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Jeanne Marie Gagnebin

SETE AULAS
SOBRE LINGUAGEM,
MEMÓRIA E HISTÓRIA

Imago
Copyright © Jeanne Marie Gagnebin, 1997
SUMARIO

Revisão.-
Nina Schipper, Mariflor Rocha e
J M Gagnebin
Capa:
Barbara Szaniecki
Apresentação 9
.
CIP-Brasil Catalogação na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ I. O Início da História e as Lágrimas de Tucídides 15

6129s Il. As Flautistas, as Parteiras e as Guerreiras 39


Jeanne Marie Gagnebin
Sete Aulas Sobre Linguagem, Memória e Histdna - III. Morte da Memória, Memória da Morte:
- Rio de Janeira . /mago Ed. 1997
da Escrita em Platão 49
192 p. /Biblioteca Pierre Menard/

TV. Dizer o Tempo 69


Inclui apéndice e bibliografia

V. Do Conceito de Mimesis no Pensamento de


ISBN 85,3/20544 t
Adorno e Benjamin 81
/. Filosofia 2 Literatura – Filosofia. 3. Filosofia grega..
L Thula. lL Série.
VI. Do Conceito de Razão em Adorno 107

cm- 100
VII. O Hino, a Brisa e a Tempestade: dos Anjos em
97-0222 C00 – i Walter Benjamin 123

Reservados rodos os direitos


Nenhuma pane desta obra poderá ser Apêndices
reproduzida sem permissão expressa
da Editora
I. Baudelaire, Benjamin e o Moderno 139
1997
II. O Camponês de Paris: Uma Topografia Espiritual 155
IMAGO f0/TORA LTDA.
Rua Santos Rodrigues 201-A – fstáno Ill. Infância e Pensamento 169
20250430 – Rio de Janeiro – RJ
Tel:/02 I/ 293 /092

Fontes 185
Imptesso no Brasil
Panted in Brazil
APRESENTAÇÃO

Recolher vários textos de épocas diferentes, espalhados em diversas


revistas, para publicá-los urna segunda vez juntos — esse gesto não
deixa de me assustar. Ele tem um perfume de veneração quase
fetichista que não gostaria de reivindicar para mim. Tais coletâneas
são organizadas, no mais das vezes, por discípulos saudosos, ou
espertos editores que se aproveitam de algumas páginas inéditas do
mestre para lançar mais um livro. Não se trata disso aqui. Para dizer
a verdade, as razões que me convenceram da utilidade desse empreen-
dimento, afora a charmosa insistência de Arthur Nestrovski, são de
ordem contingente e material, o que me tranqüiliza. Dizem respeito
à precariedade de nossas instituições, em particular de nossas revistas
acadêmicas: quantas vezes um colega escreve um artigo que poderia
lhe interessar e você nem sabe de sua existência ou, então, não
consegue o número desejado do periódico! Reunir textos esparsos
pode, assim, ter o mérito simultaneamente trivial e essencial de juntar
materiais para a continuação do trabalho: do seu trabalho como autor
e do trabalho dos leitores, quem sabe de um trabalho comum
Nesse contexto de trabalho e de reflexão conjuntos, publico aqui
sete aulas, seguidas de três apêndices, que também se inserem num
espírito que pode ser chamado de pedagógico —embora esse adjetivo
se preste a inúmeras confusões. Se, segundo a célebre fórmula kan-
tiana, não se pode ensinar a filosofia, só se ensina a filosofar, então
o tom pedagógico desses textos consistirá menos na transmissão,
certamente importante, de saberes, e mais numa tentativa conjunta
de elaboração de algumas questões. Elaboração demorada, paciente,
Apresenlacão : 1 1
1 0 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTORIA

às vezes hesitante, às vezes precipitada, atravessada por ritmos e signo incontestável de nossa incompletude, de nossa condição de
tempos diferentes como o caminhar e conversar de amigos, segundo mortal, como já dizia Homero. E seu reconhecimento pleno, com as
as variações metafóricas em torno do método filosófico, de Platão e angústias e alegrias que comporta, talvez não seja tão distante da
" atividade do pensamento e de seus jogos incessantes, sempre outros,
sua "longa estrada até Benjamin e seu "método" como "desvio".
Mas será que há uma questão central nesse itinerário múltiplo? entre alteridade e identidade.
A releitura desses textos me parece indicar, à revelia das intenções Por fim, gostaria de agradecer aos alunos, que, em todos esses
primeiras e explicitas da autora — pois as questões verdadeiras não anos, pela curiosidade e pelo entusiasmo, mas também pelas hesita-
nos pertencem, nem são o privilégio exclusivo da consciência clara ções e dificuldades, me incitaram a continuar apostando nesse exer-
cício simultaneamente sério e leve, essencial e lúdico, que se chama
— um núcleo de interrogação em redor do qual gravitam todos os
filosofia.
ensaios, um núcleo que seria, simultaneamente, objeto do desejo e
fundamento do pensamento, que o põe em movimento e se lhe
Campinas, abril de 1996.
esquiva; encontro essa interrogação formulada no texto sobre os
livros X e XI das Confissões de Santo Agostinho, "Dizer o Tempo", o
ensaio mais pedagógico de todos para mim, pois não sou nenhuma
especialista em patrística. É a questão da relação transcendental
mútua entre tempo e linguagem, porque não há linguagem que se
diga sem se desdobrar nas várias dobras do tempo, nem tempo que
possa se configurar e adquirir sentido, por mais fugaz que seja, sem
ser recolhido e articulado por linguagem. Co-pertencer recíproco que
ressalta a sua comum ligação à ausência: a linguagem só remete ao
real, às "coisas", como se diz, porque presentifica sua ausência e,
portanto, como o viu bem Maurice Blanchot, anuncia sempre sua
morte; e o tempo não se deixa agarrar, mas só nos pertence no seu
incessante escapulir, nesse movimento de promessa e de evasão que
nos desapossa de qualquer posse, da dos objetos e daqueles que
amamos, mas também da posse de nós mesmos.
Essa questão genuinamente filosófica, talvez mesmo metafísica
— ousei até usar o adjetivo "transcendental" —, pertence à tradição
filosófica clássica; uma outra interrogação a acompanha, que geral-
mente s6 intervém na filosofia como seu não-dito, seu recalcado,
talvez: a questão da diferença sexual. Hoje, relendo esses textos, me
pergunto se as problemáticas não se cruzam e se enredam coin uma
intensidade que não suspeitava quando procurava interrogar o uso
das metafóras sexuais, ou as tentativas de partilha clara entre femi-
nino e masculino, por exemplo, na obra de Platão. Pois a diferença
sexual também remete a esse limite de nós mesmos que não podemos
ultrapassar, que nos limita no duplo sentido de delimitação, portanto
de definição, e de limitação, portanto de restrição. Também esse
li mite, tão impensado pelo discurso filosófico, nos constitui e nos
escapa corno o fazem temporalidade e linguagem, também ele é o
SETE AULAS
SOBRE LINGUAGEM,
MEMÓRIA E HISTÓRIA
I. O INÍCIO DA HISTÓRIA
E AS LAGRIMAS DE TUCÍDIDES

Em memória de Celso M. Guimarães

Este artigo retoma algumas aulas de um curso de filosofia da história,


dado há vários anos. A sua pretensão não é acrescentar um comentário
original aos numerosos já existentes sobre as obras de Heródoto e
Tucídides, l mas esboçar uma descrição da constituição deste tipo de
discurso que, mais tarde, será chamado de história. Três aspectos serão
ressaltados nesta análise das práticas narrativas de Heródoto e de
Tucídides: a construção da memória do passado, a questão da causa-
lidade e a posição do narrador. São estes três aspectos que emetem
a uma concepção subjacente, explícita ou implícita, das relações entre
o tempo da história dita "real" (o conjunto dos acontecimentos,
Geschichte, em alemão) e o tempo da história contada (a narração dos
acontecimentos, Geschichte, mas também Erzãhlung), isto é, a dinâ-
mica temporal que preside à história enquanto saber (disciplina,
"ciência", em alemão também Historie).
Já menciu:lamos que os discursos de Heródoto e Tucídides rece-
berão, mais tarde, o nome de história. Her6doto ficou, na tradição,
como "o pai da história", enquanto se fazia de Tucídides o primeiro

1 Utilizamos em particular a excelente tradução (com introdução de Jacqueline de Romilly)


de Heródoto e Tucídides, na Bibliotheque dela Pléiade ( Heródote, L'enquête, trad. et notes
de A. Barguet; Thucydide, La Guerre du Peloponese, trad. et notes de D. Roussel). As
traduçóes brasileiras de Mário da Gama Kury deixam muito a desejar e são, freqüente-
mente, corrigidas. Sobre Her6doto e Tucídides, citemos: François Châtelet, La naissance
de l'histoire (Paris: Minuit, 1962), v. 1, pp. 10-18; Jacqueline de Romilly, na já citada
introdução do volume da Pléiade; Marcel Détienne, L'invention de la mythologie (Paris:
Gallimard, 1981). Sobre Her6doto, o livro fundamental de François Hartog, Le miroir
d'Hérodote —Essai sur la représentation de l'autre (Paris: Gallimard, 1980). Sobre Tucídides,
Jacqueline de Romilly, Histoire et raison chez Thucydide (Paris: Belles Lettres, 1967); e
também Problèmes de la democratie grecque (Paris: Hermann, 1975).
16 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA
0 INICIO DA HISTORIA E AS LAGRIMAS OE TUCIOIDES 17
historiador crítico. Tais denominações repousam sobre atribuições
posteriores, características, aliás, de qualquer ciência em busca de seu consigo uma primeira diferença essencial entre a narrativa "histórica"
certificado de origem. Mas, nos textos de nossos primeiros "historia- de Heródoto e as narrativas míticas, a epopéia homérica por exemplo.
dores", a palavra "história" não existe (não se encontra, fora engano, Heródoto só quer falar daquilo que viu ou daquilo de que ouviu falar.
nenhuma vez na obra de Tucídides), 2 ou, então, possui um sentido O período cronológico alcançado se limita, portanto, a duas ou três
muito afastado do nosso. Pois quando Heródoto declara, nas primei- gerações antes da sua visita, pois o resto do tempo se perde no
ras linhas da sua obra, "Heródoto de Halicarnassos apresenta aqui os não-mais-visto, isto é, no não-relatável. Em oposição ao nosso con-
resultados da sua investigação (histories apodexis)...", a palavra historie ceito de história, esta pesquisa, ligada à oralidade e à visão, não
não pode ser si mplesmente traduzida por história. O nosso conceito pretende abarcar um passado distante. Tal restrição também a deli-
implica um gênero científico bem determinado; a palavra grega mita em relação ao discurso mítico, que fala de um tempo longínquo,
historie tem, nesta época e neste contexto, uma significação muito de um tempo das origens, tempo dos deuses e dos heróis, do qual só
.mais ampla: ela remete à palavra hictôr, "aquele que viu, testemu- as musas podem nos fazer lembrar, pois, sem elas, não podemos saber
nhou". O radical comum (v)id está ligado à visão (videre, em Latim (idein) daquilo que não vimos.
ver), ao ver e ao saber (oida em grego significa eu vi e também eu sei, Muito mais que a consciência de inaugurar uma nova disciplina,
pois a visão acarreta o saber). 3 Heródoto quer apresentar, mostrar designada posteriormente pelo nome de história, é esta oposição
(apodexis) aquilo que viu e pesquisou. Trata-se, então, de um relato crescente à tradição mítica que determina, de maneira diversa, tanto
de viagem, de um relatório de pesquisa, de uma narrativa informativa a obra de Heródoto como a de Tucídides. É interessante notar que
e agradável que engloba os aspectos da realidade dignos de menção Heródoto, quando se refere às várias partes da sua obra, não usa a
e de memória. Não há nenhuma restrição a um objeto determinado: palavra história mas sim a palavra logos (discurso) para identificá-las;
a historie pode pesquisar a tradição dos povos longínquos, as causas não fala da "história" dos Scitas, do Egito ou de Darius, mas sim de
das enchentes do Nilo ou as razões de uma derrota militar. Esta logos scita, de logos egipcio ou de logos a respeito de Darius etc. O
profusão de dados que nos parecem heterogéneos e que incomodam próprio vocabulário insiste na grande oposição entre logos e mythos,
os sérios professores atuais, preocupados em distinguir a história da na qual vai se enraizar a distinção entre o discurso científico, filosó-
geografia ou a sociologia da antropologia, esta profusão não embara- fico ou histórico e o discurso poético-mítico. Distinção progressiva
ça Heródoto, pelo contrário. O que diferencia a sua pesquisa de outras que não tem nada de necessário, nem de evidente, nem de eterno,
formas narrativas não é o(s) seu(s) objeto(s), mas o processo de como uma certa historiografia iluminista triunfante gostaria de esta-
aquisição destes conhecimentos. Heródoto fala daquilo que ele mes- belecer. Nas primeiras linhas das historiai do nosso primeiro "histo-
mo viu, ou daquilo de que ouviu falar por outros; ele privilegia a riador<;, podemos ler, ao mesmo tempo, esta imbricação e esta
palavra da testemunha, a sua própria ou a de outrem. Inúmeras vezes, I separação da palavra mítica e do discurso racional emergente: "He-
no decorrer da sua narrativa, o nosso viajante menciona as suas ródoto de Halicarnassus apresenta aqui os resultados da sua investi-
"fontes", se ele mesmo viu o que conta ou se só ouviu falar e, neste gação, para que a memória dos acontecimentos não se apague entre
caso, se o " informante" tinha visto, ele mesmo, ou só ouvido falar. 4 os homens com o passar do tempo, e para que os feitos admiráveis
Esta preocupação —que podemos relacionar com a crescente prática dos helenos e dos bárbaros não caiam no esquecimento; ele dá,
judiciária, na Grécia do século V, de audição de testemunhas — traz inclusive, as razões pelas quais eles se guerrearam" (I, 1). Heródoto
1
retoma e transforma a tarefa do poeta arcaico: contar os acontecimen-
2
tos passados, conservar a memória, resgatar o passado, lutar contra a
0 que lá invalida o titulo da tradução brasileira: História da Guerra do Peloponeso, pois
história não existe no titulo grego!
3 Cf. Emile Benveniste, Vocabulaire des institutions indo-européens, esquecimento. Tarefa essencial que a voz do poeta — numa sociedade
citado por Hartog, op.
cit., p. 272.
4
A este respeito, cf. François Hartog, op. cit., 2". pane, cap. 2; e Marcel Détienne, op. cit.,
sem escrita como o era a Grécia arcaica — encarnava, e que continuou
cap. 3. também no texto poético escrito. Tarefa que religa o presente ao
passado, fundando a identidade de uma nação ou de um individuo
18 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA 0 INÍCIO OA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS DE TUCÍDIDES : 19

nesta religação constante: tarefa profundamente religiosa, portanto, que as conta. Falam de sucessivos raptos de mulheres: os fenícios
se lembrarmos que a religião tem a ver, primeiro, com este desejo de teriam raptado lo, filha do rei grego de Argos; em represália, alguns
"religação" e, só depois, com uma sistemática de crenças. Tarefa gregos (cujos nomes são desconhecidos) fizeram o mesmo com a filha
religiosa ou mítica de comemoração que unia o poeta arcaico, o do rei dos fenícios e, mais tarde, com Medéfa, uma outra princesa
sacerdote e o adivinho 5 e que se transmite, até os nossos dias, nas estrangeira. Vendo que os gregos arrebatam mulheres impunemente,
palavras do poeta e na preocupação "cientifica" do historiador com Páris de Tróia foi até Esparta roubar a bela Helena. Em vez de se
o passado. Heródoto também quer lutar contra o tempo que destrói conformar com este acontecimento desagradável, mas, afinal, nada
e aniquila até a lembrança dos atos heróicos dos homens, só que ele catastrófico, os gregos ficaram irados e desencadearam uma expedi-
não canta mais, ele tenta dar a razão, a causa (aitia) dos acontecimen- ção punitiva contra Tróia. Segundo esta tradição mítica, portanto, a
tos, anunciando a famosa exigência platônica de logon didonai ("dar origem das Guerras Médicas deveria ser procurada na Guerra de Trbia.
a razão"). Já dissemos que esta busca privilegia a palavra de testemu- Heródoto não esconde sua ironia. Tais narrativas, diz ele, não são
nhas vivas, que passa pelo ver e pelo ouvir. Heródoto não usa — e dignas de fé, pois mudam totalmente segundo quem as conta. Elas
quase não menciona — documentos escritos que poderiam ajudá-lo não conseguem verdadeiramente explicar, são até ridículas, pois
na reconstrução do passado. Esta Primazia da oralidade também ninguém de bom senso acreditará que estas histórias de rapto podem
sublinha a sua proximidade da tradição mítica e poética, transmitida desencadear guerras: nenhuma mulher vale uma guerra, sobretudo,
de geração em geração através de um aprendizado de cor, sem a ajuda nenhuma mulher, nos afirma o varão Heródoto, se deixa raptar
da escrita e da leitura, na imediatez da palavra falada e ouvida. contra a sua vontade (I, 4).
O ritmo narrativo das historiai também lembra o do poema épico, A estas lendas contadas de geração a geração sem nenhuma
declamado em voz alta ao público reunido em tomo do aedo: a prosa garantia de exatidão, Heródoto opõe a certeza daquilo que ele mesmo
de Heródoto está cheia de digressões maravilhosas, de anedotas sabe: "São estas as versões dos persas e dos fenícios. Quanto a mim, não
direi a respeito dessas coisas que elas aconteceram de uma maneira ou de
amenas ou pedagógicas que mantêm aceso o interesse do ouvinte (e
do leitor) . 6 Nada da arquitetura austera e argumentativa do texto outra, mas apontarei a pessoa que, em minha opinião, foi a primeira a
ofender os helenos, e assim prosseguirei com a minha narração, falando
tucidideano, escrito para ser lido no futuro, mas a fluidez de histórias
igualmente das pequenas e grandes cidades dos homens" (I, 5).
contadas, sem dúvida, para informar e ensinar, mas também pelo
Heródoto opera aqui uma partilha entre dois tipos de narrativas
simples prazer de contar. Neste rio de histórias que, como o Nilo que
que correspondem a duas formas de tempo: há uma narrativa mítica,
descrevem, transborda às vezes o seu leito e fertiliza terras não
lendária, sem cronologia possível, que remete ao tempo afastado dos
previstas pelo estrito desenho do raciocinio, nestas histórias, porém, deuses e dos homens; e há uma narrativa "histórica" (de um tempo
reina um principio novo e exigente: a busca das verdadeiras razões
pesquisável e pesquisado), com referências cronológicas passíveis de
(aitiai), das causas que Heródoto pôde, à sua maneira, verificar, em serem encontradas, que trata do tempo mais recente dos homens.
oposição às alegadas pela tradição mítica. Após explicitar sua tarefa Como o ressalta Vidal-Naquet, 8 esta oposição orienta o discurso de
de resgate do passado, Heródoto enumera algumas pseudocausas Heródoto muito mais que uma suposta oposição entre tempo cíclico
geralmente citadas para explicar a inimizade entre os gregos e os e tempo linear. Notemos também que Heródoto não duvida da
bárbaros; 7 são lendas antigas e confusas que variam segundo o povo existência deste tempo anterior, mítico e sagrado. A sua descrição do
5 A este respeito cf. J. P. Vernant, Mythe et pensée chez Ies Grecs (Paris: Maspéro, 1965); e Egito, pais que para os gregos clássicos sempre representou a autori-
Marcel Détienne, Les mattres de vérité dans la Greta archaïque (Paris: Maspéro, 1967). dade e a sabedoria de uma civilização muito mais antiga, ressalta que
6 Cf. Francois Hartog, op. cit., pp. 282 ss.
7 Os bárbaros sio os não-gregos, aqueles que falam uma lingua estranha, incompreensivel:
este tempo realmente existiu, mas está muito mais afastado do nosso
"bar, bar, bar". Nessa primeira definição, não há nenhum sentido pejorativo a priori. Que
o outro, o estrangeiro, dedlferente que é se torne selvagem e cruel, já remete a um processo 8 Cf. Pierre Vidal-Naquet, "Temps des dieux et temps des hommes", em Le chasseur noir
histórico bem determinado. (Paris: Maspéro, 1981), sobretudo pp. 81 ss.
20 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA INICIO OA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS DE TUCIOIOES : 21

9
do que geralmente acreditamos. Não se trata de negar o tempo uma idéia de progresso histórico linear. Há sim, muito mais, a certeza
mítico e sagrado; trata-se, para Heródoto, de recusar os procedimen- de que qualquer excesso, mesmo um excesso de felicidade, deve ser
tos narrativos do mito para descrever o nosso tempo humano, restri- castigado, pois coloca em questão o equilíbrio cósmico (lembremos
to, finito..., enfim, "histórico"! A busca das verdadeiras razões dos que a palavra ,(Cosmos, em grego, significa "mundo" e "ordem": o
acontecimentos através do testemunho próprio ou alheio inscreve-se mundo já está em ordem e deve ser mantido nesta sua ordem
neste esforço racional — do logos em oposição ao rnythos — de escrita essencial). Vários episódios das historiai confirmam esta necessidade
da nossa história. (ananke) secular, à qual, segundo o pensamento mítico, mesmo os
Coexistem, porém, em Heródoto, ao lado do esforço de estabele- deuses obedecem; por exemplo, a famosa história de Polfcrates (III,
cimento de uma cronologia e de uma causalidade lineares, outras 39.43), tirano que tudo consegue e tenta em vão se livrar dessa sorte
tentativas de explicação muito mais antigas, ligadas ao pensamento grande demais, jogando no mar um anel muito precioso, reencontra-
que nossa razão continua designando
10 como mítico. Seguindo Vidal- do, alguns dias depois, na barriga do peixe servido à sua mesa.
Naquet e François Chátelet, devemos mencionar a crença de Heró- Polfcrates acabará assassinado vergonhosamente (III, 125), tendo um
doto numa lei cosmológica de repetição e de compensação. Esta idéia fim cruel, proporcionalmente ao seu excesso de sorte.
de repetição orienta a própria estrutura das historiai: assim, o rei Reina então em Heródoto um principio de causalidade profun-
Cresus anuncia Xerxes e a guerra de Darius1 contra os scitas anuncia damente grego e, para nós modernos, pouco "racional": ".,. o que os
a expedição de Xerxes contra os gregos.' Fundamentalmente, a idéia deuses castigam (...) é o orgulho desmedido (a hybris), a pretensão de
de repetição retoma a antiga lei de compensação e reviravolta, ligada um homem de ser mais que um homem. A narração histórica reen-
à noção mítica de vingança, que se transformará 12
no conceito de contra as lições da tragédia." 13 Mesmo se Heródoto menciona, com
justiça natural e social, na dike de Anaximandro. muita perspicácia, uma série de causas mais imediatas das guerras (um
Depois de recusar as causas lendárias das Guerras Médicas, Heró- incêndio criminoso, um juramento transmitido de geração em gera-
doto declara: "Quanto a mim, não direi a respeito dessas coisas que ção, o caráter especialmente irascível de um rei etc.), 14 a verdadeira
elas aconteceram de uma maneira ou de outra, mas apontarei a pessoa razão da derrota persa deve ser procurada no necessário castigo da
que, em minha opinião, foi a primeira a ofender os helenos, e assim ambição ilimitada de Darius e de Xerxes. É esta hybris que caracteriza,
prosseguirei com a minha narração, falando igualmente das pequenas aliás, os reis bárbaros (e alguns tiranos gregos): 15 o rei dos reis sempre
e das grandes cidades dos homens, pois muitas cidades outrora quer ir além dos limites impostos pela ordem material ou social. Esta
grandes agora são pequenas, e as grandes no meu tempo eram outrora vontade de transgressão o faz ultrapassar as fronteiras naturais para
pequenas. Sabendo portanto que a prosperidade humana jamais é deixar a Asia, seu dominio próprio, e invadir a Europa, que não lhe
estável, farei menção a ambas igualmente" (I, 5). pertence: Ciro, fundador da dinastia, constrói uma ponte sobre o rio
Temos, aqui, a convicção, ao lado da busca das causas políticas, Araxe no norte de seu império; Darius atravessa o Bósforo; Xerxes,
de que existe um processo cíclico de compensação justa: nada de enfim, ergue, por duas vezes, uma ponte sobre o Helesponte para
humano que seja estável, o pequeno cresce até se tomar grande, mas chegar à Grécia. A primeira ponte é destruída por uma tempestade
também o grande desmorona e se torna pequeno de novo. Em que manifesta claramente a recusa do mar divino. Xerxes manda
Heródoto, como no pensamento grego em geral, não há lugar para flagelar o Helesponte, como se fosse o seu escravo, e constrói uma
segunda ponte; não é por acaso que será derrotado na batalha naval
9 Ibid.
10Cf. Pierre Vidal-Naquet, op. cit.; e François Chatelet, op. cit. Deste, cf. também, Les
de Salaminas: o mar ultrajado se vinga através da frota ateniense
ldéologla (orgs. Chatelet e G. Mairet, Paris: Marabout, 1981), v.1, pp. 171 ss. vitoriosa. O rei persa tampouco respeita as leis estabelecidas pelos
11 Cf. Pierre Vidal-Naquet, op. cit.; François Chatelet, op. cit.; e, também, François Hartog,
op. cit., p. 376. 13 François Chatelet, Les ideologies, loc. cit., v. I, pp. 134-135.
12 Anaximandro, fragmentos citados por Simplicius, Física, 24, 13; cf. Pré-socráticos (Sao 14 Ibid.
Paulo: Abril Cultural, 1973 e reed.); Coleçao Os Pensadores, p. 16. 15 Cf. François Hartog, "Le pouvoir despotique", op. cit., parte III, cap. 3.
22 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA 0 INÍCIO DA HISTORIA E AS LAGRIMAS DE TUCÍDIDES 23

homens: ultraja o corpo dos seus súditos, os flagela, os corta, os "mesmo" muito mais coerente e pleno do que teria feito uma simples
amputa, os tortura ou, então, os deseja demais (a palavra eros só se reprodução dos seus traços; somente a mediação pelo outro permite
aplica aos reis e aos tiranos nas historiai). Deseja-os mais ainda quando esta auto-apreensão segura de si mesmo.
lhe são proibidos pelas leis humanas: Cambisies deseja suas irmãs, o De que, pois, falam as historiai senão dos gregos através dos
faraó Mikerinos sua filha, Xerxes a mulher de seu filho etc. Imperia- bárbaros? Como o mostra o livro de F. Hartog, uma lei estrutura a
lismo e erotismo caracterizam esta vontade sem freio do soberano obra: a lei da comparação entre bárbaros e gregos, não para decidir
que, finalmente, o levará à sua perda. quemé melhor (Heródoto foi acusado de barbarophilia, de gostar
Com efeito, na análise de Heródoto, os gregos não vencem demais dos bárbaros), mas muito mais para entender como funciona
porque são melhores —sejam eles mais "civilizados" que estes bárba- o diferente. Esta estrutura forma a unidade da obra, muitas vezes
ros "selvagens", 1fi sejam eles guerreiros mais corajosos. O que funda negada pela tradição critica. Os primeiros quatro livros são dedicados
a superioridade dos gregos é que eles não obedecem ao chicote de à descrição dos "outros" — dos persas, dos egipcios, dos scitas etc. —,
um senhor despótico (o despotes persa), mas a uma regra, a uma lei os cinco últimos à história propriamente dita das Guerras Médicas.
(nomos) que eles mesmos escolheram e estabeleceram.' Ao privilegiar Muitos comentadores quiseram ver um corte epistemológico entre
a democracia, em particular a democracia ateniense, contra a monarquia um "Heródoto etnólogo", apaixonado pelo diferente, pelo maravi-
e a tirania, Heródoto não escolhe simplesmente um regime politico. lhoso, pelo exótico, e um "Heródoto historiador", relator sereno e
Defende uma concepção da sociedade humana fundada no logos, isto é, maduro da primeira vitória da racionalidade ocidental sobre as forças
no diálogo argumentativo entre iguais que procuram juntos uma regra caóticas do Oriente. Ora, como o ressalta Hartog, 19 o "Heródoto
comum de ação; a este paradigma racional e democrático se opõe uma etnólogo" e o "Heródoto historiador" são um e só pesquisador que
concepção do social baseada no poder e na vontade (para não dizer tgntá entender aquilo que é condição de convivência e também__
na vontade de poder!) do mais forte, na sua transgressão das regras possibilidade de &tierra: a diferença. Se ele é mais prolixo e está
do convívio social e na sua expansão sem limites. Este conflito, que seduzido pelo exótico nos quatro primeiros livros, é porque o outro
perdura até hoje, preside a oposição-mestra das historiai, a oposição é tão diferente que só pode provocar admiração; os cinco últimos
entre gregos e bárbaros. Uma geração mais tarde, com Tucidides, e, livros, por tratarem de "n6s mesmos, pedem um tom mais sóbrio.
depois, com Platão e a sofistica, a contradição entre nomos (lei, regra) Um pouco à imagem da sua cidade natal — Halicamassos, situada
ephysis (natureza) corroerá por dentro o belo edificio da polis atenien- na costa da Ásia, mas pertencendo à civilização grega —, Heródoto
se. Conta-se que Heródoto leu, em 445 ou 444 a.C., o seu texto em tentaria manter uma posição privilegiada de intermediário, de media-
voz alta ao povo ateniense reunido; transportados pelo entusiasmo, os dor aquele que está no meio, entre os bárbaros asiáticos e os gregos
cidadãos de Atenas lhe ofereceram um prêmio, como se fazia nos europeus, aquele que estabelece uma mediação entre dois opostos.
concursos de poesia trágica. Talvez uma das razões deste sucesso decor- Lugar mediano, singular, que o estatuto de exilado de Heródoto
resse de Heródoto ter conseguido construir através da longa descrição reforça. 20 As análises de Hartog ressaltam essa vontade explicita do
dos povos bárbaros uma imagem convincente de "n6s", dos gregos, autor de marcar a sua posição de narrador, isto é, de sujeito soberano
em particular dos atenienses. Observe-se: não uma imagem bela da enunciação: "eu vi", "eu ouvi", "eu contarei", "eu mostrarei", "eu
demais ou demagogicamente lisonjeira, mas a confrontação com o direi", mas também "eu não direi", "eu sei, mas manterei a informa-
"outro" permite, por um jogo de espelhos,' g pintar um retrato do ção secreta" etc. Estas expressões pontuam o texto e nos lembram
incessantemente que a nossa informação só provém do seu saber.
16 Esta sera a opinião de Tucidides que, por isso, desinteressar-se-a dos bárbaros, estágio
anterior da civilização. Cf. Tucidides, Guerra do Peloponeso, I, 6; e François Hartog, op. cit., Hartog também chama a atenção para o fato de Heródoto falar, às
p. 371.
17 Cf. François Hartog, op. cit., pp. 340 ss. 19 Cf. François Hartog, op. cit., pp. 373 ss.
18 Daf o belo titulo do livro de Hartog, Le miroir d'Hérodote — Essai sur la representation de 20 Heródoto tem que se exilar, pois a sua familia se opios sem sucesso ao tirano da cidade.
l'autre. Observe-se que também Tucidides sera um exilado.
24 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA
D INICIO DA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS DE TUCIOIOES 25

vezes, nos bárbiros e em "nós (isto é, eu e os outros gregos incluin- tuições são geralmente diferentes dos costumes e instituições dos
do-se nos "nós"), mas também, muitas vezes, nos bárbaros e nos outros homens. Entre os egípcios as mulheres compram e ven-
gregos, usando esta terceira pessoa que, segundo as análises de dem, enquanto os homens ficam em casa e tecem. Em toda a parte
Benveniste, 21 rião é realmente uma pessoa, reservando, assim, ao
se tece levando a trama de baixo para cima, mas os egípcios a
"eu-narrador" um lugar à parte, a igual distáncia dos bárbaros e dos
levam de cima para baixo. Os homens carregam os fardos em suas
gregos.
cabeças, mas as mulheres os carregam em seus ombros. As mulhe-
Ora, esta posição privilegiada do narrador, que deveria assegurar
res urinam em pé, e os homens acocorados. Eles satisfazem as suas
tanto o seu poder como a sua objetividade (tão cara aos historiadores
necessidades naturais dentro de casa, mas comem do lado de fora,
futuros), esta posição mediadora e imparcial é sub-repticiamente
nas mas, alegando que as necessidades vergonhosas do corpo
minada pelo fluxo da narrativa. Se, como já assinalamos, é a lei da
comparação entre gregos e bárbaros que estrutura o texto herodotia- devem ser satisfeitas secretamente, enquanto as não-vergonhosas
devem ser satisfeitas abertamente. Nenhuma mulher é consagrada
no, esta comparação se transforma, na maioria dos casos, numa
inversão simétrica, cujo primeiro termo só pode ser o referencial ao serviço de qualquer divindade, seja esta masculina ou femini-
22
grego. Hartog observa que Heródoto quer realmente descrever os na; os homens são sacerdotes de todas as divindades. Os filhos
outros povos, narrar com generosidade e admiração os seus tão não são compelidos contra a sua vontade a sustentar seus pais,
estranhos costumes; mas ele só consegue falar deles "em grego", isto mas as filhas devem fazé-Io, mesmo sem querer.
é, com as categorias e com a lógica de compreensão de um grego do
século V. Ele, aliás, não sente nenhuma necessidade em aprender as Para ser fiel à intenção das suas historiai, o narrador Heródoto
línguas dos povos que visita. Assim, ao tentar entender o que é o tenta permanecer firmemente no lugar privilegiado do meio e da
diferente, Heródoto o transforma no "outro do mesmo", no duplo mediação, significando aos gregos que os bárbaros não são nem
inverso e simétrico do modelo primeiro — isto é, grego —, modelo piores nem melhores, mas, simplesmente, diferentes. Para descrever
sempre presente, também, quando não está explícito (sobretudo e entendé-los, recorre à oposição, à inversão, ao contrário, a todas as
quando não está explicito?). O Livro II, consagrado ao fabuloso Egito, figuras que transformam a diferença múltipla em alteridade (no
está cheio destas descrições invertidas, que deveriam, sem dúvida, nos
sentido etimológico do latim alter [outro de dois]). Esta lei de oposição
mostrar o quanto são estranhos os egípcios, mas cujo efeito consiste
binária é tão forte que, como assinala Hartog, 23 quando Heródoto
muito mais em nos remeter aos nossos costumes de gregos. Assim,
descreve um conflito entre dois povos bárbaros, um deles tende,
por exemplo, a deliciosa passagem do Livro II, 35, na qual a inversão
inexoravelmente, a se helenizar, a assumir, por exemplo, a estratégia
entre gregos e bárbaros é descrita pela inversão dos papéis masculino
dos hoplitas gregos: entre o grego e seu contrário, o bárbaro, não há
e feminino (pois a primeira e incompreensível diferença é a dos
sexos): lugar para uma terceira (quarta, quinta) possibilidade. Nesta partilha,
o eu do narrador já escolheu, talvez contra a sua vontade consciente,
Mas vou alongar-me em minhas observações a respeito do Egito, o lado grego, esse lado que não entende a lingua "bár/ba/ra", e
pois em parte alguma há tantas maravilhas como lá, e em todas tampouco precisa aprendê-Ia. Como se a bela lingua grega pudesse
as terras restantes não há tantas obras de inexprimível grandeza dizer tudo: desejo — ou hybris? — do primeiro historiador, e de outros
para serem vistas; por isso falarei mais sobre ele. Da mesma forma depois dele, de poder descrever o outro sem que este nos desalojasse
que o Egito tem um clima peculiar e seu rio é diferente por sua necessariamente da nossa gramática e da nossa terminologia, nos
natureza de todos os outros rios, todos os seus costumes e insti- forçasse a sair da nossa língua com o risco de ficarmos, talvez por
muito tempo, sem palavras.
21 CE Emile Benveniste, Problèmes de linguistique generate (Paris: Gallimard,
1966), cap. 18.
22 Cf. François Hartog, op. cit., pp. 224 ss.
23 Ibid., pp. 369 ss.
26 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA
0 INÍCIO OA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS DE TUCÍOIOES : 27
Existem, também, várias histórias sobre Heródoto. Uma delas Quanto aos discursos pronunciados por diversas personalidades
conta que leu trechos de sua obra num concurso literário que acom- quando estavam prestes a desencadear a guerra ou quando já
panhava as provas esportivas dos jogos olímpicos; na assistência, um estavam engajados nela, foi difícil recordar com precisão rigorosa
adolescente ficou emocionado até as lágrimas: era o jovem Tucfdides. os que eu mesmo ouvi ou os que me foram transmitidos por várias
História "verdadeira" ou ficção "mentirosa"? Nada nos impede de fontes. Tais discursos, portanto, são reproduzidos com as palavras
continuar essa bela história, nos perguntando sobre as lágrimas de que, no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam ter
Tucfdides. Por que chorou? Por que teve revelada af a sua "vocação" usado, considerando os respectivos assuntos e os sentimentos
de historiador, como pretendem vários comentadores? Ou, talvez, mais pertinentes à ocasião em que foram pronunciados, embora
porque chorava sobre esta bela imagem da Atenas democrática e ao mesmo tempo eu tenha aderido tão estritamente quanto
heróica, salvadora da Grécia inteira, imagem já prestes a desaparecer? possível ao sentido geral do que havia sido dito. Quanto aos
Ou, ainda, porque pressentia que, em breve, deveria despedir-se deste acontecimentos da guerra, considerei meu dever relatá-los, não
como apurados através de qualquer informante casual nem como
estilo amável e sereno que ainda confiava no prazer da palavra e na
tolerância da razão? Ninguém o sabe. era a minha impressão pessoal, mas somente após investigar cada
Agora, quando lemos A Guerra do Peloponeso, o que chama a nossa detalhe com o maior rigor possível, seja no caso de eventos dos
atenção é o corte radical 24 introduzido por Tucfdides em relação à quais eu mesmo participei, seja naqueles a respeito dos quais
obtive informações de terceiros. O empenho em apurar os fatos
tradição narrativa da "história", em particular em relação a Heródoto constituiu uma tarefa laboriosa, pois testemunhas oculares de
(que, por sua vez, também tinha criticado seu antecessor, o viajante vários eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeito
Hecateu). Nada mais da emoção que, talvez, sentiu ao escutar o "pai das mesmas coisas, mas variavam de acordo com suas simpatias
da história" (e de tantas histórias). Tucfdides rejeita Heródoto no por um lado ou pelo outro, ou de acordo com sua memória 25
domínio das antigas tradições míticas, no mythodes que recusa por-
que, sob seus aspectos agradáveis e sedutores, ele não possui nenhu-
ma solidez ese desfaz com a rapidez das palavras lançadas ao vento. É notável, aqui, a insistência de Tucfdides em afirmar que não vai
Com ormythodes o maravilhoso tão caro a Heródoto, Tucfdides relatar as palavras realmente pronunciadas. Isto poderia ser até i m-
rejeita, também, a importância da memória, relegando ao passado a plícito se lembrarmos que os discursos proferidos o eram em assem-
antiga deusa Mnemosyne. Heródoto queria salvar o memorável, bléias ad hoc, sem relator nem secretário; mas se Tucfdides insiste
resgatar o passado do esquecimento, buscando nas palavras das nesse ponto é que ele quer ressaltar uma impossibilidade mais essen-
testemunhas a lembrança das obras humanas. Tucfdides ressalta a cial: nãóse góde acreditar na memória para garantir a fidelidade do
fragilidade da memória, tanto alheia como sua; as falhas constantes relato à realidade. Em oposição à toda tradição anterior, a memória
de memória motivam uma profunda mudança no trabalho do "his- em Tucldides riãü assegura nenhuma autenticidade. Esta desconfian-
toriador", que não pode confiar nem na sua exatidão nem na sua ça motiva a critica severa aos métodos de pesquisa de Heródoto, aqui
claramente citado, mesmo se não nomeado: perguntar às mais diver-
objetividade. Nos primeiros parágrafos da sua obra consagrados —
sas pessoas sobre um mesmo evento não traz informações, mas só
poderfamos dizer — à sua metodologia de pesquisa, Tucídides despa- ocasiona confusão, pois cada um responde "... de acordo com suas
cha juntos as suas próprias lembranças e os testemunhos dos outros,
simpatias (...) ou de acordo com sua memória". É verdade que, várias
ambos condenados A subjetividade das preferências pessoais e à vezes, Heródoto não esconde seu ceticismo em relação As versões dos
relatividade da memória: fatos ou As explicações ouvidas. Tucfdides não se contenta com um
ceticismo benevolente; exige uma reconstituição crítica dos aconte-
24 Sobre a distancia de Tucfdides em relação ao mito e à memória, cf. as páginas decisivas
de Marcel Détienne, L'invention de la mythologie, pp. 105 ss.
25 Tucfdides, La Guerra du PeloponAse, I, 22.
28 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTORIA O INICIO DA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS OE TUC(OIOES 29

cimentos, cujos critérios racionais são a verossimilhança da situação imperialismo ateniense, pois Tucfdides não cita as suas fontes nem
e a pertinência das palavras pronunciadas: menciona documentos (uma exigência "cientifica" profundamente
moderna) e s6 nos oferece o resultado da sua reflexão rigorosa.
Tais discursos, portanto, são reproduzidos com as palavras que, Enquanto Herbdoto contava inúmeras histórias, também pelo pró-
no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam ter usado, prio gosto de contar, Tucfdides constrói a versão racional e defini-
considerando os respectivos assuntos e os sentimentos
26
mais per- tiva da história sem se deixar Levar pelo prazer da narração; dal,
tinentes à ocasião em que foram pronunciados... também, a austeridade do seu relato, no qual as emoções raramente
transparecem.
Significaria esta passagem que Tucfdides, em vez de relatar as A escrita tucidideana obedece a uma partilha que reencontra-
palavras ditas, as inventa sem dar a devida importância aos famosos mos em Platão: de um lado, a razão, a austeridade, o rigor e o
fatos?27 Talvez. No mínimo, significa que Tucfdides escreveu os seus controle; de outro, a emoção, o prazer, o maravilhoso cheio de
numerosos e famosos discursos segundo a ordem das razões históri- cores que atrai mulheres e crianças: o mythodes. De um lado, uns
cas, como o faria um filósofo político ou um observador psicólogo, poucos que conseguem compreender, analisar, ter um discurso
e não como um cronista, confiando em suas lembranças. Na ordem competente e justo, que também sabem dirigir (Péricles); de outro,
dos discursos (dos logoi) prevalece, portanto, o critério racional da os muitos, o povo que se deixa levar pelas impressões superficiais e
conveniência e da verossimilhança, amparado por uma análise da pelos encantos das belas palavras, que não sabe dirigir nem a si
conjuntura política e da natureza psicológica do orador. Na ordem mesmo e precisa da autoridade alheia. Em Tucfdides — diferente-
dos acontecimentos e das ações (dos erga) reina o critério da verifica-
mente de Platão, que resguardará o seu valor sagrado —, a memória
ção, igualmente amparado na verossimilhança racional. Tucfdides
pertence ao mythodes e ao engodo. Ela não reproduz fielmente o
não conta as várias versões possíveis do mesmo fato, para deixar o
leitor livre de escolher a que mais lhe apraz. O seu texto resulta de passado, mas dispõe dele segundo as conveniências do momento
uma escolha prévia a partir de um material que não é nem sequer presente. Assim, por exemplo, a tradição ateniense conta a façanha
mencionado, e segundo critérios cujos detalhes desconhecemos. A memorável do assassinato dos tiranos pelos heróis Harmodios e
inteligência de Tucfdides já decidiu por nós a versão racional a ser Aristogitão. Esta história pertence ao repertório das lendas que
adotada. A sua narrativa se desenvolve de maneira coerente, com uma glorificam a democracia em vigor na cidade. Na verdade, diz Tucfdi-
lógica que nos convence das suas hipóteses e das suas interpretações. des, os "tiranocidas" não obedeceram a elevados motivos politicos,
Pela primeira vez, a história humana nos é apresentada como com- mas, sim, a ciúmes amorosos bem mais comuns; prova disso é que
preensível e explicável racionalmente, com todas as suas implicações s6 um dos tiranos foi morto, enquanto o outro, mais velho e mais
e possibilidades. A trama escura e dramática da Guerra do Peloponeso poderoso, continuou reinando até que um complb de cidadãos
28
desenha-se sobre o fundo luminoso de um discurso (logos) e de uma (ajudados pela inimiga Esparta!) o derrotasse. A desconfiança em
razão (logos também) que atravessam o caos dos fatos, para deles relação à memória inscreve-se num projeto muito mais amplo, que
retirarem conclusões valiosas e ensinamentos eternos. O discernimento chamaríamos, hoje, de crítica ideológica, pois memória e tradição
de Tucfdides nos permite compreender racionalmente a história; nos formam este conglomerado confuso de falsas evidências, do qual
i mpede, ao mesmo tempo, de conceber uma outra história que aquela
ó presente tira sua justificativa. A escrita desmistificadora de Tucf-
escrita por ele. Nós não conseguimos imaginar uma outra versão da dides não poupa nem a tradição política nem a tradição religiosa.
guerra, uma outra Guerra do Peloponeso, uma outra história do
Exemplares, aqui, são as suas observações depois da dramática
26 Ibid. descrição da "peste" em Atenas:
27 Tal suspeita leva, por exemplo, R. G. Collingwood a criticar a falta de "cientificidade" de
Tucídides.Cf.ILG. Collingwood,A IANadeHistdria (São Paulo: Martins Fontes), pp. 42 ss. 28 Cf. Tucfdides, citado por Marcel Détienne, op. cit., p. 108.
30 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA 0 INÍCIO OA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS OE TUCÍDIDES : 31

