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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

LA PARTE DE LOS CRÍMENES: O ROMANCE INFRAPOLICIAL


NA OBRA 2666 DE ROBERTO BOLAÑO

SYLVIA HELENA DE CARVALHO ARCURI

2017
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LA PARTE DE LOS CRÍMENES: O ROMANCE INFRAPOLICIAL


NA OBRA 2666 DE ROBERTO BOLAÑO

SYLVIA HELENA DE CARVALHO ARCURI

Tese de Doutorado submetida ao


Programa de Pós-graduação em
Letras Neolatinas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como
quesito para obtenção do Título de
Doutora em Letras Neolatinas Estudos
Literários Neolatinos – Opção:
Literaturas hispânicas

Orientador: Professor Doutor Victor


Manuel Ramos Lemus.

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
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LA PARTE DE LOS CRÍMENES: O ROMANCE INFRAPOLICIAL


NA OBRA 2666 DE ROBERTO BOLAÑO

Sylvia Helena de Carvalho Arcuri

Orientador: Professor Doutor Victor Manuel Ramos Lemus

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras


Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Doutora em Letras
Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas hispânicas).

Examinada por:

Presidente, Professor Doutor Victor Manuel Ramos Lemus – UFRJ – Estudos


Literários Neolatinos.

Professor Doutor Luis Alberto Nogueira Alves – UFRJ – Ciência da Literatura

Professor Doutor Rodrigo Silva Ielpo – UFRJ – Estudos Literários Neolatinos

Professor Doutor Júlio Aldinger Dalloz – UFRJ – Estudos Literários Neolatinos

Professor Doutor Renato Nogueira dos Santos Junior – UFRRJ – Pós-


graduação contextos contemporâneos e demandas populares – PPGEDUc.

Professor Doutor Ary Pimentel – UFRJ – Estudos Literários Neolatinos


(Suplente)

Professor Doutor João Roberto Maia da Cruz – Fundação Oswaldo Cruz


(Suplente)

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
4

Arcuri, Sylvia Helena de Carvalho

La parte de los crímenes: o romance infrapolicial na obra


2666 de Roberto Bolaño / Sylvia Helena de Carvalho Arcuri –
Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2017. xiii, 263.f; 30 cm
Orientador: Victor Manuel Ramos Lemus
Tese de Doutorado – UFRJ/ FL/ Programa de Pós-
graduação em Letras Neolatinas, 2017.
Referências Bibliográficas: f. 172-195
1. Roberto Bolãno. 2. Literatura latino-americana
contemporânea. 3. Narrativa. 4. Romance infrapolicial.
Lemus, Victor Manuel Ramos. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação e Pesquisa
em Letras Neolatinas. III. Título.
5

Pela ajuda e o carinho constante, dedico essa tese para


Meus pais, Ivo e Helenice;
Meus filhos, Nerita Oeiras e Lucas Pantaleone Arcuri e
Minha neta, Nina Rhon de Carvalho.
6

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, filhos, genro, nora, irmãos, sobrinhos, todos os familiares e
amigos em especial Wallace Lopes, por me incentivar e descobrir outras
possibilidades de leitura do mundo.

Ao Professor Doutor Victor Manuel Ramos Lemus, um exímio orientandor, me


deixando caminhar, mas estando presente quando eu precisei. Pela sua
orientação acadêmica, apoio e incentivo durante todo o percurso deste estudo
e por ter me apresentado à obra de Roberto Bolaño.

Aos Professores Doutores que dedicaram o seu tempo para ler esta Tese e
participar da Banca, em especial ao Professor Doutor Júlio Aldinger Dalloz que
esteve presente desde o inicio da minha caminha nesta instuição de ensino.

A CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e a


UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro pelo apoio financeiro e
acadêmico necessário para realização desta pesquisa.

A todo o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas


da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, que compartilhou os seus
conhecimentos, ampliando os meus.

Aos meus amigos do grupo de estudo, de pesquisa e de Pós-Graduação:


Simone Silva do Carmo, Gabriel Poeys e Tarcisio Gomes do Rego, pelo
companheirismo, pelas dicas preciosas e empréstimos de textos teóricos de
grande utilidade para esta pesquisa.
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Los hombres del alba1


Efraín Huerta

Y después, aquí, en el oscuro seno del


río más oscuro,
en lo más hondo y verde de la vieja
ciudad,
estos hombres tatuados: ojos como
diamantes,
bruscas bocas de odio más insomnio,
algunas rosas o azucenas en las manos
y una desesperante ráfaga de sudor.

Son los que tienen en vez de corazón


un perro enloquecido
o una simple manzana luminosa
o un frasco con saliva y alcohol
o el murmullo de la una de la mañana
o un corazón como cualquiera otro.

Son los hombres del alba.


Los bandidos con la barba crecida
y el bendito cinismo endurecido,
los asesinos cautelosos
con la ferocidad sobre los hombros,
los maricas con fiebre en las orejas
y en los blandos riñones,
los violadores,
los profesionales del desprecio,
los del aguardiente en las arterias,
los que gritan, aúllan como lobos
con las patas heladas.
Los hombres más abandonados,
más locos, más valientes:
los más puros.

