. Dir.: Daniel Caetano, CEAO/UFBA/ Fundação Palma-
res, 2000.
Dub Echoes. Dir.: Bruno Natal, 2008.
Edson Gomes. Ao Vivo em Salvador-Bahia. Dir.: Edson Gomes. Salvador, Atra-
ção Musical, 2006.
O Estado da Arte da Fuleragem (Vídeo-debate). Dir.: Pinzol. Juazeiro, UNEB, 2008.
Rocksteady: The Roots of Reggae. Dir.: Stacha Bader, 2009
The Best of Jorge de Angélica. Dir.: Ricardo Roots. Feira de Santana, 2006.
Wattstax. Dir.: Mel Stuart, EUA, 1972.

ENTREVISTAS
CARVALHO, Carmelito de. Entrevista concedida em 14/dez/2007. Entrevistado-
res: A. J. V. S. Godi, Clóvis Rabelo e Fabricio Mota. Salvador-Ba.
DIONORINA. Entrevista concedida em 24/nov/2007. Entrevistador: Fabricio
Mota. Feira de Santana-Ba.
DE ANGÉLICA, Jorge. Entrevista concedida em 02/08/2008. Entrevistador: Fa-
bricio Mota. Feira de Santana-Ba.
GOMES, Edson. Entrevista concedida em 2006. Salvador, Revista Musical On-line.
RABELO, Clóvis. Entrevista concedida em 14/nov/2006. Salvador-Ba. Entrevis-
tadores: A. J. V. S. Godi e Fabricio Mota.

DISCOGRÁFICAS
Adão Negro, Disco: Adão Negro, 1998-2000.
________, Disco: Só Diretoria. Independente, 1999.
________, Disco: Vence Tudo: Gravadora: Atração Musical, 2003.
________, Disco: Vence Tudo Ao Vivo. Gravadora: Atração Musical, 2005.
Banda Terceiro Mundo, Disco: Marley Vive. Gravadora: EMI Odeon, 1988.

190 l Fabricio Mota


Celso Bahia, Disco: 2 Neguinhos. Gravadora: Continental, 1988.
Chico Evangelista & Jorge Alfredo, Disco: Bahia Jamaica. Gravadora: Co-
pacabana, 1980.
Diamba, Disco: Ninguém está a Salvo. Independente, 2000.
Dionorina, Disco: Música das Ruas. Gravadora: Stalo Discos-BA,1994.
________, Disco: Sacasó. Gravadora: Zero Bala-BA, 1998.
Edson Gomes, Disco: Reggae Resistência. Gravadora: EMI-Odeon, 1988.
________, Disco: Recôncavo. Gravadora: EMI-Odeon, 1990.
________, Disco: Campo de Batalha. Gravadora: EMI-Odeon, 1992.
________, Disco: Resgate Fatal. Gravadora: EMI-Odeon, 1995.
________, Disco: Apocalipse. Gravadora: EMI-Odeon, 1998.
________, Meus Momentos 1. Gravadora: EMI Odeon, 1994.
________, Meus Momentos 2. Gravadora: EMI Odeon, 1994.
________, Série Identidade (Coletânea). Gravadora: EMI, 2002.
Gilberto Gil. Disco: O Eterno deus Mudança. Gravadora: WEA, 1989.
________, Disco: Realce. Gravadora: Elektra, 1979.
________, Disco: Luar. Gravadora: WEA, 1981.
________, Disco: Um Banda Um. Gravadora: WEA, 1982.
________, Disco: Extra. Gravadora: WEA,1983.
________, Disco: Raça Humana. Gravadora; WEA, 1984.
________, Disco: Kaya N’ Gandaya. Gravadora: WEA, 2002.
Gilsam e Banda Airiyê, Disco: Reggae para Todos. Independente, 2002.
Geraldo Cristal, Disco: Reggaessência. Independente, 2002.
Jorge de Angélica, Disco: Sopa de Papelão. Independente, 1998.
Kamaphew Tawá e Aspiral do Reggae, Disco: Fonte do Saber. Independente, 1998.
Kebra Nagast. Disco: Desmistificação. Independente, 2006.
Lazzo, Disco (compacto): Salve a Jamaica. Gravadora: Fermata, 1981.
________, Viver, Sentir e Amar. Gravadora: Pointer Discos, 1983.
________, Filho da Terra. Gravadora: Pointer Discos, 1985.
Lazzo. Disco: Arte de Viver. Gravadora: Eldorado, 1995.
________, Disco: Nada de Graça. Gravadora: LZZ, 1998.
________, Disco: Lazzo Matumbi 25 Anos Ao Vivo. Independente, 2005.

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 191


Luís Wagner. Disco: Ao Vivo. Gravadora: Copacabana, 1986.
________, Disco: Conscientização. Gravadora: Copacabana, 1988.
Muzenza, Disco: Muzenza do Reggae. Gravadora: Continental, Ed. Latino, 1988.
Nengo Vieira e Tribo D’Abraão, Disco: Somos Libertos. . Gravadora: Atração Fo-
nográfica, 1998.
________, Disco: Mata Atlântica. Independente, 2003.
________, Disco: Chama. Independente, 2006.
Nilton Abisay e Banda Zorat, Disco: Um Dia pra Sorrir. Independente, s/d.
Obina Shok. Disco: Obina Shok. Gravadora: RCA, 1986.
Paul Simon, Disco: The Rhythm of The Saints. Gravadora/ Editora WBR, 1990.
Paulinho Ganaê. Disco: Independência em Mente. Independente, 1997.
Ras Ciro Lima. Disco: Haile Selassiê I. Independente, 2001.
Reggae Vibrações. Disco: Reggae Vibrações . Vários Artistas. Gravadora:
Kansas, 1991.
Renato Matos e Banda Acarajazz. Disco: Reggadô. Gravadora: Mel/ Discoteca
2001, 1993.
Sine Calmon e Banda Morrão Fumegante. Disco: Fogo na Babilônia. Gravadora:
Atração Musical, 1997.
________, Disco: Rosa de Saron. Gravadora: Atração Musical, 1999.
________, Disco: Eu Vejo. Gravadora: Atração Musical, 2000.
The Sheriff. Disco: Velha Raiz. Figura 8 Studio. Independente, 2004.
Tin Tim Gomes. Pedra sobre Pedras. Independente, 1999.
Ubaldo Warú, Disco: Reggae Man. Gravadora: Musicart, s/d.
Zavan Liv, Disco: Mil Olhos. Independente, 2002.

192 l Fabricio Mota


SOBRE O AUTOR

Foto: Carol Garcia


Fabricio Mota é mestre em Estudos Étnicos e Africanos (CEAO/UFBA),
licenciado em História (UEFS). Atua como pesquisador e professor do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia. Músico,
desde os anos 90, desenvolve trabalhos com outros artistas de diferentes
gêneros musicais na Bahia, experiência que associada à reflexão acadê-
mica tem potencializado sua produção de estudos sobre história, música,
cultura e identidades no mundo contemporâneo.

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Este livro foi composto em
Souvenir LT BT com impressão
da Gráfica Viena, em papel
offset 90g/m2, para Pinaúna
Editora em julho de 2012. Tira-
gem: 1.000 exemplares

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