Em seu desespero [os atenienses] lembravam-se, como era natural, Mais do que uma composição a ser ouvida por um público do
do seguinte verso oracular que, segundo os mais velhos entre eles, momento da competição, ela foi feita para ser uma aquisição para
fora proferido havia muito tempo: 'Virá um dia a guerra daria, e com sempre 33
ela a peste.' Houve na época muita discussão entre o povo, pois uma
parte da população pretendia que no verso em vez de peste (loimos) Neste parágrafo famoso, Tucídides se despede definitivamente do
se deveria entender fome (limos), e naquela ocasião prevaleceu o
mythos e do mythodes para fundar um discurso racional (logos) da
ponto de vista de que a palavra era peste; isso era muito natural,
história. Ele não quer mais contar o maravilhoso (em oposição a
pois as lembranças dos homens se adaptam a suas vicissitudes. Se
Heródoto, que falava demoradamente do Egito "pois nenhum outro
houver outra guerra daria depois desta e com ela vier a fome, 34
pals do mundo contém tantas maravilhas"), nem salvar os atos
i magino que entenderão o verso à luz das novas circunstancias. 29
passados do esquecimento, como Homero e, ainda que de maneira
diferente, também Heródoto o desejavam. A sua vontade de "ter uma
O único remédio para evitar esta manipulação do passado é deixar idéia clara (...) dos eventos ocorridos" tampouco remete a uma
resolutamente os encantos da oralidade, das palavras que voam de preocupação exclusiva de fidelidade para com o passado ( motivação
boca para boca, incham-se de desejos e paixões e chegam cheias de muito mais típica do historicismo moderno). Demonstra muito mais
histórias inverificáveis. 30 Tucídides reivindica a escrita como meio de uma exigência de penetração racional e analítica deste magma infor-
fixação dos acontecimentos, fazendo da imutabilidade do escrito uma me que são os fatos do passado, para deles extrair um ktèma eis aei,
garantia de fidelidade. 31 Várias vezes, ele se define como sendo um uma aquisição, um tesouro para sempre —isto é, primeiro para o leitor
syggrapheus, aquele que escreve (graphein) junto (sun) aos aconteci- atento e futuro que IeráA Guerra do Peloponeso para tirar desta história
mentos, titulo que também se aplica aos juristas redatores de projetos antiga ensinamentos atuais. Heródoto escrevia para resgatar um
de lei ou de contratos precisos entre cidadãos. Trata-se, então, de uma 35
passado ilustre; Tucídides escreve no presente sobre o presente para
grafia que engaja a quem a escreve ou ale, uma escrita que exige uma
instruir o futuro, confiante que da história do passado possa-se
atitude prática e uma coerência a longo prazo. Não remete à tradição
aprender para o presente, pois a natureza humana continua inaltera-
poético-literária do mythodes, como o faziam ainda as historiai de
da, isto é, sempre prestes a obedecer ao desejo de poder, sacrificando
Heródoto, mas às exigências político-jurídicas de um cidadão preocu-
o interesse geral aos interesses particulares e egoístas. Inaugura, assim,
pado com o futuro. O "historiador" abandona — por Longo tempo — a
a figura da Historia Magistra Vitae, 36 desenhando estes quadros renas-
dimensão ficcional da história para consagrar-se à sua dimensão
política, muitas vezes erigida como a única verdadeiramente históri- centistas nos quais um historiador sóbrio e sábio, de pé no segundo
ca. 32 Tucídides explicita esta escolha com uma clareza exemplar: plano, olha para um jovem príncipe que decifra as regras da vida
política nos antigos livros de história.
A oralidade do texto lido em voz alta para "um público no
Pode acontecer que a ausencia do fabuloso ( mythodes) em minha momento da competição" contrapõe-se a escrita rigorosa, destinada
narrativa pareça menos agradável ao ouvido, mas quem quer que ao leitor a vir, debruçado com paciência e atenção sobre o texto.
deseje ter uma idéia clara tanto dos eventos ocorridos quanto Todos os comentadores concordam em observar que esta ruptura
daqueles, semelhantes ou similares, que a natureza humana nos decisiva em favor da escrita contra a vivacidade da palavra oral não
reserva no futuro, julgará a minha narrativa útil e isto me bastará. remete só à critica da tradição mítica (e herodotiana) mas, também,
29 Ibid., p. 109.
33 Tuddides, op. cit., 1, 22.
30 Ibid., pp. 115 ss.
34 Heródoto, Historiai, 11, 35.
31 Neste ponto não concorda com Platão, que no Fedro v2 na fixidez da escrita uma prova 35 A guerra começa em 431 a.C., Tucídides começa a redação da sua obra neste mesmo ano.
da sua rigidez arbitrária.
A sua morte o impedirá de contar o fim da guerra (404 a.C.), que ele presencia.
32 Nos debates historiográficos contemporâneos, assistimos a uma revalorização desta
36 Cf. R. Koselleck, Vergangene Zukunft. Zur Semantik Geschichaicher Zeiten (Frankfurt am
dimensão ficcional... e a uma redescoberta de Heródoto! Main: Suhrkamp, 1979), cap. 2.
O INÍCIO DA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS DE TUCÍO IDES 33
32 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA
novo navio é enviado às pressas para alcançar o primeiro e revogar o
e sobretudo,'à critica dos usos da palavra na democracia ateniense 37
decreto de morte.
Atrás da necessidade de reformular a escrita da história, encontramos
Tais episódios preparam, na argumentação tucidideana, a conclu-
a necessidade de reformular a democracia ateniense. Para Tucfdides,
são desastrosa da guerra: a expedição de Sicilia e a derrota final. Um
uma das causas essenciais da derrota de Atenas é a cegueira do povo,
outro demagogo, orador brilhante, interessado e charmoso, o belo
que se deixa arrebatar pelos seus desejos e pela voz dos demagogos.
Alcibiades, leva os atenienses a este empreendimento fatal. Tucfdides
O único dirigente que R não fala para "agradar o povo", mas sim para ressalta a oposição entre a falta de conhecimento, a ignorãncia do
educá-lo, é Péricles (observemos que esta oposição entre agradar e
povo a respeito da grande ilha e o seu desejo ardoroso (a palavra é
educar lembra aquela que Tucfdides constrói entre Heródoto e ele 41
ecos em VI, 24) de novas conquistas. Em vez de informar os seus
mesmo). Com sua morte, começa o reino dos demagogos, que não
concidadãos sobre as dificuldades futuras, Alcibiades encoraja os seus
tem autoridade pessoal e, por isso, tentam agradar ao povo para
desejos irracionais, conseguindo, assim, vencer os conselhos de pm-
vencer na assembléia, pois "... equivalentes uns aos outros mas cada
déncia do velho Nicias.
um desejoso de 39 ser o primeiro, procuravam sempre satisfazer ao
A Guerra do Peloponeso oferece reiteradamente ao leitor estas
prazer do povo": A palavra hèdonè (prazer) ressalta o caráter afetivo
situações paradigmáticas de escolha: entre aquilo que ditam a reflexão
e emocional das decisões populares; esta falha de razão na conduta e a razão e aquilo a que levam o ímpeto da paixão e o prazer. O povo
dos negócios da cidade vai, segundo a análise tucidideana, conduzir ateniense lembra a alma platônica com os seus dois cavalos opostos,
Atenas à sua perda. Várias vezes, Tucfdides nos conta episódios que, que o cocheiro/nous consegue domar a duras penas. Este conflito entre
a rigor, não têm uma importância decisiva no desenrolar das opera-
razão e desejo motiva o uso particular que Tucfdides faz de uma
42 técnica
ções bélicas, mas que são paradigmáticos desta irracionalidade. Um muito em moda na época: o debate oratório contraditório.
dos mais característicos é a história de Mitilena, cidade de Lesbos, que Os sofistas tinham mostrado que é possível defender com igual
se absteve de apoiar Atenas; um contingente ateniense sitia a cidade, vigor uma tese X e a sua antítese Y, colocando, desta maneira, a
esperando a decisão da metrópole; com o inverno e a falta de socorro habilidade retórica acima da busca de uma verdade objetiva, inde-
do campo oposto, Mitilena se rende. Que fazer com seus habitantes? pendente da sua apresentação discursiva. O exercício dos dissoi logoi
A assembléia ateniense delibera. Clêon, um demagogo famoso pelo (discursos duplos) foi muito importante, notadamente para o adven-
seu caráter desmedido, intervém e propõe a morte de todos cidadãos to das práticas judiciárias de defesa e de acusação. Os discursos
de Mitilena; "sob efeito da cólera" (orgé), diz Tucfdides, 40 o povo vota
contraditórios do retor Antiphon eram modelos do gênero. Tucfdides
em favor da matança e envia um navio com esta ordem para a ilha.
transforma esta técnica de agôn log6n (jogo, Luta de discursos opostos)
No dia seguinte, nova assembléia: os cidadãos começavam a se num instrumento de análise política; sem precisar sair da sua objeti-
arrepender de ter votado medidas tão drásticas. Dois oradores entram vidade impessoal de narrador, ele pode, graças à construção antilógi-
em cena numa situação modelar de briga oratória: Clêon, de um lado, ca, apontar para os aspectos mais problemáticos de uma dada situação
que continua afirmando a necessidade da repressão sanguinária e, do e desvelar a trama de poderes que af se esconde. Contra os exercícios
outro, um cidadão desconhecido por nós, Diodotés, que recomenda retóricos dos sofistas, Platão propels o diálogo comum em vista de
mais sabedoria, argumentando que essa crueldade só fortalecerá o uma verdade única, recusando as antilogias que tornam qualquer
ódio dos inimigos de Atenas. Desta vez o povo escuta Diodotés; um conclusão substancial impossível, pois sempre precisam de um árbi-
37 A esse respeito, cf. Jacqueline de Romilly, Problèmes de la democratie grecque, op. cit.,
tro exterior, de um juiz que saiba compará-las e julgá-las. Em Tucfdi-
especialmente pp. 19-47; e também Francois Chatelet, op. cit., cap. If. des, este árbitro habita a própria construção textual: é o leitor futuro
38 Tucfdides, op. cit., II, 66; cf. também, Jacqueline de Romilly, Problèmes de la democratie
grecque, op. cit., pp. 30-38.
41 CL, Jacqueline de Romilly, Problèmes de la democratic grecque, op. cit., pp. 35 ss.
39 Tucfdides, op. cit. 42 Cf., a este respeito, Jacqueline de Romilly, Histoire et raison chez Thucydide, op. cit., cap.
40 Tucfdides, op. cit., II, 36; e Jacqueline de Romilly, Problèmes de la democratic grecque,
op. III.
cit., p. 33.
34 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMORIA E HISTORIA U INÍCIO OA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS GE TUCIOIDES : 35

a quem Tucfdides fornece todos os elementos necessários de análise de Atenas ao mar desenha a trajetória da sua grandeza: inicia com a
e de decisão através da colocação em cena de discursos contraditórios; vitória de Salamina, aumenta com a constituição da Liga de Delos
ao mesmo tempo, a opinião do autor fica clara, sem que se precise de (originariamente uma confederação de cidades iguais, unidas contra
declarações explicitas. a ameaça persa, a Liga transformar-se-á no império de Atenas sobre os
As discussões antagônicas também realçam, como o sabiam mui- outros membros) e termina com a expedição de Sicilia. A análise
to bem os sofistas, que as decisões pessoais ou coletivas, na sua grande tucidideana ressalta a necessidade desta trajetória, insistindo, em
maioria, não se baseiam na força racional da argumentação, mas, sim, particular, na estreita conexão entre democracia e imperialismo ate-
no poder de cada interlocutor. Poder de persuasão, sem dúvida, que nienses. Em oposição a Esparta, que encarna a tradição e a conservação
a famosa deusa Peith6 encarna, mas também poder material e políti- do status quo, a jovem democracia representa a vontade de mudança
co, potência concreta daquele que fala, pois poder de persuasão e e a dinâmica da evolução. Aberta ás novidades técnicas, econômicas e
poder político são co-pertencentes. Em Tucfdides, também, a técnica científicas, Atenas tem que progredir sempre no seu desenvolvimento,
tão fina da exposição antagônica é inseparável de uma análise dos pois qualquer interrupção significaria um retrocesso. Orgulhosos de
poderes politicos em jogo. O que sustenta a construção retórica é a sua cidade, os cidadãos prezam comemorações, festas e monumentos
reflexão tucidideana sobre o poder, em particular a sua teoria do cada vez mais suntuosos; os metecos (estrangeiros) afluem para a cidade
imperialismo ateniense. 43 Já no começo da obra é este imperialismo que conta, sob Péricles, cerca de quatrocentos mil habitantes. A campanha
(não no sentido moderno, é claro) que leva Tucfdides a distinguir ática não pode fornecer alimentos suficientes para esta multidão: o
com uma acuidade notável entre os pretextos da guerra, as razões domínio de Atenas, graças ã Liga de Delos, sobre o Mediterrâneo oriental
alegadas, e a sua causa verdadeira mas não dita: assegura também aos seus navios a "rota do trigo", buscado até nas
planícies da atual Rússia. Há, portanto, para Tucfdides, um vínculo
As razões pelas quais eles [os atenienses e os peloponésios] rom- necessário entre a realização interna da democracia e o estabelecimen-
peram a trégua e os fundamentos de sua disputa eu exporei to da dominação, da tirania extrema. A liberdade de Atenas depende
primeiro, para que ninguém jamais tenha de indagar como os da sua superioridade constantemente renovada e assegurada em rela-
Helenos chegaram a envolver-se em uma guerra tão grande. A ção às outras cidades invejosas. Para não se tornarem escravos, os
explicação mais verídica, apesar de menos freqüentemente alega- cidadãos atenienses devem permanecer os senhores a qualquer custo;
da é, na minha opinião, que os atenienses estavam tornando-se esta dialética assume na Antigüidade feições muito reais, pois numa
muito poderosos, e isto inquietava os Iacedemõnios, compelin- guerra os vencidos são geralmente mortos ou vendidos como escravos.
do-os a recorrerem ã guerra. As razões publicamente alegadas A grandeza de Atenas repousa sobre o imperialismo externo e, dentro
pelos dois lados, todavia, e que os teriam levado a romper a trégua da cidade, sobre a escravidão. Diz Châtelet:
"
e entrar em guerra foram as seguintes....
Esquematicamente, acontece com o império o mesmo que com a
O poder de Atenas nasceu do seu papel essencial na vitória sobre classe servil. Os cidadãos asseguravam o seu bem-estar, a sua
os persas. Os atenienses venceram os bárbaros graças ã sua frota, independência e a sua segurança com tanta mais eficácia
46 que
deslocando o eixo das Guerras Médicas da terra para o mar. Esta exploram uma maior multidão de súditos e de escravos.
oposição entre terra e mar é constitutiva, na análise de Tucfdides, da
rivalidade entre Esparta (cidade mais tradicional, ligada ã terra firme) A dialética tucidideana entre dominação e liberdade lembra a
e Atenas (cidade aberta ao novo que trazem os navegantes). 45 A ligação antiga noção de hybris, tão importante para Heródoto: interesse e
43 Cf., a este respeito, sobretudo, François Châtelet, op. cit. 46 Cf. François Châtelet, op. cit., p. 261. Poderíamos acrescentar aos súditos e escravos,
44 Tucfdides, op. cit., 1, 23.
também as mulheres atenienses. Cf. Nicole Loraux, Les enfants d'Athéna, idées athéniennes
45 Ibid., I, 18. sur la citoyenneté et la division des sexes (Paris: Maspéro, 1981).
36 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTORIA
0 INICIO DA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS OE TUCIOIDES 37

ambição, fontes de grandeza e heroismo, também conduzem as cida- trato com as mesmas. Dos deuses nós supomos e dos homens nós
des à sua perda. Atenas venceu heroicamente os persas, livrando os sabemos que, por uma lei de sua própria natureza, sempre que
gregos do jugo bárbaro, mas estabeleceu sobre os seus compatriotas podem eles mandam. Em nosso caso, portanto, não impusemos
um domínio talvez pior que teria sido o estrangeiro. Como observará esta lei nem fomos os primeiros a aplicar os seus preceitos;
um general siciliano, os belos discursos de igualdade e de liberdade se encontramo-la vigente e ela vigorará para sempre depois de nós;
transformaram em justificativas de dominação. 47 O mesmo raciocí- pomo-la em prática, então, convencidos de que vós e os outros,
48
nio, alias, aplicar-se-á a Esparta: se, no decorrer da guerra, tomou-se se detentores da mesma força nossa, agiríeis da mesma forma.
ironicamente o arauto da liberdade face a uma Atenas democrática e
i mperialista, transformar-se-á também, quando estiver vitoriosa, Na sua argumentação, os representantes de Atenas, a cidade
numa potência tiránica, sem respeito aos direitos dos seus súditos. democrática "educadora da Grécia", misturam com maestria o rigor
Entre o realismo pessimista de Tucfdides e o realismo descarado da razão e o cinismo do poder; desaconselham os habitantes de Meios
dos sofistas as semelhanças são muitas. Trata-se sempre do conflito a esperar pela justiça ou pela ajuda dos aliados espartanos, pois a
entre justiça e poder, ou ainda entre as leis sociais humanas e o direito esperança é um sentimento que só ilude e engana. A reivindicação de
natural do mais forte, a oposição entre nomos e physis. A defesa do justiça e à esperança opõem o frio realismo da dominação, que
direito do mais forte por vários sofistas encontra o seu correspondente culminará na matança futura.
real e cotidiano na prática i mperialista de Atenas, descrita por Tucfdi- O leitor futuro, a quem Tucfdides reserva a sua obra, pergunta-se
des. O famoso episódio de Meios oferece um paradigma desta prática. ao ler este episódio sangrento: como distinguir a razão que guia o
Meios era uma pequena ilha, povoada por colonos de Esparta, que discurso tão coerente dos embaixadores atenienses da racionalidade
tentou ficar neutra na primeira metade da guerra. Atenas exige sua i mposta pela força? Como distinguir a racionalidade da realidade
submissão e bloqueia o porto. Segue-se um debate altamente tenso histórica da razão dos vencedores? A grande questão hegeliana da
entre os embaixadores atenienses e os notáveis de Meios, que tentam racionalidade do real já se coloca nas páginas do primeiro historiador
expor a justeza da sua posição. Com o fracasso das negociações começa que quis compreender logicamente a história e só o conseguiu através
um sítio de um ano, no fim do qual Meios deve render-se. Os homens de uma teoria do poder e da dominação.
são massacrados, as mulheres e as crianças vendidas como escravas.
Mais tarde, Atenas repovoará a ilha com colonos atenienses.
Tucfdides demora-se no relato das negociações e nos dá aqui uma
belíssima peça de reflexão histórica e política. Mais uma vez, ele
coloca em cena discursos antagônicos: o dos embaixadores atenienses
que falam a linguagem do realismo e do poder, e o dos representantes
da Assembléia de Meios que invocam o direito e a justiça. Mas, como
estes últimos observam, desde o inicio a igualdade dos parceiros do
dialogo encontra-se negada pela presença ameaçadora das tropas
atenienses no porto. Os atenienses não só justificam esta desigualda-
de como também a consagram como uma "lei" divina e humana:

Realmente, em nossas ações não estamos nos afastando da reve-


rência humana diante das divindades ou do que ela aconselha no

47 Tucfdides, op. cit., VI, 76.


48 Ibid., V, 105.
II. AS FLAUTISTAS, AS PARTEIRAS E AS GUERREIRAS

Em memória de Elisabeth Sousa Lobo

Atena, deusa da filosofia, não nasceu da barriga de uma mulher.


Segundo a lenda, ela nasce, já toda em armas, da cabeça de um
homem, ou melhor, da cabeça de um deus, seu pai Zeus. Em seu
nascimento, a deusa ressalta uma antiga oposição: entre o ventre
feminino e a cabeça masculina. Nascer da cabeça do homem significa
também marcar, desde o início, uma preferência. A deusa da Razão
privilegia, desde seu primeiro dia, a forma de produção que vem da
cabeça —e dos homens — em oposição ã produção que vem do corpo
— e das mulheres.
Por outro lado, Atena, deusa da Razão, é também deusa da Guerra.
Guerra e Razão são inseparáveis, como se não pudesse haver um
conceito de razão fora da idéia de luta e de morte, como se a guerra
fosse mais racional que a paz. Atena continua virgem e ajuda os
guerreiros gregos frente a Tróia. Ainda segundo a lenda, ela está
furiosa com o principe troiano Páris (o "efeminado", como diz
Homero) que, no concurso entre ela, Hera e Afrodite, não lhe deu a
maçã destinada à mais bela. Compreende-se bem a posição de Páris!
Afinal, a virgem Razão recusa os jogos sexuais e encoraja os jogos
guerreiros; contra Páris, o efeminado, ela ajuda os viris acaios a
vencer.
Esta visão provocadora da padroeira dos filósofos me conduz,
quando penso no discurso filosófico e naquilo que diz ou não diz das
mulheres, a uma primeira hipótese. Não tentemos distinguir entre os
filósofos feministas e os filósofos machistas, entre os esclarecidos e
os preconceituosos. Não chama a atenção quão "reacionário" pode
ser um filósofo "revolucionário" quando fala das mulheres, seja
40 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA
AS FLAUTISTAS, AS PARTEIRAS E AS GUERREIRAS : 41

Rousseau, ditando a educação das meninas (de Sofia, de nome tão a própria voz ou discursos alternados, fazem subir o preço das
revelador!), seja Nietzsche, denegrindo as feministas de sua época? flautistas, alugam caro a voz estranha das flautas e distraem-se
Prefiro, contudo, questionara constituição do discurso filosófico, com ela. Mas nos banquetes de gente fina e educada não encon-
propondo a hipótese de que ele se constitui em torno de um duplo
tramos nem tocadoras de flauta, nem dançarinas, nem harpistas;
controle do "feminino" (veremos mais tarde a razão destas aspas): ele bastando-se os convivas a si próprios, dispensam essas futilidades
o exclui, declarando-o impróprio a filosofar, e, ao mesmo tempo, o
e brincadeiras e se distraem por meio da voz natural, cada um
admite quando consegue subordina-lo a um "valor" mais "alto".
falando ou ouvindo por seu turno, com muita ordem — ainda
Para ilustrar esta hipótese, tratarei aqui de três figuras de mulhe-
mesmo que cheguem a beber bastante (Prótagoras, 347 c -347 d,
res que aparecem na filosofia de Platão, figuras que chamarei, segun-
do expressões do próprio Platão, de trad. A Nunes).
flautistas, parteiras e guerreiras.
As flautistas são cortesãs músicas que enfeitam os jantares mas-
culinos da Atenas clássica. Nestes jantares, os convivas comem e As condições da pesquisa filosófica estão, desta maneira, defini-
bebem e, terminada a refeição, continuam bebendo. Decide-se, então, das. Acima de tudo, não se deve misturar dois tipos de palavra. De
do programa da noite. Vai-se beber até à embriaguez completa, um lado, a palavra "estrangeira" da flauta, palavra da poesia e da
apreciar música e declamações de poesia, ou vai-se beber com certa música, do corpo e da dança, palavra exercida por mulheres livres e
moderação e discutir um tema mais filosófico? Ao tomar a decisão de cortesãs (que se opõem, na sociedade ateniense, às esposas presas à
discutir e de filosofar, uma conclusão prática se impõe: mandar as casa), uma palavra do riso, do jogo, das bagatelas e das bobagens. Do
mulheres tocadoras de flauta para dentro da casa com as outras outro lado, a palavra autenoma, que s6 precisa de si mesma, a palavra
mulheres e ficar entre homens. da razão e da cabeça, cabeça essa capaz de controlar até um corpo
cheio de vinho, palavra exercida pelos homens, entre eles e um de
Uma vez, pois (....) que estamos de acordo em que cada vez, enfim, uma palavra das coisas sérias, uma palavra filosófica.
hoje cada um A expulsão das flautistas significa também a rejeição da poesia,
de nós poderá beber à vontade, sem que se
sinta constrangido esta grande inimiga da filosofia platõnica. Mulher e poesia, ambas
pelo ridículo, desejo que me
concedais uma coisa ainda: despa-
chemos a flautista que acaba de entrar; ordene-lhe que toque para tão falsamente belas e tão perigosamente sedutoras, ambas devendo
si mesma, ou para as mulheres ser rapidamente expurgadas do discurso filosófico, e isso com tanto
do interior da casa. Trataremos nós
de nos divertirmos a conversar (Platão, mais energia que a elas se sucumbe com tamanha facilidade, mulher
Banquete, 176 e, trad.
Paleikat). e poesia, a tentação da imagem e do sensível que devem ser excluídos
da verdade.
Desta maneira se esboça, atrás da figura da flautista, uma das
Mesmo gesto no Protágoras: Sócrates fala da
virtude, quer exami- grandes divisões do discurso filosófico: a razão e o sério ficando do
nar, através do diálogo, a natureza da
virtude. Um assunto de tal lado dos homens e entre eles, na praça pública ou na sala de estar, a
i mportancia exige uma certa
disciplina, rompida por um intermezzo
desagradável, a conversa entre Protágoras e Sócrates a propósito de poesia e as besteiras charmosas do lado das mulheres, no interior da
alguns versos do poeta Simônides. É este recurso à casa. l Velha cisão da qual sofremos ainda hoje, mulheres condenadas
poesia que Sócrates à tagarelice ou então ao mutismo (e à histeria), homens condenados
recusa, jogando-o para o lado das flautistas e da
futilidade. ao falar-certo e ao falar-demais.
Uma outra figura de mulher freqüenta a filosofia de Platão: a da
parteira, mãe de Sócrates. Sócrates mesmo 95 consegue definir a sua
Ao meu ver essas conversas sobre a poesia são muito parecidas atividade como arte do parto, isto é, maiéutica, com a diferença que
com os banquetes de gente vulgar e sem instrução; incapazes de
se distraírem à mesa, dada a rusticidade que lhes é peculiar, com 1 Cf. Vernant, Mythe et Pensée chez les Grecs (Paris: Maspéro, 1965), tome 1, p. 124 ss.
42 SETE AULAS SOARE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA AS FLAUTISTAS. AS PARTEIRAS E AS GUERREIRAS 43

ele não parteja o corpo das mulheres, mas as almas dos homens (cf. "grávida" e, por analogia, fecundo(a). Poucas linhas antes, em 206 e,
Teetéto, 150 b). Com efeito, como já nos dizia Atena, a filosofia não o intuito do deseo amoroso tinha sido definido como "geração e
cuida do corpo das mulheres, mas de valores mais "nobres". Isto não parto na beleza", a geração designando a atividade masculina, o
i mpede que a metáfora continue válida, comandando toda a teoria parto, a feminina. Como se o ideal do conhecimento amoroso fosse
da produção intelectual do Banquete. Sócrates ajuda os jovens a parir conseguir sozinho fazer um filho, o velho sonho da cabeça de Zeus.
os seus pensamentos, desta gravidez masculina nascerá o conheci- Mas quem é esse filho nascido de um amor que prescinde do outro
mento do bem. Por isso, a hierarquia amorosa do Banquete é, ao corpo, em particular do corpo da mulher? Leia-se a resposta no fim
mesmo tempo, uma hierarquia da produção. No degrau mais baixo, da descrição da iniciação amorosa:
há os que engendram no corpo, que precisam das mulheres para
produzir filhos; quanto mais ascendemos no perfeito amor, tanto
Ao contrário, volver-se-á agora para o imenso oceano da beleza,
mais se apaga esta dependência em relação ao corpo, ao feminino
contemplando-o, dará à luz incansavelmente belos e esplêndidos
especialmente, tanto mais digno de elogios será o filho produzido: discursos. E os pensamentos surgirão da inesgotável inspiração do
saber (Banquete, 210 d, trad. Paleikat).
Aqueles cuja fecundidade reside no corpo, dirigem-se de preferên-
cia às mulheres, e assim realizam a sua maneira de amar, acredi-
O filho desejado é, portanto, novamente o discurso ("logos").
tando que pela criação dos filhos atingem a imortalidade, a
celebridade e a felicidade eternas. Velha hierarquia da divisão do trabalho: em baixo, as mulheres que
fazem filhos, em cima, os homens que fazem discursos. Velha sepa-
Os que, porém, desejam procriar pelo espírito — pois há
ração da produção material e da produção intelectual, esta só se
pessoas que mais desejam com a alma do que com o corpo (e ela
é mais fecunda ainda que o corpo) —, esses anseiam por criar referindo àquela para melhor ressaltar a sua superioridade.
Mas, dirão vocês, não foi Platão o primeiro a proclamar a igual-
aquilo que à sua alma compete criar. É a criação desses homens a
quem chamamos poetas, e a daqueles outros aos quais denomi- dade do homem e da mulher no célebre texto da República, no qual
namos inventores. (....) defende a mesma educação para os guerreiros e as guerreiras (Repú-
Não há ninguém que não prefira tais filhos aos humanos: é blica, V, 451 ss.)? Um texto, inclusive, que levou alguns a fazer de
suficiente considerar Homero, Hesfodo e outros poetas excelen- Platão o primeiro feminista. Deixemos de lado o problema de saber
se Platão era ou não feminista e consideremos, antes, como se
tes: que filhos deixaram a perpetuar-lhes a glória eterna e a perene
memória! (...) No vosso Estado é muito honrado Solon, em constrói este discurso igualitário.
virtude das leis que criou, e outro tanto acontece com muitos Trata-se de saber se as mulheres podem, como fêmeas de bons
outros homens, em muitas terras, entre gregos e entre bárbaros. cães de guarda, cooperar com os machos para a guarda da cidade (id.,
Esses homens realizaram muitas obras belas e criaram virtudes de 451 d). Platão coloca com admirável clareza a questão da diferença
todo gênero. Muitos templos já lhes foram erguidos que ninguém entre os sexos, a questão do Mesmo e do Outro, e chega à conclusão
nunca obteve pelos filhos humanos 2 (Banquete, 208 e — 209 e, de que a diferença biológica entre homem e mulher não acarreta
trad. Paleikat). nenhuma diferença de aptidão:

É notável que Platão, quando fala daqueles que são fecundos Se, portanto, se evidencia que os dois sexos diferem entre si
segundo o corpo e daqueles fecundos segundo o espírito, use a mesma quanto às suas aptidões para exercer certa arte ou certa função,
palavra "ekgymôn" em ambos casos, que significa, em primeiro lugar, diremos que é preciso consignar esta arte ou esta função a um ou
a outro; mas se a diferença consiste somente no fato de a fêmea
2 'Dia de taus anthropinous oudenospo' —curiosamente, esta
de Paleikat. última parte falta na traduçào
3 "Tts gentsebs kal tau tokou em tãi kaldi."
44
SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTORIA AS FLAUTISTAS, AS PARTEIRAS E AS GUERREIRAS 45

conceber e o macho engendrar, nem por isso aceitaremos como seria, muito mais, de colocar em questão esta plenitude e esta positi-
demonstrado que a mulher difere do homem sob o aspecto que vidade?
nos preocupa, e continuaremos pensando que os guardiães e suas Três figuras de mulheres, as flautistas, as parteiras e as guerreiras,
mulheres devem desempenhar os mesmos empregos três "nós" da tradição filosófica ocidental: pensar o discurso lúdico
(República,
V, 454 d-e, trad. J. Guinsburg). não racional, pensar a produção da matéria e pensar a diferença. Três
temas que evidenciam aquilo que foi chamado de "recalque do
O que são estes empregos? Ora, justamente aqueles que foram feminino". Significaria isto que os sujeitos masculinos do discurso
definidos anteriormente como próprios dos guardiães da cidade. filosófico não quiseram ou não conseguiram pensar o feminino ou,
Trata-se de descobrir se não existe nenhuma tarefa "para qual homem ao contrário, que só puderam pensá-lo como uma matéria passiva e
e
mulher não são igualmente dotados, mas diferem de aptidão" (id. ameaçadora, uma tagarelice agradável, mas desprovida de sentido,
454 e), unicamente para decidir se a mulher pode ou não ser tratada uma outra incompleta? Esta matéria tagarela e carente designaria
como um homem. Por conseguinte, a questão da diferença dos sexos realmente a essência da feminilidade? Sem dúvida, flautistas, partei-
se reduz à de saber até que ponto a mulher difere do homem e até ras e guerreiras podem nos ajudar a entender melhor que esta
onde ela se assemelha a ele. Talvez seja esse deslizamento na coloca- famigerada "feminilidade" nada tem de essencial, exceto uma função
ção do problema que se manifesta na estranha contradição da con- determinada num discurso que procura estabelecer a sua coerência e
clusão platônica:
a sua verdade pela exclusão de outros tipos de palavra.
Gostaria, então, à guisa de conclusão, de colocar uma segunda
hipótese, que é também uma interrogação: é de fato o feminino,
aPor conseguinte, meu amigo, não há emprego concernente à
enquanto essência imutável, que foi recalcado no discurso filosófico
dministração da cidade que pertença à mulher enquanto mulher,
ocidental? Não seria, antes, que aquilo que foi deixado de lado,
ou ao homem enquanto homem; ao contrário, as aptidões natu-
rejeitado, excluído, foi, depois, atribuído às mulheres (ou também às
rais se distribuem igualmente entre os dois sexos, e é conforme à
crianças, aos selvagens, aos loucos) e, conseqüentemente, descrito
natureza que a mulher, tanto quanto o homem,
participe de todos como tipicamente feminino (ou também como infantil, primitivo,
os empregos, ainda que seja, em todos, mais fraca do que o
homem (República, V, louco)? Nesta distribuição, as mulheres teriam recebido a sensibilida-
455 e, trad. J. Guinsburg). de e a natureza, o silêncio e o jogo, mas também a tagarelice, a inércia
e a insuficiência, enquanto, do outro Lado da divisão, erige-se o sujeito
Mas de onde saiu, afinal, esta súbita fraqueza feminina? Onde masculino, pleno, autônomo e detentor do discurso verdadeiro. Uma
Platão foi buscã-Ia? Num simples preconceito machista? Este súbito reflexão filosófica — e feminista! — não me parece, portanto, dever
restabelecimento da hierarquia dos fortes e dos/as fracos/as talvez seja reivindicar uma essência da feminilidade, nem tentar uma aproxima-
muito mais profundamente ligado à dificuldade do pensamento ção cada vez mais eficaz do paradigma masculino, mas deve, sim,
platónico — e do pensamento ocidental em geral — em pensar a questionar a verdade deste discurso.
diferença, sexual ou não. Com efeito, diferença e identidade só são
pensadas em relação a um referente que é também — e
isso perverte
a comparação — um dos termos da alternativa. Desta maneira, o
problema da igualdade entre os sexos se resume na questão de saber
se as mulheres são tão capazes quanto os homens, sem questionar a
gênese desta capacidade masculina. Deve-se realmente desejar que as
mulheres se tornem idênticas aos homens? Devemos continuar a
defini-las como o Outro do homem, a sua falta e o seu negativo
enquanto ele representaria o pleno e o positivo?
0 problema não
AS FLAUTISTAS. AS PARTEIRAS E AS GUERREIRAS : 47

Post-Scriptum teando, em lugares inéditos. Hesitação que não é sem vantagens, pois
me leva, por descaminhos, a territórios afastados que o logocentrismo
define muitas vezes como periféricos, para eu medir, prudentemente,
minhas forças. Seria interessante estudar a escolha dos assuntos ou
dos autores que as mulheres-filósofas tratam com mais felicidade:
Esse pequeno texto panfletário foi escrito há muitos anos para uma pergunto-me se muitas não praticam essa estratégia do desvio, "ata-
mesa-redonda em São Paulo. Você me pergunta, com razão, o que eu cam" as questões "capitais" não "frontalmente", como se diz, mas
diria pelo intermédio privilegiado de autores "menores" ou de problemas
hoje. Achei primeiro, assustada, que não tivesse mais nem
pensado, nem escrito nada sobre esses assuntos. Depois, procurando situados, muitas vezes, na fronteira com outras disciplinas. Táticas de
nas minhas pastas e nas minhas lembranças, me dei conta que sim, aproximação, mas certamente também, de maneira mais secreta,
sem dúvida, este "questionamento feminista da filosofia" 4 não cessou táticas de solapamento, de corrosão, de "desconstrução" do edifício
de me acompanhar. Mas sempre se exprimia em ocasiões pouco coerente demais do Logos. Quando essa guerrilha tranqüila alia com-
alegria, eis que essas mulheres
filosóficas: um artigo num jornal de grande difusão por ocasião do dia petência e impertinência, indignação e
das mães, artigo cujo título "de uma maternidade não domesticada" pouco ã vontade se encontram, de repente, no coração dos debates
foi cancelado sem eu saber; um outro sobre "mulheres e escrita" para filosóficos atuais, pois trata-se para nós todos, mulheres e homens,
o congresso das mulheres escritoras na cidade de México em 1981; e, de orientarmo-nos em tradições que desmoronam, de cuidarmos da
também, comentários de teses de colegas mulheres, em literatura, em memória de narrativas portadoras de esperança, sem necessidade de
antropologia. Um pouco como se a rede feminista continuasse, mas crispação para manter discursos totalizantes ou totalitários. Então, o
por fora, sim, apesar de minhas atividades de professora de filosofia. fato das mulheres se sentirem deslocadas nos palácios do saber pode
Não que o meio seja especialmente masculino: há mais mulheres se tornar uma chance: a de desenhar outros espaços, de modelar
professoras e estudantes de filosofia no Brasil do que na Europa, talvez outros tempos, nos quais possam surgir o jogo em sua gratuidade, a
porque as profissões ligadas ao ensino estão subpagas, e os "chefes de matéria em sua espessura, a diferença em sua imprevisibilidade. Sem
família" preferem, portanto, ser médicos ou engenheiros. É verdade que, imediatamente, a angústia os sufoque. Esse deslocamento essen-
que os filósofos que ocupam os postos i mportantes cial pode se transformar numa facilidade paradoxal em renunciar
e que são os mais
conhecidos são, fora raras exceções, homens: as mulheres em destaque ãquilo que, durante muito tempo, foi o apanágio da razão: uma
são muitas vezes acusadas por seus colegas (de ambos sexos) de histeria continuidade lisa e sem falhas, que remetia ã identidade plena do
ou incompetência. É o medo de tais críticas que, muito provavelmente, sujeito e ao desenrolar inelutável de um tempo homogêneo. Tantas
me impediu de aprofundar "estudos femininos" 5 vezes definidas pela falta e pela incoerência, as mulheres poderiam
em filosofia. Nutro,
porém, um fantasma: o de ser, mais tarde, uma velha senhora muito ter menos dificuldade em se desprender desse ideal de uma subjeti-
digna — afastada da sexualidade e próxima da sabedoria! — uma vidade soberana que tentaram, em vão e não por acaso, realizar: não
Sócrates em suma, que consagraria seus dias a uma releitura feminista
só porque seu sexo encarnaria a ausência, mas também por razões que
irónica e serena da metafísica. se esforça por
toda reflexão filosófica moderna, desde Nietzsche,
Como se eu precisasse, por assim dizer, primeiro provar (aos articular numa linguagem lacunar — porque o sujeito não é somente
outros, mas também a mim mesma) que tenho realmente acesso ao um, mas múltiplo e variável, porque o tempo se espalha em redes
Logos, para ousar explorar outras regiões da palavra, para ousar temporais diversas, porque a história tem solavancos, acelera ou, de
inventar uma outra aproximação da linguagem, para ingressar, ta- repente, desmorona. Histórias, tempos, sujeitos cuja pluralidade
4 ameaça, certamente, a paciente edificação de símbolos e de práticas
Ver Françoise Collin, "Ces études qui ne sont 'pas tout'. Fécondité et limites des études
não implica somente
5
féministes", in Cahiers dn GR/F,
número 45, p. 91. seculares. Mas esse despedaçamento do Logos
Ver no mesmo número, Savoir et différence des sexes,
a maioria dos artigos a esse respeito. uma dispersão infinita do sentido; também pode significar sua aber-
48 SETE AULAS SORBE LINGUAGEM
MEMORIA E HISTORIA

tura essencial, para outras línguas: aquelas


das quais as mulheres (as
crianças, os loucos, os selvagens e cada vez
mais homens) não aceitam III. MORTE DA MEMÓRIA, MEMÓRIA DA MORTE:
ser despojadas e aquelas, tão
numerosas, que nos resta inventar. DA ESCRITA EM PLATÃO

A Celso F. Favaretto
que continua unindo as artes do pensar e do passear

Um dos mais belos diálogos de Platão, o Fedro, trata juntamente da


justeza dos amores e da justiça dos discursos. Junção necessária pois
o amor, em Platão, se diz e se rediz certamente mais que se faz, pois
ele inspira aos amantes o desejo dos discursos verdadeiros; junção
necessária sobretudo porque o discurso verdadeiro não pode ser a
réplica da verdade na insuficiência de nossa linguagem, mas remete
muito mais a este elã da linguagem em direção ãquilo que a ultrapassa
e, simultaneamente, a funda. Ela, pois, essencialmente erótico, segun-
do a bela definição do Banquete, que faz de Eros esse demônio ao
mesmo tempo sempre infeliz e cheio de animação, esse ser interme-
diário sempre em falta e nunca sem recursos. Assim, em Platão, Eros
e Logos se encontram estreitamente ligados por um mesmo movimen-
to de busca, por um mesmo caminhar inquieto e, no entanto, feliz,
como o passeio, fora dos muros de Atenas, de Sócrates e de seu belo
e jovem amigo Fedro, descalços, seguindo um riacho, na luz de uma
manhã de verão.
Muito sabidamente, Platão faz intervir esse cenário campestre na
trama do diálogo: uma curva do Ilfssio lembra as brincadeiras das
ninfas, em particular de Farmacéia e de Orithia, e permite a introdu-
ção de uma discussão sobre os méritos da mitologia; a suavidade da
relva em declive convida ã leitura e ã conversa; as cigarras estridentes
do meio-dia impedem os amigos de ceder ao sono; enfim, como o
calor passou enquanto o diálogo chegava, não sem esforços nem sem
desvios, ã sua conclusão, os dois companheiros podem atravessar o
riacho e voltar para trás, o que seu demônio tinha, anteriormente,
proibido a Sócrates. Assim, a própria natureza, da qual, no entanto,
50 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MORTE DA MEMÓRIA. MEMÓRIA OA MORTE 51
, MEMÓRIA E HISTORIA

Sócrates afirmava que ela não lhe ensinava nada (230 d), a própria final na qual nos afirma que tudo isso só foi uma brincadeira (paidia,
natureza colabora com graça à busca da sabedoria. Mesmo domínio Fedro 276 d, 277 e, entre outros) pois isso foi escrito. A mesma
de Platão em mesclar os diversos gêneros literários: ao pastiche de oposição entre as brincadeiras da escrita e a seriedade da verdadeira
retórica seguem um discurso sofístico inspirado, depois um outro, filosofia rege, como se sabe, uma outra passagem famosa, a conhecida
3
mitológico, que nos faz penetrar no território da dialética. Quebrando "disgressão filosófica" da Carta Sétima. Essa contradição entre a
a monotonia dessas longas narrativas, os apartes jorram, uma anedo- intensa atividade filosófico-literária de Platão e sua recusa, também
ta, uma piada dão a Fedro uma trégua e lhe permitem retomar fôlego categórica, de lhe conceder um peso decisivo, continua sendo, até
nessa longa estrada cheia de obstáculos e de desvios (274 a), a estrada hoje, o enigma maior dessa obra, enigma no qual esbarram todas as
da verdade para qual Sócrates o arrasta embora pretendesse segui-lo, tentativas de interpretação. Como o afirmava recentemente, num
ele Fedro e o discurso escondido sob sua túnica, como um cachorro excelente artigo, Mario Vergetti, a primeira e maior ambigüidade do
4
faminto persegue o osso que se agita diante de seu focinho na sua corpus filosófico de Platão consiste no fato dele existir. Essa contra-
frente (230 d/e). Habilidade enfim, intencional ou não, pouco impor- dição foi lida freqüentemente, do neoplatonismo até a Escola de
ta, de Platão ao introduzir, desde do inicio do passeio, o tema do Tübingen (H. J. Kramer e K. Gaiser), como o indício de uma doutrina
pharmakon, l seja na evocação da ninfa Pharmacéia (229 c) ou, justa- não escrita, esotérica, talvez secreta que Platão não quis transmitir
mente, nesta súbita assimilação do discurso escrito de Lisias a uma por escrito; a mesma contradição foi interpretada faz pouco tempo
droga toda poderosa que faria atravessar a Sócrates a Ática inteira; por Wolfgang Wieland como a manifestação da parte des Platão e em
contraste com a "posição em comparação ingênua" de muitos
intervêm igualmente, desde as primeiras linhas do diálogo, as refe- autores filosóficos, a manifestação da consciência aguda dos limites
rências médicas como se os bons conselhos de Akoumenos sobre o
( Grenzen) que o texto, escrito ou falado, oferece ã expressão filosófica.
andar ao ar livre (227 a) pudessem servir de antídoto As sutilezas da A crítica platõnica da escrita não apontaria, portanto, para a existência
retórica, de pharmakon natural contra a sedução dos pharmaka artifi-
de doutrinas que Platão teria-se recusado a transmitir em sua obra,
ciais, anunciando assim a comparação, tão freqüente em Platão, entre "mas chamaria mais atenção para o fato que existem limites internos
o médico verdadeiro, oposto aos charlatães e cozinheiros que afagam ã comunicabilidade" 6 Segundo Wieland, portanto, não há verdadei-
o corpo, e o filósofo na sua luta contra a retórica e a sofística que ra contradição em chamar "atenção num texto para tudo aquilo que,
lisonjeiam a alma (Fedro, 268 a-c. Gorgias, 464 a ss.), 2 7
enquanto tal, um texto não pode produzir".
Temos, pois, um êxito altamente literário neste diálogo encanta-
dor que descreve, juntamente, os encantos entremeados da palavra e
s
do amor. Ora, ele não termina, porém, por nenhuma glorificação da A argumentação neo-kantiana de Wieland é altamente fiel ã
atividade literária como poderia ser nossa expectativa, acostumados reflexão platônica a respeito dos limites da linguagem — reflexão da
que somos ao culto romántico do gênio e As variações meta-textuais qual se deduziu muitas vezes, de maneira apressada sem dúvida, que
contemporãneas. Pelo contrário, a conclusão do Fedro contém uma
3 Platão, Carta VII, 342a-344d.
das versões mais famosas daquilo que foi chamado de condenação 4 Mario Vergetti,'Dans l'ombre de Thot. Dynamiques de l'écriture chez Platon", p. 387, in
platônica da escrita. Paradoxo gritante entre esse longo diálogo no de Marcel Détienne, Cahiers de
Les savoirs de l'écriture en Grèce ancienne, sob a direção
qual Platão, durante um dia inteiro de verão, nos seduz e nos instrui philologie, n. 14, 1988.
5 Wolfgang Wieland, Platon und die Formen des Wissens (Gottingen: Vandenhoeck &
pelo emaranhado sabidamente. construído de imagens, de argumen- Ruprecht, 1982), p. 11: "Die meisten Autoren zeigen nãmlich zum philosophischen
Text ais
tos, de narrativas, de sofismas, em suma de logoi, e esta declaração solchem Bine vergleichsweise naive Einstellung."
6 Idem, p. 27: "/nsofern verweist sie (die Schriftkritik Platons) nicht aufLehren oder Theo rien,
aufderen sch riftlicheMitteilungPlaton ve,zichtet hotte, sondem sie machtdaraufaufinerksam,
1 Ver a esse respeito, de Jacques Derrida, A Fanndcia de Platão
(São Paulo: Iluminuras, doss es innere Grenzen der Mitteilbarkeit gift"
1991), que inspirou em boa parte este artigo. man in einem Text
2 Ver Henri Joly,Le renversc mentplatonicien.Logos, Episteme, Polis 7 Idem, p. 38: "Man ve,wickelt sich iedenfalls in keinem Widerspmch, wenn
(Paris: Vrin, 1974), terceira au¡ das aufinerksam mach(, was alles em Text nicht leisten kann."
parte, cap. Ill.
8 Mario Vergetti, op. cit., p. 408.
52 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTORIA MORTE DA MEMÓRIA. MEMÓRIA DA MORTE 53