Ellos están caídos de sueño y


esperanzas,
con los ojos en alto, la piel gris
y un eterno sollozo en la garganta.
Pero hablan al fin la noche es una misma
siempre, y siempre fugitiva:
1
Poesia do livro de Efraín Huerta sob o mesmo título. Disponível em:
http://www.palabravirtual.com/index.php?ir=ver_voz1.php&wid=104&t=Los+hombres+del+alba
&p=Efra%EDn+Huerta&o=David+Huerta. Acesso em: 18.01.2017.
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es un dulce tormento, un consuelo


sencillo,
una negra sonrisa de alegría,
un modo diferente de conspirar,
una corriente tibia temerosa
de conocer la vida un poco envenenada.
Ellos hablan del día. Del día,
que no les pertenece, en que no se
pertenecen,
en que son más esclavos; del día,
en que no hay más camino
que un prolongado silencio
o una definitiva rebelión.

Pero yo sé que tienen miedo del alba.


Sé que aman la noche y sus lecciones
escalofriantes.
Sé de la lluvia nocturna cayendo
como sobre cadáveres.
Sé que ellos construyen con sus huesos
un sereno monumento a la angustia.
Ellos y yo sabemos estas cosas:
que la gemidora metralla nocturna,
después de alborotar brazos y muertes,
después de oficiar apasionadamente
como madre del miedo,
se resuelve en rumor,
en penetrante ruido,
en cosa helada y acariciante,
en poderoso árbol con espinas
plateadas,
en reseca alambrada:
en alba. En alba
con eficacia de pecho desafiante.

Entonces un dolor desnudo y terso


aparece en el mundo.
Y los hombres son pedazos de alba,
son tigres en guardia,
son pájaros entre hebras de plata,
son escombros de voces.
Y el alba negrera se mete en todas
partes:
en las raíces torturadas,
en las botellas estallantes de rabia,
en las orejas amoratadas,
en el húmedo desconsuelo de los
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asesinos,
en la boca de los niños dormidos.

Pero los hombres del alba se repiten


en forma clamorosa,
y ríen y mueren como guitarras
pisoteadas,
con la cabeza limpia
y el corazón blindado.
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RESUMO

ARCURI, Sylvia Helena de Carvalho. La parte de los crímenes: o


romance infrapolicial na obra 2666 de Roberto Bolaño. Tese de Doutorado
submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a
obtenção do título de Doutora em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos
– Opção: Literaturas hispânicas).

Orientador: Professor Doutor Victor Manuel Ramos Lemus

Esta tese de doutorado apresenta como tema o estudo e análise das


relações entre literatura e a cultura de massa, no capítulo, La parte de los
crímines, da obra de Roberto Bolaño, 2666, com enfoque na estética e na
estratégia estrutural trazidas dos gêneros B, especificamente, do gênero narrativo,
o romance policial. A partir disso, entender como o autor utiliza a estrutura que
seve de base do romance policial, como reescreve e reestrutura sua narrativa,
propondo a leitura de sua obra, visando uma nova estética, um novo estilo, uma
nova voz, uma nova variante do gênero que receberá o nome de romance
infrapolicial. Para auxiliar na construção desse pensamento, se faz necessária a
pesquisa apurada e o uso de conceitos apresentados por vários estudiosos, cujos
textos teóricos se articularão com a análise da obra, partindo de uma abordagem
interdisciplinar e intertextual entre os discursos literários, a cultura de massa, e as
variantes do gênero narrativo romance policial que possibilitará uma leitura e
compreensão mais minuciosa do diálogo que se estabelece entre essas áreas de
conhecimento e a parte que serve como corpus deste estudo. Como aporte teórico
principal, serão usados os textos de Edgar Morin, Elias Canetti, John Carey para
pensar a cultura de massa. Com Slavoj Žižek e Karl Erik Schollhammer o diálogo
acontecerá sobre tema da violência. Os textos de Ruy Braga e André Singer
auxiliarão a entrelaçar os pensamentos sobre precariado. Para pensar de onde
parte a escrita de Bolaño e as suas influencias, serão analisados artigos escritos
por Felipe A. Ríos Baeza, Celina Manzoni, Patricia Poblete Alday, entre outros e
fechando a análise, sobre o romance policial, novela negra e romance neopolicial,
os textos de base serão os escritos por Mempo Giardinelli e os artigos compilados
por Daniel Link.

Palavras-chave: Literatura hispano-americana, cultura de massa, romance


infrapolicial,
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RESUMEN

ARCURI, Sylvia Helena de Carvalho. La parte de los crímenes: la


novela infrapolicial en la obra 2666 de Roberto Bolaño. Tesis Doctoral
sometida al Programa de Postgrado en Letras Neolatinas de la Universidad
Federal de Rio de Janeiro – UFRJ, como parte de los requisitos necesarios para la
obtención del título de Doctora en Letras Neolatinas (Estudios Literarios Neolatinos
– Opción: Literaturas hispánicas).

Orientador: Professor Doutor Victor Manuel Ramos Lemus

Esta tesis de doctorado presenta com tema el estudio y análisis de las


relaciones entre literatura y la cultura de masa, en el capitulo, La parte de los
crímenes, en la obra de Roberto Bolaño, 2666, con enfoque en la estética y en la
estrategia estructural originarias del géneros B, específicamente, del género
narrativo, la novela policial. A partir de ese presupuesto, comprender como el autor
utiliza la estructura, que sirve de base a la novela policial, como reescribe y
reestructura su narrativa, proponiendo la lectura de su obra a partir de una nueva
estética, un nuevo estilo, una nueva voz, una nueva variación del género, que
recibirá el nombre de novela infrapolicial. Para auxilia en la construcción de este
pensamiento, es necesario una investigación apurada y el uso de conceptos
presentados por varios estudiosos, cuyos textos teóricos ayudaran en el análisis
de la obra, partiendo de un abordaje interdisciplinaria e intertextual entre los
discursos literarios, la cultura de masa y las variantes del género narrativo novela
policial que posibilitará una lectura y entendimiento más detallado del dialogo que
se establece entre esas áreas del conocimiento y la parte que sirve como corpus
de esta investigación. Los principales textos usados como base teórica serán los
textos de Edgar Morín, Elias Canetti, John Carey para pensar la cultura de masa.
Com Slavoj Žižek y Karl Erik Schollhammer el dialogo acontecerá al rededor del
tema de la violencia. Los textos de Ruy Braga y André Singer auxiliarán para juntar
los pensamientos sobre precariado. Para pensar de donde parte la escrita de
Bolaño y sus influencias, serán analizados artículos escritos por Felipe A. Ríos
Baeza, Celina Manzoni, Patricia Poblete Alday, entre otros y terminando el análisis,
sobre la novela policial, novela negra e la novela criminal, los textos de base serán
los escritos por Mempo Giardinelli y los artículos compilados por Daniel Link.

Palabras-clave: Literatura hispanoamericana, cultura de masa, novela infrapolicial


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ABSTRACT

ARCURI, Sylvia Helena de Carvalho. The crime part: the infracrime


romance in the book 2666 by Roberto Bolaño Doctoral thesis submitted to the
Graduate Program in Humanities and Neo-Latin languages of Federal University of
Rio de Janeiro - UFRJ, as part of the required assessments to receive the
academic degree of PhD in Neo-Latin Languages (Neo-Latin Literary Studies -
Specialization: Hispanic literatures).

Tutor: Victor Manuel Ramos Lemus, Ph.D.

The core subject of the present doctoral thesis is the analysis of the
relationship between Literature and mass culture. It is centered in the study of the
chapter The crime part, part of the book 2666, by Roberto Bolaño and emphasizes
the aesthetical and structural strategies appropriated by Bolaño from secondary
and B genders, mainly the crime novel. This study aims to understand how the
author uses the structures that form the basis of the crime novel, and also how this
appropriation brings him to restructure his own narrative, proposing a, alternative
way of reading his work from a new aesthetic, a new style and a new voice, all of
which combined are named the ‗infracrime novel‘.
In order to support the construction of this body of thought, a deep dive into
the concepts proposed by several authors and researchers was necessary. Those
texts will dialogue with the Bolaño‘s work in an interdisciplinary and intertextual
approach, bringing together literature, mass culture and the multiple shapes that
crime novel can take. This allows for a more detailed comprehension of the
dialogues between The crime part and several academic fields, such as literature,
cultural studies and sociology. Theoretical inputs from Edgar Morin, Elias Canetti,
John Carey will be used to think and understand mass culture. Works from Slavoj
Žižek and Karl Erik Schollhammer will be used to understand violence. Works by
Ruy Braga and André Singer will help to comprehend employment and under-
employment. To think about Bolaño‘s writing style and literary influences, essays
written by Felipe A. Ríos Baeza, Celina Manzoni, Patricia Poblete Alday and others
will be analyzed. Finally, in order to understand crime novel, noir novel and new
crime novel, works by Mempo Giardinelli and essays complied by Daniel Link will
serve as input and support.

Key words: Hispanic literature, mass culture, infracrime novel.


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SUMÁRIO

Introdução .......................................................................................................14

Capítulo I – Espaço de disputa ..................................................................... 27

1.1. Roberto Bolaño e o Movimento Infrarrealista .......................................... 32


1.2. Ruptura com a tradição ........................................................................... 45
1.3. 2666 - que obra é essa? .......................................................................... 63

Capítulo II – Campo de batalha: a cultura de massa eo romance


infrapolicial ...................................................................................................70

2.1. A cultura de massa – o espetáculo ........................................................... 71


2.2. Gênero narrativo – romance policial e suas variações ............................. 82
2.2.1. Romance policial clássico ...................................................................... 82
2.2.1.1. O crime e o enigma ............................................................................. 85
2.2.1.2. O detetive: dedução e racionalidade .................................................. 90
2.2.2. Novela negra ......................................................................................... 96
2.2.3. Romance neopolicial Latino-americano ............................................... 107
2.2.4. Romance Infrapolicial: nova variação do gênero ................................. 114

Capítulo III – La parte de los crímenes: estratégias de construção .........127

3.1. Turbulência e violência ........................................................................... 131


3.2. Narrativas interrompidas ......................................................................... 135
3.3. Feminicídio............................................................................................... 142
3.4. Anomia ....................................................................................................151
3.5. A classe precária..................................................................................... 160