Platão postulava a existência de um ser inefável, que somente uma enquanto técnica; pelo contrário, ele empresta a esta última nume-
14
contemplação de tipo místico poderia abarcar. 9 A leitura de Wieland rosas comparações, amparando-se no "paradigma gramatical" das
evita essa armadilha e coloca a questão da limitação e, no entanto, da combinações entre letras e palavras para descrever melhor a tarefa
competência do logos em Platão, uma questão na qual vários comen- analítica do método dialético. As resistências de Platão são de outra
tadores já tinham situado a origem da teoria das Idéias, esses seres
ordem: remetem aos deslocamentos socioculturais que a difusão do 15
extralingüísticos que garantem a possibilidade de uma compreensão texto escrito provoca em relação à tradição e à memória coletivas.
lingiifstica. lo Se não há, portanto, contradição, no sentido enfático, do
Enquanto o poeta, na época arcaica, era o detentor de uma memória
termo, entre a desconfiança de Platão em relação ao escrito e seus que permitia, graças a essa palavra sagrada, dádiva das Musas ao
numerosos diálogos (uma forma literária cuja importância é ressaltada
serviço de Apolo, 16 a um povo inteiro de se construir e de se assegurar
tanto por Wieland como por Vergetti), no entanto o paradoxo conti-
uma identidade, a transferência cada vez maior dessa "função de
nua entre a habilidade, o domínio, sim, a beleza literária da escrita em
tesaurização mnêmica" 17 ao escrito acarreta, simultaneamente, sua
Platão e sua denegação da importância do escrito, a afirmação do seu
democratização e sua dessacralização, 18 isto é, segundo Platão, a
caráter ilusório e enganador, que deveria levar um autor tão prevenido,
banalização até a perversão da atividade do lembrar. Mnemósyne
se não a se abster dessa perigosa atividade, pelo menos a restringi-la
retira-se e deixa lugar à fidelidade exangue do rastro escrito, acessível
consideravelmente — de maneira muito semelhante à prática da
sexualidade tal como prega a moral sexual das Leis. Minha proposta a todos, mas —ou talvez, segundo Platão, muito mais por isso mesmo
aqui não é de resolver esse paradoxo, mas de deixar, mais uma vez, — desprovido do segredo que garantia a plenitude da palavra reme-
ressoar esse enigma, de escutar o que ele nos revela da escrita filosófica, moradora. Teríamos aqui já um primeiro fenômeno de "desauratiza-
da realização dessa escrita, mas também de seus desejos e de seus çao", 19 para usar essa categoria de Walter Benjamin que descreve as
fantasmas. Duas figuras mitológicas poderão nos ajudar nisso, duas transformações históricas que "a reprodutibilidade técnica das obras
figuras que atravessam o texto do Fedro para melhor ser expulsas do de arte" provoca na arte contemporânea; categoria que pode ser
palco filosófico autêntico tal como o define Platão: Helena e Adonis. retomada de maneira mais ampla para designar este fenômeno recor-
Devemos primeiro lembrar com Marcel Détienne, Henri Joly e rente no qual a democratização, ou melhor — pois se pode discutir da
Mario Vergetti, 11 que se a escrita já tem direito de cidadania e, em realidade e amplitude dessa democracia —, o fim da exclusividade de
particular, força de lei na Atenas do século IV, no entanto o verdadeiro um produto cultural, privilégio de uma classe ou de uma elite, parece
logos político continua sendo a palavra oral, cultivada com cuidado acarretar, por uma espécie de necessidade infeliz, o empobrecimento,
nas escolas de retórica e acerbadamente disputada na assembléia dos sim, a vulgarização da significação que se torna insípida: inversão
cidadãos. Pouco a pouco, porém, cresce a importância do texto escrito eficaz e perversa da promessa estética. Nesse contexto, a desconfiança
graças a uma difusão cada vez mais ampla do livro. A esta "verdadeira de Platão prefigura o pessimismo de um Adorno, suas criticas ao
revolução cultural", 12 a esta "inflação da escrita"» Platão reage pela
aviltamento e ao emburrecimento circundantes nos surpreendem por
desconfiança. Essa desconfiança não diz tanto respeito à escrita
14 Henri Joly, idem, p. 112. Mario Vergetti, op. cit., pp. 392 ss.
9 0 que constitui, simultaneamente, a fraqueza e a grandeza do livro clássico de A. J. 15 Henri Joly, idem, pp. 112/113.
Festugiere, Contemplation et vie contemplative selon Platon, 1935. 16 Sobre o papel essencial do poeta, ver jean-Pierre Vernant, Mito e Pensamento entre os Gregos,
10 Ver, entre outros, Paul Ricoeur, Étre, essence et substance chez Platon et Aristote (Société em particular o capítulo 2, Difel; e Marcel Détienne, Les maures de Vérité dnas la ate
d'édition d'enseignement supérieur, 1982). archaique (Paris: Maspéro, 1967), capítulo 11.
11 Marcel Détienne, L'invention de la mythologie (Paris: Gallimard, 1981), em particular o 17 Segundo as palavras de Joly, op. cit., p. 113.
capitulo II, "Par la bouche et par l'oreille". Do mesmo autor, L'écriture et ses nouveaux 18 Sobre as ligações essenciais entre escrita e democracia na Grécia, ver Vernant, Les origines
objets intellectuels en Gréce, introdução à obra coletiva citada em nota n. 4. Ver também dela pensée grecque (Paris: PUF, 1962), pp. 46-49; e Détienne, L'invention de la mythologie,
Henri Joly, op. cit., pp. 112 ss. e Mario Vergetti, op. cit., pp. 402 ss. op. cit., capitulo II; do mesmo autor, ver também a introdução citada na nota n. 11.
12 Mario Vergetti, op. cit., p. 402. 19 Ver a proximidade ente "aural" e "oral" in Détienne, L'invention de la mythologie, op. cit.,
13 Henri Joly, op. cit., p. 112. pp. 51 e 61.
54 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA MORTE OA MEMÓRIA. MEMÓRIA DA MORTE 55
E HISTÓRIA
sua amarga lucidez; suas tentativas de restauração
esotérica são tanto neskein) das Idéias, discurso pronunciado oralmente no impulso da
mais dignas de interesse quanto terminam fracassando. inspiração divina. Como o observa finamente Joly, Platão usa a
Mas voltemos à decadência da memória na citação de autoridade egipcia para melhor corroborar sua própria
escrita segundo o
Fedro. A démarche de Platão/Sócrates é bem conhecida: no fi páginas (!)
m desse teoria do conhecimento, exposta pela maior parte nas
longo diálogo sobre o verdadeiro Eros e, inseparavelmente,
sobre o anteriores. 23 É a exterioridade da escrita, oposta à visão anterior da
verdadeiro Logos, há de determinar o valor real dos discursos escritos,
alma, que faz dela um pharmakon artificial, tanto mais perigoso
isto é, estabelecer uma vez por todas a diferença real, a
entre os produtos quanto ele é ainda mais sedutor. Assim, seguindo a palavra
brilhantes e enganadores da sofística e a palavra viva e
filosofia; ou ainda, há de salvar o belo Fedro da sedução
verdadeira da escrita — Rousseau dirá os livros — produzirá insuportáveis falsos
da sofistica sábios, cheios de um saber artificial e artificioso. A oposição interior-
e convertê-lo à austera disciplina da filosofia. Sócrates
uma história lendária que parece um mito, mas que ele
conta então exterior recorta, no texto platônico, aquela entre natureza e artificio;
inventou sem ao
dúvida para as necessidades do momento, sobre a ela está no coração da ambigüidade essencial do pharmakon,
origem da escrita:
há muito tempo, no Egito — portanto no pats que mesmo tempo remédio que cura e veneno que traz a morte, uma
serve aos gregos 24
Por isso, como o
em particular a Platão, de paradigma de antigüidade ambigüidade tão bem ressaltada por Derrida.
e de sabedoria26 25 condena toda escrita, mas ele
— o jovem deus Thot, o inventor dos números e dos jogos realçaram Derrida e Joly, Platão não
de dados, a escrita interior à alma,
apresentou sua nova invenção, a escrita, ao deus
soberano e solar, só julga verdadeiramente digna da filosofia
almas
Tamuz, modelo do rei-juiz arcaico cuja palavra tem força de lei. A aquela que é "semeada" e "plantada" pela "arte dialética" "nas
escrita deveria resolver os problemas de registro e de dos discípulos" (276 e/277 a). Essa idéia de uma inscrição interior
acumulação do
saber; Thot a define como uma "droga para a memória será retomada por toda tradição filosófica, de Agostinho a Rousseau,
e para a
sabedoria" (mnemes te gar kai sophias pharmakon o fenómeno
274 e). Tamuz, o rei talvez até Chomsky. Como muitas vezes em Platão,
solar que não precisa escrever para garantir a durabilidade
de sua material e sensível — aqui a escrita, no Banquete por exemplo a
palavra, contradiz essa definição: a escrita só fará aumentar o esque- um processo
geração — que possibilita a descrição metafórica de
cimento dos homens pois eles colocarão sua confiança "em geração na beleza —, esse fenómeno é
signos espiritual — inscrição na alma,
exteriores e estrangeiros" (exothen hypo'allotriôn typôn) ao invés como se a
treinarem a única memória verdadeira, a memória
de rebaixado, até rejeitado e condenado no fi m do raciocinio,
interior à alma i magem, necessária ao desdobramento do pensamento, devesse, depois, ser
(ouk endothen autous hyp'autón anamimneskomenous [275 a]). Vem cuidadosamente afastada desse pensamento mesmo que, no entanto, dela
então o juizo famoso: "Não é para a memória,
é para a rememoração
que descobriste um remédio." 21 Distinção tirou sua origem eseu impulso. Não é, aliás, por acaso que Platão critica,
famosa que retoma as
categorias da filosofia platónica do justamente, na escrita, no sentido literal, seu caráter de i magem: ela
conhecimento, especificamente
"a anamnese e a hypomnese, a reminiscência da essência e a lembran- está próxima demais da pintura, dessa "zoo-grafia" que pretende
ça de escrita". 22 Distinção que corresponde, igualmente, à (d)escrever o vivo, mas que só é cópia morta sob a ilusão de vida,
oposição droga
cortante entre o discurso escrito por Lisias e lido por Fedro no início si mulacro (274 d-e). A escrita não é, portanto, somente uma
do diálogo, discurso tão sutil quanto vazio, e o segundo discurso de que promete a cura e traz a morte; ela completa, por assim dizer, sua
Sócrates, consagrado, justamente, à natureza da alma, à sua vida se assemelham mais a caracteres do
interior que lhe permite, quando encamada, de lembrar-se 23 Henri Joly, idem, nota que os "grammata" de Thoth
(anamim- alfabeto grego que a hieróglifos; Mario Vergetti observa, igualmente, que Platão substi-
tuiu, em razão da argumentação socrática, Thoth a Palámedo ou a Prometeu, ambos
20 Ver Henri Joly, op. cit., primeira parte, capitulo 11, pp. 37-40. Do mesmo autor, "Maton inventores da escrita na tradição lendária grega (op. cit., p. 390).
égyptologue", in La question des étrangers (Paris: 24 Ver Derrida, op. cit.
Vrin, 1992), PP. 97-100. op. cit., p. 118; Derrida, op. cit.; Vergetti, op.
21 Fedro, 275a: "oukoun mnemes, 25 Ver Henri Joly, Le renversement platonicien...,
alla hypomnèseõL pharmakon heures." Cito segundo a edição
de Léon Robin (Paris: Belles Lettres, 1978). cit., p. 418, que lembra a metáfora da alma como um "livro escrito pelo escriba interior
22 Henri Joly, Platon égyptologue, op. cit., p. 100. "
que sao a memória e as sensações (Filebt' , 38e-39a).
56 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA MORTE DA MEMÓRIA, MEMORIA DA MORTE 57
E HISTORIA

natureza de artifício pela sua pertença ao domínio da 30


mimesis artística suplementaridade da escrita e que Deleuze chama o "desviar" essen-
(e não filosófica) que, sob a aparência de vida, só engendra cial" 31 (détournement essentiel), "o ponto de vista diferencial , igual-
morte.
Estamos aqui, se~rrndo a expressão deleuziana, em plena "seleção mente o "devir-louco", "o "devir-ilimitado" do simulacro.
dos pretendentes" 2 Seleção que é, realmente, uma Esse "devir-louco " c . ... I so
das questões
maiores do Fedro; ela caracteriza a divisão dialética escrito que, segundo Platão, uma vez entr blico
que deve separar
o amor autêntico de seus similes enganadores, a retórica autêntica m o perigo de maus e II os Ion e da de
por to I.
(filosófica) das outras que são tidas por retóricas, mas só são rotinas. Platãõ de
-
ve aqui a estranha aut,nomia do e
sen
Ora, essa partilha não é arbitrária mesmo se é, às vezes, irônica ou em relação ao escritor: desti s • s o à leitura uma ativida r -
parodfstica, como o ressalta Deleuze. 27 Ela pretende seguir a dinâmica cinde m . -m da resença do autor, o livro .ode ou não ser
do vivo, justamente (264 c), ela deve recortar o real como "um bom compreendido como esse último o desejava que fosse, pode transmi-
trinchador", obedecendo às "articulações naturais" (265 e) — uma tïróu não o que seu autor queria transmitir. Em termos de filiação,
metáfora singular, aliás, na qual a organização do vivo permite umã metáfora cuja i m ortancia na obra de Platão foi ressaltada por
recortar melhor o animal morto, destinado a ser comido. Enfim, a Derrida, o filho, ele também, quando deixa a casa paternal, não
dialética deveria assegurar o triunfo da ordem natural e viva, a da significa tanto a continuidade do pai que muito mais, mesmo se for
interioridade psíquica, sobre a ordem ou melhor, segundo em secreto, sua possível substituição, pois o pai não é mais impres-
Platão,
sobre a desordem artística e artificial portadora de morte, a da cindível à sobrevivência do herdeiro; o filho anuncia e pronuncia a
exterioridade sedutora. O processo da escrita é, portanto, mais que a morte, possível e segura, do pai. Contra a idéia talvez simpática mas
condenação de um saber livresco, artificial e exterior; não um tanto ingênua, até tola, que os livros possam representar seu
se trata
simplesmente, de defender o espírito contra a letra, 28 a autor, contribuir à sua imortalidade narcísica, Platão já afirma pe-
palavra viva
contra a repetição morta. Deve-se lutar, com todas as forças, remptoriamente que o escrito é desvio, afastamento, que ele não leva
contra
o enredamento sedutor do escrito, da sofistica e da retórica que de volta à origem, mas ajuda, pelo contrário a poder dela prescindir.
ameaçam, graças à sua estranha proliferação infinita, o ordenamento Ausência afinal bastante suportável, talvez bem-vinda, pois a gente
mesmo do vivo. Sob os jogos aparentemente inocentes da escrita, a pode se sair muito bem sem voltar à casa paternal, sem pedir ao autor
morte agarra o vivo — aliás Thot é igualmente o deus a garantia da leitura justa, sem tornar a subir até a fonte ou até o
da morte nos
egipcios. Poder oculto do pharmakon, esterilidade dos jardins de princípio. E claro que Platão, por sua parte, se esforça em lutar contra
Adonis, filho indigno e bastardo que deixa a casa paternal, todas os prazeres e contra as tentações dessa perigosa liberdade, dessa
essas
comparações opõem à plenitude resplandecente da palavra viva dispersão arriscada. Seria preciso conseguir abolir essa defasagem
não
tanto o nada (a morte em sua simplicidade radical), mas algo essencial ao escrito; contra a infidelidade inerente à escrita, Platão
mais
inquietante, justamente, que o nada, algo como a morte operando no desenha o ideal de uma palavra primeira, inequívoca, próxima de sua
ser vivo: os encantos do simile enganador, a i magem ilusória que origem divina na fonte interior da alma. Sem dúvida, ele sabe em
toma presente o ausente e, ao fazê-lo, mina a plenitude da presença, demasia o quanto a linguagem é incapaz de dizer verdadeiramente o
essa espécie de corrosão eficaz do não -ser29 muito mais perigosa ser verdadeiro, to on onten; defende, porém, uma espécie de palavra
que
a pura negatividade: aquilo que Derrida descreve como o efeito de ao mesmo tempo luminosa e transparente onde os próprios termos
contribuiriam à sua disparição em proveito da coisa mesma — uma
26 Gilles Deleuze, Différence et répétition, (Paris:
PUF, 1968), pp. 82-95. Logique du sens (Paris:
Minuit, 1969), pp. 347-361, em particular p.
355. " Remarques", in Nos Grecs et leurs
exigência que é a conclusão do Crátilo. Essa linguagem, cuja tarefa
modernes, textos reunidos por Barbarin Cassin,
(Paris: Seuil, 1992), p. 149.
27 Sobretudo em Différence et répétition, op. cit., passagem respeito da escrita como
citada. 30 Derrida, op. cit., retomado por Vergetti, op. cit., pp. 416 ss. a
28 Como o interpnta René schaerer em La question platonicienne
(Paris: Vrin, 1969), criticado système vicariant.
por H. Joly, Le renversement platonicien..., op. cit.,
p. 123, nota 123. 31 Deleuze, Logique du sens, op. cit., p. 350.
29 Ou melhor, segundo Deleuze, Différence et répétion,
op. cit., p. 89: "(non) - être". 32 Idem, p. 553.
58 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA DA MEMORIA, MEMÓRIA DA MORTE 59
MORTE

última seria de se fazer esquecer para que somente a essência consiga no mais tardar a partir de Nietzsche, a tradição filosófica ocidental
"dizer-se", persegue e assombra até hoje o discurso filosófico e o faz, fosse obrigada a se confrontar cada vez mais a este recalcado amea-
muitas vezes se opor ao "discurso opaco" da literatura 3 3 Sofística e çador que, graças à condenação platônica e, mais tarde aristotélica,
retórica, literatura, acrescentaríamos hoje, são, pelo contrário, as artes 35
recebeu o nome de sofística. Para melhor circunscrever os riscos
da não-transparência, vivem da espessura das palavras e dos signos, que a linguagem, em particular a escrita, parece fazer correr à filosofia,
da profusão abundante dos ornamentos onde a referência se perde
gostaria de ater-me aqui à descrição do caminho, quase invisível, que
sem volta para a admiração estupefata de Fedro e para a indignação, a figura de Helena, ainda ela, inscreve como um sulco no texto do
fingida ou verdadeira (!), de Sócrates.
Fedro.
Este efeito de desrealização que o poder das palavras opõe à Como o ressaltou muito bem Nicole Loraux, "Helena assombra o
evidência dos fatos, ninguém melhor que o grande sofista Gorgias o 36
talvez mesmo o Fedro inteiro. Como
segundo discurso de Sócrates",
tinha celebrado. Pode-se perguntar com razão se o Fedro, com seu
atravessa, invisível em sua capa branca, a cidade de Tróia para obedecer 37
a
elogio conjunto do amor sincero e do discurso verdadeiro, não Afrodite e, contra sua própria vontade, encontra-se com o belo Páris,
deveria ser lido e ouvido como uma espécie de resposta a um outro assim também Helena percorre, como que subterraneamente, o texto
elogio famoso, o Elogio de Helena, no qual Gorgias celebra os poderes
si milares de Eros e de Logos. platônico. Ela é evocada, primeiro, antes do grande discurso de Sócrates,
Derrida ressalta a proximidade do
para justificar a necessidade da palinódia de Estesícoro (243 a-h); o seu
contexto e do vocabulário: se a escrita, em Platão, é definida como
rastro ressurge, no fim do diálogo, no mito socrático-egipcio da
um perigoso pharmakon, é ao próprio logos,
em razão de sua omnipo- invenção da escrita. Com efeito, para os contemporâneos de Platão
tência sobre a alma, que Gorgias atribui esse nome. 34 Essa proximi-
essa droga egípcia não podia deixar de lembrar uma outra, aquela que
dade só faz ressaltar a oposição das intenções: enquanto Platão rejeita
Helena coloca no vinho de Menelau e de seus hóspedes no Canto IV
os encantos da escrita para afirmar com veemência a primazia de uma 8
palavra transparente, que flui da origem divina até a alma apaixonada da Odisséia 3 Essa "droga engenhosa" que recebeu da rainha Poli-
damna provém, ela também, "do Egito", "país onde a terra, fértil em
pela verdade, para Gorgias, ao contrário, o logos subverte as evidên-
trigo, produz também símplices em abundância, com os quais se
cias, derruba as hierarquias estabelecidas, mistura e confunde, tal um
jogador emérito, as cartas do baralho que pareciam claras. Gorgias preparam misturas, umas benéficas, outras nocivas". Exatamente
declara Helena inocente pois ela foi arrebatada ou pela violência como a escrita, o pharmakon egípcio de Helena faz esquecer; ele é
"um calmante da dor e do ressentimento", que faz "esquecer todos
física, ou pela violência do amor, ou, então, por aquela do discurso
os males", a tal ponto, acrescenta Homero, que quem dele prova não
tão forte quanto a violência física, tão irresistivel quanto o amor. Ao
chora mais durante um dia inteiro "nem mesmo que morressem sua
fazer isso, Gorgias se ri da culpabilidade da adúltera e da indignação
mãe e seu pai, em sua presença, nem diante dos olhos, seu irmão e
moral a respeito da infiel, pois a história se resolve num jogo de forças
cujo mestre incontestado é o logos; poder cuja prova viva é seu próprio filho fossem mortos com o bronze": droga benéfica portanto pois
texto, com sua virtuosidade extraordinária: o Elogio de Helena também
35 A esse respeito, ver Barbara Cassin, idem, e, da mesma autora, a coletânea de artigos,
é, inseparavelmente, o elogio do discurso. Ensaios Safisticos, siciliano, 1990, em particular a introdução, a terceira e a quarta parte.
Le féminin et
Não me arriscarei aqui mais profundamente nesse debate que 36 Nicole Loraux, fantôme de la sexualité", in Les expériences de Tirésias.
l'homme grec, Gallimard, 1989. Ver nota 3 desse ensaio, p. 360: "Héléne hante le second
opõe Platão a Gorgias e que, até hoje, e com uma semelhança discours de Socrate: 248cd (allusion 8 Adrasteia, épithète de sa mère Némesis); 251a (le
surpreendente, impera em numerosas discussões filosóficas como se, beau visage du jeune garçon est, comme celui d'Hélène, d'aspect divin et, comme lui, fait
frissonner); 252a (tout quitter pour le bel objet, comme Héléne chez Sappho, fragment
33 Ver H. Joly, Le renversement platonicien..., 16, Campbell); 252d (faire de l'aimé un agalma), etc." O artigo de Nicole Loraux orientou,
op. cit., em particular nota 101, p. 121, na qual de maneira decisiva, minha leitura do Fedro.
Joly cita Todorov.
37 Ilíada, Canto III, Versos 380-450.
34 Derrida, op. cit. Ver também Barbara Cassin, 'Du faux ou du mensonge ã 38 Odisséia, Canto IV, versos 219-233. Cito a tradução de Antônio Pinto de Carvalho (Editora
pseudos â plasma)", in Le plaisir de parler, la fiction (de
de Cerisy (Paris: Éditions de Minuit, 1986).
textos reunidos pela mesma autora, Colóquio Abril). Ver a este respeito Barbara Cassin, Ensaios Sofísticos, op. cit., pp. 299 ss.: "Ainda
Helena: uma Sofística do Gozo".
60 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTORIA MORTE DA MEMORIA. MEMORIA DA MORTE 61

permite aos hóspedes de Menelau banquetear e dormir


em paz; mas tinha perfeitamente reconhecido sob seus farrapos de mendigo, como
droga inquietante igualmente pois pode provocar o "banhou" e o "ungia de óleo" 43 assim Helena reúne, em alguns
uma beatitude tal
que os laços familiares se dissolvem na indiferença. versos de distância, a terna delicadeza de Euricléia e a mortal perfídia
Helena, a esposa
que foi reconduzida para casa e que parece ter se ajuizado,
continua, das Sereias.
porém, em Homero, a ser a senhora desta força da qual a Odisséia não Essa ambigüidade essencial que, como o sublinha a Ilíada, tam-
pára de falar: este poder de consolo e de esquecimento que, no bém faz Helena se insurgir contra si mesma, se xingar e odiar a si
mais
íntimo do seu ser, sustenta a palavra poética
em sua tarefa de mesma, Æ4 é a do pharmakon, certamente, e também, conjuntamente,
rememoração e, em particular, a Odisséia enquanto poema. Essa a da imagem. Pois Helena é primeiro e antes de tudo a imagem da
dádiva preciosa que o aedo recebeu de Apolo, deus
da luz e da medida, imagem, personificação de tudo aquilo que o eidôlon comporta de
é, no entanto, inseparável de seu revés ameaçador, essa potência
de encantos e de perigos. Primeiro porque ela possui essa beleza resplan-
esquecimento, de desintegração, de regressão e de morte contra a qual decente que faz com que, desde que aparece, Helena desarma até o
39
Ulisses deve lutar sem trégua para reencontrar Ítaca. Poder que 45
coração dos sábios anciões de Tr6ia. Helena, de véus brancos
descrevem numerosos episódios da Odisséia, os dos Lotófagos, de ofuscantes, é o próprio esplendor do aparecer sensível, ela possui a
Circe ou de Calipso e, em particular, o das Sereias cujo 46
canto sublime graça e a glória inefáveis da beleza. Ela se assemelha As deusas pois
e mortífero foi várias vezes interpretado como a própria imagem
do esse esplendor, para os gregos, só pode ser de origem divina; mas essa
canto poético. 40 Ora, chama atenção o fato da voz das 47
Sereias exercer semelhança mesma é fatal e a destina a ser um flagelo que ameaça
sobre os navegantes a mesma atração perigosa que a voz de Helena os mortais em sua integridade. O esplendor da beleza se condensou
sobre os guerreiros aqueus, encerrados no cavalo
de madeira. Mene- a tal ponto divinamente em Helena que ele acaba, paradoxalmente,
lau, o marido, não parece hesitar nenhum segundo
em relembrar esse por encobrir a mulher real de carne e ossos que era a jovem rainha
ardil, pouco honroso para ele, aliás, de sua mulher traiçoeira de Lacedemona. Esse acréscimo de beleza, dádiva de Afrodite, torna
andando
em redor do cavalo de Tróia e imitando a voz de cada uma das esposas o corpo de Helena estranhamente ausente, ausente a si mesmo
deixadas em casa, chamando cada guerreiro grego pelo seu nome para primeiro, 48 mas também aos outros para quem ele parece ser muito
ele sair do esconderijo e ser morto pelo seu terceiro
marido, Deifo- mais a própria encarnação do desejo que a figura de uma mulher real,
bo. 41 Para resistir As vozes de Helena e das Sereias,
que, ambas, mortal, sofrida ou alegre. Como a imagem, que permanecia primeiro
despertam esse i mpulso
2 fortíssimo de "pular para fora" e de "respon- ligada a seu modelo, acaba, quando a obra estética for bem-sucedida,
der sem demora", Ulisses, por duas vezes, usa de
violência contra por ganhar sua independência e prescinde muito bem do modelo
seus companheiros e contra si mesmo para que todos se mantenham originário, instaurando uma outra realidade que periga ameaçar a
imóveis e como surdos. Certamente, essa narração surpreendente tem
realidade do real em sua exclusividade primeira, assim também a
por fim primeiro, neste momento preciso do Canto IV, ilustrar o valor
beleza resplandecente de Helena acaba por desapossar a mulher
de seu pai aos ouvidos de Telémaco atento. Mas
ela também ressalta concreta de sua realidade carnal. Não há de se espantar, nessas
a extraordinária ambigüidade de Helena que,
algumas linhas antes, condições, que puderam florescer, nos gregos, outras versões da
tinha contado como protegeu Ulisses contra os troianos, enquanto
o mesma lenda, segundo as quais a verdadeira Helena nunca teria ido
39 Ver a famosa interpretação de Adorno e Horkheimer da Odisséia a Tróia, mas teria ficado... no Egito, enquanto os aqueus e os troianos
como sendo a descrição
da constituição do indivíduo burgu@s, simultaneamente racional e mutilado, que renun- se trucidavam por um fantasma, por uma nuvem tão irradiante
cia As tentações e às delícias do mito ( Dialektik der Antkla mi ng,
Verlag, 1969). 1947, reedição Fischer
40 Maurice Blanchot, Le livre A venir (Paris: Gallimard, 1959), Primeira Parte: 43 Idem, verso 252.
chant des
sirènes. Ver igualmente Tzvetan Todorov, Poétique de la prose (Paris: Seuil,Le1971), 44 Nicole Loraux, op. cit., pp. 234-236.
pp.
70/71. 45 Ilíada, Canto III, versos 156-160.
41 Ver Barbara Cassin, "Ainda Helena...", op. cit. 46 Idem.
42 Odisseia, Canto IV, verso 283. 47 Pema, idem; ver Nicole Loraux, op. cit., pp. 234/235.
48 Como o ressaltou cam força Nicole Loraux, op. cit., p. 236.
62 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA MORTE DA MEMÓRIA, MEMÓRIA OA MORTE 63

quando irreal, ou ainda por um nome separado do corpo a que ele valem uma guerra, uma suposição absurda que o varonil Heródoto
devia pertencer. 49 Há de se admirar mais, em compensação, do fato se apressa em condenar ironicamente, no início de suas Histórias, para
53
de Platão, por duas vezes segundo Nicole Loraux, 50 ter assumido melhor traçar a fronteira entre o discurso do mythos e aquele do logos.
resolutamente essa última versão da lenda, da autoria, segundo a Helena pode ser a mais bela das mulheres; seu estranho poder não nasce,
tradição, do poeta Estesícoro: na República 51 e, sobretudo, no nosso porém, da plenitude da perfeição, mas, ao contrário, daquilo que, através
diálogo Fedro, onde a palinódia de Estesícoro é citada como exemplo da princesa estrangeira, sempre dolorosamente se esquiva. Pois Helena,
por Sócrates para justificar a necessidade de um segundo discurso como o diz otimamente Nicole Loraux, "é ela mesma e mais que ela
sobre o amor verdadeiro (243 a-b). mesma", 54 como também, podemos notá-lo, 55 a imagem, o simulacro, a
Se encarna, sim, a "coisa sexual , não é porque ela seria uma
"
Por que essa decisão sem rodeios embora Platão, em matéria de escrita.
mitologia e em particular no Fedro (229 c — 230 a) seja geralmente espécie de mulher fatal irresistível sobre a qual os homens não poderiam
muito prudente? Sob essa questão de detalhe podemos adivinhar deixar de se precipitar. E muito mais porque sua divina beleza lhes
outras escolhas primeiras que a filosofia de Platão se deu por tarefa lembra que, além de toda precipitação e de toda possessão, o jogo do
defender, no sentido duplo do termo: fundar pela razão e proteger aparecer e da semelhança continua inalterado, em sua gratuidade e sua
contra os perigos, talvez contra os inimigos que poderiam ameaçá-la. bela indiferença, sem que nenhum homem possa dele se assenhorar,
Primeiro talvez, Platão não resiste, no Fedro sobretudo, à vontade de mesmo sendo o marido o mais perfeito ou o mais fogoso amante. Assim,
dar uma alfinetada em Homero, o educador da Grécia que deve ser, como ressalta tão bem Nicole Loraux, a sedução exercida por Helena é,
ele mesmo, reeducado, como o faz o livro III da República. Por tabela, sem dúvida, profundamente sexual, mas justamente por aquilo que a
Gorgias também é alcançado, ele que acredita ingenuamente em sexualidade comporta de "fantasmático" e, inseparavelmente, de "verda-
Homero embora se achasse tão esperto. Mas a versão de Estesfcoro deiro", 56 pela distância que cava em nós em relação a nós mesmos e aos
deve ter, aos olhos de Platão, um outro mérito, mais decisivo ainda: outros, pelo afastamento que provoca no mais intimo de nosso corpo. Sem
o de estabelecer uma distinção clara, sim geográfica, entre o domínio essa dimensão fantasmática não poderia haver Eros; é bem isso que faz a
das imagens, dos simulacros, dos símiles enganadores — Tróia — e o realidade do fantasma cuja potência preocupante Platão se aplica a com-
da realidade, da verdade e da constança — como por acaso no Egito! bater. E. notável, nesse contexto, observar que Helena, em Homero, nunca
A chacina sob os muros de Tróia só prova então a miséria desses é descrita com todos os atributos físicos que um anúncio de revista
homens "insensatos" que "lutam para possui-los [isto é, as sombras especializada não deixaria de enumerar. Fala-se de Helena e da dominaçãd
e os esboços do verdadeiro prazer] como se Lutou em Tróia pela que exerce —e isso basta, com efeito, para nos persuadir do quanto ela é
sombra de s2 Helena, no dizer de Estesícoro, por não se conhecer a desejável.
verdade" "Por não se conhecer a verdade": com efeito, se a verdade Essa dinâmica não deixa de lembrar uma outra descrição de Eros,
tivesse sido (re)conhecida, não teria havido nem guerra, nem morte, a de Platão, justamente. O verdadeiro amante platônico descobre, ele
nem sangue, nem ao mesmo tempo, poesia, nem Ilíada, nem Odisséia. também, o quanto qualquer tentativa de possessão do amado é vã
Assim, a tarefa da reta filosófica será de nos libertar das paixões, da poiso verdadeiro "objeto" do amor transcende qualquer apropriação.
guerra e da morte que acarretam, mas também de nos livrar dessas
Se o Banquete e o Fedro realçam esse caráter inesgotável da verdadeira
belas narrativas enganosas que nos encantam. busca amorosa, é para demonstrar não tanto que , a sexualidade é má,
O que significaria Helena, em compensação, se a ficção de mas sim; que o verdadeiro alvo do amor é a imortalidade. Essa
Homero se revelasse verdadeira? Não tanto que algumas mulheres
53 Heródoto, Historiai, Livro I, § 4; o mesmo Heródoto é partidário da versão anti-homérica
49 Ver Euripides, Helena, obra na qual a alternativa comma - sorna é o fia da trama. (e moralizadora) segundo a qual Helena teria ficado, cheia de virtude e intocada, no Egito
50 Nicole Loraux, op. cit., nota da p. 240. (Livro II, § 112-120).
51 República, Livro IX, 586 h-c. 54 Nicole Loraux, op. cit., p. 234.
52 agnoiai ton aMthous, idem, ressaltado por mim, JMG. Trad. J. Guinsburg (Sao Paulo: Difel, 55 Idem, p. 233.
1965). 56 Idem, ver as conclusões a respeito de Menelau na Helena de Euripides, pp. 250-51.
MDRTE BA MEMÓRIA. MEMÓRIA DA MORTE : 65
64 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

demonstração se encontra no centro do discurso de Diótima na obedecer (253 e); em suma, esse cavalo é tão feio que ninguém se
dedução muito rápida, em todo caso bastante "sofística", do desejo engana. Nada tem dos encantos da bela Helena ou da bela imagem,
de imortalidade a partir daquele de ficar sempre em presença do que parecem bem mais difíceis de serem domados. É portanto melhor
bem. 57 Esse desejo de imortalidade justifica igualmente (pois uma deixar a verdadeira Helena aos cuidados de um rei egípcio e fazer do
justificativa se faz necessária) que somente o amor heterossexual, seu fantasma o único responsável por tantas infelicidades que os
homens sofrem "por não se conhecer a verdade"; talvez então, com
produtor de filhos legítimos, reconhecíveis por seu pai, seja admitido
na cidade das Leis. Se Platão, portanto, reconheceu muito bem o muita paciencia e muito esforço, a filosofia consiga lhes fazer reco-
nhecer a verdade e torná-los mais felizes.
caráter, num certo sentido, insaciável de Eros, é para melhor afirmar
o laço entre imortalidade e amor. Ora, se Helena afirma, ela também, Porque encarna o laço profundo da sexualidade à morte, Helena é
como a irmã de Adonis, esse rapaz belo demais que amaram Afrodite e
a profunda relação da sexualidade à perseguição do inalcançável
naquilo que essa comporta de arrebatamentos e de êxtases, ela Perséfone. Oriundo da união incestuosa de sua mãe com seu avô, morto
antes de ter alcançado a idade de casar e de procriar filhos legítimos,
também descobre que essa busca é necessariamente ligada à cruelda-
de do esgotamento, à vaidade da luta, à perda e à morte. Como a Adonis encarna uma sexualidade "exuberante" 59 anárquica e transgres-
siva, que ameaça a ordem, duramente conquistada, da família e da
etimologia, justa ou falsa, pouco importa, de seu nome já o dizia para
os Trágicos gregos e, mais tarde, para Ronsard, Helena remete ao cidade. 60 Contra as interpretações de tipo frazeriano que faziam dele
verbo he/ein, enlevar, raptar, isto é, aos "verbos 'furtar', 'arrebatar', uma divindade da vegetação, cuja morte precoce anunciaria a renascen-
'pilhar', 'levar embora', no meio dos quais se insinua, como um ça primaveril, Marcel Détienne insiste de maneira convincente na unida-
58 b1
sinistro denominador comum, o verbo 'matar "' . O rapto de Helena de estrutural entre sedução e conupção que funda essa figura. Essa
não significa somente as alegrias do "arrebatamento" amoroso; acar- articulação se manifesta claramente no ritual dos jardins de Adonis cuja
62
reta também e sobretudo sua funesta inversão: a partida de tantos mais antiga descrição se encontra, justamente, na conclusão do Redro
heróis e o rapto de suas vidas sob os muros de Tróia e, mais tarde, nas (276 b). Esses jardinzinhos artificiais eram plantados e regados com água
tempestades do retorno. quente pelas mulheres, na maioria das vezes pelas mulheres livres em
Talvez consigamos, agora, precisar melhor par que Platão, contra companhia de seus amantes, em oposição às esposas legítimas con-
Homero, escolheu Estesícoro, contra Helena em Tróia, Helena no sagradas à guarda das famílias. Eles floresciam rapidamente e morriam
Egito. Helena em Trola desencadeia os poderes conjuntos da bela aparên- em oito dias, à imagem da floração e da morte precoces do belo Adonis.
cia e da morte. Se forem tão fortes quanto o cantam a Ilíada e a Odisséia, Essa existência artificial, sim contranatureza, se caracteriza, portanto, por
então pode-se com direito duvidar que o logos filosófico consiga, seu esplendor e por sua esterilidade; Platão a opõe ao ritmo natural e
apesar de toda sua vontade de verdade e de luz, domá-los. Lembrare- paciente da verdadeira semeadura que o bom agricultor tem por 63
mos aqui que o Fedro contava um outro episódio de domesticação: o tarefa conhecer e respeitar se desejar que sua semente (sperma)
do mau cavalo negro pela ação conjunta do cavalo branco e do tenha frutos. Nessa Longa comparação que encerra a digressão do
cocheiro, thumos e nous, na Luta que a alma trava consigo mesma
59 Retomo aqui uma das freqüentes traduções do "pollou spennatos mestos" que designa o
quando vê o belo rapaz desejável. O que possibilita, sem dúvida, a rapaz rebelde às regras sexuais da Cidade (Platão, Leis, 839b).
vitória (freqüente) sobre o cavalo negro é também o fato dele ser 60 Sobre Adonis ver o livro de Marcel Détienne, Les jardins d'Adonis. La mythologie des
aromates en Grèce (Paris: Gallimard, 1972/1984).
"torto e disforme", ter "o pescoço baixo" e "um focinho achatado" e 61 Idem, entre outros p. 236: "En conséquence, si la mythologie grecque des aromates centrée sur
"orelhas Cobertas de pêlos" que o impedem de escutar bem e de Adonis a un sens, si ces différents récits mythiques articulés les uns aux autres veulent vraiment
transmettre d travers leurs codes communs un message unique, c'est peut-être celui-ci: que toute
57 Banquete, 206a-207a. Em particular a definição 207a: "Athanasias deanankaion epithumein forme de séduction porte en soi le principe d'une menace de corruption."
meta agathou ek tdn homologemendn, eiper tou tagathon heautoi einai aei ecos estin; 62 Ainda segundo Détienne, idem, pp. 194 ss.
63 Sobre "le double registre du mot 'semence' (spenna) dans la langue et dans la pensée
anankaion de ek toutou tou togou kai tés athanasias ton erdta einai."
grecques" (Détienne, op. cit., p. 215), ver Détienne, idem, pp. 215 ss. e Derrida, op. cit.
58 Nicole Loraux, op. cit., p. 247; Loraux cita aqui Ronsard.
66 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTÓRIA
MORTE DA MEMÓRIA, MEMÓRIA DA MORTE : 67

diálogo a respeito dos méritos e dos perigos da escrita, esses jardinzi-


nencia radicais. Também é uma esplêndida imagem da verdade que
nhos artificiais, brilhantes, femininos e estéreis são a imagem do
um filósofo-escritor modelou, o qual, por um surpreendente rodeio
discurso escrito que "aquele que conhece o justo, o bom e o verda-
de escrita, nunca se nomeou como autor, mas escolheu como porta-
deiro" (276 c) não tomará a sério; no máximo, os guardará para a
voz privilegiado um homem morto há tempo, um mestre que se
velhice esquecida "como ocasiões charmosas mas fúteis de rememo- recusou a sé-10 66 — Sócrates, aquele que não escreve.
ração" (276 d). Como o bom agricultor, o verdadeiro filósofo quer
cultivar na duração para colher frutos substanciais; assim, um traba-
lha a terra enquanto o outro "planta e semeia discursos" nas almas
(276 e). Nessa última metáfora, Platão reata um com outro os temas
do amor e do discurso que o diálogo tinha tratado sucessivamente.
Os discursos da dialética são, simultaneamente, a semente apropriada
e o fruto desejado, que alcançou a maturação, o meio privilegiado da
geração e o filho amorosamente produzido (276 e — 277 a). 64 Em
oposição ao discurso escrito, entregue a uma existência efêmera e
estéril, o discurso filosófico gera e pare, além da diferença sexual e
além da vida humana, numa duração "imortal", "capaz(es) de produ-
zir sempre, imortalmente, esse mesmo efeito", ...conclui Sócrates
(277 a) em eco ao "desejo de imortalidade" de Diótima. 65 A metáfora
orgãnica da agricultura que só falava da continuidade do vivente,
portanto do ciclo da vida e da morte, deixa sub-repticiamente lugar
a uma outra figura: a de um discurso humano, certamente, mas no
entanto liberado da sexualidade, do tempo e da morte, um discurso
cujo nome seria "filosofia".

A resistência, a desconfiança, mesmo a condenação de Platão em


relação ã escrita se nos tornaram mais claras: morte da memória
talvez, a escrita é, também e com certeza, memória da morte. No
espaço restrito das páginas e dos muros, ela inscreve caracteres
passageiros que embranquecerão e se apagarão como os ossos dos
humanos em seus túmulos. Hoje, quando mesmo os deuses se torna-
ram mortais e pode-se calcular a idade na qual a Terra deverá
terminar, o ideal platônico de um discurso luminoso e imperecível
parece ser uma bela e sedutora ilusão, mais perigosa que Helena, que
i mpede o discurso filosófico de confrontar-se ã sua finitude e ima-

64 Da mesma maneira no Banquete, 210a ("...kai entauthagenndn logo us") e 210d ...pollous
kai kalous logo us kai mega)oprepeis tiktei"). A este respeito, ver Yvon Brés, La psychologie de
Platon, Paris: PUF, 1973, em particular as páginas 250-276.
65 "Tout'aei athanaton parekhein hikanoi', ver Banquete, 207a: "Athanasias de anankaion
epithumein ... ", ver também nota 57. 66 Ver Yvon Brés, op. cit., capitulo III: "Le maitre introuvable".
IV. DIZER O TEMPO

A Benedito Nunes

Que é, pais, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem


o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir
por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido
nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreende-
mos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando
dele nos falam. O que é, porconseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar
eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.

Santo Agostinho, Confissões, Livro XI, 14 (17).


Tradução de J. O. Santos e A. A. Pina.
São Paulo: Abril, Coleção Os Pensadores, 1973.

Com essa exclamação famosa, no centro do Livro XI de suas


Confissões, Santo Agostinho inicia uma interrogação filosófica que
marca, até hoje, a reflexão ocidental sobre memória, tempo e história.
Para essa mesa-redonda, escolhi alguns aspectos dessa interrogação,
e isso por duas razões principais:
— Primeira razão: porque o gênero discursivo das Confissões se situa
num cruzamento privilegiado entre história e literatura. Com a
história, ele compartilha uma pretensão de verdade como reconstru-
ção exata e verificável dos acontecimentos do passado. É o motivo
essencial da "sinceridade" que, desde Agostinho até, no mínimo,
Rousseau, quem sabe até mesmo Althusser, serve sempre de justifi-
cativa para o estranho empreendimento da narração autobiográfica.
Com a literatura, o gênero das Confissões compartilha as estratégias
70 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA DIZER 0 TEMPO 71

da ficção, em particular a construção do enredo, da trama (aquilo de maneira inseparável, uma interrogação sobre o eu narrador, sobre
que Ricoeur chama de mise en intrigue —Temps et Récit, I [Paris: Seuil, a identidade narrativa portanto, e uma interrogação sobre o sentido
1983], pp. 55 ss.); construção que remete a uma noção de verdade desse empreendimento comprido e complicado que são as próprias
não mais como exatidão da descrição, mas sim, muito mais, como Confissões, sobre a enunciação dessa narrativa portanto. A conjunção
elaboração de sentido, seja ele inventado na liberdade da imaginação dessas três questões — sobre a natureza do tempo, sobre a identidade
ou descoberto na ordenação do real. do sujeito narrador, sobre o sentido da narração —explica também o
Em vez de falar na construção do tempo e da memória primeiro recurso freqüente, cortando a narrativa propriamente dita, à oração.
na história e, depois, na literatura, prefiro, de antemão, tratar desse Agostinho não rezaria, pois, somente em virtude da sua santidade já
discurso fronteiriço, ambíguo, no qual a segurança da verificação presente, mesmo que ainda não-canonizada, rezaria muito mais para
histórica e a arbitrariedade da imaginação literária se relativizam e retomar fõlego na sua Longa busca e, simultaneamente, para se
se constituem mutuamente. certificar, diante da bondade e da eternidade divinas, do possível
— Segunda razão da minha escolha da reflexão agostiniana sobre sucesso de sua empresa. O contraste entre tempo humano e eterni-
tempo e memória nas Confissões: ela marca um corte fundamental dade divina se desdobra, pois, no contraste entre os longos e difíceis
com as tentativas da filosofia antiga (em particular em Platão e em meandros da história humana que se vive e se conta — e a omnisciên-
Aristóteles) que definiam o tempo em relação ao movimento de cia instantãnea de Deus que não precisa de nossas histórias para
corpos externos, em particular em relação ao movimento dos astros. conhecer a verdade:
"Sendo tua a eternidade, ignoras por ventura Senhor, o que te
Ao propor uma definição do tempo como inseparável da inte-
digo, ou não vês no tempo o que se passa no tempo? Por que razão
rioridade psíquica, Agostinho abre um novo campo de reflexão: o "
te narro, pois tantos acontecimentos? Assim começa o Livro XI,
da temporalidade, da nossa condição específica de seres que não só
ligando estreitamente a questão sobre a natureza do tempo à sobre o
nascem, e morrem "no" tempo, mas, sobretudo, que sabem, que têm
sentido da narração das Confissões. A essa oração inicial corresponde
consciência dessa sua condição temporal e mortal. Em particular,
uma segunda, no último trecho do Livro XI, mais precisamente no
como já o indica nossa citação inicial, que podem falar e pensar no
intervalo crucial entre as refutações das definições do tempo como
tempo. Veremos que essa ligação entre tempo e linguagem (fala do
medida do movimento dos corpos e a aquisição progressiva da
tempo/tempo da fala, escrita do tempo/tempo da escrita, música do definição agostiniana do tempo como distentio animi, "distensão da
tempo/tempo da música) será absolutamente decisiva para a própria alma/do espírito":
possibilidade de uma definição do tempo — e da memória — por
Agostinho. Em outros termos: é somente através de uma reflexão
sobre nossa temporalidade, em particular sobre a temporalidade Confesso-te, Senhor, que ainda ignoro o que seja o tempo. De
inscrita em nossa linguagem, que podemos alcançar uma reflexão novo te confesso também, Senhor — isto não o ignoro —, que digo
não aporética sobre o tempo. Sigo aqui, como em toda essa exposi- estas coisas no tempo é que já há muito tempo que falo do tempo,
ção, a leitura que Paul Ricoeur faz das Confissões, mais especifica- e que esta longa demora não é outra coisa senão uma duração de
mente sua tese que "la spéculation sur le temps est une rumination tempo. E como posso saber isto, se ignoro o que seja o tempo?
inconclusive d laquelle seule réplique l'activité narrative" (Temps et Acontecerá talvez que não saiba exprimir o que sei? Ai de mim, que
Récit, op. cit. p. 21) ("a especulação sobre o tempo é um matutar nem ao menos sei o que ignoro! (XI, 25 [32], trad. modificada).
inconclusivo, ao qual só responde a atividade narradora").
No caso específico das Confissões, e isso dá à leitura desse texto, Entre essas duas orações, Agostinho já venceu dois obstáculos
independentemente do valor de edificação espiritual que ele possa maiores à apreensão desse tempo que é condição transcendental do
ter, o prazer da descoberta que a aproxima da leitura de um romance seu discurso sobre ele, fundamento da própria fala que se furta a ela.
de aventura e de suspense, a interrogação sobre o tempo também é, Um obstáculo é, como já dissemos, a refutação das definições antigas
72 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA UIZEP 0 TEMPO : 73

do tempo segundo o movimento dos corpos. Não me estenderei aqui espiritual do lembrar em termos espaciais. Para poder descrever, pois,
a esse respeito. O outro obstáculo, muito maior para nossa sensibili- seus próprios atos, o espírito não pode se pensar a si mesmo como o
dade moderna, é a refutação dos argumentos céticos sobre a inexis- palco, gigantesco e sempre cambiante, de uma representação infinita,
tência do tempo. Argumentos angustiantes que voltarão, reiteradas não pode se pensar em termos de espaço e de representação, mas deve,
vezes, nas numerosas queixas filosóficas ou poéticas sobre a caduci- para se pensar a si mesmo, pensar simultaneamente o que está "além"
dade, a fragilidade, mais, a mortífera transitoriedade do tempo hu- dele, o que, portanto, lhe escapa, o que ele não pode nem conter nem
mano: o passado não existe, pois já morreu, o futuro tampouco, pois compreender. Agostinho expõe de maneira belíssima essa impossibi-
ainda não é, e o presente, que deveria ser o tempo por excelência lidade do espírito se apreendera si mesmo, se quiser dizer sua verdade
porque é a partir dele que se afirmam a morte do passado e a mais íntima:
inexistência do futuro, o presente, então, nunca pode ser apreendido
numa substância estável, mas se divide em parcelas cada vez menores É grande esta força (vis) da memória, imensamente grande, 6 meu
até indicar a mera passagem entre um passado que se esvai e um Deus. P. um santuário infinitamente amplo. Quem o pode sondar
futuro que ainda não é. Aos assaltos do ceticismo, Agostinho não até ao profundo? Ora, esta potência é própria do meu espirito, e
retruca — malgrado sua santidade! — por uma afirmação de crença ou pertence à minha natureza. Não chego, porém, a apreender todo
de fé, mas sim por uma reflexão critica, e, em seguida, por uma reflexão o meu ser. Será porque o espírito é demasiado estreito para se
pragmática sobre nossa linguagem. conter a si mesmo? Então onde está o que de si mesmo não
Explico melhor. Uma reflexão crítica sobre nossa linguagem: a encerra? Estará fora e não dentro dele? Mas como é que o não
i mpossibilidade de determinar onde se encontra esse tempo sempre contém? (X 8, 15).
fugidio, em particular esse presente que "não tem nenhum espaço"
("praesens autem nullum habetspatium" XI 15, 20), não acarreta, como
o querem os céticos, a inexistência em si do tempo, mas somente sua E no fim do Livro X, antes de iniciar a análise do tempo no livro
inexistência espacial objetiva. Dito de outra maneira: é a nossa pro- seguinte, Agostinho evoca a atividade psíquica e espiritual por exce-
lência, a busca de e o encontro com Deus, coma sendo o paradoxo
pensão, quase natural, de falar e de pensar no tempo em termos (em
de um movimento incessante que não acontece em lugar nenhum:
imagens, em conceitos) espaciais que nos impede de entender sua
"E não há nenhum lugar, quer retrocedamos, quer nos aproximemos,
verdadeira natureza.
e não há nenhum lugar" ("Et nusquam locus, et recedimus et accedimus,
Essa crítica já se encontrava no Livro X das Confissões, no qual
et nusquam locus") (X 26, 37).
Agostinho reconhecia que era impossível falar em termos espaciais
Pensar a memória não em categorias espaciais, mas em termos de
da memória, pois nenhuma metáfora (grandes "Campos", "Antros e
atividade psíquica: a mesma tentativa se repete a respeito do tempo
Cavernas sem número", "Vastos Palácios", " Grande Receptáculo" da
no Livro XI — o que, podemos notá-lo, é mais temerário ainda, pois
memória etc.) consegue dar conta das imagens que a memória se a memória parecia estar dentro de nós, somos nós, agora, que
"encerra" "dentro" de si. Essa "dimensão" infinita da memória pro-
parecemos estar dentro do tempo. A estratégia de crítica da linguagem
voca em Agostinho, como mais tarde em Proust, uma reação de espacial, inapropriada para dizer tanto a memória como o tempo, se
admiração e de susto, quase de medo. Mesmo que não se pense nas desdobra, no Livro XI, numa estratégia maior que poderíamos chamar
idéias inatas oriundas de Deus e sempre presentes "em" nossa memó- de argumentação pragmática, isto é, não só de reflexão critica a respeito
ria, também quando não o percebemos, mesmo que se pense somente de nossas categorias lingüísticas, mas também de reflexão sobre os
na memória profana, oriunda das sensações e do aprendizado huma- vários usos que fazemos da linguagem, sobre as várias formas de
nos, a profusão de imagens que nos invade, às vezes à nossa revelia empregá-la, sobre os diferentes "jogos de linguagem" diria, hoje, um
(cf. a bela análise das imagens que "irrompem aos turbilhões" contra Wittgenstein. Já ao colocar a questão central "quid est enim tempus?"
nossa vontade, X, 8, 12), exige o abandono da descrição da atividade ("que é pois o tempo?"), Agostinho diferencia entre a tentativa
74 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMOR IA E HISTORIA OILER 0 TEMPO 75

aporética de explicar a natureza do tempo e, em contraposição, a portanto do tempo passado e do tempo presente em que se escreve,
nossa fala comum que utiliza sempre essa noção de tempo, como se mesmo que não se saiba como explicar ou definir essa existência.
soubéssemos, de maneira intuitiva, inconsciente, mas prática, o que Pensar o tempo significa, portanto, a obrigação de pensar na
ele é: linguagem que o diz e que "nele" se diz. Há no texto agostiniano um
deslocamento progressivo de uma reflexão — aporética — sobre o
Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Com- tempo como um certo tipo, misterioso e inapreensível, de substância,
preendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O para uma auto-reflexão sobre as várias atividades humanas. Esse
que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu deslocamento é assinalado pela passagem dos substantivos neutros
sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei (XI singulares Praeteritum, Praesens, Futurum, para a forma plural adjetiva
14, 17). — Praeterita, Praesentes, Futura, acontecimentos passados, presentes,
futuros (cf. Ricoeur, op. cit. p. 26). Num segundo momento, passa-se
da reflexão sobre os acontecimentos ou as coisas em si mesmas (Res
Agostinho distingue, portanto, uma prática explicativa, analítica
ipsae) para uma reflexão sobre os rastros — (vestigia) ou as "imagens"
e uma prática comum, cotidiana, mais fundamental que a primeira,
que deixam na alma, pois, como o diz Agostinho, "ainda que se
que permite resistir aos sofismas do pensamento entregue a si mesmo.
Com efeito, é essa prática comum que refuta a demonstração da narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não
inexistência do tempo pelos céticos. os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras
concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos
sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígio" (XI 18, 23).
E contudo, Senhor, percebemos os intervalos dos tempos, com-
Não vou me demorar aqui nas dificuldades epistemológicas dessa
paramo-los entre si e dizemos que uns são mais longos e outros
teoria do vestigium, dificuldades apontadas por todos os comentado-
são mais breves. Medimos também quando esse tempo é mais
res (Ricoeur, op. cit, p. 28 ss.; Gilson, Introduction d l'étude de saint
comprido ou mais curto do que outro... (XI 16, 21).
Augustin [Paris: Vrin, 1969], em particular primeira parte, capítulo
5). Queria ressaltar muito mais que essa noção de vestigium, de
Esse protesto do sentimus, comparamus, dicimur, metimur é, como "rastro", opera um duplo movimento: movimento de dessubstancia-
o ressalta Ricoeur (op. cit; p. 24), o protesto de nossa atividade lização do tempo, como já apontamos, pois a idéia de rastro alude ao
sensorial, lingüística e prática que não se deixa intimidar pelas estatuto ontológico paradoxal de um ser que não é mais (a esse
sutilezas argumentativas dos filósofos. O mesmo recurso a nossa
respeito, cf. Freud e seu bloco mágico ou Derrida e suas traces), e
prdtica discursiva fornece mais um elemento para recusar a suposta movimento de interiorização na alma, pois, agora, trata-se de analisar
inexistência do tempo: se não houvesse nem passado nem futuro,
a atividade psíquica específica que reconhece imagens e rastros com
como poderíamos falar a respeito deles? Ora, nós contamos o passa-
índices temporais diversos. A questão inicial, portanto, se transfor-
do, distinguimos o que nele aconteceu ou não, portanto o verdadeiro
mou; de uma questão sobre a essência ou sobre a substância ("o que
do falso em relação a ele; simetricamente, podemos prever o futuro
e verificar a verdade ou a falsidade de nossas previsões. Podemos é, pois, o tempo?") passa-se a uma questão sobre as condições
observar que esse raciocínio se aplica à própria atividade narrativa de transcendentais de nossa apreensão, pela atividade intelectual e lin-
Agostinho nas Confissões: se não pudesse lembrar do passado, saber o güística, no espírito ou na alma, como diz Agostinho, de três moda-
que nele aconteceu, não poderia narrar sua infância e sua juventude lidades diferentes de tempo:
— tema dos primeiros livros das Confissões — nem chegar a esse
momento de auto-reflexão narrativa que constitui a especulação do Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente
Livro XI sobre o tempo, ou ainda: a própria narração das Confissões das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras.
pressupõe, como condição transcendental, a existência do passado, Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em
76 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTORIA OIZER 0 TEMPO 77