Considerações finais ................................................................................... 166

Referência Bibliográfica .............................................................................. 172

Anexos .......................................................................................................... 196


14

Introdução

Con todo, Los muros de agua no son un reflejo


directo, inmediato de la realidad. Son una
realidad literaria, una realidad imaginada. Pero
esto lo digo en un sentido muy preciso: la
realidad siempre resulta un poco más fantástica
que la literatura, como ya lo afirmaba
Dostoievski. Éste será siempre un problema para
el escritor: la realidad literalmente tomada no
siempre es verosímil, o peor, casi nunca es
verosímil. Nos burla, nos «hace desatinar» (como
tan maravillosamente lo dice el pueblo en este
vocablo de precisión prodigiosa), hace que
perdamos el tino, porque no se ajusta a las
2
reglas; el escritor es quien debe ponerlas.
José Revueltas

O projeto literário pensado e produzido por Roberto Bolaño, assim


como sua figura de escritor, adquiriu, nos últimos anos, uma fundamental
relevância dentro da cena literária, a ponto de ser considerado, por muitos
estudiosos, um dos autores que exerceu e ainda exerce influência direta em
jovens escritores que despontam neste circuito, pois além de ter planejado um
projeto literário audacioso, Bolaño possui, entre muitas, uma característica que
chama atenção e desperta curiosidade: seu permanente estado de
enfrentamento à tradição literária e sua vontade e empenho em modificá-la,
afirmando que a escrita literária ultrapassa rótulos e nomenclatura
predeterminados, está além do entretenimento, embora sirva a ele, mas é
também espaço de crítica, reflexão e mudança. O próprio autor afirmou, em
uma entrevista, que não existe imortalidade, que muitos autores, considerados
clássicos, deixarão de existir em algum momento, portanto colocar rótulos nas
produções é uma atitude pequena e irrelevante, o que importa é ter a ousadia
de dizer, de se colocar frente aos problemas, de forma inédita, não
menosprezando a capacidade de entendimento do leitor.
Assim, compartilhando as palavras de José Revueltas e tentando
compreender o papel de Bolaño dentro do ambiente literário, é importante
salientar que a realidade também cabe nas folhas de papel, mesmo que, para
isso, seja representada como ficcional, como verossimilhante e a função do
escritor é traduzir o cenário de vivências em palavras e imaginação e para que

2
Fragmento do prefácio do livro Los muros de água de José Revueltas.
Disponível em: https://tintaguerrerensedotcom.files.wordpress.com/2015/03/los-muros-de-agua-
jose-revuelta-user16.pdf. Acesso em: 21.01.2017
15

isso aconteça, ele deve dispor e usar novas estratégias de composição


literária, tarefa nada fácil, mas desafiadora.
Para acontecer o enfrentamento em relação aos lugares da tradição e
a pequena/grande revolução narrativa, Bolaño tomou emprestado a linguagem
e as estratégias de outros autores, até mesmo dos que faziam parte da própria
tradição, modificou-as e reescreveu-as com várias finalidades, mas adotou
como a principal delas, a possibilidade de dizer e apresentar aos leitores e a
seus pares, o seu incomodo em relação à instituição literária hegemônica,
aliada a suas reflexões e a sua indignação referente à realidade degradante em
que vive a humanidade.
A partir do exposto, o tema desta tese de doutorado será o estudo e
análise das relações entre literatura e a cultura de massa, em uma parte da
obra de Roberto Bolaño, 2666, com enfoque na utilização de uma estética
próxima aos gêneros B, especificamente, o gênero narrativo popular, o
romance policial.
Dentro da literatura hispano-americana a sua obra ocupa um lugar,
cada vez mais significativo, talvez por ser um autor que não possui um locus
específico de fala, pois Bolaño é de todos os lugares e de lugar nenhum. Todos
já sabem que nasceu chileno, adolesceu mexicano e se tornou um adulto na
costa brava espanhola e que sua narrativa versa sobre temas mundiais, mas,
principalmente, aqueles que assolam a América Latina. Apesar de não exercer
mais sua atividade literária, seus escritos póstumos confirmam que ele continua
sendo uma voz ficcional contemporânea importante e exitosa. Depois de sua
partida, surgiram vários estudos, artigos, dissertações e teses em torno da sua
figura e de sua obra; nesses estudos foram analisados vários aspectos
literários, linguísticos, filosóficos, sociológicos, antropológicos, históricos,
psicológicos que povoam seus livros e essa tese trará outro estudo que
analisará características de sua obra, dentro do campo literário, aliando-se a
outros campos de saberes como a sociologia, a economia e a política.
Portanto, esta tese de doutorado tem como objetivo apresentar e
analisar uma parte de sua obra, além de ser uma tentativa de descortinar
algum aspecto novo que não tenha sido estudado ou pesquisado. Sim, uma
tarefa difícil, porém instigante. O que ainda pode ser analisado e apresentado
da obra de Roberto Bolaño sem cair no lugar comum?
16

Esse questionamento serve como porta de entrada ao problema


principal dessa tese: identificar de que modo ele tratará e apresentará os temas
atuais relevantes, dentro da sua obra, tais como a violência, a política do
precariado, as relações nas cidades de fronteira, além da literatura como
instituição, percebendo que esses temas não só permeiam seus textos, mas
fazem parte do cotidiano das cidades periféricas dos países da América Latina.
Esses assuntos foram escolhidos, para serem analisados a partir da sua obra
2666, com a finalidade de entrar nos caminhos que se bifurcam, porém
tentando não se perder no labirinto das escolhas e não cair em uma armadilha
que os próprios assuntos estimulam. A partir do reconhecimento do problema
principal, surgiram algumas perguntas: como a escrita literária de Bolaño
apresenta os assuntos propostos? Como falar de temas complexos, atuais e
analisá-los a partir da obra do autor? Depois da escolha desses tópicos,
pensou-se qual gênero narrativo pertencente à cultura de massa serviria como
porta de entrada para a análise? Chegou-se à conclusão, como se trata de um
romance, que o mais indicado seria o gênero romance policial. Outras
questões, entre tantas, se juntaram às anteriores, uma sendo mais específica:
será que o gênero romance policial é o mais indicado, para trazer para a trama
ficcional os fatos e os temas atuais, especialmente os ligados à violência, à
fronteira, e à precariedade? Se for, será que o autor logrou o seu objetivo?
Seria audacioso pretender analisar todo o romance 2666, não apenas
por ser muito extenso, mas por ser uma obra que precisa ser estudada com
fineza de detalhes e quatro anos de pesquisas não são suficientes. Por isso, foi
selecionado um corpus específico para esse estudo, e no caso, o quarto
capítulo do livro La Parte de los crímenes. Entende-se que essa parte servirá
não só como base de apreciação dos temas, mas também como ingresso para
discussão sobre se o gênero romance policial é valido ou não para abordar
temas, ao mesmo tempo, tão banais (no sentido de acontecerem muitas
vezes), difíceis e complexos.
Antes de continuar descrevendo o caminho desta tese e apresentar a
hipótese que a norteará, faz-se necessário expor os assuntos que serão
analisados: a violência a partir do ódio que existe em relação à figura feminina
e a mulher sendo utilizada como constituinte de uma classe precária em
processo de formação. Para tratar desses temas não se pode deixar de falar
17

também sobre o feminicídio, que é tocado por Bolaño, exaustivamente, no


capítulo do seu livro, La parte de los crímines.
A violência como tema, nesta tese, será pensada como mercadoria,
entretenimento, permitindo ser mostrada como auge de ódio, de agressão e
como diversão no capítulo La parte de los crímenes, e para esses
apontamentos serão usadas ideias desenvolvidas por Slavoj Žižek, no seu livro
Violência, sobre o que é e como é sentido o fenômeno da violência atual.3
Žižek, em Violência analisa não só a violência objetiva – aquela que é
evidente, explicita e superficial - mas também sobre a violência subjetiva que é
tratada em uma dimensão simbólica; ele parafraseia Bertolt Brecht e lança uma
pergunta: ―O que é um assalto a um banco comparado com a fundação de um
banco?‖ (2014, p.12) Também deixa a entender que essa violência lida e
sentida como explícita e superficial não dá para ser explicada de uma maneira
muito profunda, porque já está dada como violência que todos veem e
entendem como tal. Então, seria certo e producente pensar tipos de violências
e tentar explicá-las ou entendê-las como manifestação. Já que quem pode
dizer o que é violência é aquele que a exerce ou está em posição de poder.
O autor parte da ideia de que a humanidade já conhece as raízes mais
objetivas da violência e que as determinações mais profundas da violência
instaurada nos dias atuais estão atadas à ordem do capitalismo, em uma
relação social entre as pessoas, baseadas no capital, apontando que o mais
importante é a mercadoria, mas, que mesmo assim, esses pontos não seriam
suficientes para entender o fenômeno da violência.
Também é interessante analisar o tema a partir do que foi proposto por
Walter Benjamin que diz que não é possível pensar somente duas alternativas
de violência que nos aprisionam, mas em duas que são opostas e
complementares ao mesmo tempo; primeiro a violência fundamental que
acontece por quem institui a lei e sustenta o funcionamento normal do Estado,
portanto a violência instituída e legitimada pelo próprio Estado e a outra que é a
transgressão das leis, dos crimes ou daquilo que viola a ordem estabelecida.
Essas duas formas de violência, para Benjamim, produzem uma totalidade
falsa, por isso ele imagina outra possibilidade de violência que nomeia como

3
Toda vez que for citada a palavra violência ela deve ser entendida como fenômeno social
gerado a partir do ódio, portanto manifestação.
18