outra parte: lembrança presente das coisas passadas (praesens de recitar (atque distenditur vita huius actionis mese in memoriam ... et in
praeteritis memoria), visão presente das coisas presentes (praesens exspectionem...). A minha atenção está presente e por ela passa
de praesentibus contuitus) e esperança/expectativa presente das [ melhor: é lançado, transportado] o que era futuro para se tornar
coisas futuras (praesens de futurs exspectatio) (XI, 20, 26). pretérito (praesens tamen adest attentio mea, per quam traicitur quod
erat futurum, ut fiat praeteritum). Quanto mais o hino se aproxima
Esse resultado parcial recoloca, porém, o problema já comentado do fim [melhor: quanto mais se faz avançar e avançar — quanto
no Livro X da insuficiência do vocabulário espacial para descrever a magis agitur et agitur] tanto mais a memória se alonga e a expecta-
atividade espiritual. Não basta, pois, passar de uma noção espacial ção se abrevia, até que esta fica totalmente consumida, quando a
exterior do tempo a uma noção espacial interior, mesmo que houves- ação, já toda acabada, passar inteiramente para o domínio da
se aí um progresso em direção a uma descrição mais especifica de memória (quum tata lila actio finita transient in memoriam). [Tradu-
como agimos "no" tempo, com o tempo, "sobre" o tempo. Agostinho ção modificada.]
retorna e amplia a questão ao se perguntar não mais sobre a essência
do tempo, mas sobre nossas práticas de medição: como conseguimos Essa descrição exemplifica a definição, já proposta por Agostinho
medir o(s) tempo(s) se esse(s) não tiver(em) espaço? (XI 21, 27.) Essa em 26 (33), do tempo como distensio animi, distensão da alma;
nova pergunta traz à exasperação a contradição entre a realidade da observemos aqui que Agostinho não chega a essa definição por uma
ação subjetiva (da medida) e a insuficiência do vocabulário espacial. série de deduções lógicas rigorosas, pois a condição transcendental da
Os exemplos de Agostinho são todos emprestados, vale a pena temporalidade em relação a nossa linguagem e a nosso pensamento
ressaltá-Io mais uma vez, ao domínio da linguagem: recitação de um
impede que se possa refletir sobre ele como se fosse um objeto exterior
poema, canto de um hino, medida das silabas no verso. Nesse ao pensar; Agostinho procede muito mais por uma análise paciente
momento crucial do Livro XI, no qual se alcança, a duras penas, uma que poderíamos chamar de fenomenológica (aliás Husserl e Heidegger
definição, a questão da linguagem — esse estranho ser que só remete lembrarão muitíssimo o Livro XI das Confissões; cf. Ricoeur, op. cit.
às coisas porque presentifica sua ausência — e a questão do tempo — p. 34), uma tentativa de descrição daquilo que acontece quando
esse outro estranho ser que não se deixa agarrar em seu incessante agimos — e, em particular, quando falamos, contamos ou cantamos —
escapulir — ambas questões se unem. Com efeito, a relação entre nessa imbricação originária entre ação, linguagem e temporalidade.
tempo e linguagem não é, como parecia à primeira vista, uma mera Ou ainda: Agostinho não tenta mais falar, de fora, sobre o objeto
relação de continente e de conteúdo, mas, criticadas essas categorias tempo, mas sim descrever, ladeando com o pensar o próprio pensa-
espaciais que nos confundem em vez de nos esclarecer, muito mais mento, nossa experiência do tempo. Ora, essa não se diz em termos
profundamente, uma relação transcendental mútua: o tempo se dá, espaciais objetivos, mas em termos ativos de esticamento, de dilacera-
de maneira privilegiada, à minha experiência em atividades de lin- ção, de tensão entre o lembrar e o esperar. No trecho que acabamos
guagem — no canto, na recitação, na escrita, na fala —, e só consigo de ler, encontramos os substantivos principais desse movimento da
falar, escrever, cantar e contar porque posso lembrar, exercer minha alma: distentio e attentio (às vezes também o sinônimo intentio). A
atenção e prever. Cito o belo parágrafo 28 (38): distentio caracteriza mais uma tensão em sentidos opostos, portanto
uma luta incessante, dolorosa entre a ação da lembrança (do passado)
Vou recitar um hino que aprendi de cor. Antes de principiar, a e ação da expectativa (do futuro); a attentio designa muito mais a
minha expectação estende-se a todo ele (in totum exspectatio mea concentração da atividade intelectual que tenta pensar essa luta, isto
tenditur). Porém, logo que o começar, a minha memória dilata-se é, a intensidade de um presente que não é mais meio mero ponto
(tenditurin memoria mea), colhendo tudo o que passa de expectação indiferente de passagem, mas sim instante privilegiado de apreensão
para o pretérito. A vida deste meu ato divide-se em memória, por dessa não-coincidência, tomada de consciência ativa desse incessante
causa do que já recitei, e em expectação, por causa do que hei de esticamento. Como Ricoeur (op. cit. p. 34 ss.) o sublinha com força, é
OILER O TEMPO : 79
78 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

em suas diversas intensidades? Questão essencial, ã qual o pensamento


justamente o aprofundamento nesta falha dolorosa da temporalidade
teológico de Agostinho responde e ã qual, em sua profanidade radical,
humana, falha da qual os céticos queriam deduzir a inexistência do
a reflexão contemporânea, seja ela histórica, poética ou filosófica, não
tempo, que permite a Agostinho sua verdadeira compreensão.
pode se furtar.
A estrutura temporal revelada pelo exemplo acima da recitação é
aplicada, em seguida, a qualquer forma de narrativa, seja ela mais
curta (na sílaba), seja ela mais comprida como "a história — inteira —
dos filhos dos homens" (28, 38). Mais essencialmente, essa distensão
caracteriza nossa existência temporal, portanto nunca plena de si
mesma numa beatitude eterna que só cabe a Deus, mas sim dilacerada
numa incessante e dolorosa não-coincidência consigo mesma, nesse
desacerto, nesse desassossego que nos faz sofrer —e, inseparavelmen-
te, procurar, inventar, desmanchar, construir e reconstruir sentido(s).
Chego ã minha conclusão que empresto, mais uma vez, ã bela
leitura de Ricoeur. No texto agostiniano, é óbvio, essa reflexão sobre
a temporalidade humana dilacerada só adquire seu sentido último
em oposição ã plenitude da eternidade divina. No entanto, não há
somente um antagonismo irredutível entre temporalidade humana e
eternidade divina, mas, na linha reta da teologia agostiniana da
encarnação e da iluminação, uma relação mais secreta e fundadora
de co-pertença: a própria visada da experiência temporal, na sua
intensidade presente (attentio ou intentio no vocabulário de Agosti-
nho) torna-se como que uma imagem do presente eterno de Deus em
nós. À dialética tempo-eternidade corresponde, no seio da própria
experiência temporal, a dialética entre distentio — a tensão com o
dilaceramento doloroso — e intentio ou attentio — a tensão como
intensidade, força, concentração. Assim, ainda segundo Ricoeur, a
oposição entre tempo humano e eternidade divina não acarreta só,
como uma leitura edificante barata induziria a pensá-lo, uma desva-
lorização do primeiro, falho e transitório, em relação ã plenitude da
segunda. De maneira muito mais instigante, esse contraste introduz,
dentro da experiência humana do tempo, uma diferenciação qualita-
tiva essencial. Ela permite, nas palavras de Ricoeur, uma teoria das
várias intensidades temporais, um aprofundamento da temporalida-
de humana, contra a concepção vulgar de um tempo cronológico,
linear, "homogêneo e vazio" (W. Benjamin).
Permanece a seguinte questão: hoje, quando não podemos mais
acreditar com a mesma certeza tranqüila, que o Outro de nosso tempo
seja a eternidade divina, como conseguir, porém, uma compreensão
diferenciada, inventiva da temporalidade — e da história! — humana
V. DO CONCEITO DE MÍMESIS
NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN

Este trabalho se propõe a apresentar sucintamente um conceito


essencial para a reflexão estética, o conceito de piµr)aiç ("mimesis"
ou "mimese"), e mostrar a sua relevancia no pensamento de T. W.
Adorno e de Walter Benjamin. Desenvolveremos esta proposta em
quatro tempos: primeiro, retomaremos rapidamente a discussão so-
bre a mimesis em Platão e em Aristóteles, isto é, a sua rejeição por
Platão e a sua reabilitação por Aristóteles.
Segundo, analisaremos alguns trechos da Dialética do Esclareci-
mento de Adorno e de Horkheimer (1985), trechos nos quais os
autores retomam e transformam a crítica platónica ao conceito de
mimesis. Essa discussão reaparece no debate metodológico entre
Adorno e Benjamin a respeito-do livro deste último sabre Baudelai-
re. Tentaremos mostrar que Adorno critica uma tendência mimética
(que ele também chama de mágica) na reflexão benjaminiana e lhe
opõe o método dialético de Hegel.
Num terceiro momento, retomaremos essa suspeita de Adorno
para confirmá-la e afirmar que a mimesis é um conceito-chave do
pensamento benjaminiano, mas, é claro, dotado de um papel muito
instigante e profundamente positivo.
Enfim, numa quarta parte conclusiva, analisaremos rapidamente
a interpretação muito mais nuançada que Adorno desenvolve, nota-
damente na sua Teoria Estética (1982), pagando aqui, sem dúvida
nenhuma, uma divida intelectual a Benjamin.

A mimesis em Platão e Aristóteles


A critica da mimesis em Platão remete a uma problemática poli-
tica, antes que estética. Esquece-se, às vezes, de que a famosa expulsão
dos poetas para fora da cidade justa, no livro X da República, retoma
82 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA
DO CONCEITO DE MIMESIS NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN B3

e conclui toda uma discussão feita nos livros anteriores, sobre a


para a formação de uma cidade justa e, no nosso caso especifico, sobre
educação adequada dos guerreiros e dos dirigentes. Trata-se de um aquilo que deve ou não ser contado às crianças, no intuito de
problema ideológico de primeira importáncia, a saber, da educação
educá-las para serem cidadãos justos. Nos livros Ill e IV, Platão
apropriada das futuras elites, como as chamaríamos hoje. A educação estabelece as regras às quais uma história boa deve obedecer, tanto
tradicional ateniense comportava a música, da qual fazia parte a
no seu conteúdo como na sua forma. Censura vários episódios,
poesia declamada ou acompanhada por melodias, e a ginástica. A
particularmente nos poemas homéricos, por não seguirem essas
música cuidava da alma, a ginástica, do corpo. Tratava-se sempre, estritas regras fundadas na razão e na moral. A intolerância platônica,
como o diz Platão (377 b), de uma "modelagem" do aluno, da sua que a nós modernos parece insuportavelmente dogmática, remete ao
alma ou do seu corpo, ambos representados como passivos e dóceis
aspecto ontológico contraditório da imagem: poderíamos dizer que
a influências exteriores. Com as mãos as babás massageiam o corpo a imagem mimética é, na filosofia de Platão, muito fraca, muito irreal,
das crianças, com as suas histórias, a sua alma. Corpo e alma ficam
ilusória e, ao mesmo tempo, muito forte e ativa. O seu perigo
impregnados dessas modelagens físicas e psíquicas. Como um bom devastador vem dessa contradição e explica (sem desculpá-la) a
behaviorista moderno, Platão insiste na indebilidade dos costumes
veemência platônica. Com efeito, a imagem mimética é, primeiro,
adquiridos na infancia. É nesse contexto que se coloca a questão das definida na sua falta essencial de ser: em relação à idéia, à forma
histórias que podem e devem ser transmitidas, com razão e com primeira que os objetos concretos reproduzem inabilmente, a ima-
proveito, aos jovens — e, inversamente, a questão das histórias que gem poética ou plástica não é mais que cópia, afastada por três graus
não podem nem devem ser contadas. O legislador não pode deixar
do ser verdadeiro (exemplo do livro X: eidos da cama, cama em
essa escolha à arbitrariedade das mulheres ou dos vários outros
madeira, "cama"). Ao mesmo tempo, essa imagem desprovida de ser
pedagogos: ele deve estabelecer regras severas de controle sobre as consegue enganar e iludir não só, diz Platão, as crianças e as mulheres,
formas e os conteúdos transmitidos. Essa exigência coloca a questão mas também os homens maduros, sérios, virtuosos. Uma criancinha
essencial do modelo a ser seguido e da imitação ou representação não distingue bem o retrato do original nem a história da realidade,
mimesis) desse modelo. mas também um homem feito se comove e chora ao ver no palco o
Cabe aqui lembrar que, na época de Platão, a "representação" espetáculo de paixões das quais envergonhar-se-ia na vida real. Apesar
artística em geral é chamada de mimesis. A tradução por "imitação"
de faltar totalmente ao ser verdadeiro, a mimesis tem uma força de
empobrece muito o sentido. Os gregos clássicos pensam sempre a arte arrebatamento a qual toda a filosofia de Platão procura resistir. Talvez
como uma figuração enraizada na mimesis, na representação, ou, possamos dizer que a mimesis possui essa força não apesar de não
melhor, na "apresentação" da beleza do mundo (mais Darstellung que participar do ser verdadeiro mas, mais secretamente, justamente
Vorstellung); a música é o exemplo privilegiado de mimesis, sem que porque ela não participa dele, porque ela aponta para o engodo, para
seja imitativa no nosso sentido restrito. a mentira, para a ilusão e a falta. Aprofundar essa hipótese nos levaria
Talvez consigamos entender melhor esse conceito platônico não longe demais. No entanto, o que é claro é que Platão procura, contra
tanto pelo viés da imitação, mas tomando por base o objeto paradig- os sofistas, manter a qualquer preço uma linha de distinção bem
mático. Em oposição à nossa visão moderna (e romántica), que vê na
definida entre realidade e ilusão, verdade e mentira. Sem essa linha,
arte principalmente uma criação subjetiva, que realça o caráter ino- todo o seu projeto de construção de uma cidade justa desmoronaria.
vador da subjetividade do gênio, a visão antiga insiste muito mais na Por isso, a sua critica da mimesis pertence a um projeto político muito
fidelidade da representação ao objeto representado:ksle, o objeto,
maior, que poderíamos chamar, hoje, de luta ideológica. Sabendo da
ue desencadeia, por sua beleza, o im.ulso mimétic.. A arte tenta força das imagens, Platão tenta domar, controlar a produção dessas
aproximar-se dele com respeito e precisão e, por isso, é sempre i magens, impondo-lhe normas éticas e políticas. Esse gesto inaugura
figurativa, nesse sentido amplo, "mimética". Essa primazia do objeto
a critica ideológica e, inseparavelmente, a censura, uma aliança infeliz
preside a toda discussão da República sobre o modelo a ser seguido
que perdura até hoje.
84 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTORIA DO CONCEITO DE MIMES/S NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN B5

Duas observações rápidas antes de passar a Aristóteles: oposição a Platão, o ganho trazido pela mimesis ao conhecimento,
Como vários comentadores ressaltaram, a própria filosofia de pois o que é conhecido não é tanto o objeto reproduzido enquanto
Platão repousa profundamente sobre uma concepção mimética do tal — era a exigência aporética de Platão — mas muito mais a relação
pensamento: trata-se, para o filósofo, de sempre traduzir e reproduzir entre a imagem e o objeto. O momento específico e prazeroso do
o paradigma ideal. Há portanto em Platão um gesto mimético origi- aprendizado por meio do mimeisthai está na produção dessa relação.
nário que ele deve distinguir a qualquer preço da atividade mimética Isso também explica o nosso prazer em ver representados objetos que,
artística ilusória. No diálogo Sofista, ele diferenciará entre várias na realidade, acharíamos repugnantes.
formas de ptp>latç: uma filosófica, que representa autenticamente as
essências, e as outras, produtoras de simulacros, que devem ser
Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a poesia. O
combatidas e rejeitadas (235 c).
i mitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes,
Uma segunda observação, menos técnica e mais ligada à conti-
pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende as
nuação da nossa exposição: essa critica platônica antecipa todas as
primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado.
críticas posteriores. Nelas também, a mimesis intervirá como fator de Sinal disso é o que acontece na experiencia: nós contempla-
engano e de ilusão, ligado aos encantos da arte e à ingenuidade dos mos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas coisas
ouvintes. Será geralmente associada a uma regressão das faculdades que olhamos com repugnancia, por exemplo (as representações
criticas e a uma certa passividade, acometendo mais facilmente as de) animais ferozes e (de) cadáveres. Causa é que o aprender não
crianças e as mulheres ignorantes, que se deixam seduzir pelo falso s6 muito apraz aos filósofos, mas também, igualmente, aos demais
brilho e são mais sensíveis ao maravilhoso e ao irracional, caracterfs- homens, se bem que menos participem dele. Efetivamente, tal é
ticas do mythos em oposição ao logos. Ilusão, brilho, regressão, passi- o motivo por que se deleitam perante as imagens: olhando-as,
vidade, infancia, irracional, eis alguns dos termos-chave que apreendem e discorrem sobre o que seja cada uma delas (e dirão),
reaparecem nas criticas da mimesis, na arte e no divertimento, desde por exemplo: "esse é tal" (Aristóteles, 1979, linhas 4-20 de 1448 b,
Platão e até as nossas discussões sobre a Rede Globo. Essas categorias tradução modificada). [Ver bibliografia, p. 105 abaixo.]
também vão voltar no debate entre Adorno e Benjamin.
Contra o seu mestre Platão, Aristóteles reabilita a mimesis,
Podemos ressaltar dois pontos essenciais nesse texto notável de
ria Poética, como forma humana privilegiada de aprendizado
(pav9uvetv). Operando um deslocamento das questões que, várias Aristóteles:
a) A mimesis faz parte da natureza humana, caracteriza em particular
vezes, foi comparado à revolução kantiana, Aristóteles não pergun-
o aprendizado humano. Esta ligação entre mimeisthai e manthanein
ta o que deve ser representado/imitado, mas como se imita. Per-
insiste no componente ativo e criativo da mimesis (contra a posição
gunta pela ca n a' ° de-homem, pelo mimeisthai no
platônica) e a inscreve na atividade humana por excelência, no conhe-
qual se enraíza a poietiké, entendida como criação de uma obra
cer. O aprendizado mimético, diz Aristóteles, produz prazer, agrada
artística. A poética de Aristóteles também será normativa, como
(xatpstv). Este momento de prazer não é interpretado como um
todas as estéticas clássicas, mas as suas normas advêm do emprego desvio perigoso da essência, como em Platão, mas, pelo contrário,
apropriado das palavras, dos ritmos, da trama à finalidade de como um fator favorável, que estimula e encoraja o processo de
beleza da obra, não em vista da sua fidelidade a um modelo conhecimento (importancia do lúdico).
exterior. Assim, podemos notar que, contra Platão, que falava em b) Ao descrever esse ganho de conhecimento, Aristóteles insiste
paradigma e em mimesis, Aristóteles fala em mimesis e em mimeis- na sua característica de "reconhecimento". Os homens olham para as
thai, ligando o êxito da representação artística não à reprodução i magens e reconhecem nelas uma representação da realidade; dizem:
do modelo, mas sim ao desenvolvimento integral e harmonioso da "esse é tal". A atividade intelectual aqui remete ao logos (sullogizes-
faculdade (Suvaptç) mimética. A definição aristotélica ressalta, em thai, linha 16), mas não repousa sobre uma relação de causa e efeito:
OG : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA MIMESIS PENSAMENTO
00 CONCEITO OE NO DE AOORNO E BENJAMIN : B7

enraíza-se muito mais no reconhecimento de "semelhanças". Esse Críticas de Adorno ao conceito de mimesis
conceito-chave de "semelhanças" orientará, alguns parágrafos mais Gostaria agora de passar ao meu segundo ponto, pulando alguns
tarde, a teoria aristotélica da "metáfora": "Bem saber descobrir metáfo- séculos. Mas vamos reencontrar a Grécia, pois as primeiras críticas de
ras", diz Aristóteles, significa "bem se aperceber das semelhanças" Adorno ao conceito de mimesis aparecem na sua célebre análise da
(1459 a: To yap Et) pETa$eperv opotov Bcclpatv). Não vou desenvolver Odisséia, na Dialética do Esclarecimento (1985). Seguindo o livro de
aqui essa bela teoria aristotélica da metáfora. Gostaria, porém, de Josef Friichtl (1986), gostaria de realçar que a posição de Adorno em
ressaltar que Aristóteles não reconduz as imagens produzidas pela relação ao conceito de mimesis evolui no decorrer dos seus escritos;
linguagem a semelhanças objetivas extralingüísticas. Exemplifican- podemos, no entanto, afirmar que a sua primeira atitude é de rejeição.
do: não é porque uma moça e uma rosa têm em comum uma Na Dialética do Esclarecimento (1985) em particular, Adorno retoma a
propriedade objetiva e real que podem ser comparadas; é muito mais critica platónica da passividade do sujeito na mimesis á~óì~~ld3
ea
porque existe, dentro da linguagem, a possibilidade de "transportar gra .s. . as -us e .e etnologia (Früchtl, 1986, p. 13).
para uma coisa o nome da outra" (1457 b: Meracpopa S' écT1v tanto a sicanálise como a etnolo•ia caracterizam a mimesis como
óvoparoç ciXXorplou érzt$opa). que rosa e moça podem se unir numa um comportamento regressivo No Freu. .e • m 'o Principio do
metáfora. A relação metafórica' é, portanto, primeiro uma relação Prazer 1975), essa regressão remete à pulsão de morte, a este miste-
entre dois elementos da linguagem, do logos. Ela não se enraíza, em rioso desejo de dissolução do sujeito no nada. Nos textos dos etnólo-
última instância, numa semelhança objetiva e concreta, numa seme- gos franceses da época (em particular R. Caillois e M . Mauss), citados
lhança dita real, mas muito mais no movimento da linguagem que por Adorno e Horkheimer, o comportamento mimético é caracteri-
descobre e inventa semelhanças insuspeitas, efêmeras ou duradouras. zado como um comportamento regressivo de asslml acção ao perigo,
Como mostra Derrida, a teoria aristotélica da linguagem esboça uma na t e~ esasáalo. Seguindo o exemplo primeiro do mimetis-
teoria da autonomia da linguagem em relação à assim chamada mo animal, por exemplo da borboleta imóvel que tem as mesmas
realidade concreta, isto é, uma teoria do funcionamento da lingua- linhas marrons e verdes que a folha sobre a qual repousa, o "primiti-
gem sem referência necessária à sua função referencial. vo" se cobre de folhagens para melhor desaparecer na floresta, para
Podemos tentar pensar agora juntos esses dois pontos da reflexão não ser visto pela onça que caça, mas também coloca uma máscara
aristotélica e chegar ao seguinte resultado, decisivo para uma teoria horrenda para apaziguar, pela aproximação e pela identificação, o
"positiva" da mimesis: a mimesis designa_urn processo deap rendiza- deus aterrorizante de que depende.
gem espec -.......................... . Esses rituais mágicos, analisados pelos etnólogos, apontam para
Miar-dasulaaças}-Aaquisição
um aspecto essencial do comportamento mimético: na ntativ e
d -e conhecimentos é favorecidap • loc asn ctosprazerosos do prores-
so. Po se libertar do medo, o sujeito renuncia a se diferenciari d o outrogue
díamos
er di>er, nesse sentido que o i..m.p__ o mimético_está na
raiz do lúdico edo arslstico. Ele -repousasohre-vfaculdade de temepara, ao i mitá-lo, aniquilar adistanciaque os separa, a distância
- .ermite ao t .. . reconhecê-lo com.. n e devorá-lo ara t
reconhecer semelhanças e de.prnduzi-Ias na _yg lin age t teoria da
se salvar do perigo, o sujeito desiste. e si mesmo e,portanto, perde-se.
mimesis induz, yorta-nto á uma teoria da metáfora- Podemos avançar
Nessa dialética perversa jaz a insuficiência das práticas mágico-mimé-
mais um passo no caminho esboçado por Aristóteles e dizer que
ticas e a necessidade de encontrar outras formas de resistência e de
conhecimento e semelhança, conhecimento e metáfora entretêm
luta contra o medo: toda reflexão de Adorno e Horkheimer na
ligações estreitas, muitas vezes esquecidas, muitas vezes negadas.
Dialética do Esclarecimento consiste em mostrar como a razão ociden-
Veremos a i mportância destas considerações para a reflexão de Walter
tal nasce da recusa desse pensamento mítico-mágico, numa tentativa
Benjamin. sempre renovada de livrar o homem do medo (que o esclarecimento
1 Sobre a qual pode-se ler o artigo de Jacques Derrida (1972). não o consiga, mas, pelo contrário, aprisione ainda mais o homem,
essa é a outra vertente dessa reflexão).
z
88 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA DO CONCEITO DE MIMESIS NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN : 89

O comportamento mágico-mimético ameaça profundamente o oferecido por Circe, interpretando talvez esse gesto como a promessa
sujeito que, ao querer se resguardar, arrisca o seu desaparecimento, a de uma união sexual também imediata — isto é, sem mediações.
sua morte na assimilação ao outro. Hi,_ nn entanto < como já Porque acreditaram no prazer imediato, porque confiaram demais no
assiy]alamos an citar FFlirlru LCpmponenty óPundamente praze- outro (aqui, não por acaso, na outra!) e porque regrediram a um desejo
rpso _também e 'justamente n ss perda: muito orig_inÿriamente e arcaico, os companheiros de Ulisses sucumbem à força da magia e são
profundamente, existe um desejo_ de dissolução, e aniquilamento transformados, numa mimesis irônica, em porcos.
dos ' fites ue, ao mesmo tempo, constituem e aprisionam o sujeito. Enquanto isso, Ulisses, prevenido por Hermes, resiste a Circe,
Esse desejo — tao bem analisado por Bataille — remete à paixão e à ameaça-a com sua espada e a submete, podendo só depois dessa luta
sexualidade, ao êxtase religioso e místico, mas também, e insepara- domar os seus poderes e dormir com ela, bela descrição daquilo que
velmente, à dor da loucura e à decomposição da morte. Nesse sentido, serão, doravante, as relações entre os sexos opostos. Adorno_e Hork-
a análise de Adorno e Horkheimer descobre, como Platão, na mimesis, heimer insistem com razão no preço pago pelo herói para paraescapar
uma ameaça ao processo mesmo da civilização: ela não só faz regredir
simbiose magica e constituir-se em sujeito autônomo. Esse preço é
os homens a comportamentos mágicos e míticos, mas também amea-
alto. Ele poderia ser descrito com a transformação da mimesis origi-
ça o processo mesmo de construção e de elaboração de formas, de
nária, prazerosa e ameaçadora ao mesmo tempo, numa mimesis
regras, de limites, processo que define a civilização e, no vncabu lário
perversaque reproduz, na insensMilidade tto enrijecimento do
duos autores, que se ampara no processo de trabalho e no
_ sujeito, a dureza do processo pelo qual teve quepassar para se adaptar,
"progresso" racional-científico.
r ao mundo real e diríamos com Freud, deixar de ser crian a para se
tncnar adulto Essa segunda mimesis se constrói sobre o recalque 'a
O medo de perder o eu e o de suprimir com o eu o limite entre si primeira: ela caracteriza o sujeito que conseguiu resistir à tentação da
mesmo e a outra vida, o terror da morte e da destruição, está regressão mas que perdeu, nessa luta tão necessária quanto fatal, a
irmanado a uma promessa de felicidade, que ameaça a cada plasticidade e a exuberância da vida originária, quando não perdeu a
instante a civilização. O caminho da civilização era o da obediên- vida tout court.
cia e do trabalho, sobre o qual a satisfação não brilha senão como Essa segunda mimesis, a adaptação forçada e violenta que, ao
mera aparência, como beleza destituída do seu poder (Adorno e afirmar a superioridade do sujeito racional e distante, ao mesmo
Horkheimer, 1985, p. 44-5). tempo o nega na sua integridade, dá a chave de um dos mais famosos
ardis de Ulisses: a sua falsa auto-identificação como Oudeis ( Ninguém)
diante do ciclope Polifemo. Para Adorno e Horkheimer, esse episódio
Na Dialética do Esclarecimento, a história de Ulisses é a descrição
tem uma significação exemplar: Ulisses só consegue escapar da devo-
desse caminho penoso que rejeita a assimilação simbiótica mimética
ração mítica porque antecipa, por assim dizer, a sua morte, chamando
com a natureza para forjar um sujeito que se constitui mediante o
trabalho e se toma, nesse prócésso, a si mesmo de Ninguém. Essa identificação com a destruição, essa
consciente de si na sua diferença
radical, na sua separação do outro. Ulisses encarna esta passagem do renúncia simbólica a si mesmo caracteriza a mutilação imposta ao ser
mito ao logos: ele não é mais o herói mítico dotado pelos deuses de indeterminado e polimorfo (como diria Freud) pela laboriosa edifi-
uma força fisica mágica: também não é ainda o indivíduo desampara- cação do sujeito autônomo e definido. A erradicação da barbarie e a
do que só pode contar com a sua inteligência particular. Ulisses está construção penosa da civilização implicam um processo violento de
no limiar, na passagem entre essas duas figuras. Com a ajuda de Atena, negação dos impulsos, isto é, de abdicação pelos sujeitos da sua
deusa da razão, e de Hermes, deus dos negócios, Ulisses consegue vitalidade mais originária.
resistir às forças dissolutas e regressivas da magia, como a bela análise
adomiana do episódio de Circe o ilustra: os seus companheiros Na verdade, o sujeito Ulisses renega a própria identidade que o
ingênuos e esquecidos sucumbem à vontade imediata de beber o filtro transforma [ macht] em sujeito e preserva a vida por uma imitação
90 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA B0 CONCEITO DE MIMESIS NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN : 91

mimética do amorfo ... Mas sua auto-afirmação é, como na num bicho imóvel, quase morto, cuja presença não é mais traída ao
epopéia inteira, como em toda civilização, uma autodenegação. agressor por nenhum movimento: "A proteção pelo susto é uma
Desse modo, o eu cai precisamente no circulo compulsivo da forma de mimetismo. Essas reações de contração no homem são
necessidade natural, ao qual tentava escapar pela assimilação esquemas arcaicos da autoconservação: a vida paga o tributo de sua
[Angleichung] (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 71). sobrevivência, assimilando-se ao que é morto" (Adorno e Horkhei-
mer, 1985, p. 168).
Esse raciocínio de Adorno e Horkheimer nos lembra as descrições Ora, tal "mimese incontrolada" deve ser, nas palavras de Adorno
freudianas do mal-estar na civilização e nos faz entender melhor por e Horkheimer, "proscrita", se o homem quiser se livrar do medo
que os nossos autores sempre insistiram na genealogia violenta da
originário e tentar dominar essa natureza ameaçadora, isto é, iniciar
racionalidade iluminista, retomando também elementos da critica o programa de controle da racionalidade iluminista. Esse processo de
nietzschiana da moral. e ersa • - uma mf 'sis
civilização que, como vimos, substitui a magia pelo trabalho e pela
segunda e, poderíamos dizer, castradora, a uma mimesis primeira e
reflexão, repousa portanto sobre a rejeição dos comportamentos
polimorfa volta com toda sua violência secreta nos fenômenos de
miméticos arcaicos: não consegue, porém, erradicar essa lembrança
identificação e de repulsão de massa, como são o nazismo e o
originária: a resposta mimética, que era uma reação de aversão e 4e
anti-semitismo Não por acaso que, terminada a leitura dos três
capítulos que formam o corpus da Dialética do Esclarecimento, depara- medo, reaparece na aversão ao mimetismo e no medo do mimetismo,
na sua proibição pelas réis sociais e culturais. Essa dialética explicaria,
mo-nos com um outro texto menor, intitulado: Elementos do Anti-se-
mitismo: Limites do Esclarecimento. A loucura fascista representa, aos segundo Adorno e Horkheimer, várias proibições tão religiosas como
olhos de Adorno e Horkheimer, que escrevem este texto em 1944, o pedagógicas, como a proibição da imagem na religião judaica ou do
li mite do esclarecimento no sentido de "fronteira", aquilo que o lúdico na vida adulta, ou ainda de grupos sociais cujos hábitos não
projeto iluminista de liberdade não consegue vencer, mas também se encaixam nos valores do esforço, do sacrifício e do trabalho. Esses
no sentido de "delimitação", isto é, de determinação oculta, pois o mecanismos de proibição são tanto mais fortes quando tentam im-
núcleo secreto do esclarecimento jaz na sua interpenetração profunda pedir não só a recordação do medo primitivo, mas também a lem-
com a violência. Reencontramos assim o tema fundamental da mime- brança dessa felicidade originária, da qual já falamos, que se
sis no parágrafo quinto, parágrafo central dessa crítica do anti-semi- experimenta na dissolução dos limites subjetivos e na embriaguez da
tismo e que também representa, na obra de Adorno, a análise mais fusão com o infinito. Cito um belo parágrafo:
demorada do conceito de mimesis (Früchtl, 1986).
Adorno e Horkheimer partem da justificativa tão freqüente dos
O rigor com que os dominadores impediram no curso dos séculos
anti-semitas: a idiossincrasia, isto é, uma repulsão incontrolável e
a seus próprios descendentes, bem como ás massas dominadas, a
incontrolada em relação a algo exterior, no caso os judeus. Essa
recaída em modos de viver miméticos — começando pela proibição
justificativa recusa de antemão um questionamento crítico, pois apela
para uma reação fisiológica, pretensamente natural, como de alguém de imagens na religião, passando pela proscrição social dos atores e
que sofre de alergia ã poeira ou ao pêlo dos gatos. Nessa falsa dos ciganos e chegando enfim a uma pedagopiáque desacostuma
naturalização jaz, no entanto, um elemento de verdade, a saber, a as crianças de serem infantis — é a própria condição da civilização.
lembrança recalcada de reações miméticas originárias, esses "mo- A educação social e individual reforça nos homens seu comporta-
mentos da proto-história biológica", esses "sinais de perigo cujo ruído mento objetivo enquanto trabalhadores e impede-os de se perde-
fazia os cabelos se eriçarem e o coração cessar de bater". Tais reações, rem nas flutuações da natureza ambiente. Toda diversão, todo
independentes do controle consciente, são uma forma ffsica primeira abandono tem algo de mimetismo. Foi se enrijecendo contra isso
de mimesis, que transforma o homem ou o animal cheio de medo que o ego se forjou (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 169).
DO CONCEITO DE MIMESIS NO PENSAMENTO DE AOOANO E BENJAMIN : 93
92 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA

Esse enrijecimento do eu, cujo modelo é Ulisses atado sem movi- zada desencadeia mais tenor da parte do seu algoz. O judeu (o
mentos ao mastro do seu próprio navio para poder escutar as sereias homossexual, o negro) que, muitas vezes, já tem uma atitude de
sem lhes sucumbir, esse enrijecimento caracteriza a segunda mimesis acanhamento, que tenta, por medo, passar despercebido, chama jus-
perversa, a única permitida pela civilização iluminista. O anti-semitis- tamente por isso a atenção, a irritação e a violência. "Os proscritos",
mo na sua forma nazista permite, na análise de Adorno e Horkheimer, escreve Adorno, "despertam o desejo de proscrever. No sinal que a
a experiência triunfante do recalque da mimesis originária e do sucesso violência deixa neles, inflama-se sem cessar a violência" (1985, p. 171).
da mimesis segunda, dessa "mimese da mimese" (1985, p. 172). 0 oficial , i Mimesis infernal, pensada também por Freud e Nietzsche, que condena a
nazista rígido, de pé no seu uniforme apertado, personifica a ordem vítima a se tornar novamente vítima e encoraja o torturador a continuar
viril que recusa as formas fluidas e impõe a mesma imagem sempre torturador.
repetida nas paradas militares: a "disciplina ritual" e as formas sempre Façamos agora uma pequena pausa e tentemos resumir o que
idênticas ajudam a identificação com o Führer, que deve, de maneira dissemos. Poderíamos afirmar que prevalece, no pensamento de
terrorista, liberar os seus semelhantes do tenor antigo. Essa "identifi- Adorno (e de Horkheimer) na época da Dialética do Esclarecimento,
cação-mimesis perversa" precisa' , para seu sucesso completo, encontrar uma certa condenação da ifinesis_descrita antes de tudo como um
\rum objeto de abjeção, um objeto que represente esses desejos mimé- processo social de identificação perversa. Trata-se de uma censura
ticos mais originários, recalcados e proibidos: o contato físico imedia- parecida com a censufã pTatônica, a respeito da perda de distância
to, a abolição da distância, este prazer da sujeira e do barro que as critica que ocorre no processo mimético entre o sujeito e aquilo a que
crianças ainda saboreiam, essa decomposição gostosa e ameaçadora se identifica. A análise de Adorno e Horkheimer reforça a censura
na fluidez sem formas. Contra várias explicações que tentam mostrar, platónica graças ao motivo freudiano do recalque: a mimesis — iden-
valendo-se de características sociais ou "biológicas" dos judeus, por tificação perversa —, repousaria sobre o recalque de uma primeira
que foram escolhidos como objeto de aversão, a análise adorniana faz mimesis arcaica, ao mesmo tempo ameaçadora e prazerosa: o medo
o caminho inverso: é o anti-s gnftfl constrói o seu judeu, individual da regressão ao amorfo engendraria uma regressão coletiva
necesstri_o à suapróp Ia çgnstftuição. Isso não significa que os judeus totalitária, cuja expressão mais acabada é o fascismo.
não tenham, enquanto povo histórico, características históricas pecu- Nesse contexto, o recurso de Adorno e Horkheimer à dialética
liares (como as têm os franceses, os alemães, os brasileiros, e assim por hegeliana pode ser facilmente compreendido, pois ninguém mais que
diante, desde a cozinha até as maneiras de falar em amor). Ironicamen- Hegel insistiu nas insuficiências das soluções pretensamente imedia-
te, a importância dada pelos ritos religiosos judaicos à pureza, a tas, isto é, sem mediação, que tentavam garantir a autenticidade do
proibição das imagens numa religião que se constituiu coma luta conhecimento. Como Hegel contra Jacobi, Adorno afirma, contra as
contra os ídolos, ou a ligação dos judeus com o comércio e o setor de filosofias da vida ou da intuição, muito freqüentes na época, que
circulação do dinheiro — pois foram proibidos durante muito tempo qualquer pretensa imediaticidade ( Unmittelbarkeit) já é uma constru-
de possuir terras —, todas essas características históricas apontam ção do pensamento, uma "imediaticidade mediada" (vermittelte Un-
muito mais para uma exacerbação das tendências civilizadoras ilumi- mittelbarkeit), que provém do profundo (e compreensível) desejo de
nistas do que para uma regressão à magia primitiva. Um único traço, poder chegar a um conhecimento total, definitivo, no qual o objeto
também histórico, é claro, iria predispõ-los, segundo nossos autores, seria realmente alcançado e no qual o sujeito poderia repousar feliz.
a servir de bode expiatório e de objeto privilegiado de abjeção: o fato Esse antigo e belo sonho da metafísica é enganoso: mesmo quando se
de os judeus trazerem consigo a carga histórica de terem sido sempre perde numa Wesens-schau (visão da essência) inefável, o sujeito não
vítimas, desde as perseguições de cunho religioso até hoje. É como se desaparece, mas consegue, pelo trabalho do espirito, ampliar os limites
as perseguições do cristianismo triunfante tivessem deixado, nos seus da sua própria identidade. Ademais, o ideal de contemplação facil-
inimigos prediletos, a marca da infâmia. Aqui também há um processo mente faz esquecer a necessidade de transformação da má realidade,
extremamente cruel de assimilação mimética: o rosto da vítima aterrori- transformação sem a qual, se aceitarmos a herança hegeliana e
D0 CONCEITO OE MIMESIS NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN 95
94 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

marxista, não há éonhecimento verdadeiro. Num momento de crise frankfurtiano de mesmo nome, exilado então em Nova York. Em
tão profundo como o da Segunda Guerra Mundial, crise que ameaça nome da redação da revista, Adorno recusa o manuscrito e pede uma
a sobrevivência da razão, deve-se enfatizar essa necessidade de crítica reformulação do texto. A sua crítica maior diz respeito ao método
benjaminiano de estabelecer paralelos entre características da obra de
edetransformação inerenteaoconhecimento, emparticularàreflexão
filosófica. O_ pessimismo deAdorno eHorkheimer na Dialética do Baudelaire e fenômenos históricos contemporâneos — por exemplo,
os choques dos transeuntes nas mas obstruidas de Paris e o ritmo
Esd`ci lievuser entend omo a expressão da recusa-radical marcado dos versos baudelairianos — sem que haja uma mediação
de..eu>rai em acordo, qu si mplesmente de firmar um come misso
or
mais global por trás dessas associações esclarecedoras mas não sempre
com a realidade ex' e, realidade constituiria tambéme ineluta_- desprovidas de uma certa arbitrariedade. Cito os trechos mais i mpor-
velmenié pe~ os campos de concentração.
tantes da carta de Adorno a Benjamin:
Nessa concepção da realidade como uma totalidade socialmente
culpada (gesellschaftlicher Schuldzusammenhang) intervém uma outra
característica do pensamento dialético, a saber, a convicção de que O sentimento de uma tal artificialidade se me impõe todas as vezes
partiéulár_e universal se determinam riu iâ_we tte, de que não se que o trabalho faz uma afirmação metafórica em lugar de uma
pode, portanto, analisar um elemento particular sem recorrer à sua afirmação ~rLlifii7 .. A razão (do meu desacordo teórico) está em
inserção na totalidade social, de que a verdade desse particular só que julgo in e Lz, do ponto de vista do método, tomar "materia-
pode ser encontrada na sua determinação pelo universal. listicamente" alguns traços singulares claramente reconhecíveis
Estou resumindo de maneira terrivelmente rápida os dois traços do âmbito da superestrutura, pondo-os em relação, sem mediação
essenciais do pensamento dialético, tal como Adorno o assumiu como e até mesmo de maneira causal, com os traços correspondentes
um pensamento critico. Opa eiro traço seria_então essa coQ Qção da infra-estrutura. A determinação materialista das formações
do pensamento c_ o ~rocessomediatizado einfinitode transforma- culturais s6 é possível pela mediação através do processo global
ção; o segundo, a•co- ermina ão reciproca entreparticular_e uni- ... A "mediação" que faz falta e que encontro encoberta por uma
versa , concepçã o uma totalidade articulada, na qual partese conjuração materialista historiográfica nada mais é do que a
todo sea€tmem mutuamente. Se pensarmos agora juntos esses dois teoria, que o seu trabalho se poupa. A renúncia à teoria afe áa
empiria. De um lado, essa renúncia confere à empiria um traço
traços, perceberemos que nao existe necessariamente uma relação
lieiite
als épico, de outro, tira dos fenômenos seu verdadeiro
entre eles, mbora e costume confundi-los amento peso histórico-filosófico, transformando-os em fenômenos expe-
critico tivesse que ser tamb m e necessariamente um pensamento da rienciados de maneira unicamente subjetiva. Pode-se formulá-Io
totalid.~ também assim: o motivo teológico que consiste em nomear as
c¿ueria insistir aqui nessa distinção analítica. Se não nos deixar- coisas pelo seu nome inverte-se tendencialmente numa exposição
mos seduzir totalmente pela construção hegeliana do espirito abso- deslumbrada da facticidade. Para falar de uma maneira drástica,
luto, poderemos ainda nos permitir diferenciar a possibilidade de poder-se-ia dizer que o trabalho se alojou no cruzamento da magia
critica da possibilidade de totalização do pensamento. Introduzo esse com o positivismo. E um lugar enfeitiçado: só a teoria conseguiria
ponto aqui porque ele me parece essencial para entender melhor o romper o feitiço... (Carta de 10 de novembro de 1938, tradução
conflito que opôs Adorno e Benjamin, e que ressurge talvez também da autora).
em várias discussões contemporâneas sobre a racionalidade e a irra-
cionalidade da nossa (pós)modernidade.
Em relação a Adorno e Benjamin, encontramos a melhor explici- Há algo de assombroso na reserva com que Benjamin responde
tação desse conflito na troca de cartas entre eles, de 1938, a respeito a essa carta muito dura. Ele explica a falta de construção teórica pela
da primeira versão do ensaio de Benjamin sobre Baudelaire, que ele necessidade de reunir os "materiais filológicos" e defende a "repre-
tinha escrito a pedido da Revista de Pesquisa Social, do instituto sentação deslumbrada da facticidade " como "a atitude autenticamen-
96 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, M E MO RIA E HISTORIA 00 CONCEITO DE MIMESIS NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN 97