―violência mítica ou divina‖ e essa estaria além das duas anteriores, pois ela
aparece de repente, do ―nada‖. Por isso, Žižek abordará conceitos de dois tipos
de violência, a ―simbólica‖ e a ―sistêmica‖.
A primeira (simbólica) é indireta, invisível, ardilosa, perversa e está
ligada à linguagem e suas formas, mas não apenas às formas e nem de como
os discursos são formulados e reproduzidos para uma dominação social, mas
que, sobretudo, está coadunada à linguagem em si e na maneira que as
pessoas a incorporam e agem para camuflar o entendimento desse tipo de
violência, promovendo a imposição de um universo de sentido que mantém, de
certa maneira, a ordem, pois as palavras não são neutras, possuem uma carga
de sentidos e significados que, dependendo da colocação, servem para atacar,
estigmatizar, gerar desconforto. A ―violência simbólica‖ só é efetiva, imediata,
existente e eficaz quando incorporada pelo próprio oprimido, que deve
entender que a violência está sendo praticada para o seu próprio bem. Esse
ser humano oprimido acaba criando mecanismo para suportar esse tipo de
violência, pois se não o criasse, seria difícil continuar vivendo.
A segunda ele chama de ―violência sistêmica‖, aquela que provoca
consequências catastróficas, pois acontece a partir do funcionamento regular
dos sistemas econômicos e políticos. A violência está onde aparentemente não
existe violência e nesse aspecto ela aparece de forma mais brutal, pois
mantém a ordem, cada um no seu lugar e as coisas do jeito que devem ser. A
violência não é somente uma abstração. Ela é um tipo de intervenção brutal
sobre o real, com a finalidade de encobrir certa impotência, mostrando uma
falha daquilo que acontece e onde se pode estar, tornando-se uma reação
diante da impenetrabilidade e da confusão do capital global que empurra o ser
humano a violar certas normas elementares de convivência.4
A violência, como tema, provoca um entendimento da mesma ser vista
como mercadoria e entretenimento, pode-se pensar o auge da violência como
lazer, esse apogeu está presente nos jogos de estratégias, nos vídeo games,
nos filmes e, inclusive, na literatura com a propagação dos romances com
trama policial.

4
Taxi Driver, Slavoj Žižek y la violencia.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ocysa_cYtr4
Acesso em: 08.03.2016.
19

Há uma explosão de romances em que a trama gira em torno da


violência, vide as obras latino-americanas que versam sobre o narcotráfico.
Alguns estudos já apontam para o aparecimento de uma ―narcoliteratura‖ que
está inserida em um campo mais amplo, o da ―narcocultura‖, produzida,
principalmente, nas cidades mexicanas e/ou colombianas de fronteira, onde a
formação de cartéis e o mercado das drogas aumentam a passos largos, mas
com muito controle por parte desses grupos e do Estado.
Bolaño se adiantou a essas questões e trouxe o tema para dentro da
narrativa de 2666. Ele não só trata da violência, mas dos conflitos das cidades
de fronteira, dos assassinatos inconclusos, da classe precária que surge a
partir desses aspectos e toma como base para sua escrita, documentos reais
escritos pelo jornalista Sergio González Rodríguez sobre o feminicídio que
ocorreu e ainda sucede em Ciudad Juárez, fronteira do México com os Estados
Unidos. A violência simbólica toma corpo e se sustenta a partir do ato banal
de assassinar as mulheres, esse ato se espalha pela cidade e pelos meios de
comunicação sensacionalistas que, no lugar de ser interrompido, é visto como
comum em uma sociedade onde impera o culto ao capital. É como se
dissessem: quanto mais um lugar se desenvolve, mas ele está sujeito a ter
esse tipo de problema. Então, surgem outros pontos para reflexão: o que será
mais violento, assassinar mulheres ou trazer mais maquiladoras 5 para a
cidade? Como essas mulheres são denominadas? Elas possuem uma
identidade? E se a possuem, qual a visibilidade e o valor que têm no espaço
que ocupam? Indo mais além, pode-se dizer que a forma de escrita, sobretudo,
neste capítulo, é violenta? E se for, essa forma de escrita violenta surge como
uma nova maneira de reescrever o gênero romance policial, tomando-o como
infrapolicial?
Existem, pelo menos, três fatores que colocam o romance policial no
centro de leitura e estudos: é divertido. Quem o lê, como entretenimento, não
está preocupado em fazer uma análise detalhada e nem de pensar sobre o que

5
Empresas de montagem e acabamento de produtos para exportação, instaladas em território
mexicano. A grande maioria é norte-americana. Elas trazem peças e componentes, que foram
fabricados em outros países, para montar os produtos no México. Principalmente
eletroeletrônicos, peças de automóveis e têxteis. Pagam menos impostos que as empresas
mexicanas, utilizam uma força de trabalho muito barata e possuem regulamentações
ambientais que nunca são cumpridas.
20