te filológica". Nã'o responde ã principal objeção de Adorno, a saber, existente. Resumindo: um pensamento crítico deve ser dialético, não
a falta de mediação a partir do processo global. Ora, a crítica de _pode ser mimético.
Adorno não era simplesmente uma observação metodológica de tipo
acad@mico, mas continha uma suspeita política: a falta de boa teoria, Do conceito de mimesis e da sua importância
isto é - - ... Adorno a a ' • 'a de dialética, de mediaça atroe s no pensamento de Walter Benjamin
do . rocesso lobal essa falta imicana a t . - m uma aceitação Gostaria de passar agora ao terceiro ponto da minha exposição e
Frftica da realidade. No ndo, o "recado" de Adorno a tenjamin é
de defender a seguinte tese: as suspeitas de Adorno devem ser, ao
o seguinte: Benja~tn tenta ser marxista e critico mas, como se esquece
mesmo tempo, confirmadas e invalidadas; se o conceito de mtmesis é
da imprescindível dialética, cai no mais perigoso positivismo (atrás
bem um conceito-chave na reflexão benjaminiana, é porque ele tem um
dessa objeção hã também, sem dúvida, a rivalidade nfluencias papel positivo, muito instigante e, poderíamos afirmar, até critico.
entre Adorno e Brecht). Este "lugar enfeitiçado", no qual, se do as
Poderíamos dizer que a filosofia benjaminiana abre uma possibilidade —
palavras de Adorno, aloja-se o trabalho de Benjamin, também
que me parece essencial para a nossa famosa "pós-modernidade" — de
"o cruzamento da magia com o positivismo" — e é nesse lugar
perigoso que reencontramos o nosso tema da mtmesis. Com efeito, as um pensamento que desista da visão da totalidade, mas que, no
objeções de Adorno a Benjamin retomam várias das observações entanto, continue critico e perturbador. No fim da sua vida, Adorno
críticas do primeiro a respeito da mtmesis: pensamento mágico rema- parece ter reconhecido essa possibilidade. Ele se confrontou com ela
nescente, falta de distanciamento crítico e identificação com o exis- na Dialética Negativa (1986): paralelamente, como veremos, reabili-
- tou a categoria da mtmesis na sua Teoria Estética (1982).
tente,Tmnossibilidadeáe uma vis otalizante e, em ugae- um
apego sentimental ao particular, em vez da meação umafalsa Mas vamos primeiro ã teoria benjaminiana da mtmesis. Ela se
i me ratrci ode, ou ainda, como o diz Adorno no começo do trecho encontra, em primeiro lugar, na sua filosofia da linguagem.
ertado, 'uma afirmação metafórica em lugar de uma afirmação co- Benjamin escreveu vários ensaios sobre linguagem. Para simpli-
gente". Em outros textos sobre seu amigo morto, Adorno ressaltará ficar, podemos dividi-los em dois grupos: os escritos de juventude,
positivamente esses traços metafóricos e miméticos. Escreve, por fortemente influenciados pela mística judaica ('Da Linguagem em
exemplo, no ensaio Característica de W. Benjamin: Gera] e da Linguagem do Homem", de 1916, e "A Tarefa do Tradutor",
de 1921) e dois textos curtos escritos depois de 1933, que pertencem,
portanto, ã sua assim chamada fase "materialista". Nesses dois últi-
O pensamento adere e se aferra ã coisa, como se quisesse trans-
mos textos ("Doutrina do Semelhante" e "Sobre a Capacidade Mimé-
formar-se num tatear, num cheirar, num saborear. Por força de tica"), Benjamin esboça uma teoria da mtmesis que também é uma
tal sensualidade de segundo grau, espera penetrar nas artérias de teoria da origem da linguagem. Como Aristóteles na Poética (1979),
ouro que nenhum processo classificatório alcança, sem, no entan-
Benjamin distingue dois momentos principais da atividade mimética
to, entregar-se por isso ao acaso da cega intuição sensível (Cohn,
especificamente humana: não apenas reconhecer, mas também pro-
1986, p- 28. Tradução brasileira modificada pela autora) . 2
duzir semelhanças. Essa produção mimética caracteriza a maior parte
dos jogos, das brincadeiras infantis. A criança não brinca s6 de
Mas aqui, na correspondência com o amigo vivo (e também comerciante ou de bombeiro (atividades humanas), mas também de
concorrente!), Adorno é formal: as tendências miméticas do pensa- trem, de cavalo, de carro ou de máquina de lavar. Como já ressaltava
mento benjaminiano apontam para a magia e para a aceitação do Aristóteles, a mtmesis sera ligada por definição ao jogo e ao aprendi-
zado, ao conhecimento e ao prazer de conhecer. O homem é capaz
2 "Der Gedanke rückt der Sache auf den Leib, als wollte er in Taste,,, Riechen, Schmecken $ich
verwandeln. Kraft solcherzweiten Sinnlichkeit hoot er, in die Goldadem einzudringen, die kein de produzir semelhanças porque reage, segundo Benjamin, as seme-
klassifikatorisches Verfahren erreicht ohne dock darüber dem Zufall der blinden Anschauung lhanças jã existentes no mundo. De maneira paradoxal, essas seme-
sich zu überantworten."
lhanças não permaneceram as mesmas no decorrer dos séculos. A
BB : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTORIA
DO CONCEITO DE MIMESIS NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN 99
originalidade da teoria benjaminiana está em supor uma história da
significa reconhecer não uma relação de causa e efeito entre a coisa
capacidade mimética. Em outras palavras, as semelhanças não exis- e as palavras ou as vísceras, mas uma relação comum de configuração.
tem em si, imutáveis e eternas, mas são descobertas e inventariadas
A imitação pode ter estado ou não presente na origem, ela pode se
pelo conhecimento humano de maneira diferente, de acordo com as perder sem que a similitude se apague. Benjamin forja assim o
épocas. Assim, reconhecemos hoje só uma parte mínima das seme- conceito de "semelhança não-sensível" (unsinnliche Ahnlichkeit) e
lhanças, comparável à ponta de um iceberg, se pensarmos em todas as define a linguagem como o "grau último" da capacidade mimética
semelhanças possíveis. As leis da similitude determinavam, outrora, humana e o "arquivo o mais completo dessa semelhança não-sensí-
um vasto saber presente na astrologia, na adivinhação e nas práticas vel". Ele explica essa transformação filogenética da capacidade mi-
rituais, para citar só alguns exemplos. Tal saber é hoje taxado de mética pelo exemplo ontogenético do aprendizado da linguagem
mágico, em oposição ao saber racional, e o progresso científico falada e da escrita pela criança.
geralmente é compreendido como a eliminação crescente desses Nas suas lembranas de criança (Berliner Kindheit um Neunzeh-
elementos mágicos. As reflexões de Benjamin vão numa direção nhundert, de 1932-33E ' Benjamin narra como ele costumava assimi-
totalmente outra. A sua tese principal é que a capacidade mimética lar as palavras que não tinha "compreendido"; ele as transformava
humana não desapareceu em proveito de uma maneira de pensar em cartas-enigmas e as mimava, ele as representava como charadas:
abstrata e racional, mas se refugiou e se concentrou na linguagem e
na escrita. Assistimos portanto (cf. M. Foucault, As Palavras e as Coisas, Assim quis o acaso que se falasse uma vez em minha presença de
1966) não à sua decadência ( Verfall) mas à sua transformação. Segun- gravuras [Kupferstich]. No dia seguinte, pus-me debaixo da cadeira
do Benjamin, uma fonte comum une a leitura das constelações e dos e estendia a cabeça para fora; isso era um " esconderijo-de-cabeça"
planetas feita pelo astrólogo, a leitura do adivinho das entranhas de [Kopf-verstich]. Se, ao fazer isso, eu me desfigurava e a palavra
um animal e a leitura de um texto: da mesma maneira, o gesto também, eu só fazia o que devia fazer para criar raízes na vida.
mimético da dança aparenta-se ao da pintura e da escrita. Aprendi em tempo a embrulhar-me nas palavras, que eram, de
Tal teoria contradiz, é óbvio, qualquer concepção da linguagem fato, nuvens. O dom de reconhecer semelhanças nada mais é do
baseada no arbitrário do signo. Desde seus primeiros ensaios sobre a que um tênue residuo da antiga coerção a tornar-se semelhante e
linguagem até os últimos, Benjamin não cessou de condenar essa a comportar-se de maneira semelhante. Essa coerção, as palavras
concepção. Daí o seu interesse pelas hipóteses onomatopaicas sobre a exerciam sobre mim. Não as que me faziam semelhante a
a origem da linguagem, hipóteses que ele, no entanto, julga restritivas modelos de virtude, mas a apartamentos, a móveis, a roupas
demais porque ligadas a uma concepção estreita daquilo que constitui (Benjamin, Ges. Schr., IV-1, p. 261. Tradução da autora).
a semelhança. Com efeito, tendemos demais a assimilar semelhança,
similitude (Ahnlichkeit) com reprodução (Abbildung), a pensar que a Pelo movimento do seu corpo inteiro, a criança brinca/representa
i magem de uma coisa é a sua cópia. Ou ainda, a definir a semelhança o nome e assim aprende a falar. O movimento da língua só é um caso
em termos de identidade, dizendo que dois objetos são semelhantes particular dessa brincadeira, desse jogo. Para a criança, as palavras
quando apresentam um certo número dos mesmos traços. Benjamin não são signos fixados pela convenção mas, primeiramente, sons a
tenta pensar a semelhança independentemente de uma comparação serem explorados. Benjamin diz que a criança entra nas palavras
entre elementos iguais, como uma relação analógica que garanta a como entra em cavernas entre as quais ela cria caminhos estranhos.
autonomia da figuração simbólica. A atividade mimética sempre é Essa atitude não se deve a uma pretensa "ingenuidade infantil". Pelo
uma mediação simbólica, ela nunca se reduz a uma imitação. Em vão contrário, ela testemunha a importância do aspecto material da
procurar-se-ia uma similitude entre a palavra e a coisa baseada na linguagem que os adultos geralmente esqueceram em proveito do seu
imitação. Saber ler o futuro nas entranhas do animal sacrificado ou 3 Para uma tradução em português, ver "Infancia em Berlim por volta de 1900" (Benjamin,
saber ler uma história nos caracteres escritos sobre uma página 1987).
1 00: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA 00 CONCEITO DE MIMES/S NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN 1 01

aspecto espiritual e conceitua], e que s6 a linguagem poética ainda constitutivo do sentido. A dimensão mimética surgiria do semiótico
lembra. assim como uma imagem fugaz e variável aparece e desaparece no
O mesmo movimento mimético encontra-se no aprendizado da primeiro plano de um cenário.
escrita. Quando a criança começa a escrever, quando ela desenha a
letra, ela não só imita o modelo proposto pelo adulto mas, segundo
O texto literal é o fundo único e imprescindível para a imagem-
Benjamin, ao escrever a palavra, ela desenha uma imagem (não uma
carta-enigmática poder se formar. O composto de sentido que se
cópia) da coisa, ela estabelece uma relação figurativa com o objeto.
encontra nos sons da frase é portanto o fundo do qual o seme-
Benjamin era um grande colecionador de livros infantis e gostava lhante pode subitamente vir à luz, como um relâmpago, a partir
sobretudo desses abecedários que juntam na mesma página, num de um tom (Benjamin, "Lehre vom Ahnlichen", p. 208-9. Tradu-
quadro familiar e excêntrico, as imagens correspondentes a várias ção da autora) . 4
palavras que começam pela mesma letra, como se ela fosse a figura
secreta da sua comunidade.
Essa imagem rápida, inerente à dimensão mimética da lingua-
Numa conversa relatada por um amigo, Benjamin teria mesmo
gem, constitui para Benjamin o sentido essencial — mas mutável —
defendido a hipótese, à primeira vista grotesca, de que "todas as
do texto. O sentido como transmissão do significado só seria de fato
palavras de qualquer lingua são parecidas na sua figuração escrita
o pretexto, por certo imprescindível, que permitiria a elaboração de
[Schrift-bild] com a coisa que elas designam" (Lembranças ..., 1968, p.
um outro texto.
40). Não é também por acaso que Benjamin, num breve artigo, reflete
Aqueles que conhecem melhor o pensamento de Benjamin de-
sobre a escrita chinesa para explicar a relação entre pintura e escrita,
vem ter percebido que essas reflexões sobre a capacidade mimética,
a relação figurativa entre a escrita e o real, que não precisa necessa-
circunscritas primeiro ao domínio da Linguagem, também tem uma
riamente ser uma relação de imitação. Portanto, Benjamin recusa-se i mportancia fundamental para a sua teoria da história. Aliás, a mesma
a operar uma partilha estrita entre a atividade mimética do desenho i magem do relâmpago doador de sentido que floresce e desaparece
ou da pintura e a da escrita. Ele supõe estados históricos de transição num instante, essa imagem caracteriza tanto a dimensão mimética da
da pintura à escrita por intermédio dos hieróglifos e da escrita rúnica. linguagem como a verdadeira experiência histórica, tal qual a descre-
Benjamin vai aqui ao encontro das reflexões de Derrida, ao fazer vem as Teses "Sobre o Conceito de História" (Benjamin, 1985, p.
derivar a escrita não de uma abstração ou de uma convenção (que o 222-35). Trata-se, nesse último texto, de pensar um tempo histórico
nosso alfabeto representaria perfeitamente), mas de um impulso pleno, tempo da salvação do passado e, inseparavelmente, da ação
mimético comum a qualquer inscrição, inscrição no espaço pela política no presente. Esta relação entre passado e presente não pode
dança, inscrição numa parede pela pintura, inscrição numa página ser pensada, segundo Benjamin, no modelo de uma cronologia linear,
pela escrita. sucessão continua de pontos homogêneos, orientados ou não para
Tal concepção mimética da linguagem e da escrita não questiona um fim feliz, pois nesse caso passado e presente não entreteriam
só a tese lingüística do arbitrário do signo; ela acarreta também uma nenhuma ligação mais consistente; mas tampouco pode essa relação
transformação da definição do sentido. Desde os seus primeiros ser pensada como uma retomada do passado no presente no modo
escritos, Benjamin recusa a determinação do sentido como comuni- da simples repetição, pois nesse caso também não haveria essa
cação de uma mensagem, como transmissão de um significado que transformação do passado na qual a ação política também consiste.
preexistiria à produção da fala. Os ensaios sobre a capacidade mimé- O ressurgimento do passado no presente, a sua reatualização salva-
tica e sobre a semelhança distinguem uma dimensão "semiótica" e dora ocorre no momento favorável, no kairos histórico em que
uma dimensão "mimética" da linguagem. O adjetivo "semiótico" 4 "So ¡st der buchstãb!iche Text der Scant? der Fundus, in dem einzigund allein sick das Vexierbild
engloba justamente, de maneira bastante vaga, esse aspecto de trans- formen /cairn. So ist der Sinnzusammenhan& der in den tauten des Satzes steckt, der Fundias,
aus dem erstblitzartigAhnliches mit einem Nu aus einem Klangzum Vorschein kommen kann. "
missão dos significados, aquilo que geralmente é considerado como
102 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM , MEMO AIA E HISTORIA
00 CONCEITO BE MIMESIS NO PENSAMENTO DE AOOANO E BENJAMIN : 103

semelhanças entre passado e presente afloram e possibilitam uma as pudesse substituir o próprio processo de negatividade e de con-
nova configuração de ambos. tradição.
No ensaio sobre Proust, autor que influenciou profundamente Do lado da mimesis, no sentido amplo que Benjamin deu a esse
sua filosofia da história, Benjamin ressalta que este surgimento — a conceito, do lado de Nietzsche certamente e talvez também de Freud,
memória involuntária de Proust — tem mais a ver com o esquecimen- encontramos uma Lógica não da identidade, mas da semelhança,
to do que com a memória tradicional. Esta se apega demais ao esforço portanto uma concepção nunca identitária do sujeito e da consciên-
da consciência que procura reter o passado na sua identidade, na sua cia. O movimento do pensamento não remete aqui a contradições
mesmice. Ora, o passado é realmente passado ou, como diz Proust, sucessivas num processo progressivo, rhas muito mais a um fazer e
perdido, ele não volta enquanto tal, mas só pode ressurgir, diferente desfazer lúdico e figurativo, ao movimento da metáfora. A dimensão
de si mesmo e, no entanto, semelhante, abrindo um caminho ines- temporal não consiste tanto na linearidade, mas mais na contigüida-
perado nas camadas do esquecimento. Se há uma retomada do de, não num depois do outro, mas num ao lado do outro. Nessa
passado, este nunca volta como era, na repetição de um passado descontinuidade fundamental há momentos privilegiados em que
idêntico: ao ressurgir no presente, ele não é o mesmo, ele se mostra ocorrem condensações, reuniões entre dois instantes antes separados
como perdido e, ao mesmo tempo, como transformado por esse que se juntam para formar uma nova intensidade e, talvez, possibilitar
ressurgir; o passado é outro, mas, no entanto, semelhante a si mesmo. a eclosão de um verdadeiro outro.
Nesse contexto, Benjamin insiste no "culto apaixonado das seme- Se essa diferenciação rápida tiver algo de verdadeiro, então com-
lhanças" em Proust e ressalta que essa busca das semelhanças não preenderemos melhor por que o conceito de mfmesis não pode ser
pode ser confundida com a procura da identidade: o modelo dessa si mplesmente reduzido aos de magia e de regressão: a mimesis indi-
busca é o mundo do inconsciente, o "mundo dos sonhos, em que os caria muito mais uma dimensão essencial do pensar, esta dimensão
acontecimentos não são nunca idênticos, mas semelhantes, impene- de aproximação não violenta, lúdica, carinhosa, que o prazer suscita-
travelmente semelhantes a si mesmos" (Benjamin, 1985, p. 314). 5 do pelas metáforas nos devolve. Ela aponta para aquilo que Adorno,
Essa feliz não-coincidência consigo mesmo também atinge o presen- na sua Teoria Estética, define como o Telos der Erkenntnis, o "Telos do
te, que pode deixar de ser o mesmo para se tornar também outro, conhecimento" (1982, p. 87): uma aproximação do outro que consiga
novo, futuro verdadeiro. compreendê-Io sem prendê-lo e oprimi-lo, que consiga dizê-lo sem
desfigurá-lo. Essa proximidade na qual o espaço da diferença e da
Conclusão: retomada do conceito de mimesis por Adorno distãncia seja respeitado sem angústia, esse conhecimento sem vio-
Paremos agora um pouco, depois desse rápido percurso benjami- lência nem dominação já era a idéia reguladora que orientava toda
niano pelos caminhos da semelhança. Dois paradigmas de pensamen- .
crítica de Adorno na Dialética do Esclarecimento. E a idéia de uma
to parecem se delinear nessa oposição entre Adorno e Benjamin. Do reconciliação possível, mas cuja realização, em oposição ã dialética
lado de Adorno (de Hegel e de Marx) e das exigências da dialética, do espírito absoluto em Hegel, sempre nos escapa. Esse movimento
temos um pensamento regido pela lógica da identidade e da não-iden- de promessa e de reserva descreve a dialética que Adorno, no fim da
tidade, no qual o movimento do processo decorre da contradição e sua vida, chama de "dialética negativa", pois nunca repousa em si
das suas sucessivas figuras de resolução e de recomposição: um mesma, nunca sossega na possibilidade da totalidade. O privilégio da
pensamento cuja dimensão temporal remete a uma linearidade es- obra de arte seria, segundo o último texto de Adorno, a sua Teoria
sencial, pois a contradição só pode se desenvolver numa sucessão estética, de manifestar, de dar a ver numa configuração sensível e
precisa de momentos. Modelo cuja forma bastarda será a de um histórica esse movimento da verdade. A arte é o "refúgio do compor-
determinismo desenvolvista, como se a simples sucessão dos momen- tamento mimético" (Adorno, 1982, p. 86), mas de uma mfinesis
s Tradução redimida que conseguiria fugir tanto da magia como da regressão.
de S. P. Rouanet (modificada pela autora).
Cito na tradução portuguesa: "Mas o comportamento estético não é
1 04: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA

nem mimese imediata, nem mimese recalcada mas o processo que BIBLIOGRAFIA
ela desencadeia e no qual se mantém modificada" (Adorno, 1982, p.
364). Algumas linhas abaixo Adorno retoma a associação entre o
comportamento mimético originário e o calafrio do homem que
estremece de medo perante o monstro. Vocês lembram que essa
reação originária de "idiossincrasia" era citada por Adorno na sua ADORNO, T. W. Teoria Estética. Trad. Artur Mourão. São Paulo:
crítica ao comportamento mimético perverso do anti-semita. Aqui, Martins Fontes, 1982.
na última página da Teoria Estética, esse arrepio mimético originário Dialética negativa. Madrid: Taurus, 1986.
reaparece, mas sob sua figura reconciliada: é o tremor do sujeito
ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento.
perante a beleza; essa febre sagrada que, no Fedro de Platão, aqui
Trad. Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
também citado por Adorno, apodera-se do amante quando vê o
amado, pois este lhe lembra a visão da divindade. Ali, diz Adorno, o ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Trad. Eudoro
sujeito se deixa atingir, afetar pelo objeto, mas esse toque recíproco de Souza.
não produz feridas; o sujeito não apaga nem submete o outro a si BENJAMIN, W. "Sobre o Conceito de História", In: Obras escolhidas.
mesmo num gesto prepotente. Experiência erótica e estética que Trad. de S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. v. 1.
também define, segundo o velho ensinamento platónico, a experien-
cia do conhecer verdadeiro, isto é, da união entre Eros e Logos. . "A Imagem de Proust". In Obras escolhidas. Trad. S. P.
Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. v. 1.
"Infância em Berlim por volta de 1900". In: Obras escolhidas.
Vol. II, Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins
Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987.
. "Lehre vom Ãhnlichen". In: Gesammelte Schriften. Frankfurt
am Main: Suhrkamp Verlag, vol. II-1, p. 204.
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Schriften. Frankfurt am Maim: Suhrkamp Verlag, vol. IV-1.
COHN, G. (Org.) Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática, 1986 (Coleção
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DERRIDA, J. "La mythologie blanche". In Marges de la philosophie.
Paris: Ed. Minuit, 1972.
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S.1.: Kõnigshaus und Neumann, 1986.
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. La République. Paris: Les Belles Lettres, 1932. Trad. Emile
Chambry.
1 06 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

. Le Sophiste. Paris: Les Belles Lettres, 1925. Trad. Auguste Diés. VI. DO CONCEITO DE RAZÃO EM ADORNO
Seltz, J. "Lembranças". In: Über Walter Benjamin. Frankfurt am Main:
Suhrkamp Verlag, 1968. A Marcos, que não desiste da totalidade

Para este carrefour sobre a Escola de Frankfurt escolhi três textos de


Adorno que gostaria de ler e comentar com voces. Preferi este caminho
de análise a um outro possível, ode uma introdução geral à problemática
dos frankfurtianos. Tais introduções não passam, na maioria das vezes,
de generalidades bastante vagas, pois não há, rigorosamente falando,
uma unidade doutrinária na Escola de Frankfurt Há muito mais preocu-
pações comuns, comuns aliás a muitos outros pensadores da época, como
Lukács e Korsch, por exemplo, preocupações que acarretam reflexões e
conclusões diferentes, às vezes antagônicas, nos abusivamente chamados
"frankfurtianos". É só pensar, por exemplo, nas posições respectivas de
Benjamin e de Adorno sobre a função da arte na modernidade ou de Adorno
e de Marcuse a respeito da importancia do movimento estudantil.
Vou, então, restringir-me à filosofia de Adorno e, em particular,
a uma análise da função que o conceito de razão aí desempenha.
A nossa hipótese de trabalho consiste na afirmação de que esta
filosofia vive da tensão entre a crítica da racionalidade iluminista e a
reabilitação paradoxal da metafísica. Gostaria de expor esta tese com três
textos que datam de épocas diferentes: o primeiro, da Dialética do
Esclarecimento, de 1944; o segundo, de Mínima Moralia, de 1947; e o
terceiro, da Dialética Negativa, de 1966.
Adianto também que esta exposição se apóia basicamente nas
reflexões críticas de A. Wellmer l e J. Habermas. 2

1 Wellmer, A. Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne (Frankfurt am Main: Surhkamp,
1985).
2 Habermas, J. DerPhilosophischeDiskurs derModeme(Frankfurt am Main: Surhkamp, 1985).
1 08: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA DO CONCEITO OE RAZÃO EM ADORNO 1 09

Escrito no exílio por Adorno e Horkheimer, o livro Dialética do no seu desenvolvimento ulterior, nos mesmos mecanismos de ofus-
Esclarecimento é tido como uma das mais negras, das mais pessimistas camento que criticava originariamente no mito. Esse processo é
obras da filosofia contemporánea (Habermas, p. 150). Pessimismo ilustrado na constituição do sujeito racional de maneira privilegiada
cuja justificativa maior se encontra certamente na dramática época na belíssima análise da Odisséia, que não retomarei aqui. Esse desen-
histórica da sua redação: de um lado, o nazismo triunfante, do outro, volvimento ulterior da racionalidade iluminista é analisado nas suas
o stalinismo e, no meio, o exílio dos autores, a constatação do
contradições no capitulo consagrado à moral.
profundo aburguesamento da classe operária no capitalismo avança- 2. O segundo passo (sobre a Juliette, de Sade) tratará das peripé-
do. Para onde quer que se dirijam os olhares só há dominação e morte
cias da ética iluminista (isto é, no fundo, da concepção de prática do
e, pior ainda, acomodação à morte e resignação à dominação. Adorno
esclarecimento), tanto na sua constituição em Kant como na sua
e Horkheimer tentam entender como o antigo ideal de razão eman-
autodestruição em Nietzsche e Sade. Como tinham mostrado que o
cipadora, ideal explicito no Iluminismo, mas, segundo eles, já pre-
esclarecimento já estava embutido no mito, Adorno e Horkheimer
sente na origem da racionalidade ocidental, como este ideal deu à luz
um sistema social no qual racionalidade e dominação são insepará- mostram agora que as insuficiências e os paradoxos da moral ilumi-
veis. Essa "meta-história da razão" (Wellmer) pretende ser, ao mesmo nista já se encontravam em sua origem no paradigma kantiano e se
tempo, também uma história do poder social-político. reproduzem na radicalidade oposta de Nietzsche e Sade.
A primeira hipótese da Dialética do Esclarecimento, hipótese afir- 3. Enfim, num terceiro passo, a possibilidade de uma saída
mada, nunca discutida, é, portanto, a de que estruturas da organiza- estética será questionada. O capitulo sobre indústria cultural encar-
ção racional e estruturas da organização social não só se correspondem rega-se de negar — notadamente contra Walter Benjamin — a possibi-
como se apóiam mutuamente. Hipótese oriunda certamente da crítica lidade de uma transcendência dentro da modernidade, também no
marxista à ideologia, mas que tem, além disso, a pretensão de dominio estético. Esse capítulo, talvez o mais dogmático, será subme-
reconstruir o quadro transcendental do desenvolvimento da razão na tido a vários remanejamentos e criticas, inclusive da parte dos pró-
sociedade ocidental. prios autores.
A tese principal do livro consiste na proposição enunciada no Podemos fazer duas observações a propósito deste brevíssimo
prefácio:
resumo da Dialética do Esclarecimento:,
— A sua pretensão critica recobre o campo das três críticas
O mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter kantianas; os primeiros capítulos, sobre o entrelaçamento da razão e
à mitologia (Dialética do Esclarecimento, p. 15). [Ver bibliografia, do mito, correspondem à Critica da Razão Pura; o terceiro, sobre a
p. 122 abaixo.] moral iluminista, à Critica da Razão Prática; e, enfim, o último, sobre
indústria cultural, à Critica do Juizo. O alcance epistemológico do livro
é, portanto, geral. E como sublinha Habermas (op. cit., p. 145), toda
Segundo Habermas (pp. 131-138), temos três passos (que corres-
a filosofia de Adorno, até os últimos escritos, Negative Dialektik e
pondem aos capítulos iniciais) na argumentação que mostram essa
imbricação da razão e do mito, a sua superação posterior e, finalmen- Aesthetische Theorie, retomam e variam a problemática já esboçada
nessa obra de juventude. Tratar-se-á sempre de saber como um
te, o enclausuramento da razão num pensamento tão constrangedor
e ameaçador como as lendas míticas: pensamento crítico é possível, ainda que ele também se inscreva
1. O primeiro passo mostra a imbricação, desde o início, entre dentro de um conjunto social totalitário e afirmativo, ou, mais
esclarecimento e mito, isto é, entre uma faculdade de emancipação e precisamente em relação à idéia de razão, como manter a esperança
de crítica e aquilo que pretende combater, as forças cegas da natureza de emancipação do esclarecimento quando este se tornou, ele mes-
que negam a autonomia do sujeito. Na sua luta contra o mito, a razão mo, a figura mais acabada do cerceamento mítico contra o qual
fica, por assim dizer, contagiada pelas forças às quais se opõe e cairá pretendia lutar.
110: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMÓRIA E HISTÓRIA 00 CONCEITO DE RAZÃO EM ADORNO : 111

Questão ao mesmo tempo transcendental e prática, que remete próprio pensar é desencadeado pelo medo. O saber enraíza-se nessa
ã necessidade da critica tanto no sentido kantiano quanto no sentido tensão entre medo e emancipação.
marxista: questão que só pode ser colocada desta forma, devemos — O problemático desse desenvolvimento do pensamento não se
observá-lo, porque a filosofia adorniana repousa numa visão dialética encontra, segundo Adorno e Horkheimer, nessa sua origem. Encon-
do real que pressupõe, em particular, a existência de um sistema tra-se na "solução" levantada para escapar ao medo. O saber que deve
social-político totalizante, isto é, no qual a totalidade determina liberar do medo é definido como um poder no sentido forte de
integralmente os elementos particulares, enquanto estes só podem domínio: é só quando os homens se tornam "senhores" que eles
ser compreendidos como constitutivos dessa totalidade. É essa pres- conseguem ficar sem medo. Esse processo de dominação é cada vez
mais amplo no decorrer da história: os mitos — enquanto falas — já
suposição dialética, na boa tradição hegeliana e marxista, que torna
representavam uma tentativa de dominar a angústia, dando-lhes
a questão da possibilidade da ruptura crítica tão necessária e tão
um(s) nome(s); mais tarde, a crítica aos mitos e à concepção animista
dramática.
da natureza configura um domínio do logos (razão e linguagem) sobre
Depois desta breve introdução, podemos agora ler o nosso pri-
meiro texto. si mesmo, um autodomínio, portanto. O processo de desmitologiza-
ção culmina no de dessacralização, em particular, na denúncia mo-
derna da religião: os deuses não passariam de projeções humanas,
No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclareci-
encarnações dos seus medos e dos seus desejos:
mento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do
medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra total-
...não podem livrar os homens do medo, pois são as vozes
mente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade
petrificadas do medo que eles trazem como nomes.
triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento
do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imagi-
nação pelo saber. (...) Os deuses não podem livrar os homens do A crítica da religião permite a façanha, característica da nossa
medo, pois são as vozes petrificadas do medo que eles trazem modernidade, da tomada de poder dos homens sobre os deuses, do
como nome. Do medo o homem presume estar livre quando não humano sobre o divino e o sagrado. Tendo chegado af, o homem
há mais nada de desconhecido. É isso que determina o trajeto da dever-se-ia encontrar livre do medo, pois não há mais nenhuma figura
desmitologização e do esclarecimento, que identifica o animado onipotente que possa ameaçá-lo. Ora, paradoxalmente, a erradicação
do medo pelo esclarecimento não produz mais a sua libertação, pelo
ao inanimado, assim como o mito identifica o inanimado ao
animado. O esclarecimento é a radicalização da angústia mítica. contrário, sempre segundo Adorno e Horkheimer, a
A pura imanência do positivismo, seu derradeiro produto, nada
mais é do que um tabu, por assim dizer, universal. Nada mais pode ...terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma
ficar de fora, porque a simples idéia do "fora" é a verdadeira fonte calamidade triunfal.
de angústia (Dialética do Esclarecimento, pp. 19 e 29).
Poderíamos também dizer que a luz branca da razão, do esclare-
Gostaria de ressaltar duas hipóteses-chaves da Dialética do Escla- cimento, transforma-se na escura luz devoradora da onipotência: ao
recimento neste belo texto: querer se livrar do medo pelo domínio total (e totalitário) sobre o
— O progresso do pensamento fora do mito para o esclarecimen- real, a razão do esclarecimento não pode mais tolerar nada que lhe
to, progresso questionável e questionado, não é desencadeado por escapa, nem deuses, nem estrelas, nem sonhos. O esclarecimento
um interesse desinteressado pelo conhecimento "enquanto tal". Ori- precisa tudo controlar para se sentir seguro. Ao tentar isso, cai num
gina-se muito mais num sentimento básico, no medo que acomete o processo de coerção tão ameaçador como o cego destino mítico. Isso
frágil homem frente As forças da natureza e à violência social. 0 se deve a duas razões interligadas: 1) como o esclarecimento pretende
112: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA
DO CONCEJO DE RAZÃO E M AOORNO : 113

abarcar tudo, qualquer força que viesse de fora se tornaria intensa- senão o de ser, exclusivamente, instrumentos arbitrários que permi-
mente ameaçadora, pois colocaria em questão essa totalidade fechada tem se apoderar da realidade ("arbitrários" no sentido igualmente
(no pensamento mítico, a relação com o fora era, sem dúvida, angus- nietzschiano de que eles servem mais ou menos bem aos interesses
tiante, mas, ao mesmo tempo, comum, normal, pois os próprios mitos daqueles que os usam, não no sentido clássico de que representariam
tematizavam essa intervenção do outro); 2) a denegação da existência
esquemas de apreensão mais ou menos fiéis ao real). Assim desapa-
de um fora que lhe escapasse e a afirmação do seu controle todo rece, como Habermas não se cansa de repetir a propósito de Nietzsche
poderoso não fortalecem a razão, apesar das aparências: tomam-na e dos seus seguidores (cf. p. 144), a diferença entre validade (Geltung)
simplesmente mais frágil porque mais entregue às suas próprias interdi- e poder ( Macht), e isso dentro da própria razão filosófica que, pelo
ções, aos seus próprios tabus. Resumindo: a razão triunfante só vence ao menos na sua origem, na luta de Platão contra a sofistica, pretendia
preço de uma proibição ditatorial sobre si mesma, a própria razão se resguardar a não-identificação dessas duas instâncias.
torna o deus ameaçador mítico em relação a si mesma. O grande tema A denúncia da instrumentalidade da razão é retomada e ampliada
iluminista da autonomia da razão (isto é, o fato de ela se dar as suas na crítica adorniana do conceito de identidade, critica esta que
próprias leis e de não aceitar obedecer a nenhum poder exterior) percorre toda a sua obra — tanto é que Wellmer pilde intitular um dos
transforma-se, na análise de Adorno e Horkheimer, no tema do seus ensaios "Adorno, Anwalt des Nicht-Identischen" ("Adorno, De-
autodomínio, e mais, da auto-repressão da razão sabre si mesma. fensor do Não-Idêntico" ).
Vocês devem ter percebido que a argumentação de Adorno e de Esta discussão do conceito de identidade, em particular do seu
Horkheimer retoma motivos marxistas, freudianos e, como o ressal- caráter arbitrário e coercitivo, que impede a razão de pensar a plura-
tam Wellmer (p. 15 e ss.) e Habermas (p. 144 e ss.), nietzschianos. lidade e a multiplicidade, é comum a toda a reflexão contemporánea
Seguindo esses dois comentadores, gostaria de explicitar rapidamente (cf., por exemplo, Heidegger, Deleuze etc.). A sua fonte se encontra,
esse parentesco com Nietzsche. A relação de Adorno e Horkheimer a é claro, na dialética hegeliana, mas também e em particular no que
Nietzsche é, como diz Habermas, zwiespaeltig ("cindida") (p. 145). Se diz respeito ao caráter coercitivo do conceito de identidade, em
criticam o Iluminismo, continuam, porém, iluministas, pois reto- Nietzsche. Wellmer menciona (p. 148) dois fragmentos póstumos de
mam e reafirmam o ideal de emancipação da razão, denunciando as Nietzsche que cito a seguir (tradução caseira):
suas perversões, mas reivindicando o valor de verdade da sua exigên-
cia critica. Nesse contexto, Nietzsche é condenado como sendo, em A lógica está ligada à seguinte condição: contanto que haja casos
última análise, um irracionalista (essa denúncia do irracionalismo idênticos. Com efeito, para que possamos pensar e concluir logi-
orientará também os vários textos de Habermas a respeito de Nietzs- camente, essa condição tem a obrigação de ser fingida como antes
che). No entanto, como o mostram Wellmer e Habermas, Nietzsche comprovada. Isto é: a vontade de verdade lógica só se pode
está presente na hipótese epistemológica maior da Dialética do Escla- cumprir depois de ter sido aceita uma falsificação de princípio
recimento, a saber, na redução genealógica da racionalidade iluminista de todo acontecer. Disso resulta que aqui reina uma pulsão
a uma dinâmica do poder. (Trieb) capaz dos dois meios, primeiro da falsificação, e depois
Podemos desdobrar essa denúncia nos dois traços principais da do cumprimento do seu ponto de vista: a lógica não nasce da
razão iluminista, segundo nossos autores, no seu caráter instrumen- vontade de verdade.
3

talista e no seu apego à identidade. O conceito de "razão instrumen-


tal" (cf. Horkheimer, Zur Kritik der Instrumentellen Vernunft, 1947) 3 "DieLogik istgeknuepft au die Bedingung:gesetzt, es gibt identischeFaelle. Tatsaechlich, damit
logisch gedacht undgeschlossen werde, muss dieseBedigung erst ais erfuelit fingiert werden. Das
remete à diferença entre entendimento e razão (Habermas, p. 144) e heissh der W illezur logischen Wahrheitkann erstsich voliziehen, nachdem einegrundzaetzliche
denuncia o formalismo da razão como um mero instrumento de Faelschung alles Geschehens angenommen Woraus sich ergibt, dass hier ein Trieb waiter,
der beiden Mittel faehig ist, tuent der Faelschung und dann der Durchfuemngseines Gesichts-
cálculo e de dominação. Esse tema é profundamente nietzschiano, punMes: die Logik stammt nicht aus dem Witten zur Wahrheit" (Ed. Schlechta, vol. III, p.
pois afirma que os conceitos não têm um outro valor de verdade 476).
114 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM . MEMÓRIA E HISTORIA DO CONCEITO DE RAZÃO EM ADORNO : 115

E: que Adorno não distingue, por exemplo, "identificação" e "adequa-


ção", "identidade" e "igualdade", "identificar com algo" e "identifi-
A obrigação de formar conceitos, gêneros, formas, fins, leis ("um
car como algo" etc. Isso lhe permite, entre outras coisas, uma
mundo de casos idênticos") não deve ser entendida como se pudés-
aproximação talvez rápida demais entre a lógica da identidade e a
semos assim fixar o mundo verdadeiro, mas como a obrigação de
lógica capitalista da troca ou entre a lógica da identidade e a consti-
nos ajeitar um mundo sob medida, no qual a nossa existência seja
tuição repressiva do sujeito. Não é aqui o lugar de desenvolver estas
possível: — criamos assim um mundo que é calculável, simplifi-
observações, que quis, porém, mencionar, pois me parecem muito
cado, compreensível etc., para n6s. 4
instigantes e ajudariam talvez a não sucumbir totalmente aos encan-
tos da radicalidade adorniana.
No decorrer de toda a sua obra Adorno retoma, e mesmo inten-
Segunda observação que nos levará a nosso segundo texto. Como
sifica, esta tese nietzschiana: o pensamento opera com repre-
Wellmer o ressalta (pp. 148-149), a idéia de uma ligação entre formas
sentações, conceitos, idéias etc. que pressupõem uma ordenação
de pensamento e formas de dominação da natureza não remete só a
arbitrária (Nietzsche diz, de maneira bastante paradoxal, uma "falsi-
Nietzsche, mas, é claro, também a Marx, com a diferença de que esse
ficação") da multiplicidade do real. Essa ordenação não é simples-
processo de dominação da natureza é pensado positivamente em
mente imprescindível à sobrevivência do ser humano; ela contém em
Marx como fazendo parte do processo de trabalho. Na Dialética do
si um momento de dominação, pois pretende fazer entrar a plurali-
Esclarecimento, Adorno e Horkheimer radicalizam então a tese mar-
dade concreta na camisa-de-força do idêntico. Ou ainda: o conceito
xista da correspondência entre formas de pensamento e formas de
de identidade não é somente uma condição necessária ao funciona-
trabalho ao denunciar, no próprio conceito marxista de trabalho, um
mento da racionalidade ocidental, é mais que isso — ele configura
momento de violência. Ou, dito de outra maneira: o pensamento de
uma tomada de poder nada inocente sobre a realidade, e só consegue
apreendê-la pela violentação. Marx também se inscreve na racionalidade iluminista e incorpora suas
Duas breves observações se impõem neste ponto da nossa exposição: características de dominação. Essa crítica a Marx não impede que, agora
Pode-se e deve-se aplicar à noção de identidade, tal qual Adorno contra Nietzsche, Adorno e Horkheimer compartilhem do mesmo con-
a emprega, a mesma critica que ele aplica à razão iluminista, isto é: ceito enfático de verdade que o marxista, quando denunciam o caráter
Adorno encobre com um único conceito uma multiplicidade de usos ideológico da racionalidade instrumental. Não afirmam somente, como
e contextos nos quais as palavras "identidade", "identificar", "iden- Nietzsche, que o pensamento identificador domina, violenta e, nesse
tificação" etc. funcionam. Essa observação de Herbert Schnaedel- sentido, falsifica o real (relativismo dos valores, perspectivismo etc.).
bach s provém da preocuPação atual da filosofia analítica com uma Dizem também, com Marx, que essa violência não remete somente a
clarificação da linguagem filosófica, pois, segundo essa direção ana- uma condição transcendental do conhecimento humano, mas muito
Iftica, a maioria dos problemas filosóficos remeteria a um uso confuso mais a uma dominação prática, que essa "falsificação" não provém só
das palavras e a uma substancialização desse uso (cf. Wittgenstein). de um perspectivismo universal, mas que ela é muito mais "uma
Sem querer entrar nesse debate, podemos notar, com Schnaedelbach, aparência socialmente necessária", como Marx o elucida no parágrafo
sobre o valor fetiche da mercadoria. Há, portanto, diz Wellmer — que
4 "Man soil die Noetigung, Begdffe, Gattungen, Formen, Zwecke, Gesetze zu bilden nine Welt sigo totalmente nesse ponto —, uma concepção normativa da verdade
der identischen Faelle) nichtso verstehen, ais ob wirdamit die wahre Weltzu /ixieren instande
waeren, sondem ais Noetigung, uns Bine Welt zurechtzumachen, bei der unte Existenz que funciona como critério de denúncia e orienta a exigência de
ermoeglicht wind: wir schaffen damit eive Welt, die berechenbar, vereinfacht, verstaendlich emancipação comum a Marx, Adorno e Horkheimer. S6 que essa
usw, fuer uns (Id., p. 526).
5 Schnaedelbach, Herbert. "Dialektik ais Vernunftkritik, zur Konstruktion des Rationalen verdade não pode ser pensada, na critica adomiana, nem com os
bei Adorno", in Adorno Konferenz 1983. Frankfurt am Main: suhrkamp, 1983, especial-
mente pp. 69 e ss.
instrumentos da nossa racionalidade identificadora nem com os
valores vigentes da nossa sociedade, embora — e isto é a cruz da
116 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMORIA E HISTORIA 00 CONCEITO DE RAZÃO EM ADORNO : 117

dialética adórniana — não haja outros meios ã disposição. Cito preender sua própria impossibilidade, a fim de salvaguardar sua
Wellmer (p. 149): possibilidade. Mas, tendo em vista as exigências que dal decorrem
para o pensamento, a questão da realidade ou irrealidade da
Adorno e Horkheimer retém com a perspectiva utópica da teoria redenção se torna quase indiferente. ]
marxista também um conceito enfático de verdade que deve,
porém, ser pensado ao mesmo tempo exterritorialmente em Não vou me demorar no comentário deste belíssimo texto, que,
relação ao mundo do pensamento identificador, ao contexto de parece, se basta a si mesmo, e que conclui a série de aforismos Minima
ofuscamento da racionalidade instrumental . 6 Moralia, subtítulo Reflexionen aus dem beschaedigten Leben (Reflexões a
É essa contradição entre a necessidade de pensar a verdade na sua figura Partir da Vida Danificada), um dos mais pungentes livros de Adorno.
de não-identidade, de diferença, de outro e a impossibilidade de escapar à Gostaria de ressaltar tres pontos.
falsa totalidade ideológico-social que tematiza o nosso segundo texto: 1. Todo o texto remete, não há dúvida, a motivos da teologia,
em particular da teologia neggativa. O motivo mais forte é, como
A única filosofia ainda responsável em face do desespero seria urna Michael Theunissen observa, o da prolepse, isto é, a presença ante-
tentativa de considerar todas as coisas como elas se apresentariam cipada do futuro no presente. Assim, Adorno evoca um conhecimento
na perspectiva da redenção. O conhecimento não tem outra luz "na perspectiva da redenção" e afirma que o "conhecimento não tem
que aquela que a redenção irradia sobre o mundo: todo o resto se outra luz que aquela que a redenção irradia sobre o mundo".
esgota na mera reprodução e permanece um fragmento de técnica. Atrás dessas formulações há a bela idéia de que todas as feridas
do mundo só poderão ser realmente conhecidas e reconhecidas no
Seria preciso abrir perspectivas nas quais o mundo se mostrasse
dia em que puderem igualmente ser enfim curadas; antes desse dia
em suas alienações, em suas descontinuidades e em suas fraturas,
não há possibilidade de conhec@-las integralmente, pois o próprio
da mesma maneira que aparecerá um dia, carente e deformado,
sofrimento do mundo afeta a nossa percepção, tornando-a grosseira
sob a luz do messianismo. O que importa antes de mais nada ao
e indiferenciada. Paralisia que poderíamos, talvez, interpretar tam-
pensador é abrir tais perspectivas, sem arbítrio e sem violência,
bém como uma estratégia canhestra de sobrevivência: não podemos
derivando-as do contato sensível com os objetos. É o mais simples,
nem queremos enxergar a amplidão do desastre, pois esta vista nos
porque a situação reclama imperiosamente tal conhecimento, e
mataria; só o ousaremos quando houver, justamente, possibilidade
porque a negatividade consumada, vista em seu conjunto, coin- de redimir este nosso mundo e este nosso olhar; mas paralisia que
cide com a imagem especular do seu contrário. Mas é também
também remete àquilo que Adorno chama várias vezes de Verblen-
algo totalmente i mpossível, porque pressupõe um lugar, subtraí-
dungzusammenhang, de contexto de ofuscamento, isto é, ao fato de o
do à gravitação do existente, ainda que de forma infinitesimal, ao
nosso conhecimento, de o nosso pensamento racional em geral, não
passo que todo conhecimento possível, se quiser ser rigoroso,
poder se furtar ao contexto social-politico de dominação. Essa conta-
deve ser arrancado pela violência ao que é, e está afetado precisa-
minação do pensamento por aquilo contra o qual pretende lutar nos
mente por essa razão, pela mesma deformação e pela mesma
leva à nossa segunda observação.
insuficiência daquilo a que pretende escapar. Quanto mais apai-
2. À luz da redenção se opõe, pois, no próprio texto, a escuridão
xonadamente o pensamento quer isolar-se de seus condiciona- da "negatividade consumada". No pensamento de Adorno de Minima
mentos, em busca do incondicionado, tanto mais inconsciente e Moralia o corpo social na sua totalidade é alienado. Mais: o sistema
portanto mais fatídica é sua absorção pelo mundo. Precisa com-
7 Habermas, J. "O idealismo alemão dos filósofos judeus", ensaio no qua] este fragmento
6 "Adorno und Horkheimer batten mit der utopischen Perspektivedermanschen Theoriezugleich de Minima Moralia é traduzido, trad. de B. Freitag e S. P. Rouanet, in Habermas (sdo Paulo:
einen emphatischen Begrii der Wahreit fat, der aber nun gleichsam exterritodal gedacht Ática, 1980), p. 99.
werden muss zur Welt des identilrzierenden Denkens, mm Verblendunszuzammenhang der 8 Theunissen, Michael. "Negativitaet bei Adorno", in Adomo-Konferenz 1983, op. cit.,
instrumentellen Rationalitaet" (op. cit., p. 149). especialmente pp. 54 ss.
118: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM , MEMÓRIA E HISTÓRIA
DD CONCEITO DE RAZÃO EM ADORNO 119

capitalista, entendido dialeticamente no sentido marxista, condicio- Adorno não é um dos numerosos pais do irracionalismo contempo-
na também as formas de resistência a ele. O pensamento não escapa
râneo) assinala uma certa humildade do pensar que quer seguir com
a essa determinação implacável. Ciente disso, ele deseja fugir do
ternura os contornos do sensível, gratuitamente, por simples prazer
contexto social alienado e, justamente nesse movimento de raiva,
e respeito, sem calcular antes qua] poderia ser o "lucro" que daí
reproduz a violência da totalidade.
resultaria ou não. Esse gesto deverá assumir uma importáncia cres-
cente na filosofia de Adorno, alimentando toda a sua revalorização
...Todo conhecimento possível, se quiser ser rigoroso, deve ser do conceito de mimesis, não como mera imitação nem como intuição
arrancado pela violencia ao que é e está afetado precisamente por aconceitual, mas, justamente, como uma flexibilidade aconchegante
essa razão, pela mesma deformação e pela mesma insuficiência à singularidade e à multiplicidade do concreto: o que desembocará
daquilo a que se pretende escapar. na sua teoria estética (cf. Schnaedelbach, op. cit., p. 81, e Wellmer,
op. cit., p. 153).
Espero que tenhamos agora elementos suficientes para chegar
Nesse total ofuscamento, nenhuma alternativa se oferece: ou o ao nosso último texto que se encontra na Dialética Negativa, que é
pensar se resigna à sua determinação e deixa de lutar, ou cisma em um pouco a suma teórica de Adorno ao lado de e junto com a sua
ser incondicionado e esconde assim ainda mais o seu condicionamen- Teoria Estética. Transcrevo este parágrafo, situado nas últimas páginas
to; em ambos os casos, não se furta ao contexto geral de alienação. da obra:
A esperança de redenção e à sua luz salvadora se contrapõe, assim,
no mesmo texto, a noite da totalidade fechada nas suas determinações Dialética é a autoconsciência do contexto objetivo de ofusca-
inelutáveis. É justamente esta contradição que define, em última mento mas não lhe escapou ainda. Irromper dele a partir de
análise, o esforço do pensamento: sabe do seu condicionamento dentro é objetivamente sua meta. A força para a irrupção lhe
irremediável, mas vive, no entanto, da esperança de poder escapar a advém a partir do próprio contexto de imanência; a ela caberia
esta estranha fatalidade dialética, de poder chegar a "um lugar sub- ainda uma vez aplicar a palavra de Hegel: a dialética absorve a
traído à gravitação do existente".
força do adversário e a emprega contra ele; não só no singular,
Podemos mesmo dizer que, para Adorno, o verdadeiro pensa-
visto dialeticamente, mas também, por fim, no todo. Ela
mento crítico não consiste em outro movimento que essa auto-reflexão
apreende com os meios da lógica o seu caráter de coerção,
sobre sua determinação e sobre a libertação dessa sua determinação. Por
esperando que ele ceda. Pois essa coerção é, ela mesma, a
isso, coma diz no fim do nosso texto, a questão de saber se há ou não
aparência mítica, a identidade imposta. O absoluto, entretanto,
redenção se toma secundária, em vista de saber se tal pensamento, que se
como se afigura à metafísica, seria o não-idêntico que tão-só
salvaria a si mesmo no seu mais profundo dilaceramento, é possível. Por
isso, podemos acrescentar, não há volta a teologia — que pressupõe a afloraria depois que a coerção à identidade se tivesse desfeito.
Sem a tese da identidade a dialética não é o todo; mas então
existência do absoluto — , mas sim permanência na filosofia, mais
também não seria urna falta capital abandoná-la num passo
precisamente na filosofia da auto-reflexão do espirito, numa fiel conti-
dialético. É da determinação da dialética negativa não tranqüili-
nuação da dialética hegeliana, o que desembocará na construção da
Dialética Negativa. zar-se em si mesma como se ela fosse total; esta é a sua figura de
3.
Temos já neste texto uma indicação preciosa do que poderia esperança. 9
ser um pensamento certamente racional, porém não dominador. Ao
9 Negative Dialektik, p. 396 (trad. JMG). "Dialektik ist das Selbstbewubtsein des objektiven
lado das altas abstrações da auto-reflexão encontramos, com efeito, Verblendungszusammenhangs, nicht bereits diesem entronnem. Aus ihm von innen her auszu-
uma outra exigência para o conhecer: aquilo que Adorno chama de brechen, ist abjektiv ihr Ziel. Die Kraft zum Ausbruch wdchst ihr aus dem lmmanenzzusa,n-
menhang zu; au(sie ware, noch einmal, Hegels Diktum anzuwenden, Dialektik absorbiere die
"contato sensível com os objetos" (Fühlung mit den Gegenstiinden).
Esse Kraft des Gegners, wende sie gegen ihn; nicht mur im dialektisch Einzelnen sondem am Ende
aspecto de respeito pelo sensível (repito e insisto, não pelo irracional, im Ganzen. Sic fabt mit den Mitteln von Logik doren Zwangscharakter, hoffend, dap erweiche.
120 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM , MEMÓRIA E HISTÓRIA 00 CONCEITO 0E RAZÃO EM ADORNO : 121