está lendo, vale o entretenimento, o momento de descontração. Mas, por outro


lado, para muitos escritores, críticos e estudiosos, o romance policial serve
como um dos instrumentos mais eficazes de questionamento da e sobre
sociedade violenta. Além de Bolaño, outros autores fazem isso com
consciência, porém não se esquecem do seu aspecto lúdico como, por
exemplo, o mexicano Juan Villoro, que a apresenta no seu livro Arrecife, um
reality show, onde a violência e a realidade são narradas com humor e ironia.
Mas será que o gênero romance policial, na sua forma clássica, ou nas suas
variantes conhecidas como novela negra e romance criminal/neopolicial dá
conta de narrar os temas apresentados? A sua estrutura serve para contar e
enfrentar as agruras cotidianas e contemporâneas? Talvez a resposta seja não,
pois o gênero acaba sendo refém da sua textualidade e de sua convenção
poética que está baseada em enigma, sinais, indícios, pistas, intriga, um
criminoso, um detetive, cuja principal intenção é enganar o leitor até o final da
trama, tornando toda tentativa de alerta inócua, pois o mais importante é
divertir e não alertar.
Existe alguma vantagem de falar sobre a realidade e fazer uma crítica
social a partir do gênero romance policial? Sim, existe. E a principal é a
capacidade de seduzir o leitor. Mas na sua virtude também mora o seu defeito,
que é a vulgarização da matéria; tornando-se descartável, o gênero passa a
ser corriqueiro, sem importância, só aproveitando a forma e desprezando o
conteúdo. Na verdade o autor dá a chance para que o leitor o torne ainda mais
comum, promovendo uma encruzilhada, onde o escritor fica com a sensação
de que sua escrita é inócua, que escreve, apenas, uma história qualquer sem o
menor proveito para reflexão, pois quem lê só o faz pelo prazer de se divertir.
Outro ponto que deve ser debatido é que a saturação da imagem
esvazia o conteúdo, pois quando uma imagem é mostrada muitas vezes
seguida, ela acaba perdendo o seu sentido, tornando-se corriqueira. Com
Roberto Bolaño acontece diferente, ele aproveita a forma para servir ao
conteúdo, e o conteúdo, em La Parte dos crímenes, se sobrepõe, muitas
vezes, à forma, mais um indicativo para que seu romance possa ser lido a
partir de outra variante do gênero romance policial. Ademais, a saturação das
imagens das mulheres assassinadas, acontece de maneira diferente na obra,
21

pois quanto mais detalhes o narrador dá dos crimes, mais repleto de teor e de
crítica fica o discurso, porque, nesse caso, a exaustão leva à reflexão.
Será possível que Roberto Bolaño, utilizando a base de construção do
romance policial tradicional e toda influência recebida das suas leituras de
Jorge Luís Borges, consegue reordenar, reestruturar e reescrever de uma
maneira tão singular que possa propor uma nova variante do gênero?
Roberto Bolaño, no momento em que mergulha na forma e na estrutura
do romance policial, penetra nas reais tensões da realidade, a problematiza e
relativiza o caráter das variantes pertencentes ao gênero romance policial. A
partir dessa imersão, dessa caída vertical, dessa possibilidade de
desconstrução, emerge a possibilidade de outro tipo de narrativa, que pode
também ser sentida como periférica e de fronteira e mais elaborada para tratar
das questões atuais.
A hipótese que norteará este estudo será a de tentar demonstrar,
através da análise de La parte de los crímenes, da obra 2666 de Roberto
Bolaño, que o autor talvez já aponte, a partir do romance policial clássico, como
leitura de entretenimento, a possibilidade de outra maneira de escrever o
gênero, entendido como infrapolicial, pois as escolhas dos temas, da trama, da
estética de sua prosa, da linguagem empregada e da configuração dos
personagens seguem por outro caminho. Um caminho que ele aprofunda e
reafirma: que o romance policial, na América Latina, deve ser lido com
características infrarrealistas. Esse aspecto pode ser observado já na escolha
dos títulos dos seus livros anteriores que refletem a retomada e a sua
proximidade com o Movimento Infrarrealista: Consejos de um discípulo de
Morrison a um fanático de Joyce, livro escrito, em 1984, com Antonio García
Porta, cujo título é uma paráfrase de um poema de Mario Santiago
Papasquiaro, intitulado Consejos de un discípulo de Marx a un fanático de
Heidegger6. Outros títulos de livros ratificam essa modificação: Putas Asesinas;
Una novelita Lumpen; Los detectives salvajes e Llamadas telefónicas.
Desse modo, existe a premissa de entender que autor escolhe
escrever, sob uma nova estrutura, para dialogar melhor com qualquer tipo de
público, dessacralizando o que é considerado ―alta literatura‖, tradição literária,