Adorno retoma aqui, numa continuidade notável, a idéia- isto é uma outra questão. Mas há, sem dúvida nenhuma, nesse
mestra da Dialética do Esclarecimento, segundo a qual a racionalidade movimento do pensamento através e além de si mesmo, um esforço
se reverte em mitologia ao impor mecanismos coercitivos tão abso- notável de reabilitação da metafísica, da filosofia, contra a sua redu-
lutos como outrora, o pensamento identificador em particular. S6 ção à racionalidade identificadora do positivismo ou do senso dito
que, mais dialético talvez do que na primeira obra, ele consegue comum. Partindo assim de uma crítica da razão do esclarecimento,
vislumbrar, digamos, não uma saída, mas talvez uma possibilidade como o vimos, Adorno chega a uma salvação do conceito de razão,
de superação. Essa se encontra, seguindo a lição de Hegel, na auto-re- entendido agora como o logos pleno, capaz de dizer também os seus
flexão do pensamento sobre o seu próprio caráter coercitivo: "ela (a li mites e, ao faze-1o, de indicar a sua auto-superação. Não há, portan-
dialética) apreende com os meios da lógica o seu caráter de coerção, to, ã diferença de Heidegger, destruição da metafísica em Adorno, mas
esperando que ele ceda." si m muito mais a sua Aufhebung, destruição e conservação ao mesmo
Notemos aqui que o pensar não desiste dos seus próprios tempo. l3 Aufhebung certamente no sentido hegeliano, mas, contra a
instrumentos para chegar além de si mesmo. Adorno não propõe um filosofia hegeliana do espírito absoluto, Aufhebung que não intencio-
intuicionismo imediato nem um irracionalismo ingênuo para escapar na nenhuma totalidade positiva; ao contrário — e é par isso que se
da lógica identificadora. Propõe, sim, na boa tradição plat©nica, um chama negativa —, a dialética adorniana desiste do absoluto, isto é,
demorar e um treinar na linguagem e na ratio, no logos, para enxergar no fundo, da própria possibilidade de uma totalidade realmente
a sua insuficiência e indicar, talvez, o que seria seu outro fundador. l ° verdadeira. "É da determinação da dialética negativa não tranqüili-
Diz ele na mesma Dialética Negativa que o esforFo da filosofia consiste zar-se em si mesma como se fosse total; esta é a sua figura de
em "ir além do conceito através do conceito", o que soa como um esperança."
comentário da Sétima Carta de Platão. Essa esperança (a palavra volta É a sua figura de esperança, certamente, e é, também, podemos
nos arriscar a dizer, a sua mais alta figura de autonegação e, nesse
várias vezes em momentos-chaves do texto: "esperando que ceda" —
sentido, a última despedida da razão ocidental ã bela idéia de totali-
"esta é a sua figura de esperança") parecia ausente da Dialética do
Esclarecimento, já surgia timidamente sob uma forma quase teológica dade dialética. Talvez Adorno seja o último filósofo que ainda tentou
no texto de Minima Moralia, e, aqui, está afirmada como a condição pensar juntas totalidade e razão — só que, para salvar um conceito de
transcendental de um pensar verdadeiro. Notemos a propósito, com razão verdadeira, viu-se obrigado a abrir mão de um conceito de
Michael Theunissen, l que ela é um argumento de peso contra a totalidade verdadeira.
interpretação muito comum da filosofia adorniana como uma filoso-
fia pessimista. Theunissen fala até do otimismo da Dialética Negativa.
O que gostaria de ressaltar é, no entanto, um outro aspecto. A figura
da esperança em Adorno torna-se cada vez mais inerente ao próprio
movimento do espirito. Poderíamos talvez dizer que ele escreve uma
Dialética Negativa (e, certamente, uma Teoria Estética) para escapar da
tentação da teologia negativa. Que ele o tivesse ou não conseguido,
Dera, jener Zwang ist selber der mythisehe Schein, die eriwungene
Identitdt. Das Absolute
jedoch, wit' es der Metaphysik vorschwebt, ware das
Nichtidentische das en! hervortrate,
nachdem der Identitdtszwangzergmg. Ohnetdentitatsthese ist Dial ektik nicht das Gauze; dann
aber ouch keine Kardinalsiinde, sie in einem dialektischen Schdtt zu verlassen. Es liegt in der
Bestimmung negntiver Dialektik, dap sie sich nicht bei sich beruhigt, ais ware sie total; das
ist
ihre Gestalt vo,i Hoffnung."
10 Cf. Schnaedelbach, op. cit., pp. 67, 75-6.
11 "Ueber den Btgriff durch den Begriff hinauszugehen", Negative Dialektik,
p. 25.
12 Op. cit., pp. 49-50.
13 Cf. Theunissen, op. cit., p. 59.
BIBLIOGRAFIA VII. O HINO, A BRISA E A TEMPESTADE:
DOS ANJOS EM WALTER BENJAMIN

A Michael e Eleni. E para Peter


ADORNO, T. W. Minima Moralia,
1947. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1970. Tradução brasileira de L. E. Bicca, São Paulo: Ed. Ática, 1992.
. Negative Dialektik., Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1966.
(trad. cap., Dialética Negativa,
trad. de J. M. Ripalda. Madrid:
Taurus, 1985.).
ADORNO, T. W. e HORKHEIMER,
M. Dialektik derAufkldrnng, 1944
( Dialética Negativa, trad. de Guido
de Almeida. Rio de Janeiro:
Zahar, 1985).
Adorno-Konferenz 1983. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1983. Em Talvez sejam os anjos a figura mais conhecida de Walter Benjamin,
particular: Theunissen, M. "Negativitãt bei Adorno", op. cit., p.
41 ss., Schnãdelbach, H. "Dialektik als Vernunftkritik. Konstruk- este autor judeu, alemão, filólogo e filósofo, teólogo e marxista, que
tion des Rationalen bei Adorno", op. cit., p. 66 ss. foi, primeiro, desconhecido e que se tornou, de repente, quase famoso
demais, por demais na moda. Assim, as numerosas comemorações
ASSOUN, P. L. e RAULET, G. Marxisme et Théorie Critique.
1978. Paris: Payot, que marcaram, em 1992, o centenário de seu nascimento, trazem,
várias vezes, como emblema o Angelus Novus, essa gravura de Klee
Volume HABERMAS, intr. e trad. de B. que Benjamin comprou em 1921 em Munique, que ele considerava
Freitag e S. P. Rouanet. São
Paulo: Ática, 1980. como sendo uma das suas mais preciosas aquisições e que ele descre-
HABERMAS, J. Der philosophische Diskurs der Moderne. veu de maneira lancinante em sua nona tese "Sobre o Conceito de
Frankfurt am História": por exemplo, a capa do livro de Stéphane Mosês, O Anjo da
Main: Suhrkamp, 1985.
História, livro consagrado a Rosenzweig, Benjamin e Scholem (Seuil,
WELLMER,
A. Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne, Vemunftk- 1992) ou, do outro ‘ lado do Atlãntico, o grande cartaz impresso pelo
ritik nach Adorno. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985. Instituto Goethe de Buenos Aires para seu Colóquio Internacional de
outubro de 1992 sobre Walter Benjamin. Se os anjos povoam, por-
tanto, o pensamento de Benjamin, esse povoamento subverte, como
tantas vezes em Benjamin, a idéia mesma de uma posição estável, de
uma pátria definitivamente conquistada, de um enraizamento subs-
tancial, seja ele de ordem teórica ou existencial. Por isso, qualquer
estudo dessa figura, que tenderia a reconduzir suas aparições parado-
xais a uma única função essencial, corre o risco de aprisionar, mais
uma vez, Benjamin nesta alternativa que ele não quis resolver,
durante sua vida inteira, e isso apesar da insistência dos seus nume-
rosos (e opostos) amigos: qual seja,' essa alternativa, a de ser o
autêntico e último testemunho da tradição mística judaica ou; então,
o precursor de uma tradição marxista renovada. A análise das figuras
angelicais benjaminianas não escapa sempre a essa dicotomia, seja com
124: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTÕRIA 0 NINO, A BRISA E A TEMPESTADE: DOS ANJOS EM WALTER BENJAMIN 125

Scholem brandindo o manuscrito autobiográfico póstumo Agesilaus anjos gloriosos e imponentes se apagam frente a outros que poderiam
Santander 1 como se esse fosse o signo irrefutável da participação
ser chamados de "menores", que só vivem no instante de seu hino
fundamental de seu amigo à tradição mística, mesmo cabalística para, em seguida, se desvanecer na noite. No texto pragmático da
judaica, signo, portanto, da superficialidade de seu interesse pelo
revista Angelus Novus, Benjamin os descreve da seguinte maneira:
marxismo; ou, pelo contrário, que a presença dos anjos em Benjamin,
seja silenciada ou, então, taxada de simples metáfora — como se tal Pois os anjos — novos a cada instante em inúmeras multidões —
simplicidade pudesse existir! —das esperanças dos vencidos humilha- são, segundo uma lenda talmúdica, mesmo criados para, depois
dos em sua luta pela liberação. de terem cantado seu hino na frente de Deus, cessar e desaparecer
Gostaria de examinar aqui a presença dos anjos na obra de no nada. Que uma tal atualidade que é a única verdadeira, caiba
3
Benjamin, mais especificamente de examinar aquilo que essa presen- à revista, é isso que seu nome deveria significar.
ça contém de evasão e de perda, aquilo que faz que ela não nos
preencha nem nos liberte, mas nos escape, até nos ameace. Ao mesmo Eis um texto muito estranho para anunciar uma nova revista!
tempo evasivos e insistentes, os anjos surgem nesses textos às vezes Contra os protestos de perenidade, de essencialidade ou de profun-
discretamente, incógnitos por assim dizer, às vezes mais claramente, didade costumeiros nesses casos, Benjamin reivindica uma atualidade
da claridade do fogo purificador, para desaparecer tão de repente si multaneamente resplandecente e frágil, o tempo de cantar um hino
como apareceram — a tal ponto que, muitas vezes, o leitor quase não e, em seguida, de se aniquilar. Nenhuma pretensão, portanto, nem à
os percebe. Essas características estilísticas reproduzem, de maneira duração nem a esse conceito trivial de atualidade que, tantas vezes,
notável, na própria estrutura dos textos, a temporalidade especifica serve de álibi aos professores desarmados para convencer seus alunos
dos anjos tal qual a descreve "o motivo talmúdico do vir a ser e do a estudar os velhos textos. Os anjos talmúdicos são mais o indicio de
parecer dos anjos diante de Deus, a propósito de que um livro um outro tempo que o das comemorações; eles introduzem, na
cabalístico diz que desaparecem como faísca sobre o carvão". 2 Esses cronologia linear e morosa que costumamos chamar de história, uma
anjos fulgurantes e efémeros que Benjamin conhecia graças às pes- cesura imperceptível mas que transforma esse continuum histórico,
quisas de Scholem são, sem dúvida alguma, os que mais marcaram tão ocupado a se perpetuar a si mesmo. Aqui intervém um dos temas
essenciais da filosofia de Benjamin, do primeiro até o último de seus
seu pensamento; e isso com tal força que voltam em três textos
escritos, o tema da critica a uma "concepção do tempo homogêneo e
diferentes e distantes cronologicamente: no artigo de 1921 escrito
vazio"; deve-se interromper esse desenrolar tranqüilo, produto da saga
para anunciar a publicação de uma revista — que nunca devia sair! —
intitulada justamente, Angelus Novus, das classes dominantes e da inércia espiritual dos historiadores, para que
no grande ensaio crítico de uma outra história possa dizer-se, entrecortada, lacunar, feita de sobres-
1931 sobre Karl Kraus e, por fim, nos fragmentos autobiográficos de
saltos e de espasmos que surgem no presente como a imagem breve e
agosto de 1931 reunidos sob o nome de Agesilaus Santander. Das
brilhante de um instante perdido ou recalcado: a história dos vencidos
conversas com seu amigo, Benjamin não retém tanto a imagem dos
que não é nenhuma nova gesta heróica e apologética, mas sim, uma
arcanjos mensageiros que transmitem a vontade divina ou a imagem
narrativa recortada, descontínua, frágil e sempre ameaçada pelo
dos querubins em chamas que guardam o domínio de Yahvé. Esses
esquecimento.
1 Agesilaus Santander, publicado por Gershom Scholem primeiro no volume coletivo Zur A atualidade dos anjos talmúdicos está à altura de sua intensida-
Aktalitdt Wafter Benjamins de, essa jubilação do hino cantado na frente do trono de Deus, e de
(Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972), pp. 94-102, cam os
comentários de Scholem intitulados: "Walter Benjamin und sein Engel", idem, pp.
87-138. As duas versões do fragmento são retomadas na edição das obras completas
seu aniquilamento consecutivo. Esses dois aspectos, o jubilat6rio e o
( Gesammelteschriften, aniquilador, são inseparáveis, ou melhor, é justamente a união de
vol. VII, pp. 520-523). Como tantas vezes, o comentário de Scholem
é muito instrutivo por suas referências precisas á tradição mística judaica, mas bastante
insuportável no seu tom personalizante e antimarxista. W. Benjamin, "Ankündingung der Zeitschift Angelus Novus", Gs. 5chr. 11-1, p. 246.
2 G. Scholem, idem, pp. 108. 3
Tradução de Jeanne Marie Gagnebin.
126 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMÓRIA E HISTÓRIA 0 HINO, A BRISA E A TEMPESTADE: DOS ANJOS EM WALTER BENJAMIN 127

ambos que permite pensar, segundo Benjamin, o conceito de uma Essas características ao mesmo tempo ameaçadoras e redentoras
verdadeira atualidade: fulgurante, evanescente e destruidora. Os an- são reencontradas no anjo das duas versões do fragmento autobiográ-
jos são aqui os portadores de uma destruição necessária, sua própria, fico intitulado Agesilaus Santander que Scholem publicou e comentou
certamente e, mais profundamente ainda, a destruição de um tempo em 1972, numa coletânea de ensaios de diversos autores, por ocasião
que teria a pretensão de se perpetuar a si mesmo. Esse lado destruidor dos oitenta anos do nascimento de Benjamin. Scholem chega a decifrar
sem o qual não pode haver nem atualidade verdadeira nem, como o título enigmático desses textos como sendo o anagrama de Angelus
veremos, verdadeira redenção, fica mais realçado na passagem para- Santanas. Nesses fragmentos bastante esotéricos que Benjamin, isso
lela do ensaio sobre Karl Kraus. Aqui também, podemos notá-lo, deve ser notado, não pensou em publicar durante sua vida, o Angelus
trata-se de descrever a atividade de Kraus como editor de uma revista Novus de Klee reaparece como um dos anjos talmúdicos, mas ele é
de nome abrasador e purificador: Die Fackel, a tocha. Essa "obra descrito de maneira mais precisa, com suas "garras afiadas" e o "bater
s
efêmera", nos diz Benjamin no fim de seu ensaio, já "começou a cortante de uma faca" de suas asas. Um novo tema intervém: o do
durar" graças à crítica corrosiva que seu autor empreende da imprensa nome secreto que, segundo a tradição judaica, seu anjo poderia revelar
burguesa. A atividade angelical de Kraus nasce de um empreendimen- a cada homem; mas esse motivo é, por assim dizer, enviesado, como
to obstinado de destruição sempre recomeçada, pois sempre rapida- que pervertido pela ação profundamente desestruturante que o anjo
mente caduca, da linguagem tão segura de si mesma dos bem-pensantes exerce aqui. Com efeito, ele não revela nenhum nome escondido e
e dos bem-apessoados. A verdade da operação crítica surge desta união mais verdadeiro, recusando assim ao seu protegido a descoberta de sua
radical entre destruição e salvação: ao arrancar as palavras e as obras essência invisível. Talvez seja isso um castigo, pois Benjamin o teria
do contexto lenitivo que, às vezes o próprio autor, e, quase sempre, i mpedido, ao se apoderar do quadro de Mee, de cantar seu hino e de
desaparecer. Deste modo o "bom anjo" originário se transforma, nesse
a história literária tradicional se apressam em lhes emprestar, a crítica
texto, num anjo certamente próximo, mas igualmente imprevisível,
quebra sua unidade factícia e, simultaneamente, expõe sua força de
estranheza e de subversão. Esse tema caro a Benjamin desde seus malicioso, até ameaçador. O anjo cujo nome não tem mais nada de
"semelhante ao homem" não anuncia mais a plenitude do nome
primeiros escritos adquire, no ensaio sobre Kraus, a dimensão de uma
verdadeiro e secreto, mas se refugia nos intersticios da ausência e da
luta do "humanismo real", irreverente e transformador, o humanis-
mo de Karl Marx e de Karl Kraus, contra o "ideal clássico do huma- separação:
nismo" que devia engendrar a matança da Primeira Guerra e as
Mas o anjo parece com tudo aquilo de que tive que me separar:
repressões sanguinárias que se seguiram. A figura do anjo intervém
os homens e também os objetos. Nos objetos que não tenho mais,
aí como o "mensageiro do humanismo real", mas sob os traços de
ele mora. Ele os torna transparentes e atrás de cada um aparece
um Unmensch, de um não-homem, do inumano, de uma "criatura
aquele a quem foram destinados. Por isso, ninguém pode me
nascida de uma criança e de um devorador de homens", "nenhum
superar na arte de presentear. Sim, talvez fosse o anjo atraído por
novo homem", um "novo anjo", "talvez um deles que, segundo o
alguém que d3 presentes e vai embora de mãos vazias.
Talmud, novos em cada instante e em multidões inúmeras, são
criados para, deois de alçar sua voz diante de Deus, cessar e desapa- 6
Como o observou Jürgen Ebach, esse anjo canhestro e inquie-
recer no nada." Os anjos talmúdicos se tornaram aqui anjos exter- tante é a réplica, ao mesmo tempo fiel e invertida, do anjo com o
minadores e purificadores, nada têm de suaves e sorridentes criaturas
protetoras, mas, para salvar aquilo que ainda resta da humanidade 5 Oto aqui de preferencia a segunda versão do fragmento Agesilaus Santander, op. cit., pp.
real dos homens e não se reduz à fraseologia, assumem os traços de 100-102. Tradução de Jeanne Marie Gagnebin.
6 Jurgen Ebach, "Agesilaus Santander und Benedix Schdniliess: Die venvandelten Namen
inumano, até do monstruoso. Walter Benjamins" in Antike und Moderne. Zu Walter Benjamins 'Passager", reunidos e
editados por Norbert Bolz e Richard Faber (Kdnigshausen und Neumann, 1986), pp.
4 W. Benjamin, "Karl Kraus", Gs. Schr. II-I, p. 367. Tradução de Jeanne Marie Gagnebin. 150/51.
128: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA B HINO, A BRISA E A TEMPESTADE _ DOS ANJOS EM WALTER BENJAMIN : 129

qual, segundo a tradição, lutou Jacó: não revela seu nome, não tem Kafka que, sem dúvida, seriam os únicos a deter a solução, mas que
a força de abençoar, anuncia o vazio, a separação e a ausência em são, ao mesmo tempo, frágeis, ligeiramente ridículos, canhestros e
vez do reencontro com o irmão e com a pátria. Jürgen Ebach ressalta deslocados, assim também os anjos de Benjamin se caracterizam mais
igualmente que a tradição dos anjos efêmeros que cantam seu hino por sua fraqueza, até sua impotência, que por seu poder. Eles não
diante de Deus, que essa tradição tinha se constituido principalmen- escapam ao "desencantamento do mundo" e, em particular, a essa
te a partir dos comentários dessa passagem do Gênese, o que ressalta espécie de anacronismo risível da teologia, "hoje pequena e feia e que
ainda mais as estranhas afinidades entre a história de Jacó e esse não ousa se deixar ver", como o diz tão bem Benjamin na sua primeira
texto de Benjamin (que traz o nome do último dos filhos de Jacó!). tese "Sobre o Conceito de História". São essas transformações da
O fato de Benjamin sofrer da perna e ter dificuldade de andar na teologia, devemos observá-lo, absolutamente essenciais para enten-
época em que escreveu essas linhas pode ser um indício a mais der seu papel no pensamento de Benjamin, que deveriam induzir à
dessa proximidade com Jacó, aquele que Deus/o Anjo não conseguiu prudência qualquer interpretação predominantemente religiosa de
vencer, mas que ele tornou coxo. sua obra. Longe de serem gloriosos mensageiros ou testemunhas
Os anjos de Benjamin parecem assim progressivamente atingidos inequívocas da transcendência, os anjos não possuem mais o esplen-
por uma espécie de incapacidade ou de deformação, bem como as dor do sagrado, mas participam, eles também, das hesitações, das
bizarras criaturas de Kafka, esses ajudantes e esses mensageiros que dúvidas, dos desamparos do mundo profano. Se ficaram seres desa-
poderiam, pois, ser anjos potenciais, mas que só conseguem incomo- jeitados e muitas vezes incapazes, eles continuam porém, ou talvez
dar aqueles que deveriam ajudar e que não transmitem mais nenhu- mesmo por isso, a ser anjos, porque é mais na incapacidade e na
ma mensagem. Na sua carta a Scholem a respeito do livro Kafka de fraqueza antes que na força e na potência que poderia ainda se dar,
Marx Brod, Benjamin fala do "mundo tão claro (heiter) e atravessado segundo Benjamin, algo como uma relação ao divino.
por anjos" de Kafka, "complemento preciso de sua época que se deu Dois muito belos trechos da "Infância Berlinense", essa seqüência
por tarefa suprimir em grandes massas os habitantes deste planeta". de quadros ao mesmo tempo autobiográficos e coletivos, colocam em
Ele acrescenta que esse mundo complementar, portanto essa espécie cena esses anjos desamparados e, no entanto, ativos: o Anjo da Morte
de anexo ao mesmo tempo secundário e preciso, torna Kafka parente e o Anjo de Natal. O Anjo da Morte aparece num texto inquietante,
de Klee, esse outro grande inventor de anjos deformados, deslocados, "Acidentes e Crimes", que descreve o menino em seus passeios
dos quais não se sabe sempre, como das criaturas de Kafka, se eles citadinos, à procura, sim, à espreita da desgraça: um acidente, uma
estão nascendo, se eles são jovens anjos — outra tradução possível de morte, um roubo, um incêndio ou um afogamento, tudo na grande
Angeli Novi — que aprendem a voar, como o parecem indicar os nomes cidade parece prestes a acolher uma infelicidade que não ocorre ou
que lhes deu o pintor, 7 ou se eles não seriam mais anjos abortados, que já sumiu quando a criança, ofegante, chega no local. Mais
quase disformes, incapazes de voar, de ajudar e de transmitir qualquer fundamentalmente que a sempre possível infelicidade, é sua preven-
mensagem divina. Mas são, no entanto, os únicos anjos que ainda ção onipresente que torna a atmosfera da grande cidade tão sufocan-
restam, esses seres "inacabados e inábeis para quem a esperança te: os carros-fortes com as janelas cheias de grades, os salva-vidas que,
existe", 8 como o diz Benjamin das figuras de Kafka. como um anel, "prometiam em casamento com a morte" cada uma
Chegamos aqui a um dos paradoxos essenciais desta pequena das muitas pontes do rio, e, enfim, as persianas fechadas do grande
angelologia benjaminiana. Como os ajudantes e os mensageiros de hospital onde agonizavam os "doentes graves".
7 Ver a esse respeito Peter von Haselberg, "Benjamins Engel", in Materia/en zu Benjamins
Thesen "über den Begriff der Geschichte", textos reunidos e editados por Peter Bulthaup Ao ouvirem falar do Anjo da Morte, comenta Benjamin — que
(Frankfut am Main: Suhrkamp, 1975), pp. 348 ss.
8 Walter Benjamin, "Franz Kafka", in Ges. Sc?,,. J!-2, p. 415. Tradução de Jeanne Marie
assinalou com o dedo as casas dos egípcios, onde os primogênitos
Gagnebin. A grande carta de Benjamin a Scholem sobre Kafka é da mesma época. Cf. W. deveriam morrer, os judeus devem ter visualizado aquelas casas
Benjamin, Briefe (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1966), vol. II, pp. 756-765. com tanto terror quanto eu aquelas ¡anelas fechadas. Mas será aue
130: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA 0 HINO. A BRISA E A TEMPESTAOE: DOS ANJOS EM WALTER BENJAMIN : 131

o Anjo da Morte cumpria realmente sua obra? Ou será que um bado pelos preparativos de Natal, encontra seu correspondente sen-
belo dia as persianas se abriam, e o doente grave assomava à janela sível na oposição entre o calor luminoso das velas e das árvores de
como convalescente? Não se deveria o ter ajudado — ajudar a Natal e a escuridão dos pátios internos onde os pobres vêm tocar
morte, o fogo ou apenas o granizo que tamborilava nos vidros da realejo para receber algum trocado. O menino se mantém no li miar
9
minha janela sem jamais quebra-la? (uma noção privilegiada no pensamento de Benjamin) entre esses
dois mundos: ele espera pela hora dos presentes no seu quarto de
Nessa estranha descrição, mesmo o Anjo da Morte, o Anjo vinga- menino mimado, mas ele não acendeu a luz e, nesse fim de tarde de
dor e justiceiro de Yahvé se revela um anjo sem letra maiúscula e sem inverno, seu olhar é atraído pelas janelas dos apartamentos mais
grande eficácia, um anjo que deve nachhelfen, como diz o alemão, pobres que dão para o pátio. Essas janelas escuras ou somente
"ajudar depois" a fim de que sua obra não se perca a meio caminho, iluminadas pela triste luz do gás só fazem aumentar o brilho da árvore
mas possa se cumprir. O verdadeiro perigo que espreita o menino que espera por ele na sala. Nesse intervalo entre a escuridão da miséria
burguês e protegido não é, portanto, como esse texto o faz perceber e a luz das festividades acessíveis aos ricos passa, de repente, o sopro
tão bem, nem o acidente, nem o roubo, nem a ruina de seus pais, de uma outra vida:
mas, sim, que nada vá realmente até seu cumprimento, nem a revolta
dos infelizes, nem mesmo o terror da morte, nem a perigosa plenitude ....parecia-me que essas janelas natalinas continham em si a
da vida. Como o diz muito bem Anna Stussi no seu belo comentário solidão, a velhice e a indigência — tudo aquilo que os pobres
à "Infancia Berlinense": "O desejo da morte e do fogo aniquiladores calam.
é o desejo da vida plena que s6 se tomaria possível na quebra Então de novo me veio à lembrança a distribuição de,presentes
(Zertrtlmmerun ) dos limites impostos pelos vidros, pelas persianas e preparada por meus pais; porém, mal me desviara da janela com
pelas grades. i1 $ O que manifesta aqui a impotência do anjo, portanto, o coração pesado, como só o faz a proximidade de uma alegria
é, sem dúvida, a fraqueza da tradição teológica e de qualquer tradição certeira, senti uma presença estranha no quarto. Não era nada
totalizadora, pois é a própria tradição que "adoeceu"; mas, também além de um vento, de modo que as palavras que se formaram em
se manifesta, no seio dessa mesma impotência, uma nova exigência, meus lábios foram como as pregas que um velame inerte lança
especificamente política, pois aqui são os homens que, paradoxal- subitamente à brisa fresca: "O Menino Deus volta todos os anos/A
mente, poderiam ajudar os anjos a acabar sua obra necessária e terra onde vivemos nós, humanos": com tais palavras se volatili-
11
purificadora. Podemos mesmo ir mais longe na interpretação e dizer zou também o anjo que nelas começara a tomar forma.
que a intervenção do anjo não se manifesta mais na sua eficácia
soberana, mas, sim, neste apelo, ao mesmo tempo imperceptível e A "presença estrangeira/estranha" que só se manifesta um instan-
lancinante, a interromper o escoamento moroso da infelicidade te, o tempo de esboçar seu hino, faz surgir o pressentimento de uma
cotidiana e a instaurar o perigoso transtorno da felicidade. outra felicidade possível, outra que a felicidade, como o diz Benjamin,
Esse apelo se transforma na voz de uma "presença estrangeira" "certeira", assegurada pela posição social e pela previsibilidade da
no quadro da mesma "Infância Berlinense" intitulado "Um anjo de ternura dos pais. Essa presença de um outro ausente não nega a
Natal". O texto inteiro está construido em cima da antítese, simulta- realidade do dado, da segurança da riqueza e dos presentes, mas
neamente bem conhecida e mantida escondida pelos adultos, entre introduz o murchar passageiro dessa segurança, como a brisa que faz
a abundancia dos ricos e a miséria dos pobres; esse contraste, exacer- pregas nas velas de um barco segundo a bela imagem de Benjamin —
para partir de verdade, o navio precisa de um outro ela, do elã
9 W. Benjamin, "Infancia em Berlim por volta de 1900", em Obras Escolhidas, vol. II (Sao
Paulo: Braslllense, 1987), p. 131 (tradução modificada). consciente do navegador que sabe aproveitar o vento favorável. Essa
10 Anna Stussi, Erinnentng an die Zukunft (Gdttlngen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1977), p.
239. Tradução de Jeanne Marie Gagnebin. 11 "Infancia em Berlim...", idem pp. 121/22.
1 32 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMÓRIA E HISTÓRIA
0 HINO. A BRISA E A TEMPESTADE: DOS ANJOS EM WALTER BENJAMIN : 133

"brisa fresca" não tem, portanto, nada da violência irresistível do


encontra já em germe em seus ensaios críticos de juventude, consa-
furacão, ela quase não se percebe e, já, não está mais. É a irmã desta
grados a temas ou a aspectos da tradição cultural muitas vezes
"leve brisa" na qual Elias reconhece a presença de Yahvé, o Deus todo-
esquecidos, desconhecidos, até excêntricos e taxados de menores.
poderoso que não se manifesta nem na tempestade nem no terremo-
Devemos porém notar, para não cair no erro de fazer de Benjamin o
to, mas sim num sopro refrescante (Primeiro Livro dos Reis, cap. 14).
defensor de uma espécie de acumulação positivista e arquivista da
Isso quer dizer também o quanto ela é renovadora, preciosa e, infinita história dos vencidos, devemos notar, então, que a salvação
simultaneamente, frágil, como a volta anual do menino Jesus na Terra do passado não é simplesmente sua conservação integral, mas, mais
que corre o risco de passar desapercebida, paradoxalmente sufocada profundamente, a interrupção do desenrolar incansável da cronolo-
pela rotina das festividades. O menino que a pressentira sairá do seu gia, isto é a redenção, a liberação, sim, a dissolução e o desenlace
quarto e se juntará ã festa; mas algo fica como um mal-estar em (Er-lõsung) dessa temporalidade infinita e infernal: só nesse momento
relação a seus esplendores, como uma distância entre a criança, ávida poderia se realizar a atualidade dos anjos talmúdicos na qual cada
de presentes, e si mesma, distancia oriunda da escuridão das janelas instante ficaria tão pleno do seu próprio canto que poderia desvane-
no pátio e da imperceptível presença de uma alteridade radical: cer-se com alegria frente ao próximo.
Mas o último anjo de Benjamin, o mais conhecido sem dúvida,
Chamaram-me para o aposento defronte, no qual a árvore entrará não é o de um tempo jubilatório e efêmero, mas, naturalmente, o da
em sua glória, o que dela me alienou até que, desprovida de seu nona tese "Sobre o Conceito de História"; se não falei dele até agora,
suporte, terminou a festa enterrada na neve ou reluzente sob a chuva, é também para mostrar que ele não é único, mesmo que seja, sem
ld onde um realejo a tinha iniciado. 12 dúvida, o mais patético, mas que ele se inscreve numa linhagem
bastante complexa. Cito:
Esse mal-estar, essa distancia testemunha a passagem do anjo que,
como seu irmão do fragmento Agesilaus Santander, desestrutura a Existe um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Nele esta
identidade bem estabelecida do sujeito e da história; mas essa deses- representado um anjo, que parece estar na iminência de afastar-se
truturação se mostra aqui, de maneira mais clara, ser um desamparo de algo em que crava seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua
benéfico pois faz entrever durante um instante, o tempo de um hino boca está aberta e suas asas estão estendidas. O Anjo da história
ou de três versos de um canto de Natal, que infelicidade e felicidade deve parecer assim, Ele tem o seu rosto voltado para o passado.
poderiam ser radicalmente outras, que a primeira não é nenhuma Onde diante de n6s aparece uma cadeia de acontecimentos, ele
necessidade nem a segunda uma segurança. O anjo de Natal é a enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros
encarnação breve e frágil desses encontros muitas vezes falhos, as sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem gostaria de
vezes felizes, nos quais a história dos homens poderia, de repente, demorar-se, acordar os mortos e juntar os destroços. Mas do
não seguir mais a inércia de seu curso, mas interromper-se, bifurcar, paraíso sopra uma tempestade que se emaranha em suas asas e é
abrir um novo caminho. Nesse momento então, os sofrimentos do tão forte que o anjo não mais pode fechá-las. Esta tempestade o
passado não seriam, certamente, nem abolidos nem reconciliados, impele irresistivelmente para o futuro, ao qual volta as costas,
mas as esperanças malogradas seriam reconhecidas, nomeadas, reto- enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu.
madas na fidelidade de uma memória ativa e inovadora. Essa concep- O que nós chamamos de progresso é essa tempestade. 13
ção simultaneamente revolucionária e messiânica de uma restituição
integral da história — Benjamin cita a noção de apokatastais de Reencontramos aqui numerosos elementos das aparições angeli-
Origines — baseia a filosofia da história do último Benjamin e se cais precedentes. Trata-se de novo do Angelus Novus de Klee, do qual

12 Idem, grifos meus. 13 W. Benjamin, "Sobre o Conceito de História", tradução manuscrita de Jeanne Marie
Gagnebin e Marcos L. Müller (Gs. Schr. 1-2, pp. 697/8).
134: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTORIA 0 HINO. A BRISA E A TEMPESTADE: 005 ANJOS EM WALTER BENJAMIN : 135

não se sabe se ele alça realmente v6o; aqui ele é arrastado pela Benjamin combate sem folga nesse texto que também devia ser seu
tempestade e suas asas não conseguem mais se dobrar e se desdobrar, último texto: "O que nós chamamos de progresso é essa tempestade",
no movimento harmonioso do v6o. Esse misto de estar imobilizado diz ele e deve-se ressaltar o "nós" em oposição ao olhar do anjo. Dito
no mesmo lugar e de fugir adiante de si corresponde à sua expressão de maneira teológica, bastante herética talvez, é quando os homens
desatinada, a seus "olhos arregalados" que não conseguem mais se se resignam à ira divina e cessam de lembrar a Deus sua bondade, de
fechar, como essa boca "aberta" da qual não parece sair nenhum som. reivindicar seu petdão e, como Jacó, de Lutar com Ele até o raiar da
Esse anjo ao mesmo tempo petrificado e jogado para a frente é a aurora, é nesse momento que eles se perdem contra si mesmos e,
própria figura da impotência angelical, e, em particular, da impotên- igualmente, contra Deus. Dito de maneira política e profana, é
cia em "demorar-se, acordar os mortos e juntar os destroços", i.é, quando os homens se resignam ao curso inelutável da infelicidade,
interromper o curso nefasto do tempo e emprender a obra salvadora dele fazem uma necessidade supra-histórica que chamam, depois, do
da memória. Esse anjo é literalmente atrelado ao passado, não tanto nome ambíguo de progresso, é nesse momento que eles cessam de
porque seu rosto se dirige para ele —Jürgen Ebach mostrou bem que poder tomar em mãos sua história e de poder agir sobre o presente e
essa idéia de passado estendido diante dos olhos corresponde ao no presente, que eles continuam fixados no passado e se abstem de
hebraico bíblico (e)fánin, lifnè, o que se estende diante do olhar, i.é, inventar seu futuro.
o passado -, 14 mas porque não consegue parar, não pode virar a Neste presente pervertido que só é continuação do idêntico,
cabeça e enxergar outra coisa. Em outros termos, é a exclusividade nenhum anjo mais consegue se abrir passagem. Pois, o que todos
dessa crispação desesperada em relação ao passado que impede a anjos de Benjamin, sem exceção, desejam profundamente, é a felici-
possibilidade de sua retomada transformadora na cesura do presente. dade; essa não é nem a volta a um paraíso de antes da história, nem
A bem dizer, como o observou Stéphane Mosès, não há mais aqui tampouco a avidez devoradora da modernidade, sempre em busca de
presente no sentido forte de possibilidade de mudança, de invenção, novidades. A felicidade é muito mais, segundo a fórmula do anjo
de suspensão e de subversão. Ora, essa impotência desvairada é Agesilaus Santander, "O confronto ( Widerstreit) onde se opõem o
produzida, segundo a metáfora benjaminiana, por uma "tempestade" estrecimento do único, do novo, do ainda não-vivido com a beatitude
(Sturm) que "sopra" do "Paraíso" e cuja violência é irresistivel; do mais uma vez, do repossuir, do (já) vivido". 15 Essa bela (e profun-
tempestade que é signo da maldição divina em relação ao casal damente erótica) definição da felicidade se encontra igualmente
originário, Adão e Eva, banidos para fora do Jardim, em total oposi- numa passagem do ensaio sobre Proust, na qual Benjamin fala de uma
ção, portanto, com a "brisa leve" do encontro entre Deus e Elias. Um "figura hínica da felicidade", a do "inaudito" e "daquilo que nunca
pouco como se sobrasse apenas, neste último período tão sombrio da existiu", e de uma "figura elegíaca da felicidade", "a restauração
vida de Benjamin que, é bom lembrá-lo, escreve as teses "Sobre o eterna da primeira felicidade original", acrescentando que a "vontade
Conceito de História" no exílio, sob o choque do pacto de agosto de de felicidade" sempre é inseparavelmente dupla, que a felicidade
1939 entre Hitler e Stálin, como se sobrasse, então, da tradição bíblica requer numa só vez o hino e a elegia. Tensão de um tempo simulta-
judaica, apenas a imagem do Deus vingador, colérico e onipotente neamente sempre novo e sempre retomado como o é a atualidade
que quer destruir o mundo pecador. O "pecado" sendo aqui não, angelical na qual cada anjo canta seu hino e deixa, sem rancor nem
miticamente, o pecado original que nos expulsa do Paraíso, mas, de ressentimento, seu lugar ao próximo anjo, juntamente semelhante e
maneira muito mais insidiosa, real e histórica, essa funesta acomoda- diferente.
ção à maldição divina, essa transformação perversa da infelicidade Essa temporalidade feliz descreveria também, em oposição ao
em necessidade graças, em particular, à ideologia do progresso que tempo inelutável e infinito da necessidade, seja ele justificado ou não
pelas diversas formas de teodicéia, descreveria, então, o único sentido
14 Jurgen Ebach. "Der Blick des Engels", em Walter Benjamin: Profane Edeuchmng und
rettendeKritik, textos reunidos e editados por Norbert Bolz e Richard Faber (Kdnigshausen
15 Agesilaus Santander, op. cit., p. 102. Inspiro-me na tradução e nos comentários de Stéphane
mid Neumann, 1985), pp. 72/73.
Mosés, L'Ange de l'Histoire (Paris: Seuil, 1992).
1 36 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM . MEMORIA E HISTORIA

verdadeiro e libertador que poderia ainda conter a noção de progres-


so. Num fragmento do Livro das Passagens, com efeito (Passagen-Werk),
reencontramos, graças à reflexão estética, esta união entre o "auten-
ticamente novo" e a doce regularidade da volta, aqui a volta do
amanhecer:

Há em toda obra de arte verdadeira um lugar em que aquele nela


i merso é como que acariciado pelo sopro de vento fresco que
anuncia a chegada da manhã. Resulta daí que a arte, que foi muitas
vezes considerada como refratária a qualquer relação com o
progresso, que a arte pode servir à sua autêntica definição. O
progresso não habita a continuidade do decorrer temporal, mas
as suas interferências: ali onde algo verdadeiramente novo se faz
sentir pela primeira vez com a sobriedade do amanhecer. 16

Nas "interferências", nas cesuras do continuo histórico, ali onde


o tempo pára e onde retomamos fôlego, ali também, de repente, sopra
um vento fresco, aquele no qual o Deus bíblico gostava de se
manifestar aos profetas, aquele que lembra aos homens a possibilida-
de e a urgência da felicidade.

16 W. Benjamin,lassagen-Werk, em Gs. Sdv. V-1, p. 593. Trad. J.M.G


I. BAUDELAIRE, BENJAMIN E O MODERNO

Aquilo que sabemos que, em breve,


já não teremos diante de n6s toma-se imagem.
Walter Benjamin

Walter Benjamin escreveu vários ensaios sobre Baudelaire. Esses


textos fazem parte do projeto mais amplo de uma reconstrução
histórico-filosófica do século XIX, o famoso Passagen-Werk, que devia
ser uma espécie de arqueologia da época moderna, vista através da
descrição privilegiada das "passagens" parisienses, essas galerias re-
pletas de lojas que ligavam entre si alguns faubourgs da cidade. O
Passagen-Werk ficou inacabado como o ficou também o livro de
conjunto sobre Baudelaire, Charles Baudelaire, um Lírico no Auge do
Capitalismo. ) Na edição critica alemã das obras de Benjamin foram
publicados, de maneira independente, os seguintes textos: "A Paris
do Segundo Império em Baudelaire" (três capítulos: "A Boêmia", "O
Flaneut", "A Modernidade") (vol. 1-1), "Sobre Alguns Temas em
Baudelaire" (vol. 1-1), um conjunto de reflexões intitulado "Parque
Central" (vol.1-1), várias anotações ligadas à redação desses ensaios
(vol. 1-3), enfim, o Caderno "J" do Passagen-Werk, intitulado "Baude-
laire" (vol. 5-1). A editora Brasiliense, no terceiro volume das Obras
Escolhidas de W. Benjamin, nos oferece agora, na tradução, infeliz-
mente muitas vezes pouco precisa, de J. C. Barbosa e E. Alves Batista,
2
os tres primeiros textos, já publicados em outras coletàneas e dois
cadernos do Passagen-Werk, inéditos em portugu@s, "O Flaneur"

1 "Charles Baudelaire, En Lyriker im Zeitalter des Hochkapltalismus", em Walter Benja-


min, Gesammeit Schri ten, 1-2 (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974). Citado, a partir de
agora, como G. S.. Sobre a história da publicação, cf. G. S. 1-3, páginas 1.064 e seguintes.
2 Flávio R. Kothe traduziu "A Paris do Segundo Império em Baudelaire" e "Parque Central",
em Walter Benjamin, Coleção Grandes Cientistas Sociais, n. 50 (São Paulo: Ativa, 1985);
Edson A. Cabral e José B. de Oliveira Damlão, "Sobre Alguns Temas em Baudelaire", no
volume dos Pensadores, editora Abril.
140: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM , MEMÓRIA E HISTÓRIA BAUBELAIRE. BENJAMIN E 0 MOOERNO : 141

(cadernos "M") e "Jogo e Prostituição" (caderno "O " ), cuja escolha por Benjamin (as anotações de "Parque Central" indicam várias pistas
deveria ter sido justificada, pois outros cadernos são muito mais dessa reflexão interrompida). Ao ler Benjamin sobre Baudelaire deve-
importantes (par exemplo o "N", "Er mos, portanto, nos contentar com os fragmentos de uma interpreta-
kenntnistnistheoretisches, Theorie
des Fortschriffts" ou o "J", "Baudelaire"). ção e não esperar uma construção teórica acabada. Apesar disso, a
Vale a pena lembrar rapidamente a história conturbada da publi- leitura benjaminiana provocou mudanças consideráveis na com-
cação dos ensaios benjaminianos sobre Baudelaire, pois ela testemu- preensão tradicional de Baudelaire, pois relaciona, de maneira con-
nha, de maneira exemplar, as dificuldades de toda ordem, que vincente, a estrutura íntima dessa obra às novas condições de
Benjamin enfrentou nos seus últimos anos de vida. Essa história produção da arte na modernidade. É justamente esse conceito-chave
também nos previne contra uma interpretação apressada e globali- tanto para a poesia de Baudelaire como para a interpretação de
zante que leria nesses textos uma teoria acabada da poesia moderna Benjamin, esse tão falado conceito de "modernidade", que gostaria
e da grande cidade, enquanto são partes, importantes, sem dúvida, de explicitar aqui. Proponho proceder em três passos principais:
de uma obra maior que não chegou a se realizar. História que também primeiro, apresentar uma breve história do conceito; segundo, uma
diz respeito às difíceis relações de Benjamin com o Instituto de análise do texto programático de Baudelaire, "O Pintor da Vida
4
Pesquisa Social, do qual dependia financeiramente, em particular Moderna" e, enfim, uma descrição sucinta da transformação e da
com o amigo/discípulo/rival Adorno. Benjamin escreveu o primeiro ampliação da categoria de modernidade em Benjamin. A referência
ensaio, "A Paris do Segundo Império", em fins de 1938 e o enviou à critica básica desse artigo é o livro de H. R. Jauss, consagrado à
5
revista do Instituto. Numa carta que devia tornar-se famosa (de 10 de consciência da modernidade na literatura. Jauss relata o surgimento
novembro de 38), Adorno o criticou severamente, deplorando a sua do conceito de modernidade, mostra o seu lugar central em Baude-
falta de articulação teórica, em particular, de argumentação dialética. laire e, num apêndice, critica a interpretação benjaminiana. Segundo
Em nome da redação, pediu um remanejamento profundo do texto. o nosso crítico, Benjamin teria cometido vários erros de leitura,
Benjamin atendeu rapidamente às exigências desse "parecer negati- negligenciando as conotações positivas da modernidade em Baude-
vo", o que indica certamente mais uma urgência económica que um laire, em proveito de uma denúncia, de cunho materialista, da alie-
acordo com as criticas de Adorno quanto ao fundo. Fruto dessa nação da vida urbana contemporânea. Nesse artigo pretendo verificar
segunda redação é o ensaio "Sobre Alguns Temas em Baudelaire", as críticas de Jauss para tentar explicitar, em seguida, as razões dessa
escrito entre fevereiro e julho de 39, que retoma principalmente os relativa infidelidade benjaminiana em relação a Baudelaire. A nossa
materiais trabalhados no segundo capitulo da primeira versão ("O hipótese é a de que Benjamin elabora uma reflexão a fundo sobre a
Planeur") e lhes acrescenta elementos teóricos novos, ligados a uma
modernidade, deixando de lado uma simples determinação cronoló-
explicitação dos conceitos de choque, de memória e de tempo em gica para elucidar, a partir do exemplo privilegiado de Baudelaire, as
Baudelaire. Durante o ano de vida que lhe sobrou, Benjamin não ligações essenciais entre escrita e consciência do tempo (e da morte):
chegou a reformular os primeiros e terceiros capítulos. A Revista de é essa relação específica que será decisiva para a definição benjami-
Pesquisa Social aceitou esse manuscrito e o publicou no seu número
niana da "modernidade".
de janeiro de 40, o último, aliás, a sair na Europa antes da transferên- Segundo Jauss, a palavra "modernidade" remete a uma oposição
cia definitiva da revista para Nova York.
muito antiga, já existente na Antigüidade, entre "antigo" e "moder-
Devemos ressaltar que as categorias, tidas pelo próprio Benjamin
como imprescindíveis a uma interpretação inovadora da poesia bau- 4 "Le Peintre dela Vie Modem?, em Baudelaire, Oeuvres Completes, tradução de Suely Cassai
delairiana, 3 as categorias de alegoria e de fetiche assim como a sua em A Modernidade de Baudelaire (São Paulo: Paz e Terra, 1988), páginas 159-212. Citado
a partir de agora como "0 Pintor...", na tradução mencionada, As vezes ligeiramente
inter-relação, não puderam ser explicitadas de maneira abrangente modificada.
5 H. R. Jauss, Literaturgeschichte ais Provokation (Frankfurt am Main: 5uhrkamp, 1970),
3 Cf. a esse respeito W. Menninghaus, Walter Benjamins T primeiro capítulo: "Literarische Tradition und Gegenwürtiges Bewusstsein der Modemitat",
heodedersprachmagie (Frankfurt
am Main: 5uhrkamp, 1980), em particular páginas 134 e seguintes. páginas 11-66.
1 42 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTORIA BAUDELAIRE, BENJAMIN E 0 MODERNO : 1 43

no". Essa oposição indica, inicialmente, uma relação meramente definitivamente perdido. A nostalgia romántica se opõe, sem dúvida,
temporal, moderno sendo sinónimo de "atual"; antigo, de "de outro- ao otimismo iluminista; mas ambos movimentos convergem em
ra". O debate não discute o caráter inovador do moderno ou atrasado direção a um afastamento progressivo da consciência do presente em
do antigo, mas, muito mais, o caráter exemplar do passado para o relação ao passado. Essa ligação se rompe definitivamente com a
presente. Os homens da Renascença, por exemplo, reivindicam uma Revolução Francesa, a "Grande Revolução", que instaura a idéia de
filiação a partir dos verdadeiros antiquli, isto é, os gregos e romanos, um novo radical na história. O presente, o atual, o "moderno" implica
cujo valor paradigmático é ressaltado em oposição à barbárie da agora esse sentimento de ruptura com o passado, ruptura valorizada
obscura Idade Média. A famosa Querelle des Anciens et des Modernes, positivamente, pois pretende ser a promessa de uma melhora decisiva.
na tumultuada sessão da Academia Francesa de 27 de janeiro de 1687, Ora, ao se tomar sinônimo de "novo", o conceito de "moderno"
tem por eixo essa questão do valor exemplar e eterno dos Anciens. Os assume uma dimensão certamente essencial para a nossa compreen-
Modernes, agrupados em redor de Charles Perrault, propõem outras são de "modernidade", mas, ao mesmo tempo, uma dinâmica interna
normas, oriundas da racionalidade cartesiana e da confiança no que ameaça implodir a sua relação com o tempo. Com efeito, o novo
progresso das ciências. Eles se dizem, aliás, os verdadeiros Anciens, está, por definição, destinado a se transformar no seu contrário, no
pois representam, aos seus próprios olhos, o coroamento da humani- não-novo, no obsoleto, e o moderno, conseqüentemente, designa um
dade, cuja infancia seria a Antigüidade, enquanto a Renascença espaço de atualidade cada vez mais restrito. Em outras palavras, o
configuraria a sua idade madura. Jauss observa que a Querelle, apesar moderno fica rapidamente antigo, a linha de demarcação entre os
de propor uma mudança de valores, continua se desenrolando no dois conceitos, outrora tão clara, está cada vez mais fluida. Ao se
mesmo quadro lógico de uma definição do moderno pela sua relação definir pela novidade, a modernidade adquire uma característica que,
privilegiada com o passado, ou pela negação dessa relação. Essa vai ao mesmo tempo, a constitui e a destrói. Talvez assistamos hoje, com
se deslocar paulatinamente em direção ao futuro, uma evolução, a famosa temática da "pós-modernidade", ao resultado lógico desse
aliás, que já estava inscrita na consciência iluminista dos Modernes de processo de autodevoração, dessa interpretação fundante e dissolven-
1687. Os romances utópicos do século XVIII estão cada vez mais te do antigo pelo moderno, do moderno pelo antigo.
preocupados com a imagem que o amanhã possa ter do hoje. A A teoria da modernidade em Baudelaire, tal como a desenvolve
consciência do presente está cada vez mais orientada pela concepção no seu famoso ensaio, "O Pintor da Vida Moderna" (1859), repousa
de um progresso histórico em detrimento de um olhar retrospectivo. sobre esse caráter paradoxal do moderno. Baudelaire se opõe à
Paralelamente a essa evolução, devemos mencionar, segundo concepção acadêmica e tradicional do Belo como forma eterna e
Jauss, a emergência de um outro sentimento, à primeira vista contra- absoluta, ironizando os turistas apressados que atravessam o Louvre
ditório com o iluminismo, o romantismo. Ele surge (mesmo sem ser em sua busca, parando religiosamente na frente dos quadros famosos
nomeado) nos romances de Madame de Staël e de Chateaubriand e e obrigatórios, negligenciando os "menores". Contra essa idéia atem-
será, mais tarde, objeto de discussões apaixonadas no Romantismo poral do Belo, Baudelaire pretende desenvolver uma "teoria racional
alemão. O sentimento romántico é caracterizado por uma nova e histórica do belo" que dê conta do elemento temporal, histórico,
relação do presente com a história e a natureza. Ambas são vivencia- fugitivo da beleza. Esse vela, mas, ao mesmo tempo, mostra e exprime
das sob o signo nostálgico do "não mais". A história é o reino defunto o eterno da Beleza que só pode se manifestar sob essa aparência
da infancia da humanidade; a natureza, o da sua inocência perdida. transitória e fugaz. O exemplo privilegiado de Baudelaire é a moda,
O presente é vivido como um afastamento doloroso dessa harmonia (categoria que tomar-se-à muito importante para Benjamin), que,
passada. A beleza vai ser definida como a forma ideal dessa ausencia, longe de ser um fenômeno superficial, dá a ver, mostra a beleza em
dessa falha constitutiva (saudade essencial à compreensão da beleza cada uma das suas configurações históricas. A importancia desse
em Baudelaire, como veremos). Assim, o passado não é mais vivido, elemento temporal acarreta mudanças na escolha dos objetos da
como um antigo paradigmático e eterno, mas como aquilo que foi criação artistica, como o exprimem os títulos dos capítulos do ensaio,
144 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMÓRIA E HISTÓRIA
BAUDELAIRE. BENJAMIN E O MODERNO 1 45

consagrado às gravuras de Constantin Guys: "O Croqui de Costu-


lidade ocupa quase todo o seu ser. Mas o genio é somente a
mes", "Os Anais da Guerra", "O Militar", "O Dandy", "As Mulheres e
infancia reencontrada pela vontade; a infancia agora dotada, para
as Cortesãs", "As Carruagens". Essa lista diz muito bem a preocupação
expressar-se, de órgãos viris e do espirito analítico que lhe permi-
de Guys com o mais atual, o mais recente, o mais novo, numa palavra,
o mais modemo. 6 O próprio artista não fica imune a essa transforma- tem ordenar a soma de materiais involuntariamente acumulada. ?

ção. No seu capitulo central, "O Artista, Homem do Mundo, Homem


Parágrafo exemplar das convicções estéticas de Baudelaire: a
das Multidões e Criança", Baudelaire dá uma interpretação significa-
tiva da recusa do seu amigo Guys de ser mencionado com o nome verdadeira arte é uma busca incessante do "novo" (palavra sempre
ressaltada pelo autor). Mas esse não é nenhuma substancia como se
inteiro e do seu pedido de aparecer no texto só através das iniciais C.
existissem coisas novas a serem procuradas: encontradas, elas já
G.. Esse desejo manifesta que Guys (G.!) recusa o estatuto tradicional
de artista, misto de originalidade incompreensível e de limitação tomar-se-iam antigas. O novo é uma certa qualidade do olhar, própria
virtuosística ao ofício, e reivindica o anonimato e a universalidade de do artista, do convalescente e da criança, olhar ao mesmo tempo
privilegiado e profundamente antinatural, sim, anormal, quase doen-
"Homem do Mundo". Esse se caracteriza pelo seu interesse sempre
renovado pelo universal e pelo mundano, por tudo o que acontece te (cf. as comparações com a ebriedade e com a congestão). A criança
fora do seu quarto, para onde só regressará, à noite, para transcrever tem esse dom de maneira natural, mas não tem os meios da razão que
suas impressões. Nesse contexto, Baudelaire cita o conto de Poe, "O possibilitam a sua expressão. Ao se tomar um adulto, ela adquire a
Homem das Multidões", cujo herói, recém-saído de uma grave enfer- razão e, geralmente, perde a intensidade da visão, não consegue então
midade, está sentado à mesa de um café, olhando com interesse a ver o novo porque perdeu a capacidade de encontrá-lo. Assim, só um
multidão dos passantes. O espetáculo multicolor e sempre diferente retomo organizado à infancia permite a conjunção da curiosidade,
é avivado pelo sentimento da saúde recuperada, pelo gosto renovado da intensidade (próprias da criança) e da organização voluntária e
pela vida que estava quase perdida. A chave do caráter de Guys, afirma racional (própria do adulto) que geram a expressão artística. O artista
Baudelaire, é um estado de espirito próximo, uma espécie de conva- luta para manter essa união; a poesia de Baudelaire está atravessada
lescença perpétua: pela tensão dessa busca voluntária, organizada, da novidade e da
embriaguez, luta contraditória e esgotante contra o aborrecimento
("L'Ennui" com E maiúsculo das Flores do Mal), contra os perigos do
Ora, a convalescença é como uma volta à infancia. O convales- acostumar-se e do acomodar-se (haverá, com outros meios, uma luta
cente goza, no mais alto grau, como a criança, da faculdade de se idêntica em Proust e nos Surrealistas).
interessar intensamente pelas coisas, mesmo por aquelas que Se o novo depende muito mais da intensidade do olhar que da
aparentemente se mostram as mais triviais. (...) A criança vê tudo pretensa novidade das coisas observadas, isso significa que o observador
como novidade; ela sempre está inebriada. Nada se parece tanto deve transformar-se sem parar: uma identidade estanque impediria a
com o que chamamos inspiração quanto a alegria com que a flexibilidade necessária a uma constante renovação da percepção. O
criança absorve a forma e a cor. Ousaria ir mais longe: afirmo que artista moderno é "homem do mundo" e "homem das multidões" tam-
a inspiração tem alguma relação com a congestão, e que todo bém no sentido profundo de uma dissolução da particularidade na
pensamento sublime é acompanhado de um estremecimento universalidade alheia. Esse processo explica a relação privilegiada de C.
nervoso, mais ou menos intenso, que repercute até no cerebelo. G. com a multidão que Baudelaire compara a um "imenso reservatório
O homem de gênio tem nervos sólidos; na criança, eles são fracos. de eletricidade" do qual, por assim dizer, o artista tiraria a sua energia e
Naquele, a razão ganhou um lugar considerável; nesta, a sensibi- a sua força. É uma relação prazerosa, "imenso júbilo (de) eleger domi-
8
cilio no numeroso, no movimento, no fugidio e no infinito", que
6 M. Berman, Tudo que é Sólido Desmancha no Ar
(São Paulo: Companhia das Letras, 1989),
esp. páginas 123 seguintes), nao parece ter percebido o sentido profundo desses assuntos,
aparentemente superficiais, para a estética baudelairiana. 7 "0 Pintor... t op. cit. , páginas 168/69.
8 Idem, página 170.
146 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM , MEMÓRIA E HISTORIA
BAUD ELAIRE, BE NJAMiN E B MODERNO 1 47
nasce de duas causas principais: na multidão, o artista encontra-se
a de Proust) explica por que vários comentadores puderam ler a
escondido, disfarçado como o príncipe que passeia sob os trapos de
um mendigo no seu reino e, como "incógnito", pode ver a verdade; obra de Baudelaire como um manifesto da arte pela arte — a
da mesma maneira, os seus contemporâneos não percebem o artista interpretação de Benjamin tem o grande mérito de relativizar essa 10
que observa as suas grandezas e as suas burrices, ao vaguear pelas mas. leitura, indicando as razões sociais dessa separação entre arte e vida.
O prazer do disfarce é realçado por aquele da dissolução da própria A descrição baudelairiana do trabalho do pintor ficou famosa. C. G.
identidade em proveito da multiplicidade alheia: é o último a voltar para casa e, enquanto todos dormem, se põe à obra
nessa "fantástica esgrima" cujos traços heróicos foram tão bem
ressaltados por Benjamin. É uma luta contra o tempo, ou melhor,
Pode-se igualmente compará-lo a um espelho tão imenso quanto
contra o esquecimento, que explica a energia sombria com a qual C.
essa multidão; a um caleidoscópio dotado de consciência, que, a cada
G. pinta "como se temesse que as imagens lhe escapassem, belicoso
um de seus movimentos, representa a vida múltipla e o encanto 11
mas sozinho e debatendo-se consigo mesmo " . Nas suas noites
cambiante de todos os elementos da vida. É um eu insaciável pelo
não-eu, que a cada instante o revela e o exprime em imagens mais estudiosas, ele recria a realidade diurna que só adquire vida e forma
vivas do que a própria vida, sempre instável e fugidia. 9 através do seu trabalho: "e as coisas renascem no papel, naturais e
mais que naturais, belas e mais que belas...." 12 Essas coisas "naturais
e mais que naturais" chamam a atenção. A arte consegue criar uma
Essa notáveis metáforas indicam que a característica do artista é natureza mais verdadeira que a própria natureza, que não oferece,
uma plasticidade generalizada e não mais uma função bem definida segundo Baudelaire, nenhum critério de verdade. Pelo contrário,
e unívoca, da mesma maneira como a idéia de um Belo absoluto
num anti-rousseauismo veemente, Baudelaire afirma que a natureza
cedeu lugar a uma beleza múltipla. Baudelaire ressalta nesse texto o
é má, ligada que está ao pecado original, ao vício e à violência. As
lado prazeroso dessa dissolução; em outros textos, os seus aspectos
conseqüências estéticas de tal posição são claras. Contra uma concep-
perigosos e ameaçadores também são evocados (nos poemas sobre a
ção mimética que ordena à arte imitar a natureza, Baudelaire defende
miséria do poeta, por exemplo). Segundo Benjamin, o próprio Bau-
delaire encarnava essa desagregação da identidade: ao pintar o seu uma arte "mnemônica" (capítulo 5 desse ensaio) que passa pela
retrato, Courbet ter-se-ia queixado de que Baudelaire nunca parecia mediação da memória e da imaginação. C. G. não passeia pela cidade
o mesmo. para copiar o real mas para armazenar uma série de impressões que,
Agora, esse "eu insaciável pelo não-eu" não anseia só pela absor- mais tarde, na solidão da criação, serão transformadas em imagens.
ção da vida alheia (como o faria qualquer flaveur que soubesse olhar), Ele não pinta segundo a natureza mas, segundo a memória, que,
mas pela sua "reprodução". A ênfase de Baudelaire muda de tom. Se segundo Baudelaire, permitir-lhe-á captar a síntese, a totalidade, a
a idéia do Belo, se a identidade do poeta, se a própria vida não tem essência, em vez de ficar preso ao aleatório. É sempre a mesma luta
mais uma definição fixa, essa fluidez não atinge o produto da criação contra o tempo que não pode ser detido na realidade concreta, sempre
artística. Pelo contrário, a obra se ergue como aquilo que dura e ef@mera, mas só pela força da memória, essa "memória ressurreicio-
perdura em oposição ao transitório e ao fugidio, sendo, por isso, mais nista, evocadora, uma memória que diz a cada coisa: 'Lázaro, levan-
viva que a vida. Embora sejam mercadorias como todos os outros te-te"' 13 Ou ainda, em outras palavras: o real precisa ter morrido para
produtos na sociedade capitalista, os poemas continuam, para Bau- poder ressuscitar na memória, adquirir uma outra vida que o salve do
delaire, a ser também, pela sua perfeição, signos da eternidade. O
esquecimento (Proust também falará das "ressurreições da memória")
oficio do escritor é de criar esse antídoto precioso contra a fugacidade
da vida e a voracidade do tempo. Essa convicção (que será também 10 Cf. Jauss, op. cit., páginas 58/59.
11 "O Pintor...", op. cit., página 173.
9 Idem, página 171. 12 Idem.
13 Idem, página 180.
BAUDELAIRE, BENJAMIN E 0 MODERNO 1 49

1413 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA


Ora, se podemos concordar com a justeza de várias das observa-
Recusa da natureza enquanto critério de verdade e transfiguração ções de Jauss, não precisamos aceitar o seu balanço final. A nossa
do real pela memória e pela imaginação, essas bases da estética hipótese é muito mais que Benjamin descobre "em" Baudelaire uma
baudelairiana impõem à arte uma tarefa extenuante: a de corrigir a modernidade que não coincide com a modernidade "segundo" Bau-
natureza. O "Elogio da Maquilagem", penúltimo capitulo do nosso delaire, notadamente com as descrições entusiastas do "Pintor da
ensaio, pode ser lido com um elogio disfarçado, "maquilado", da arte. Vida Moderna". Nas Flores do Mal e no Spleen de Paris o heroísmo de
Maquilagem e arte não devem sublinhar as belezas naturais, mas criar C. Guys é substituído pela alternativa dilacerante entre conquista do
um "outro" ser, ideal e espiritual. É esse esforço permanente de belo e do novo e o triunfo do Aborrecimento, do tempo que tudo
"reformulação da natureza" que a "moda", sob sua aparente super- derrota e devora. Baudelaire não seria, então, o primeiro poeta
ficialidade, encarna, e que a "modernidade", como expressão cam- moderno por ter tematizado a modernidade, mas porque a sua obra
biante do entrosamento do efêmero e do eterno na beleza, manifesta. inteira remete à questão da possibilidade ou da impossibilidade da
14
Habermas, que lê Baudelaire através dos óculos de Benjamin, poesia lírica em nossa época. Essa questão é parte integrante das
afirma que a modernidade baudelairiana não remete à trivialidade preocupações teóricas de Benjamin, a partir do fim dos anos vinte, a
da(s) novidade(s), mas sim a um conceito pleno de atualidade com respeito das mutações sofridas pela produção estética nos séculos XIX
"recorte do tempo e da eternidade", indicando assim que é essa e XX. Os principais conceitos dessa reflexão orientam as análises da
consciência aguda da transitoriedade e da eternidade da obra que a poesia de Baudelaire: a experiência (Erfahrung) na sua oposição à
define como pertencente à modernidade. experiência vivida (Erlebnis), a memória (Geddchtnis), o lembrar
Ao citar a definição da modernidade do "Pintor da Vida Moderna", (erinnern), a rememoração (Eingedenken), a harmonia do símbolo e a
a "modernidade é o transitório, o ef@mero, o contingente, é a metade da discrepáncia da alegoria, enfim, o valor de culto da arte tradicional e
arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável", Benjamin conclui de a perda da aura na arte moderna.
15
maneira depreciativa: "Não se pode dizer que isso vá fundo na questão." Com apoio nos comentários muito esclarecedores de W. Menning-
Jauss observa o tom peremptório dessa crltica 16 e afirma que Benjamin haus, 17 podemos afirmar que, para Benjamin, a característica da literatura
não captou o sentido fundamentalmente positivo de "modernidade" em da modernidade consiste na sua relação privilegiada com o tempo, ou
Baudelaire por duas razões: ele não entende a dialética entre antigo e antes, com a temporalidade e com a morte. Nesse sentido a modernidade
moderno, em particular o fato de que "antigo" não remete mais, em se relaciona com a Antigüidade, não porque dependeria dela coma de
um modelo, mas porque a Antigüidade revela uma propriedade co-
Baudelaire, ao paradigma da Antigüidade mas, sim, ao par obsoleto-novo;
por isso Benjamin criticaria a ausência em Baudelaire de uma confron- mum a ambas, a sua Gebrechlichkeit (fragilidade). É porque o antigo
tação teórica mais apurada com a arte da Antigüidade, enquanto tal nos aparece como ruína que o aproximamos do moderno, igualmente
fadado à destruição. Benjamin não insiste tanto na recusa da grande
ausencia é devida a uma mudança de paradigmas teóricos, segundo
cidade por Baudelaire, mas muito mais no fato de que a sua poesia
Jauss. Nas suas análises, Benjamin sublinharia o apego de Baudelaire
urbana é uma poesia da transitoriedade e da fragilidade. É porque os
a uma imagem idealizada de natureza e sua aversão pela grande cidade,
poemas de Baudelaire dizem a cidade na sua destrutibilidade que,
insistindo na crueldade da modernidade sem perceber os traços posi-
paradoxalmente, eles perduram, ao contrário da poesia triunfalista de
tivos desse conceito em Baudelaire. Curiosamente, Jauss deduz esses
um Verhaeren, por exemplo, que via na cidade moderna o apogeu do
mal-entendidos da postura marxista de Benjamin, que queria ler a obra
progresso humano: "Seu conceito da caducidade da grande metrópole 18
de Baudelaire como uma denúncia do capitalismo e não como uma
está na origem da perenidade dos poemas que escreveu sobre Paris."
descrição positiva da emergência da modernidade.
17 W. Menninghaus, op. cit., esp. Minas 134 e seguintes.
14 J. Habermas, Der Philosophische Diskurs der Moderne (Frankfurt am Main: Suhrkamp, tradução de R. F. Kothe, op. cit., pagina 107. A
18 A Paris do Segundo Império em Baudelaire,
1985), esp. páginas 17 e seguintes. tradução no vol. 3 da Brasiliense não está exata.
15 Walter Benjamin, Obras Escolhidas (Sao Paulo: Brasiliense, 1989), vol. 3, página 81.
16 Jauss, op. cit., página 59.
150 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM , MEMÓRIA E HISTÓRIA
BAUOELAIRE, BENJAMIN E 0 MODERNO : 1 51

O caráter histólico e efêmero da beleza, que Baudelaire interpretava


caráter fetiche da mercadoria, "novidade" sempre prestes a se tomar sucata.
no "Pintor da Vida Moderna" de maneira positiva como expressão do
Sem dúvida, Adorno teve boas razões de criticar a falta de rigor dialético dessas
sempre-novo, revela-se aqui na sua negatividade, como ameaça constan-
hipóteses; deixou, porém, escapar o que era realmente o achado dialético de
te de desaparecimento, como a ligação essencial ao tempo e à morte.
Benjamin, isto é, a explicação "materialista" da ressurgência, na modema obra
Esse sentimento agudo da transitoriedade já caracterizava várias épocas
de Baudelaire, de uma antiga figura retórica, a alegoria. Em estreita analogia com
do passado, em particular a idade barroca cara a Benjamin; mas essa suas análises do drama barroco, Benjamin lê a alegoria baudelairiana como o
consciência opunha então a eternidade divina à fugacidade humana, fito da desvalorização dos objetos transformados em mercadorias: "A des-
num horizonte teológico ainda estável. O que é próprio da modernidade valorização especifica do mundo dos objetos, tal que se apresenta na merca-
é o desmoronamento desse horizonte e, conseqüentemente, a falta de doria, é o fundamento da intenção alegórica em Baudelaire." 0 Essa
2

um pólo duradouro que servia, outrora, de razão e de consolo do desvalorização se intensifica pelo processo de corrosão do tempo que
efêmero. A cidade moderna não é um lugar de passagem em oposição à caracteriza a consciência da modernidade. Duplo desgaste que o mesmo
perenidade da Cidade de Deus mas, na sua mais profana e material poema, "O Cisne", tematiza, ao celebrar a grandeza e a caducidade de Paris:
natureza, o palco isolado de transformações incessantes que revelam
sua fragilidade: "A forma de uma cidade/Muda mais rápido — ài de Paris change! Mais rien dans ma mélancolie
mim! — que o coração de um mortal." 19 Esse verso do poema "O N'a bougé! Palais neufs, échafaudages, blocs,
Cisne", várias vezes citado por Benjamin, retoma e transforma o Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie,
clássico motivo da inconstância humana; perto das mudanças acele- Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs.
radas da cidade moderna, até o coração humano aparece como estável
(essa aceleração também explica, em outros textos de Benjamin, o
fi m da narração tradicional). Paris muda! Mas nada na minha melancolia
Mudou! Novos palácios, andaimes, blocos
No mesmo ano em que Baudelaire escreve "O Pintor da Vida Antigas alamedas, tudo para mim se torna alegoria 21
Moderna", o prefeito Haussmann começa os seus trabalhos de "reurba- E minhas caras lembranças são mais pesadas que rochedos.
nização" de Paris, revelando os bolsões de miséria que o velho centro
escondia, destruindo quarteirões inteiros e abrindo novas elas, cavando
e erguendo, criando essa paisagem urbana tão característica (e tão.familiar À inconstancia da cidade Baudelaire opõe —como o poeta barroco
aos habitantes das grandes cidades brasileiras de hoje!), onde minas e — a continuidade da sua melancolia, à falta de solidez dos edifícios,
obras se confundem. Haussmann realiza materialmente a aproximação o peso de pedra das suas lembranças. Souvenirs e Mélancolie, duas
do antigo e do moderno pela manifestação da caducidade do presente: palavras essenciais para entender, segundo Benjamin, a tentativa
baudelairiana de opor à temporalidade moderna um outro tempo,
às minas do passado correspondem as de hoje; a morte não habita só os
luminoso e espesso como mel, o tempo de urna harmonia ancestral,
palácios de ontem, mas já se apoderou dos edificios que estamos cons-
truindo. É esta convergência do passado e do presente na forma do seu de uma vie antérieure (uma "vida anterior", titulo de um dos mais
futuro comum, a morte, que caracteriza a consciência temporal da belos poemas das Flores do Mal). No capitulo 10 de Alguns Temas em
modernidade. O sempre-novo revela-se na sua obsolescência essencial, no Baudelaire, Benjamin consegue desvendar a "arquitetura secreta" das
Flores do Mal graças à oposição central entre o tempo devorador e
brilho da vida fulgura a chama da destruição. Benjamin tenta mostrar que
vazio da modernidade22
e o tempo pleno e resplandecente de um
essa apreensão da temporalidade está inseparável da produção capitalista,
lembrar imemorial. Oposição que Benjamin explicita nas catego-
notadamente do seccionamento do tempo no trabalho industrial e do
rias-chaves da sua própria filosofia: ao tempo pleno da vie antérieure
19 Tradução de Kothe, op. cit., página 106. A tradução de I. Junqueira, citada no vol. 3, da
Brasiliense, página 81, está errada: "De uma cidade a história/ Depressa muda mais que 20 W. Benjamin, Ges. Sch. 1-3, página 1151. Cf. Meninghaus, op. cit., páginas 150 e seguintes.
um coração infiel." 21 Baudelaire, Les Fleurs du Mal, op. cit., página 82, tradução de J. M. G.
22 Cf. Menninghaus, id.
1 52 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMÓRIA HISTÓRIA BAUOELAIRE, BENJAMIN E 0 MODERNO 153
E

correspondem a experiência no sentido enfático do termo (Erfahrung), nessa luta, perdida de antemão, contra o tempo devastador. Baudelaire
o símbolo na sua harmonia e o valor de culto da arte; ao tempo vazio não escreve só para contar um passado desaparecido, mas, muito mais,
da modernidade, a experiência vivida individual e isolada (Erlebnis), a para opor à destruição a frágil perenidade do poema; a escrita descreve
dispersão do sentido na alegoria e a desauratização da arte. Benjamin o trabalho do tempo e da morte, mas, ao dizê-lo, luta contra ele.
descobre essa tensão já no titulo do primeiro livro das Flores do Mal, Benjamin cita nesse contexto uma anedota sobre o escritor Maxime
"Spleen e Ideal". O Ideal (palavra tão antiga como a filosofia!) remete du Camp, já no limiar da velhice; seus olhos diminuidos tiveram a
a uma harmonia perdida que o dizer poético tenta lembrar, harmonia visão súbita da futura Paris, em ruinas; decidiu, então, escrever o livro
da linguagem da natureza e da linguagem humana, dos sentidos entre que a Antigüidade não nos legou, a descrição de uma cidade viva, mas
si, do espirito e da sensualidade como o canta o famoso poema das destinada à morte. Essa inspiração, comenta Benjamin, também orien-
"Correspondências". Nessa paisagem ideal que descreve a saudade de ta a idéia baudelairiana de "modernidade". Ela tira a sua força do
uma fusão anterior a qualquer separação, o tempo não escoa mais, desejo de descrever não só o que dura, mas sobre tudo o que, desde
mas se imobiliza no ritmo regular das ondas marítimas, imagem já, pertence à morte. Encontramos o mesmo gesto em Proust, que só
privilegiada da felicidade em Baudelaire. Mas existe um outro tempo, começará a evocar os vultos da sua juventude depois de tê-los reco-
o do Spleen (palavra bem moderna, um anglicismo!), o tempo inimigo nhecido sob as máscaras da dança dos mortos, no famoso episódio do
("L'Ennemi") que devora cada vida, cada momento de felicidade, baile na casa do Príncipe de Guermantes. Em suas obras, Baudelaire e
cada visão da beleza e, por isso, destrói o próprio poeta: Proust dizem a morte d obra, estabelecendo, entre escrita e morte, essa
relação de luta e de conivência que caracteriza a literatura moderna.
— O douleur, 6 douleur! Le Temps mange la vie, No último e belíssimo poema das Flores do Mal, "Le Voyage" ("A
Et l'obscur Ennemi qui nous ronge le coeur 23 Viagem"), que resume todas as andanças do poeta, é a morte que será
Du sang que nous perdons croît et se fortifie!
encarregada de cuidar desse objeto do desejo moderno, do novo:

— Ó dor, 6 dor! O Tempo destrói a vida, O Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l'ancre!
E o inimigo obscuro que nos rói o coração
Ce pays nous ennuie, 6 Mort! Apareillons!,
Do sangue que perdemos cresce e se fortifica! (...)
Nous voulons, tant ce feu nous bride le cerveau,
Na interpretação de Benjamin, esse tempo não remete somente à Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu'importe?
antiga meditação sobre a vaidade da vida humana e a fugacidade dos Au fond de l'Inconnu pour trouver du nouveau!
prazeres; ele também indica a alienação do trabalho no capitalismo,
submetido ao tempo abstrato, inumano e insaciável dos relógios (e dos Ó Morte, velho capitão, é tempo! levantemos ancora!
cronómetros). No lazer, o mesmo ritmo recortado impera na figura do Este pais nos aborrece, 6 Morte! Aparelhemos!
jogador, a que Baudelaire dedica vários poemas. O último poema de
"Spleen e Ideal", "L'Horloge" ("O Relógio"), conclui o ciclo pela adver- Queremos, pois este fogo nos queima tanto o cérebro,
tência dessa destruição inelutável, dessa devoração eficaz e cruel que Mergulhar no fundo do abismo, Inferno ou Céu,24 pouco importa!
gangrena a própria beleza. No fundo do Desconhecido para achar o novol
Podemos observar que uma alternância temporal semelhante guiará
a busca de Proust e a interrogação de Benjamin a respeito do verdadeiro A grandeza e a modernidade de Baudelaire não provém portanto,
tempo histórico. Benjamin detecta a origem da poesia baudelairiana segundo Benjamin, somente das suas descrições, em versos inesque-

23 Les Fleurs du Mal, op. cit., página 16, tradução J. M. G. 24 Idem, pagina 127, tradução J. M. G.
1 54: SETE AI)lAS SOBRE LINGUAGEM , MEMÓRIA E HISTÓRIA

cíveis, da felicidade imemorial, ou dos seus ensaios que proclamam II. O CAMPONÊS DE PARIS:
a busca do sempre novo: UMA TOPOGRAFIA ESPIRITUAL

As Flores do Mal não seriam, porém, o que são, fossem regidas


apenas por esse éxito. O que as torna inconfundíveis é, antes, o
fato de terem extraído à ineficácia do mesmo lenitivo ((melhor:
do mesmo consolo)), à insuficiência ((melhor: falha)) do mesmo
Não se encontrar numa cidade não significa muito.
ardor, ao fracasso da mesma obra — poemas que nada ficam
Mas se perder numa cidade como alguém se perde
devendo àqueles em que as correspondances celebram suas festas. 2$
numa floresta requer instrução.
s
Walter Benjamin

Baudelaire não é nem um poeta kitsch romântico, que ficaria


preso à nostalgia do passado, nem um poeta triunfalista modernoso,
que limitar-se-ia à apologia do existente. A sua verdadeira moderni-
dade consiste em ousar afirmar, ao mesmo tempo e cam a mesma
No seu belo livro sobre a relação de Walter Benjamin com o Surrea-
intensidade, a força e a fragilidade da lembrança, o desejo de volta e
lismo, 2 o pesquisador alemão Josef Fürnkãs observa que se pode ler
a impossibilidade do retomo, o vigor do presente e a sua morte
próxima. Se essa tensão define, na leitura benjaminiana, a moderni- o Camponês de Paris, em particular o famoso "Prefácio a uma
Mitologia Moderna", como uma paródia de meditação cartesiana.
dade de Baudelaire, talvez possamos afirmar que ela também descre-
Textos fundantes do pensamento francês até hoje, as Meditações e
ve, na nossa interpretação, a modernidade de Benjamin.
o Discurso do Método de Descartes encontram nessa homenagem a
Paris, capital da douce — e racionalista — França, seu apogeu
irônico, aniquilador e simultaneamente glorificador pois, para
solapar a bela prosa clássica e austera de Descartes, Aragon precisa
soltar as rédeas da língua francesa até o limite do incompreensível,
como o observou a tradutora. O resultado dessa operação provocativa
e jubilatória é este texto labiríntico sobre o labirinto da cidade e sobre
o labirinto do pensar.
Ainda hoje pode-se entrar em Paris por várias portas cujos nomes
remetem à cidade de origem: Porte d'Orléans, Porte de la Vilette, Porte
de Versailles etc. O primeiro olhar sobre a capital fica como que
entremesclado à perspectiva da cidade de origem, antes que ambos
se juntem na única imagem, insular e luminosa do coração de Paris.
Assim também podemos entrar num texto e, em particular, neste
livro-cidade emblemático do Surrealismo, por várias portas. Entre-
3

mos pela Porta Descartes. Tomemos a avenida clássica do monólogo

1 "Infância em Berlim porvolta de 1900", Tiergarten, em: Obras Escolhidas, vol.11 (Sao Paulo:
Brasiliense, 1987), trad. modificada.
Benjamin-Weimarer Einbahnstrasse und
2 Josef Fürnkas, surrealisnius als Erkenntnis. Walter
Pariser Passagen (Stuttgart: J. B. Metzler, 1988), pp. 51 ss.
25 W. Benjamin, Obras Esc lhidas vol.3, op. cit., página 134.
3 Ao lado de Nadja, de André Breton, publicado dois anos mais tarde.
156 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMÓRIA E HISTÓRIA
0 CAMPONÈS OE PARIS : 157
interior, desse "'eu" pensante cuja imediatez leva ao critério da
evidência e da clareza para julgar a verdade do real. Mas aqui, já, uma mística: empurrar, por assim dizer, a linguagem até seus próprios
curva perigosa se anuncia: como, pois, decidir que a evidência é limites, bater em seus muros para provocar uma rachadura, cavar seus
critério de verdade, se também nossos erros nos oferecem o mesmo fundamentos para fazê-la — em parte — desmoronar. Operação peri-
sentimento: "Não haveria erro sem o próprio sentimento da evidên- gosa, próxima da loucura e da desrazâo (não por acaso, Nadja acabará
cia. Sem esse, ninguém jamais se deteria no erro" (p. 38). 4 enclausurada num asilo), mas necessariamente desarrazoada pois,
No quarto fechado, o eu cartesiano se recolhia na interioridade da aqui, a razão não consegue mais oferecer socorro algum: "É em vão
dúvida radical e da auto-reflexão para escapar ao engano. O eu do que, cavando há vinte e seis anos com um pedaço de razão quebrada,
Camponês de Paris deambula nas Passagens pouco iluminadas e se um subterrâneo que parte de seu colchão de palha, você acredita
desfaz nas semelhanças entre as certezas do erro e as erranças da certeza. chegar às bordas do mar" (p. 78).
Com efeito, não se trata mais de não ser enganado — esse medo constante O grande tema iluminista da libertação do medo' deixa lugar à
de Descartes —, s mas sim de aproveitar o(s) erro(s), a(s) erráncia(s), o errar metáfora da evasão da prisão de uma racionalidade e de uma lingua-
sob todas as suas formas para poder fugir da prisão da identidade, da razão, gem que são denunciadas como empobrecedoras, restritivas, superfi-
do cotidiano e do aborrecimento; busca de Baudelaire e de Rimbaud ciais, castradoras, mais tarde também se dirá burguesas. Apesar de
retomada pelo Surrealismo com um frenesi que a experiência da todos os chavões que esses adjetivos podem evocar, não se deve
chacina da Primeira Guerra, a esperança concreta da revolução e, liquidar esse desejo como se fosse uma "revolta adolescente" qual-
quase que simultaneamente, a descoberta do inconsciente e das quer; insisto na exigência profundamente metafísica (Aragon usa
potencialidades infinitas da psiquê humana, podem, em parte, inúmeras vezes esse termo!) que subjaz a esse gesto provocativo:
motivar. Não se trata, porém, de opor ao racionalismo iluminista configurar os limites das palavras de dentro da linguagem, desenhar,
um irracionalismo barato. A pretensão teórico e prático-literária é com o lápis do raciocínio, as fronteiras da razão, expressar o funcio-
muito mais elevada. As certezas do pensamento cartesiano são namento do pensamento através do pensamento. Tentativa impossí-
abandonadas em proveito de uma pesquisa de ordem (queiram des- vel e apaixonante que sempre reinicia em novos enxames de palavras,
culpar o jargão técnico!) transcendental: "... exprimer, soit verbale- até a exaustão. E, mais uma vez como na tradição mística, jorram as
ment, soit par écrit soit de toute autre manière, le fonctionnement réel metáforas da fronteira e de sua efêmera transposição: limiares, esca-
das, portas semi-abertas, margens do abismo, "fechaduras que se
de la pensée" [exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, ou de
trancam mal sobre o infinito" (p. 44), enfim, não por acaso, "nessas
qualquer outro modo, o funcionamento real do pensamento] . 6
Ora, como dizer com palavras o funcionamento do pensamento espécies de galerias cobertas... que se chamam, de maneira descon-
quando este só pode se realizar através delas? Para essa questão típica certante, de passagens" (p. 44).
Entendemos agora o valor insubstituível da errância e do erro
da reflexão filosófica transcendental, os surrealistas recusam a solução
kantiana (a critica a Kant também habita essas páginas, em particular na nesse itinerário na cidade e no pensamento. Somente a experiência
do errar, em todos os seus sentidos, nos faz apalpar, coma que pelo
Galerie du Baromètre, perto do Theatre Moderne, pp. 87 ss.) e retomam
a antiga tentativa, que não pretende ser uma solução, da tradição avesso, a experiência de uma verdade que não seria, primeiramente,
a coerência de nosso pensamento, mas sim o movimento mesmo de
4 Todas as citações de O Camponês de Paris referem-se ã tradução de Flávia Nascimento, sua produção: hesitante, avançando "aos solavancos e aos pedaços"
editada pela Imago em 1996, na Coleção lazuli.
5 Retomo aqui o comentário respeitoso de F. Alquié que fala de uma "affectivité profonde
(Adorno), abrupto, atravessado por ritmos diversos. Errar é, simultanea-
de Descartes", de "sa peur constante d'être trompé" a propósito da decepção do filósofo em mente, perda das referências conhecidas e aprendizagem do desco-
relação ao ensino tradicional. Cf. Descartes, Oeuvres philosophiques, vol. I (Paris: Garnier,
1963), p. 559. 7 Cf. Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, trad. de Guido de Almeida (Rio de
6 Segundo a famosa definição/gozação séria do Surrealismo por Breton no Manifeste du Janeiro: Zahar, 1985), p. 11: "No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o
Surréalisme (Paris: Éditions du Sagittaire, 1924), p. 42. Grifos meus. esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de
investi-los na posição de senhores."
158: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM O CAMPUSES GE PARIS : 159
. MEMÓRIA E HISTORIA

nhecido, apavorante e apaixonante. Passeamos por Paris, sim, mas Nessa evocação emblemática de uma cidade ordenada segundo a
passeamos por "Passagens", entre o fora e o dentro, entre a luz do dia razão ao mesmo tempo universal e solitária de um só arquiteto-filó-
e a luz artificial, entre a noite e o dia, entre a vida do comércio e a sofo esclarecido, o eu do cogito, Descartes rejeita as obras dos outros
morte dessas galerias fadadas a uma destruição próxima; passeamos por causa de seu caráter contingente, pois que ligado ao tempo e à
pelo parque, mas o parque é natureza artificial, jardim construído, história em vez de surgir somente da vontade e da razão. A crítica à
miniatura de Alpes suíços atravessados por um trem de subúrbio tradição (à história e, no mesmo trecho, à infância, ambas comuns a
pobre. Isto é: passeamos por Paris porque aí podemos nos perder e, todos e fontes de erro) desemboca no ideal de uma construção
sobretudo, perder a nós mesmos. atemporal, cujo desenho siga a ordem eterna das razões estabelecidas,
Num longo livro recém-publicado sobre o mito de Paris, 8 Karlheinz em última instância, pela e na bondade divina. Impossível perder-se
Stierle lembra muito acertadamente que o topos literário da cidade nessa cidade modelar e, da mesma maneira, não se dará nenhum
serviu, inúmeras vezes, de metáfora privilegiada para a alma e para o passo na atividade espiritual sem seguir o mapa traçado pelas certezas
pensamento. Podemos citar Platão e sua República, descrição de uma e evidencias da razão.
cidade justa que deveria ajudar a alcançar a definição da alma justa. E
No Discurso do Método, isto é, do caminho certo, a topologia
reencontramos Descartes que, na segunda parte do Discurso do Método,
urbana já serve de metáfora privilegiada do pensamento. Ora, a
esboça os fundamentos seguros do pensamento pelo paradigma da
dimensão histórica da cidade, que a exigência de tabula rasa de um
fundação urbanística e arquitetõnica:
Descartes desejava justamente corrigir, para não dizer recalcar, será
... permanecia o dia inteiro fechado sozinho num quarto bem ressaltada na literatura contemporânea, como o observa K. Stier-
10

aquecido onde dispunha de todo o vagar para me entreter com le. A antiga oposição entre cidade terrestre, temporal e efêmera,
os meus pensamentos. Entre eles, um dos primeiros foi que me e Cidade de Deus, a-histórica e eterna, volta na lírica de um
Baudelaire sobre Paris; a cidade é o lugar do novo, sim, mas
lembrei de considerar que, amiúde, não há tanta perfeição nas
obras compostas de várias peças, e feitas pela mão de diversos sobretudo do transitório e do já caduco, signos de um tempo
mestres, como naquelas em que um só trabalhou. Assim, vê-se mortal. Walter Benjamin analisou a relação entre a harmonia de
que os edificios empreendidos e concluídos por um só arqui- um tempo imemorial e a ameaça de uma temporalidade devora-
teto costumam ser mais belos e melhor ordenados do que dora, travestida na vã busca da novid.hle, como sendo o núcleo do
aqueles que muitos procuraram reformar, fazendo uso de ve- conceito baudelairiano de modernidade. Stierle também cita os
lhas paredes construídas para outros fins. Assim, essas antigas sonhos paradigmáticos de Freud sobre Roma ou sobre Pompéia
cidades que, tendo sido no começo pequenos burgos, torna- como imagens privilegiadas, no espaço da cidade e no "espaço" do
ram-se no correr do tempo grandes centros, são ordinariamente inconsciente, de várias camadas temporais: aos monumentos his-
tão mal compassadas, em comparação com essas praças regu- tóricos de épocas diferentes, pelos quais caminha o passante,
lares, traçadas por um engenheiro à sua fantasia numa planície, correspondem os blocos e os fragmentos mnemônicos de idades
que, embora considerando os seus edifícios cada qual à parte, diversas que atravessa o sonhador. De Freud também essa belís-
se encontre neles muitas vezes tanta ou mais arte que nos das
9 Descartes, Discurso do Método, trad. Bento Prado Júnior e Jacó Guinsburg (São Paulo: Ed.
outras, todavia, a ver como se acham arranjados, aqui um grande, Abril, Coleção Os Pensadores, 1979), p. 34. Uma bela retomada —crítica! —dessa metáfora
ali um pequeno, e como tornam as ruas curvas e desiguais, ecoa nas Philosophische Untersuchungen de Wittgenstein: "(Und mit wieviel Hdusem, oder
dir-se-ia que foi mais o acaso do que a vontade de alguns Strassen, fange eine Stadt an, Stadt ni sein?) Unsere Sprache kann man ansehen als eine alee
Stadt: Ein Gewinkei aos Gasschen und Pldtzen, alcen und neuen Hdusem, und Hdusem mit
homens usando de razão que assim os dispós. 9 Zuhauten aus verschiedenen Zeiten; und dies umgeben von einer Menge neuer Vororte mit
geraden und regelmassigen Strassen und mit einfirmigen Hdusem". Em: Schd/tenr (Frankfurt
8 Karlheinz Stierle, Der Mythos von Paris. Zeichen und Bewu(itsein am Main: Suhrkamp, 1969), p. 296.
der Stadt (Cologne: Danser
Verlag, 1993). 10 Karlheinz Stierle, op. cit., pp. 17 ss .
160 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA 0 CAMPONES OE PARIS 161

sim a declaração de amor a Paris ou ao mito de Paris: "Também fora das páginas tranqüilas dos livros encontra seu correspondente
Paris, por muitos anos, fora objeto de meus desejos; e o sentimento irõnico, como Benjamin já o nota a respeito do Coup de Des de
14
de felicidade com que pus o pé, pela primeira vez, nas suas ruas, Mallarmé, na reapropriação pelo livro da escrita citadina que lhe
parecia uma garantia de que outros desejos seriam realizados" 11 A tinha escapado. Graças à reprodução de textos que parecem
cidade como palco do inconsciente não é mais o lugar regrado oriundos das ruas, portanto da "realidade" material e não da
e seguro das certezas racionais (duramente conquistadas, aliás), "ficção" literária, o livro também parodia o que ele poderia nos
mas sim a paisagem esburacada e fugidia do desejo: ruínas a dar a crer que é: um mapa, um guia, um Michelin ou um Baedeker
serem descobertas e interpretadas como na arqueologia, rastros que permitiria nos orientar nos bairros descritos com uma pre-
a serem decifrados e (per)seguidos como num romance de dete- cisão pretensamente realista. Toda segunda parte do Camponês de
tive ou de cowboy. Vários autores já apontaram para a significa- Paris, "O Sentimento da Natureza no Parque Buttes Chaumont", com
tiva contemporaneidade do romance de detetive, da pesquisa suas descrições topográficas minuciosas (cap. VII) e com sua cópia
arqueológica e da psicanálise, três novos modos de interpretação e de (!) das inscrições da coluna do termômetro (cap. XIII), verdadeiros
leitura. pastiches de um guia para turista, joga com essa alternancia entre a
Avançamos aqui mais um patamar nessa pequena metaforologia descrição realista e a embriaguez noturna dos três amigos, como
urbana: a cidade é imagem do pensamento, imagem também do também joga com a ambigüidade entre natureza e artifício (Flávia
inconsciente e, como o pensamento ou o inconsciente, deve ser lida Nascimento, na sua "Apresentação", nos lembra que o parque é um
e interpretada. A cidade se torna escrita a ser decifrada e o texto — jardim artificial erguido por Haussmann num terreno que, antiga-
em particular o texto sobre a cidade! — se transforma, por sua vez, mente, era um depósito de lixo!). O leitor que se aventurar neste
numa paisagem a ser percorrida. 12 Essa reverberação mútua entre texto pensando encontrar nele uma trama clara com início, meio
texto/escrita e cidade/escrita encontra no Camponês de Paris uma e fim conclusivo, se achará tão desnorteado como seu irmão, o
das suas mais felizes expressões, por vezes cheia de angústia e de turista aplicado, que deseja visitar o Buttes Chaumont com a ajuda
mistério, por outras, de alegria e de humor. Poder-se-ia evocar desse guia de bolso: "Azar, então que isso tenha um ar inacaba-
também Kafka, Borges ou Italo Calvino. O livro está povoado de do, azar se o caminhante que percorre o Buttes Chaumont com
placas, de propagandas, de outdoors e de inscrições como as mas e os meu livro nas mãos percebe que mal falei desse jardim e que
muros de Paris por ele descritos. Em Rua de Mão Única, homenagem negligenciei o essencial dele" (ver p. 209).
ao Surrealismo (à revolução e à sua amiga Asja Lacis também), Negligenciou Aragon realmente o essencial? Ou será que essa
Benjamin observou profeticamente que a escrita "é inexoravelmente afirmação não significa mais uma pirueta literária auto-irônica? Nessa
arrastada para as ruas pelos reclames e submetida às brutais desorientação textual e geográfica, reencontramos o tema da errância
heteronomias do caos econômico". Se, continuava Benjamin, "há e do erro. Não há, na periferia da cidade, nenhum jardin à la française
séculos ela havia gradualmente começado a deitar-se" nos ma- com suas alamedas geométricas e suas árvores artisticamente poda-
nuscritos e, depois, nos livros impressos, "ela começa agora, com das. O parque participa da mesma estrutura labiríntica que, no
a mesma lentidão, a erguer-se novamente do chão (...) filmes e coração da capital, a rede escura das Passagens. Esse "grande arra-
reclames forçam a escrita a submeter-se de todo à ditatorial balde equivoco" (p. 161), ou o centro comercial, a natureza — "meu
verticalidade". 13 Ora, esse processo de verticalização e de evasão inconsciente" (p. 150) — ou a ficção do Theatre moderne, esses lugares
aparentemente opostos tecem a mesma rede labiríntica que é a teia do
11 Idem, p. 20. A citação se encontra na Interpretação dos Sonhos, cap. V, subcapltulo B, 5.
Grifos de Freud.
Obras Escolhidas,
12 A este respeito, ver J. Fürnkãs, op. cit., pp. 62 ss. Ver também os recentes livros-cidades 13 W. Benjamin, Rua de mão única, trad. de Rubens R. Torres Filho, em:
de Willi Bolle, Fisiognomia da Metrópole Moderna. Representação da História em Walter vol. I , (São Paulo: Brasiliense, 1987), p. 28.
op. cit., cap. 7, pp.
Benjamin (São Paulo: Edusp, 1994), e de Renato Cordeiro Gomes, Todas as Cidades, a 14 W. B njamin, idem, p. 28. Fürnkãs, op. cit., pp. 223 ss. W. Bolle,
Cidade (Rio de Janeiro: Rocco, 1994). 271 s.
1 62 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA 0 CAMPONÊS DE PARIS 1 63

15
espírito e do texto. Labirinto sem minotauro (p. 136), esse espaço não dialética que vê o cotidiano como impenetrável e o impenetrável
pertence mais à mitologia clássica, mas sim à moderna; talvez ele seja como cotidiano. 16
menos ameaçador pois nenhum monstro devorador nele mora; dele,
porém, nenhum Ícaro consegue mais se salvar. Seus meandros não são As andanças do eu narrador no Camponês de Paris podem
mais fruto da invenção especifica de um arquiteto engenhoso para parecer o passeio esotérico de um sujeito esquisito nos labirintos
esconder a fera; eles descrevem os caminhos e os descaminhos do próprio de galerias equívocas, entre a baixa prostituição e a revelação do
espírito: sagrado. Elas se descobrem como sendo, antes, a mensuração
si multaneamente desvairada e exata de um labirinto espiritual,
O espírito cai na armadilha dessas redes que o arrastam sem volta como o reconhecimento sempre reiniciado de pontos de fuga
em direção ao desenlace de seu destino, o labirinto sem Minotau- abissais. Não se envereda, portanto, pelos caminhos do irraciona-
ro, onde reaparece, transfigurado como a virgem, o erro com os lismo e do irreal, mas pelas alamedas, ao mesmo tempo reais e
dedos radium, essa minha amante cantante, minha sombra paté- surreais, da terra: "Depois, sem dificuldade desde então, pus-me a
tica (p. 136). descobrir o semblante do infinito sob as formas concretas que In_
escoltavam, andando ao longo das atéias da terra" (p. 141). Ou,
como Breton o nota em pé de página no Manifesto do Surrealismo:
O passeio iniciático pelas Passagens e pelo Parque pode se ater
"O que há de admirável no fantástico é que 17 não guarda mais nada
a cantos misteriosos, a escadas escuras, a ambíguas vendedoras de
de fantástico: não é outra coisa que o real."
lenços ou a pudicos banhos públicos. Todos podem levar ao misté-
Cabe observar aqui que essa "iluminação profana", segundo a
rio, à vertigem, ao insólito, provocar o frisson e a embriaguez. Todos
bela expressão de Benjamin, pode levar tanto aos arcanos do inefável
têm esse poder como, igualmente, nenhum deles o detém em
quanto à lucidez austera da militancia revolucionária. Por baixo, por
particular; pois, muito mais fundamentalmente que uma topologia
detrás do dito real, ou melhor, a ele inseparavelmente entrelaçado se
de lugares sagrados, o Camponês de Paris elabora uma encenação
perfila, pois, um outro surreal desconhecido, infinito, mas ao alcance
do divino, uma ascese da revelação. Os lugares enquanto espaços
da mão para quem souber olhar. Assim também, no Camponês de
reais importam pouco; só se transformam em espaços epifànicos
Paris, essas descrições de cenas triviais e cotidianas que, subitamen-
graças à força dessa atenção distraída que muitos comentadores
te, parecem outras, quando uma paisagem comum se metamorfo-
relacionaram com a atenção flutuante de Freud e cujas raízes
seia sob a luminosidade do luar:
mergulham tanto na attentio da tradição mística como na hipersen-
sibilidade dos "doentes mentais". A força do Surrealismo, como já
Os homens vivem com os olhos fechados em meio aos precipícios
o afirmava em 1929 Walter Benjamin, não provém de uma fruição
mágicos. Eles manejam inocentemente símbolos negros, seus
equivoca de fenômenos ocultos, de uma celebração complacente
lábios ignorantes repetem sem saber encantamentos terríveis,
do mistério, mas, sim, contra qualquer leitura irracionalista apres-
fórmulas semelhantes a revólveres. Há razões para estremecer ao
sada, de sua capacidade Empar de vislumbrar o maravilhoso no
ver uma família burguesa que toma seu café com leite pela manhã,
coração do cotidiano:
sem observar o inconhecfvel que transparece nos quadrados verme-
lhos e brancos da toalha de mesa (p. 201),
De nada nos serve a tentativa patética ou fanática de apontar no
enigmático seu lado enigmático; só devassamos o mistério na
medida em que o encontramos no cotidiano, graças a uma ótica adverte o Camponês já no fim do seu passeio noturno.

15 Sobre o motivo do labirinto no pensamento filosófico, cf. Olgaria Matos, Os Arcanos do 16 W. Benjamin, "O Surrealismo — o Último Instantâneo da Inteligência Européia", em:
Inteiramente Outro (Sao Paulo: Brasiliense, 1989), pp. 80 ss. e O Iluminismo Visionário: Obras Escolhidas, vol. I, trad. S. P. Rouanet (São Paulo: Brasiliense, 1985), p. 33.
Benjamin, Leitor de Descartes e de Kant (Sao Paulo: Brasiliense, 1993), pp. 37 ss. 17 André Breton, op. cit., p. 25.
0 CAMPUSES OE PARIS : 165
1 64 SETE AULAS SOBAE LINGUAGEM, ME MORIA E HISTORIA

de produção de imagens, o poeta também reassume a vertente


Qual é a via de acesso, qual é o método para alcançar esse
instável, fugidia, evanescente — enfim, ligada à história, ao tempo e
desconhecido escondido e transparente? As respostas podem variar:
à morte — do pensamento. Nas lendas dessa "mitologia moderna",
escritura automática, drogas, sonhos, paixão, embriaguez. Mas há um
mesmo os deuses nascem e morrem como os mortais:
caminho unanime: o da imagem. E mais precisamente da imagem
verbal, da metáfora, do pensamento figurativo em oposição ao pensa-
mento "abstrato" ou "lógico" (p. 140) que se outorga a si mesmo as A ligação intima que eu descobria assim entre a atividade figura-
prerrogativas do rigor e da verdade. Os Surrealistas colocam aqui o dedo tiva e a atividade metafísica de meu espirito, em cem circunstân-
na ferida originária da metafísica ocidental, nesse rasgo entre mythos cias que despertavam ao mesmo tempo em minha consciência,
e logos, antigamente solidários na unidade da primazia da palavra e, voltou-me em direção das criações míticas, que outrora eu con-
pouco a pouco, separados, distinguidos e até opostos na constituição denara bastante sumariamente. Não Ode me escapar por muito
do discurso racional (histórico, filosófico, científico, Ibgico) contra o tempo que a propriedade de meu pensamento, a propriedade da
18 evolução de meu pensamento, era um mecanismo em todos os
discurso poético-sagrado ( mítico, ficcional).
A insistência de Aragon no motivo da "mitologia moderna" está pontos análogo à génese mítica e que, sem dúvida, eu não pensava
ligada à ênfase da dimensão heurística, descobridora das imagens, nada que não determinasse imediatamente em meu espírito a
formação de um deus, por mais efêmero, por menos consciente
"pois cada imagem a cada lance força-nos a revisar todo o Universo"
que ele fosse. Pareceu-me que o homem está pleno de deus como
(p. 93), dimensão mais preciosa ainda na medida que advém da
uma esponja imersa em pleno céu. Esses deuses vivem, atingem
própria dinâmica da linguagem, e não de fora, da consciência ou da
o apogeu de sua força, depois morrem, deixando para outros
intenção de um sujeito soberano, pretensamente anterior a suas
deuses seus altares perfumados (p. 142).
palavras. Essa dimensão figurativa, imagética, portanto sensível do
pensamento, se não pede ser totalmente afastada e rejeitada — pois
os conceitos também são, originariamente, metáforas, como mesmo O estilo arcaizante, cheio de conjuntivos, das duas primeiras frases dessa
Hegel o reconhece — foi, no entanto, duramente submetida às regras citação, não deixa de lembrar, parodisticamente, a prosa cartesiana!
de um outro tipo de conhecimento, abstrato e dedutivo, portanto
Lembrando o gesto doloroso da alegoria baudelairiana e, em
mais verdadeiro. Por que esse "portanto"? Talvez porque nosso ideal
particular, os poemas de Baudelaire sobre Paris, a peregrinação do
de conhecimento, desde suas fontes gregas, tão claras e tão incertas,
Camponês se torna tanto mais mitológica quanto mais é atravessada,
seja um ideal de estabilidade, de duração, de equilíbrio, às vezes
por todos os poros da escrita e por todas as esquinas da cidade, pela
mesmo de atemporalidade, para não dizer de eternidade ("oh, hybris!"
consciência da temporalidade, da historicidade e da caducidade desse
exclamar-se-ia Homero, de cuja existência nós não temos certeza).
espaço urbano e psíquico. Assim, a descrição da Passagem da Ópera
Nesse contexto, é importante notar que a "mitologia" de Aragon
é iniciada poucos meses antes de sua destruição, sendo, portanto,
não remete, como tantas outras mitologias contemporâneas, ao reen-
contro com uma pseudo-eternidade, mas sim, conseqüentemente, à si multaneamente, uma descrição ao vivo e uma homenagem póstu-
ma. Como em Baudelaire é, pois, a consciência da morte que desperta
fugacidade, à caducidade, ao efêmero. A dimensão da imagem e a
o olhar mitologizante — porque o presente já é visto como ruína de
dimensão do efêmero são inseparáveis como o assinala o magnífico eno
um tempo passado — e o desejo de escritura — sabe-se que as primeiras
de francês do pequeno poema concreto consagrado ao efêmero (p. 117):
inscrições são as funerárias, rastros gravados em monumentos que
"E P H É MÈ R E (...) Les faits m'errent (....)." "Os fatos me erram" — e as lembram a presença do ausente. Como o ressaltam todos os comen-
imagens me guiam, poderíamos acrescentar. Ao reassumir, então, esse tadores, a própria ambigüidade da palavra "passagem" alude, igual-
lado negligenciado do pensar que é a i maginação, no sentido concreto mente, à transgressão do último limiar, à morte. Morte de cada um,
em sua singularidade irredutível, mas também morte coletiva confi-
18 Sobre esse processo, veros livros de Marcel Détienne, Les maîtres de vérité dans la Grèce
archaique (Paris: Maspéro, 1967) e L'invention de la mythologie (Paris: Gallimard, 1981). gurada pelo passado ( mesmo radical da palavra "passagem"), recen-
166 S UE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA O CAMPONÊS 0E PARIS : 167

te ou afastado, que nos escapa. "Santuários dum culto do efêmero" aos "Infernos" — isto é, na mitologia grega, ao Hades, reino do
(p. 44), "grande ataúde de vidro" (p. 62), as Passagens também são o invisível e da morte. Mas leva brincando, com ternura, com humor,
cenário dos jogos amorosos, dos rendez-vous, das vãs esperas e da coma alegria das imagens. Como seu próprio assunto, este livro é um
prostituição, porque Eros é o parceiro predileto de Thanatos, como lugar de passagem, uma porta entreaberta, uma soleira. Ele pode,
o sabe "o cãozinho Sigmund Freud" (sic!) que também vagueia por talvez até deva assustar. Mas também, nas palavras de Benjamin que
aí (p. 63). Na mesma "passagem" do texto e da Ópera, o poeta nos mesclam a topologia onírica de Freud e a topologia literária de
diz abandonar, por um instante, seu "microscópio" e tentar retomar Aragon, ele pode ser um guia precioso para ousarmos enfrentar
uma distancia maior tanto do "objeto" do texto como da própria nossos sonhos e nossas fantasias, nossos abismos, nossos diversos
atividade de elaboração textual. O que essa pausa lhe permitirá infernos, nossa infancia inquieta e nossa errãncia adulta, nossa
enxergar? Uma única e mesma configuração no turbilhão da galeria morte enfim:
e no gesto da mão: o movimento da escritura, da inscrição de signos
complexos, desesperados, efêmeros, que significam uma só coisa:
Mostravam-se na Grécia Antiga lugares pelos quais se podia descer
Tento ler nessa rápida escritura e a única palavra que creio aos infernos. Também nossa existência desperta é um país onde
distinguir em meio a esses caracteres cuneiformes incessantemente há vários pontos que descem aos infernos, um país cheio de
transformados não é Justiça, é Morte. Ó Morte, encantadora criança lugares pouco visíveis, onde deságuam os sonhos. De dia passa-
um pouco poeirenta, eis um pequeno palácio para teus galanteios. mos por eles sem suspeitar nada, mas é só o sono chegar que
Aproxima-te suavemente com teus calcanhares torneados, desa- voltamos tateantes a eles, com gestos rápidos, e nos perdemos em
19
massa o tafetá de teu vestido e dança (p. 62). escuros corredores. O labirinto das casas da cidade se parece, à luz
clara do dia, com a consciência; as passagens (são as galerias que
levam à sua existência passada) desembocam de dia nas ruas sem
Esse pequeno palacete é, naturalmente, a Passagem da Ópera e, que as percebamos. Mas à noite, entre as massas escuras das casas,
por conversão metonímica, a cidade inteira de Paris. Mas também é, sua escuridão mais compacta se destaca, assustadora; e o passante
sem dúvida, o texto que se está escrevendo, isto é, este livro que temos tardio apressa-se a passar por elas sem entrar, exceto quando o
em mãos, a literatura inteira. Onipresente nas ruas e nas páginas, a 20
animamos a emprender uma viagem pelo beco estreito.
Morte com M maiúsculo (como nos versos de Baudelaire) não apare-
ce, porém, como em suas representações clássicas, como uma mulher
alta, imponente, pálida e patética; mais pudica e mais ironicamente,
ela é uma dançarina simultaneamente menina e antiga, uma criança
empoeirada (lembra os dançarinos, os tolos e os bufões nietzschia-
nos). Mesmo a morte não consegue mais se vestir com as dobras
solenes da eternidade, mas, tal os adolescentes de hoje nas ruas das
megalópoles, arruma-se com os farrapos da moda e do efêmero.
Continua cruel, sim, mas é descrita com essa leveza lúcida que guia
os passos errantes do Camponês e que, talvez, seja a única forma
possível de seriedade que nos resta. Cuidado, pois, ao entrar nesse
livro: como as Passagens e as ruas parisienses, ele leva à rememoração
20 W. Benjamin, Passagen-Werk, em Gesammelte Schriften V, vol. 2, p. 1046 (Trad. J. M. G.).
do passado, à perda da identidade, aos subterrâneos da consciência, Aproveitei a tradução de uma parte desse texto por S. P. Rouanet em As Razões do Iluminismo
(São Paulo: Companhia das Letras, 1987), p. 118. Ver também os artigos de S. P. Rouanet
19 Na página anter.or, o tinteiro do escritor, visto de perto e aumentado por esta visão, e de Nelson Brissac Peixoto no "Dossiê Walter Benjamin", Revista USP, n. 15, 1992, "E a
lembrava a Morgue, o Necrotério! cidade que habita os homens ou são eles que moram nela?".
III. INFÂNCIA E PENSAMENTO

A Rafaela e Cristina, com quem aprendi muito


sobre infância e mais ainda sobre pensamento.

Há pouco menos de um ano, a Folha de S. Paulo publicava no


suplemento de domingo "Mais!" uma série de artigos sobre a idéia
da infância e sua atual crise, no limiar do século XXI. Sem querer
entrar no mérito dos vários artigos, na maioria de orientação psica-
nalítica, podemos ressaltar que o simples questionamento da noção
de infância já é salutar em si, pois nos lembra, nas pegadas do
historiador francês Philippe Ariès, que essa noção de uma idade
profundamente diferente — e a ser respeitada nas suas diferenças —
da idade e da vida adultas, que essa idéia é relativamente nova. Sua
emergência é geralmente localizada no século XVIII, com o triunfo
do individualismo burguês no Ocidente e de seus ideais de felicidade
e emancipação. Marco privilegiado dessa — nossa — concepção
moderna de infância seria o livro de Jean-Jacques Rousseau de 1762,
o Emilio, que transforma a prática pedagógica de uma boa parte da elite
esclarecida. Voltaremos a ele.
Se a noção de infância não é, portanto, nenhuma categoria dita
natural, mas é, sim, profundamente histórica, cabe porém ressaltar
que entre pensamento filosófico e infância as ligações são estreitas
e tão antigas como a própria filosofia, o que não invalida a
historicidade nem da noção de infância, nem dessa estranha disci-
plina que ninguém consegue definir direito, a filosofia. Ligações
privilegiadas, não só porque as crianças colocam a seus pais
encabulados as grandes questões filosóficas sobre o sentido da
vida, sobre a morte ou os limites do universo, ou porque, num
certo sentido, os filósofos seriam, no fundo, grandes crianças, que
brincam de maneira séria e esquisita com palavras difíceis, em vez
170 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA I NFANCIA E PENSAMENTO : 1 71

de se preocupar com os negócios realmente importantes da vida sacrifício das paixões imediatas e destrutivas. Freud e a necessidade
adulta; mas também e antes de tudo porque reflexão filosófica e da repressão para chegar à sublimação criadora de valores culturais
reflexão pedagógica nascem juntas, porque é em redor da questão da já estão em germe nessa pedagogia de origem platônica.
paidéia que se constitui o primeiro "sistema" que se autodenomina A segunda linha, é importante ressaltá-lo, também nasce em
de "filosófico", o pensamento de Platão. A problemática da paidéia Platão, atravessa o renascimento com Montaigne e chega a nossas
justa —da formação justa, poderíamos, pelo menos transitoriamente,
escolas ditas alternativas através do romantismo de Rousseau. Ela nos
traduzir — se coloca, como o sublinha o filósofo contemporâneo
assegura que não serve de nada querer encher as crianças de ensina-
Jean-François Lyotard, porque
mentos, de regras, de normas, de conteúdos, mas que a verdadeira
educação consiste muito mais num preparo adequado de suas almas
Elle a pour présupposé que l'esprit des hommes ne leur est pas donné
para que nelas, por impulso próprio e natural, possa crescer e se
comme il faut, et doit être ré-formé. Le monstre des philosophes c'est
desenvolver a inteligência de cada criança, no respeito do ritmo e dos
l'enfance. C'est aussi leur complice. L'enfance leur dit que l'esprit n'est
pas donné. Mais qu'il est possible. interesses próprios de cada criança particular.
À primeira vista contraditórias, essas duas linhas podem conduzir,
em contextos diferentes, o discurso pedagógico de um mesmo pensa-
tem por pressuposto que o espirito dos homens não lhes é dado dor. Assim, Platão, que nos assegura nas Leis (808 d/e) que, como as
de maneira completa e deve ser reformado. O monstro dos
ovelhas não podem ficar sem pastor, senão se perdem, assim também
filósofos é a infância. Ela também é sua cúmplice. A criança lhes
e mais ainda nenhuma criança pode ficar sem alguém que a vigie
diz que o espirito não é (um) dado. Mas que ele é (um) possível.'
e controle em todos os seus movimentos, pois a "criança é, de
todos os animais, o mais intratável" (ho de pais pantôn theriôn esti
Não vou fazer aqui uma história do conceito de formação; não
dusmetacheiristotaton), na medida em que seu pensamento, ao
tenho competência para isso. Gostaria simplesmente de apresentar a
mesmo tempo cheio de potencialidades e sem nenhuma orienta-
vocês alguns momentos dessa relação entre a infância e o pensamento,
pensamento filosófico, sem dúvida, portanto um tipo específico de ção reta ainda, o torna "o mais ardiloso, o mais hábil e o mais
pensamento, sim, mas, ao mesmo tempo, um pensamento que atrevido" de todos os bichos (epiboulon kai drinu kai hybristotaton
aspira a uma certa universalidade (na aceitação kantiana que theriôn gignetai).
distingue a filosofia da escola, académica, de especialistas, da Essa criança, ameaçadora na sua força animal bruta, deve ser domes-
filosofia no seu sentido mais amplo, que trata de questões comuns ticada e amestrada segundo normas e regras educacionais fundadas na
a todos os homens). ordem da razão (logos) e do bem tanto ético quanto político, em vista da
Podemos, desde o início, apontar para duas grandes linhas que construção da cidade justa. Empreendimento que Platão descreve deta-
vão guiar minha exposição. A primeira, que nasce com Platão, lhadamente —e sem esconder suas numerosas dificuldades — em vários
atravessa a pedagogia cristã com Santo Agostinho, por exemplo,
livros da República. Mas é na mesma obra que encontramos, algumas
e chega até nós através do racionalismo cartesiano, nos diz que a
páginas depois da famosa, assim chamada "alegoria da caverna", a
infância é um mal necessário, uma condição próxima do estado
afirmação enfática da capacidade de aprender humana, faculdade inata e
animalesco e primitivo; que, como as crianças são seres privados
de razão, elas devem ser corrigidas nas suas tendências selvagens, universal em todos, mesmo que não sempre na mesma proporção,
irrefletidas, egoístas, que ameaçam a construção consensual da faculdade inata, universal, natural portanto, que permite a Platão criticar
cidade humana graças à edificação racional, o que pressupõe o a educação tradicional ateniense, baseada no aprendizado de conteúdos
externos, oriundos da poesia homérica, e determinar a justa paidéia
1 J. F. Lyotard, Le postmoderne expliqué aux enfants (Paris: Galilée, 1986), p. 156
como um movimento interior à própria alma:
172: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTORIA INFANCIA E PENSAMENTO 173

A educação (paidéia) é, portanto, a arte que se propõe este fim, a moralmente ruins, pois a propensão ao mal só pode ser atribuída a
conversão (periagoge) da alma, e que procura os meios mais fáceis e um ser dotado de inteligência, de razão e de linguagem, capaz de
mais eficazes de operá-la; ela não consiste em dar a vista ao órgão
escolher conscientemente entre o bem e o mal.
da alma, pois que este já a possui; mas como ele está mal disposto A infância reúne assim, no pensamento de um Santo Agostinho,
e não olha para onde deveria, a educação se esforça por levá-lo ã por exemplo, a selvageria bruta do animal e a disponibilidade,
boa direção. 2
simultaneamente infinita e latente, do homem para o mal. Ela é o
testemunho vergonhoso do pecado que nos marca, já ao nascer, e
Educação-repressão, ou educação como um amoroso ajudar das contra o qual só podemos tentar lutar quando sairmos dela, quando
faculdades naturais de cada criança para que cresçam na boa direção? pudermos entender os conselhos bondosos de nossos pais e lhes
Essa alternativa, apontada pelos escritos de Platão, nos remete, mais responder pelas nossas palavras e nossas ações. Longe de ser a idade
profundamente, ao estatuto paradoxal da infância e dos "infantes", da inocência, a infância é descrita por Santo Agostinho, em particular
isto é, desses seres humanos, sim, mas no entanto privados de fala,
no Livro I das Confissões, como duplamente marcada pelo pecado:
isto é, privados daquilo que, segundo toda tradição metafísica oci-
não só cada criança, cada infans — palavra cuja etimologia é
dental, é o próprio do homem: a linguagem, portanto a razão,
realçada por Agostinho em oposição ao puer: qui non farer, I, 8,13
linguagem e razão que permitem a instituição de uma ordem política.
— é signo, pelo seu nascimento, do comércio carnal e libidinoso
Lembremos que logos significa, indistintamente, ambos os conceitos,
de seus pais, isto é, profundamente marcado pelo pecado original;
que não há, portanto, linguagem sem uma racionalidade nela inscrita,
mas também cada criancinha manifesta desejos e ódios, cuja intensi-
nem razão que não possa se dizer e se explicitar em palavras. Cabe
dade desproporcional será justamente censurada numa idade mais
também ressaltar aqui, já que estamos nas etimologias, que a palavra
avançada e que só é tolerada nela, na criancinha sem fala nem razão,
"infância" não remete primeiro a uma certa idade, mas, sim, ãquilo
porque é fraca, portanto e felizmente, impotente. Cito Agostinho, na
que caracteriza o início da vida humana: a incapacidade, mais, a
ausência de fala (do verbo latim fari, falar, dizer e do seu particípio época ainda nenhum santo, segundo suas próprias palavras:
presente, fans). A criança, o in-fans é primeiro aquele que não
fala, portanto aquele animal monstruoso (como o dizia Lyo-
tard), no sentido preciso de que não tem nem rugido, nem canto, — Em que podia pecar, nesse tempo? Em desejar ardentemente,
nem miar, nem Latir, como os outros bichos, mas que tampouco chorando, os peitos de minha mãe? Se agora suspirasse com a
tem o meio de expressão próprio de sua espécie: a linguagem mesma avidez não pelos seios maternos, mas pelo alimento
articulada. Qual é a significação dessa ausência primordial? Até, que é próprio da minha idade, seria escarnecido e justamen-
digamos, Rousseau, essa ausência foi interpretada como o signo te censurado (...).
inequívoco de nossa natureza corrupta, pois é nele, nesse não-fa- —Assim, a debilidade dos membros infantis é inocente, mas não
lar infantil obscuro que se escondem tanto nossa proximidade a alma das crianças. Vi e observei uma, cheia de inveja, que
com o animal, como nosso afastamento de sua simplicidade ins- ainda não falava e já olhava, pálida, de rosto colérico, para o
3
tintiva. Diferentemente dos pequenos bichos que nunca aprende- irmãozinho de leite.
rão a falar e a pensar, os pequenos homens desenvolvem essa
faculdade e, portanto, a possibilidade da escolha do mal contra o 3 Quid ergo [zinc peccabam?An quia uberibus inhibiam plorans? Nam si nunc fadam, non
quidem uberibus, sed escae congruente annis meis ita inhians, deridebor atque reprenhendar
bem. Se não só nascêssemos, mas também ficássemos sem lingua- iustissime (...) Ita imbecillitas membromm infantilium innocens est, non animum infantium.
gem, seríamos bichos talvez cruéis, mas sem a possibilidade de ser Vide ego et expertus sum zeiantem parvulum: nondum loquebaturet intuebaturpallidus amaro
aspecto conlactaneum suam. Santo Agostinho, Confissões, Livro I, 7,11. São Paulo: Editora
Abril, Coleção Os Pensadores, tradução ligeiramente modificada de J. Oliveira Santos, S. J.
2 Platão. República, 518 d. Trad. J. Guinsburg (São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965).
e A. Ambrosio de Pina, S. J.
174: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA I NFANCIA E PENSAMENTO : 1 75

Podemos rir ou sorrir desses exemplos de Santo Agostinho. sem o melhor, é quase impossível que nossos juízos sejam tão
Devemos observar que ambos tratam, em termos freudianos, da purosoutãosólidoscomoseriam, setivéssemosousointeirode
primeira manifestação da libido, do desejo e da necessidade do nossa razãodesdeo nascimentoesenãotivéssemos sido guiados
leite materno, mas não para ressaltar sua importância para o senão por ela. 5
coitadinho e, por via de conseqüência, para ressaltar a obrigação de
a mãe responder a essa imposição, como Rousseau o interpretará
A infância se assemelha aqui, como o assinala em nota Gérard
e, depois dele, Freud e nós todos. Não, pelo contrário, Agostinho Lebrun, ã tradição histórica. Ambas já existem antes de nós chegar-
vê nesse desejo, cuja violência não pode ser temperada nem pela
mos â razão, nelas nascemos e crescemos, ambas são, por assim dizer,
linguagem nem pela razão — pois o infans não as entende —, a
um mal necessário. Necessário porque o ser humano não é nenhum
prova da violência de nossas paixões e de nossos desejos volup-
deus, mas é defeituoso, fraco, falho; precisa, portanto, do socorro dos
tuosos, sem freio. A criança evidencia, portanto, nossa natureza
outros para se desenvolver. Esses outros, pais ou professores presen-
pecadora, pois nela não fala ainda nenhuma voz da razão, cuja luz
tes, mestres ou pensadores do passado, muitas vezes nos confundem
é o reflexo da luz divina em nós, mas, sim, só grita a força da
em vez de nos esclarecer; são, simultaneamente, imprescindíveis e
concupiscência.
perigosos. Como Platão, Descartes reivindica, portanto, o direito de
Como o mostra Elisabeth Badinter em cujas análises me
criticar a tradição e o direito â independência da razão, o que implica
apoio aqui 4, mesmo com a passagem do pensamento filosófico
uma reforma da educação. Como Platão ainda, Descartes só quer
medieval, impregnado de teologia, para o pensamento da renascença
salvar da infância o que a educação tradicional geralmente não
e do racionalismo, que proclamam a independência da razão em
percebe: a saber, o brotar de uma razão balbuciante que, muitas vezes,
relação ds exigências da fé, mesmo no racionalismo de um Descartes,
é sufocado pelo acúmulo de informações escuras e paradoxais. Já que
por exemplo, a infdncia continua sendo um lugar de perdição e de
existe esse período infeliz da infância, devemos nos apressar em nos
confusão. Se ela não é mais o terreno privilegiado do pecado, conti-
livrar dele da melhor maneira: isto é, criando as condições propícias ao
nua sendo o território primordial e essencial do erro, do preconceito,
crescimento rápido da luz natural da alma, do nous platônico, da razão
da crença cega, todos esses vícios do pensamento dos quais devemos cartesiana, para enfim nos tomarmos adultos; isto é, como o dirá Kant,
nos libertar. Para o pai do racionalismo moderno, é nosso universal
sem medo de usarmos nosso entendimento, sem medo de sermos
pertencer d infdncia, a essa idade sem razão e sem linguagem, que
independentes e autônomos, sem medo de sairmos da minoridade.
constitui nosso enraizamento tenaz e infeliz no marasmo da não-ra-
Esses belos motivos, caros ao iluminismo, celebram juntos a
zão. Ou ainda: se pudéssemos ter nascido já adultos, isto é, já em
idade da razão — a idade adulta — e a emancipação ética e política,
plena posse do uso de nossa razão, então a luta da razão contra os
em oposição â idade da des-razão — a "in-fância" — e â sujeição aos
vários preconceitos que a ofuscam não seria tão árdua, reta filosofia
mandamentos de outrem. A infância tem, nesta tradição de pensa-
e felicidade humana cresceriam mais rapidamente e com mais
mento, um estatuto paradoxal: território perigoso das paixões, do
liberdade. Cito a segunda parte do Discurso do Método:
pecado e do erro, zona escura sem os caminhos que traçam as palavras
e que ilumina a razão, ela é, no entanto, na nossa miséria humana, o
E assim ainda, pensei que, como todos nós fomos crianças
5 René Descartes, Discurso do Método. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo:
antes de sermos homens, e como nos foi preciso por muito Ed. Abri!, Coleção Os Pensadores, 1979, p. 35. Et ainsi encore je pensai que, pour ce que nous
tempo sermos governados por nossos apetites e nossos precep- avons tous été enfants avant que d'être hommes, et qu'il nous a fallu longtemps être gouvernés
tores, que eram amiúde contrários uns aos outros, e que, par nos appétits et par nos précepteurs, qui étaient souvent contraires les uns aux autres, et qui,
ni les uns ni les autres, ne nous conseillaient peut-être pas toujours le meilleur, il est presque
nem uns nem outros, nem sempre, talvez nos aconselhas- i mpossible que nos jugements soient si purs, ni si solides qu'ils auraient été, si nous avions eu
l'usage entier de notre raison dés le point de notre naissance, et que nous n'eussions jamais été
4 Elisabeth Lyotard, L'amouren plus, histoire de l'amour maternel (Paris: Flammarion, 1980), conduits que par elle." (Discours de la méthode, seconde partie. Oeuvres philosophiques. Paris:
pp. 42-52. Gamier, 1963, vol. I, pp. 580-81.)
1 76 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMÓRIA E HISTÓRIA INFANCIA E PENSAMENTO 177

único solo à disposição de onde possa brotar, naturalmente, essa habilidosa, de um sofista talvez mais refinado que os outros. Mas
mesma razão que lhe faz falta. Desprovida de logos — linguagem e voltemos ao ideal platônico de um discurso transparente e verdadei-
razão —a infancia o detém, porém, em potência. Cabe à educação/for- ro. Ele também orienta toda escrita de Rousseau, só que agora sua
mação realizar essa potencialidade e transformar esses pequenos seres garantia maior não provém da clareza da razão, mas sim da sinceri-
egoístas, tirânicos e choraminguentos em homens dotados de lingua- dade — palavra-chave em Rousseau —, do sentimento. Enquanto em
gem, isto é, capazes de pensar e agir racionalmente, de se tomar os Platão ainda reina a exigência de uma palavra comum, racional,
cidadãos responsáveis e independentes de uma res pública. compartilhada na amizade e na temperança, uma palavra política que
Podemos agora verificar que a relação do pensamento, em parti- obedece tanto às leis divinas como às leis humanas, em Rousseau a
cular do pensamento filosófico, com a infancia, se constitui através possibilidade dessa ordem ao mesmo tempo querida pelos deuses e
de uma mediação conceituai cujos principais momentos são uma edificada pelos homens, dessa ordem comum ao cosmos e à polis, se
certa concepção de natureza e uma certa concepção de razão. Con- desfez. O abismo entre natureza e cultura, physis e nomos, já presente
fiança na pureza e no poder da razão (rastro da inteligência divina em na discussão entre Platão e a sofistica, parece, depois de vários séculos
nossa alma) e desconfiança em relação à natureza humana, marcada de cristianismo e sobretudo, de absolutismo político, intransponível.
pelo pecado ou pelo erro, esses dois fatores levam a uma repre- A coerência de um discurso não assegura a retidão das intenções do
sentação paradoxal da infancia como sendo, simultaneamente, o seu autor. Platão já sabia disso, mas propunha, para corrigir os efeitos
outro ameaçador da razão, mas também o terreno exclusivo de sua de manipulação de uma coerência meramente formal, uma ordem
eclosão. Ora, o corte introduzido por Rousseau em relação a nossas mais elevada da razão, fruto do convívio e da discussão amigáveis de
representações de infancia, portanto também de pedagogia, pode ser duas almas que abdicam dos seus interesses particulares para chegar
explicado por uma certa inversão dos dois momentos que assinalava: a um consenso racional. Em Rousseau, à racionalidade formal, calcu-
com Rousseau, começamos a desconfiar da razão e a confiar ilimita- lista e manipuladora não se opõe a explicitação paciente de um logos
damente na natureza. mais elevado, mas, sim, a intensidade do sentimento que une cada
Vejamos mais de perto. Devemos, de antemão, notar que a um consigo mesmo, longe dos olhos dos outros e das convenções
desconfiança rousseauniana em relação à razão raciocinante e às i mpostas. Somente essa imediaticidade do sentimento de si, essa
palavras insidiosas não é tão nova como pode parecer à primeira vista. busca de uma sinceridade radical do eu em relação a si mesmo,
Já na época de Platão, contra o desenvolvimento rápido e muito bem- garante a veracidade da linguagem. Nesse contexto, é característico
sucedido da retórica e da sofística, cresce em Atenas uma grande que as primeiras palavras nasçam, segundo a teoria rousseauniana da
desconfiança em relação a esses profissionais da palavra que não usam origem das línguas, da efusão dos sentimentos individuais através do
a linguagem para dizer a verdade, mas, sim, para confundir, seduzir canto e não da discussão dialética entre varios parceiros diferentes.
e enganar. Contra os belos artifícios da retórica e da sofística, Platão Em oposição às palavras sedutoras, lisonjeiras, enganadoras e a
quer, justamente, salvar um outro tipo de discurso — o qual chama uma razão calculista, ligada a uma ordem social injusta, Rousseau
de filosofia —, o discurso da transparência e da verdade. As relações tenta edificar um discurso sincero e um contrato social oriundo da
entre sofistica e filosofia são complexas, e não vou me demorar nelas vontade geral. No nosso contexto, podemos ressaltar a valorização
aqui. S6 queria assinalar que filosofia e sofistica não são tão facilmen- rousseauniana não s6 da natureza — contra os artifícios da cultura —,
te distinguíveis como, várias vezes, a argumentação platônica preten- mas também da linguagem sem palavras dos sentimentos contra as
de. Se para Platão e para toda tradição filosófica clássica, a figura de armadilhas da linguagem mais elaborada. Essa valorização absoluta
Sócrates, por exemplo, é a figura do primeiro filósofo, pai fundador da natureza primeira e originária leva Rousseau a elaborar uma teoria
e mártir ao mesmo tempo, não há, porém, dúvida nenhuma que seus da deformação, do aviltamento, da decadência através da história e
concidadãos, que não eram bobos, condenaram Sócrates à morte por da cultura, em nítida oposição ao otimismo da filosofia da história
se tratar de mais um desses profissionais da palavra subversiva e iluminista, baseado na certeza de um progresso talvez lento, mas
1 78: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA
INFANCIA E PENSAMENTO 179
seguro. Em termos pedagógicos, os papéis se transformam radical-
mente: em vez de corrigir a natureza infantil e de querer, o mais escola alternativa, para as crianças se desenvolverem natural e har-
rapidamente possível, a tomar adulta, o educador do Emilio deve, pelo moniosamente, em constante proximidade com a natureza harmo-
contrário, escutar com atenção a voz da natureza na criança, ajudar niosa. Uma segunda conseqüência consiste em respeitar os ritmos
seu desenvolvimento harmonioso segundo regras ditadas não pelas naturais do crescimento, em particular, em respeitar justamente na
convenções sociais, mas oriundas da maturação natural das falculda- criança sua ausência de linguagem articulada, de não apressá-la a
des infantis. Cito Émile: aprender nem a andar, nem a falar, nem a escrever. O in-fans não é
mais, pois, o rastro vergonhoso de nossa natureza corrupta e animal,
Posons pour maxime incontestable que les premiers mouvements de la mas sim, muito mais, o testemunho precioso de uma linguagem dos
nature sont toujours droits: il n'y a point de perversité originelle dans sentimentos autênticos e verdadeiros, ainda não corrompidos pela
le coeur humain. Il ne se trouve pas un seul vice dont on ne puisse dire convivência mundana. Assim se elabora uma pedagogia do respeito
comment et par y est entré. La seule passion naturelle d l'homme
ou il à criança, da celebração de sua naturalidade, de sua autenticidade, de
est l'amour de soi-même ou l'amour propre pris dans un sens étendu sua inocência em oposição ao mundo adulto pervertido onde reinam
(...). Jusqu'à ce que le guide de l'amour-propre qui est la raison puisse as convenções; isto é, entre outras, uma linguagem retórica falsa e
naître, il importe donc qu'un enfant ne fasse rien parce qu'il est vu ou uma racionalidade artificial, separada dos sentimentos originários.
entendu, rien en un mot par rapport aux autres, mais seulement ce Simultaneamente se valoriza um espaço pedagógico à parte — a escola
que la nature lui demande, et alors il ne fera rien que de bien . 6 — e um tempo de formação ditado pelos ritmos naturais do cresci-
mento infantil, portanto bastante comprido. Essa pedagogia, da qual
não é preciso dizer o quanto nos impregna até hoje, acarreta uma
Tradução "caseira":
infância prolongada, uma adolescência cada vez mais estendida, pelo
menos para aquelas crianças que têm direito à infancia e não são
Aceitemos como máxima incontestável que os primeiros movi- jogadas o mais rapidamente possível no mercado de trabalho. Conhe-
mentos da natureza são sempre retos: não há nenhuma perversi- cemos à saciedade um dos seus maiores problemas: a saber, a inserção
dade originária no coração humano. Não se encontra nele dessa eterna criança supostamente boa e natural na dura realidade
nenhum vicio do qual não se possa dizer como e por que caminho adulta, cheia de obrigações impostas. Dos sofrimentos de Emílio
penetrou ali. A única paixão natural ao homem é o amor de si crescido, apaixonado e infeliz até nossa relutância em passar da
mesmo ou amor-próprio, entendido no sentido amplo (...). Até
infância feliz para a resignação da vida adulta e do trabalho, o
que o guia do amor-próprio, que a razão, possa nascer, importa, caminho é reto.
portanto, que uma criança não faça nada porque é vista ou ouvida,
Não podemos deixar de observar aqui que a educação ideal, tal
numa palavra, nada em relação aos outros, mas somente aquilo
qual Rousseau a imagina para Emilio, em particular esse respeito
que a natureza lhe pede e então não fará nada senão o bem.
profundo pelos movimentos naturais do menino em oposição à
arbitrariedade de regras sociais convencionais, que essa educação não
A "máxima incontestável" da retidão natural leva à defesa de uma
é a mesma que receberá Sofia, apesar de seu belo nome: para as
educação que não só protege as crianças, mas as defende contra a
meninas — e para as mulheres em geral — o olhar do outro, isto é, as
dureza e a arbitrariedade da sociedade adulta. Uma primeira conse-
convenções sociais e o desejo masculino que Rousseau não parece
qüência é a necessidade de isolar os pequenos, de mantê-los afastados
perceber aqui como sendo arbitrários, o olhar do outro continua a
do mundo artificial da cultura, por exemplo numa bela propriedade
de campo (no Emilio), num sítio, num jardim de infância ou numa ditar as regras de sua virtude.
Essa contradição apontada por várias pesquisadoras, 7 nos remete
6 Jean-Jacques Rousseau, bulle (Paris: Édition Pléiade, 1969), vol. IV, p. 322. não só aos "preconceitos machistas" de Rousseau, mas também à
dificuldade de uma definição de natureza que não seja, predominan-
INFANCIA E PENSAMENTO : 1B1
180 SETE AULAS SOB RE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA
nossa, mas graças a qual podemos amar a n6s mesmos. Olhamos
temente, a imagem invertida e idealizada de um estado sociocultural
para elas como para uma foto de nossa infância onde queremos
do qual sofremos. Rousseau, aliás, sabe dessa dificuldade, como suas
parecer felizes. E para isso as protegemos, cuidamos e satisfazemos.
observações metodológicas no inicio do Discurso Sobre a Origem da
A criança é a caricatura da felicidade impossível: vestida de
Desigualdade Entre os Homens o ressaltam. Em relação â felicidade
perdida da infância, parece ser menos lúcido. Trata-se, pois, de feliz, isenta das fadigas do sexo e do trabalho, idealmente des-
9
assegurar na infancia o lugar privilegiado de uma felicidade e de uma preocupada.
proximidade da natureza que o adulto tem por missão sagrada não
s6 reconhecer e defender, mas também reencontrar como funda-
mento intimo de si mesmo. Em outras palavras, Jean-Jacques precisa Não quero concluir com essa denúncia, talvez ela mesma bastante
da criança feliz e inocente para poder acreditar e nos fazer acreditar complacente, do nosso narcisismo em relação â infancia, em relação
no seu esforço de homem adulto, mas sincero, de autenticidade e de as crianças, em particular a nossos filhos. Gostaria, por fim, de
transparência. Ou ainda: a inocência infantil é a garantia da trans- apontar para algumas pistas que a reflexão filosófica contemporânea
8
parência interior, tal qual a reivindica a escrita adulta das Confissões. abre nesse campo de ressonâncias mútuas entre infância e pensamen-
Essas observações querem simplesmente indicar por que somos, to. Penso especificamente em textos de Walter Benjamim, de Jean-
me parece, ainda hoje, tão rousseaufstas, mesmo sem ter lido nenhu- François Lyotard e de Giorgio Agamben. 10 O belo livro de Walter
ma Linha do Emilio. É que depois da infância —território do pecado—, Benjamin não é, propriamente, uma autobiografia. Não se trata, para
Rousseau inaugurou um motivo muito mais forte hoje: a infancia Benjamin, de contar sua infância ou de resguardar lembranças felizes.
como paraíso, perdido mas próximo. Numa época de "desencanta-
Sobretudo não se trata de idealizá-la, de descrever um paraíso perdido
mento" (Entzauberung der Welt de Max Weber) como a nossa, numa
que o adulto possa ressuscitar pela escrita. O que interessa a Benjamin11
época que não consegue mais crer nem na vida depois da morte, nem
é tentar elaborar uma certa experiência (Erfahrung) cam a in-fância.
no progresso histórico, nem na emancipação da sociedade, esforça-
Essa experiência é dupla: primeiro, ela remete sempre ã reflexão do
mo-nos para, pelo menos, acreditar ainda na possibilidade da felici-
adulto que, ao lembrar o passado, não o lembra tal como realmente foi,
dade individual. E nisso a construção de uma infância idealizada nos
mas, sim, somente através do prisma do presente projetado sobre ele.
ajuda: fomos, sim, crianças felizes e inocentes, e nossos filhos só
Essa reflexão sobre o passado visto através do presente descobre na
podem (e devem) ser, igualmente, belos, alegres, ingênuos e despreo-
cupados. E mesmo que nossa vida adulta profissional, social e senti- infância perdida signos, sinais que o presente deve decifrar, caminhos
mental seja decepcionante e frustrante, no mínimo devemos ser pais e sendas que ele pode retomar, apelos aos quais deve responder pois,
amorosos, abnegados, companheiros, enfim, pais (sobretudo mães!) justamente, não se realizaram, foram pistas abandonadas, trilhas não
exemplares, como se, de repente, no reino encantado da infância e percorridas. Nesse sentido, a lembrança da infância não é idealização,
da filiação, pudéssemos nos livrar das mágoas e das insuficiências que mas, sim, realização do possível esquecido ou recalcado. A experiência
carregamos na existência restante. Como diz Contardo Calligaris no da infância é a experiência daquilo que poderia ter sido diferente, isto
número do "Mais!" citado no início de minha exposição: é, releitura crítica do presente da vida adulta.

9 Suplemento Mais! da Folha de S. Paulo, 24/07/1994, p. 6/4.


Delas (das crianças) esperamos que nos ofereçam a imagem de 10 Walter Benjamin, "Berliner Kindheit um 1900" em Gesammelte Schriften W-1 (Frankfurt
uma plenitude e de uma felicidade que não é, e nunca foi, a am Main: suhrkamp, 1972). Trad. brasileira em Obras Escolhidas II (são Paulo: Brasillen-
se, 1987). J.F. Lyotard, Le postmoderne expliqué aux enfants, op. cit. Do mesmo autor, ver
também L'inhumain, (Paris: Galilée, 1988). Giorgio Agamben, Enfance et histoire (Paris:
7 Elisabeth De Fontenay, "Pour Émile, Sophie ou l'invention du ménage". Em Temps Fayot, 1988).
Modernes, maio de 1976, n. 38, e Badinter, op. cit. l i Ver a "Introdução" do próprio Benjamin para a última versão da "Infancla Berlinense",
8 A esse respeito, ver o bellssimo livro de Jean Starobinski, A Transparência e o Obstáculo no volume VIT das Gesammelte Schriften.
(São Paulo: Companhia das Letras, 1994).
1 82 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA PENSAMENTO : 1 83
I NFANCIA E

Há uma segunda dimensão dessa experiência crítica da infância. sua força e seu poder, mas também, de maneira mais secreta, mas tão
Benjamin não ressalta a ingenuidade ou a inocência infantis, mas, sim, essencial, sobre suas faltas e suas fraquezas, sobre esse vazio que
a inabilidade, a desorientação, a falta de desenvoltura das crianças em nossas palavras, tais como fios num motivo de renda, não deveriam
oposição à "segurança" dos adultos. Mas essa incapacidade infantil é encobrir, mas, sim, muito mais, acolher e bordar. É porque a in-fãncia
preciosa: não porque ela nos permite lançar um olhar retrospectivo não é a humanidade completa e acabada, é porque a in-fãncia é, como
comovido e cheio de benevolência sobre os coitadinhos que fomos, diz fortemente Lyotard, in-humana, que, talvez, ela nos indique o
ou que nos cercam hoje. Mas porque contém a experiência preciosa e que há de mais verdadeiro no pensamento humano: a saber, sua
essencial ao homem do seu desajustamento em relação ao mundo, da incompletude, isto é, também, a invenção do possível.
sua insegurança primeira, enfim, da sua não-soberania. Essa fraqueza
infantil também aponta para verdades que os adultos não querem mais
ouvir: verdade política da presença constante dos pequenos e dos
humilhados que a criança percebe, simplesmente, porque ela mesma,
sendo pequena, tem outro campo de percepção; ela vê aquilo que o
adulto não vê mais, os pobres que moram nos porões cujas janelas
beiram a calçada, ou as figuras menores na base das estátuas erigidas
para os vencedores. A incapacidade infantil de entender direito certas
palavras, ou de manusear direito certos objetos também recorda que,
fundamentalmente, nem os objetos nem as palavras estão ai somente
á disposição para nos obedecer, mas que nos escapam, nos questio-
nam, podem ser outra coisa que nossos instrumentos dóceis. ]
As imagens da infância evocadas por Benjamin tentam pensar
aquilo que, profundamente, jaz neste prefixo in — da palavra in-fan-
cia. O que significa para o pensamento humano essa ausência origi-
nária e universal de linguagem, de palavras, de razão, esse antes do
logos que não é nem silêncio inefável, nem mutismo consciente, mas
desnudamento e miséria no limiar da existência e da fala? Retomando
esta questão, Giorgio Agamben nos indica que essa experiência
inefável da in-fãncia — inefável não porque seria um início paradisía-
co além das palavras, mas porque a in-fãncia está aquém das palavras,
ao mesmo tempo sem palavras, sem linguagem e, porém, condição
de possibilidade de sua eclosão —, que essa experiência da infância
"exclui que a linguagem possa se apresentar como totalidade e
verdade" 13 Nem domínio do pecado nem jardim do paraíso, a
infância habita muito mais, como seu limite interior e fundador,
nossa linguagem e nossa razão humanas. Ela é o signo sempre
presente de que a humanidade do homem não repousa somente sobre

12 A esse respeito, ver J. M. Gagnebin, História e Narração em Walter Benjamin (São Paulo:
Perspectiva, 1997), cap. IV.
13 Enfance et histoire, op. cit. p. 66.
FONTES

I. O Infcfo da História e as Lágrimas de Tucidides


Publicado na revista Margem, n.l, publicação da Faculdade de Ciên-
cias Sociais da PUC/SP e dos Programas de Estudos Pós-Graduados em
Ciências Sociais e História (São Paulo: EDUC, março de 1992).

II. As Flautistas, as Parteiras e as Guerreiras


Texto apresentado para uma mesa-redonda no Sedes Sapientiae, em
outubro de 1979, São Paulo e, mais tarde, para a Semana de Filosofia
da PUC/SP em outubro de 1984. Foi publicado nos Cadernos PUC/SP,
n. 21, "Filosofia, Linguagem, Arte" (São Paulo: EDUC, 1985). O
original em francês com o post-scriptum em anexo foi publicado na
revista Les Cahiers du Grif (Paris: Éditions Tierce, 1992), "Provenances
de la pensée. Femmes/Philosophie".

III. Morte da Memória, Memória da Morte: da Escrita em Platão


Texto apresentado no Colóquio Interdisciplinar de Estudos Gregos,
PUC/SP, em 27 de abril de 1994, e, igualmente, como Conferência
no Instituto de Estudos Avançados da USP, em 8 de novembro do
mesmo ano. Inédito. A versão original francesa deve ser publicada em
breve na revista Etudes Philosophiques (Paris: PUF).

IV. Dizer o Tempo


Texto apresentado no Congresso de Literatura e História na UNI-
CAMP, na mesa-redonda de 26 de setembro de 1994, sobre "A
construção do tempo e da memória na história e na literatura".
Publicado no número especial consagrado ao Tempo dos Cadernos de
Subjetividade, n. 1/2, 1994, Programa de Estudos Pós-Graduados em
Psicologia Clinica da PUC/SP.

V. Do Conceito de Mimesis no Pensamento de Adorno e Benjamin


Texto apresentado no Ciclo de Conferências sobre a Escola de Frank-
furt, realizado na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, Campus
1 86: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA

de Araraquara, em 1990. Publicado na revista Perspectiva, Editora da


UNESP, n. 16, 1993.

VI. Do Conceito de Razão em Adorno


Texto apresentado no Colóquio de Filosofia para os 80 anos da
formação do curso de Filosofia da PUC/SP, entre 15 e 18 de agosto de
1988. Publicado no livro coletivo que reúne as contribuições desse
colóquio: Um passado revisado: 80 anos do Curso de Filosofia da PUC/SP,
org. Salma Tannus Muchail (São Paulo: EDUC, 1992).

VII. O Nino, a Brisa e a Tempestade: os Anjos em Walter Benjamin


Jeanne Marie Gagnebin nasceu em Lausanne (Suíça) em 1949.
Versão brasileira do artigo publicado pela revista Autrement, Paris,
Depois de uma formação clássica em filosofia e literatura em Genebra,
março de 1996, n. 162, "Le réveil des anges".
concluiu seu doutorado na Alemanha com uma tese sobre a filosofia
da história de Walter Benjamin. Desses anos todos provém tanto um
apego ã tradição clássica quanto uma inquietação, nascida da ebuli-
ção dos anos pós-68, que questiona essa mesma tradição. Radicada
no Brasil desde 1978, Jeanne Marie Gagnebin é professora titular de
Apêndices
filosofia da PUC/SP e professora Livre-docente de teoria literária da
Unicamp. Publicou, entre outros, História e Narração em Walter Ben-
I. Baudelaire, Benjamin e o Moderno jamin (Perspectiva, 1994).
Resenha publicada no Caderno "Letras" da Folha de S. Paulo, 7 de
outubro de 1989.

II. O Camponês de Paris: Uma Topografia Espiritual


Posfácio a Aragon, O Camponês deParis. Tradução de Flávia Nascimen-
to (Rio de Janeiro: Imago, 1996).

III. Infdncia e Pensamento


Conferência apresentada no seminário "Infáncia, Escola, Modernida-
de", promovido pela Universidade Federal do Paraná e pela Secretaria
de Estado da Educação, em Curitiba, no dia 22 de maio de 1995.
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