6
Ver poema - ANEXO I (p.196-201)
22

grandes discursos, grandes momentos, grandes termos/títulos/conceitos


propostos pelas gerações anteriores, principalmente a geração que instituiu o
Boom. Bolaño, entre outros, é aquele que confronta o que o precede, sem
nenhum temor, e é por isso que mergulha dentro do processo para apresentar
uma nova categoria para o gênero, não deixando de lado a sua veste irônica,
algo que se ajuste e o ajude a reescrever os pensamentos da vanguarda e
também os da tradição, uma reescrita diferente, em outra época, posterior a
todos os outros movimentos.
Por que Bolaño mistura as ambições da vanguarda e seu esgotamento,
presente, por exemplo, no seu livro Los detectives Salvajes, com as virtudes
dos gêneros pertencentes à cultura de massa, concretamente o romance
policial? Por que em Bolaño, os gêneros considerados constituintes da ―alta
cultura‖ e os constituintes da ―cultura de massa‖; o lógico e o paradoxo; a ficção
pura e a realidade circunstancial; o versátil e o único parecem fazer parte de
um único lugar: o da escrita literária? Pode-se afirmar que existe um limite para
a obra de Bolaño? Se sim, qual seria? Existe a probabilidade de o autor querer
o leitor como cúmplice quando apresenta um romance policial escrito com outra
estrutura que não a clássica? Ainda é importante a dialética entre cânone (aqui
o cânone lido como ―boom‖ e/ou tradição latino-americana) e cultura de massa;
entre narrativa de centro e de periferia, para que se possa definir um autor ou
uma obra? E o Bolaño escritor se importaria com essa dialética?
Ele propõe, desde o seu primeiro romance, uma desconstrução 7 do
romance policial, que pode ser pensada e analisada como a elaboração de
uma nova categoria, o romance infrapolicial, pois mergulha na estrutura do
7
Descontrução entendia a partir do termo emprestado de Jacques Derrida, pois, assim como o
filósofo, Bolaño constrói seu projeto literário sob a ótica da ética e da política, admitindo que a
desconstrução, segundo Derrida, visa a questionar a estrutura interna dos textos, com a
proposta de colocar à mostra aquilo que os enunciados escondem, uma estrutura que deixa vir
à tona inúmeras vozes que não puderam se expressar. Com a finalidade de esclarecer a ideia
de transportar o conceito de Derrida para o entendimento da literatura em Bolaño, cito parte do
artigo Desconstrução, escrito pelo professor de Filosofia da UFRJ, Rafael Haddock Lobo,
quando explica o conceito a partir do estudo da Gramatologia: ―‗Gramatologia‘ é a tentativa
empreender um sistema de pensamento sempre aberto, que nunca se enclausura em uma
fórmula ou um método, e por essa razão necessita de uma arquitetura estratégica, para fugir
da economia conceitual tradicional da filosofia, que sempre levaria o pensamento de um
filósofo a fechar-se em torno do seu próprio sistema.‖. Trazendo para escrita de Bolaño,
poderia dizer que a sua desconstrução não se fecha em uma única maneira de narrar, é aberta
e mistura estrutura de gêneros diversos.
Artigo disponível em: http://revistacult.uol.br/home/2014/10/a-desconstrucao
Acesso em 27.01.2017
23

romance policial clássico, a desfaz e a reorganiza e traz à tona outra variante,


mistura e lança mão de vários tipos de gêneros narrativos (jornalismo, crônicas,
folhetim, testemunho, etc.), traçando uma obra polifônica, construída, desse
modo, para servir como característica dessa nova categoria, que também traz
implícito o pedido de um novo leitor, pois, segundo o próprio autor, o
infrarrealismo é o novo olhar de transição, uma espécie de testemunha que se
empenhou em mostrar as novas experiências histórico-políticas e econômicas
da América Latina.
Dentro dessa nova variante, também há espaço para o autor abordar
questões referentes à identidade ou à marginalidade, eixos temáticos
presentes tanto nos seus romances, quanto nos seus contos e ensaios. Neles,
o autor apresenta sua (re)experimentação formal e estrutural, o que ajuda a
mostrar qual é a condição de escritores, como ele, dentro da sociedade
contemporânea, aqueles que fazem ou tentam fazer o jogo entre o que já está
estabelecido e as outras possibilidades de dar sentido à escrita, com isso,
brindando o leitor com uma obra que ultrapassa os limites da intertextualidade
e da interdiscursividade e chega à transtextualidade, ainda lhes oferecendo
outras possibilidades de leituras dos textos que figuram por trás da janela da
contemporaneidade.
Quanto à metodologia, o objetivo desta tese guia-se, em grande
medida, pelos pressupostos teóricos e o tipo de pesquisa a ser desenvolvida.
Na intenção de realizar uma leitura mais profunda do conjunto de textos
teóricos selecionados como representativos do momento, sobre o qual foca
esse trabalho, serão empregadas estratégias comparativas de análise e
reflexão de modo que um pensamento crítico se desenvolva.
Os textos teóricos se articularão com a análise da obra de Roberto
Bolaño, a partir de uma abordagem interdisciplinar e intertextual entre os
discursos literário, cultura de massa, gênero romance policial que possibilitará
uma leitura e compreensão mais minuciosa do diálogo que se estabelece entre
esses campos do conhecimento com o corpus de estudo.
Para a elaboração desta tese foi utilizada uma vasta bibliografia sobre
os temas abordados, sobre Roberto Bolaño e sua obra, que pode ser apreciada
ao final da tese. Como aporte teórico principal, foram usados os textos de
Edgar Morin, Elias Canetti, John Carey para pensar a cultura de massa. Com
24

Slavoj Žižek e Karl Erik Schollhammer o diálogo aconteceu em torno do tema


da violência. Os textos de Ruy Braga e André Singer auxiliaram a entrelaçar os
pensamentos sobre precariado. Para pensar de onde parte a escrita de Bolaño
e as suas influências, foram analisados artigos escritos por Felipe A. Ríos
Baeza, Celina Manzoni, Patricia Poblete Alday, entre outros e fechando a
análise sobre o romance policial, novela negra e romance neopolicial, os textos
usados como base foram os escritos por Mempo Giardinelli e os artigos
compilados por Daniel Link.
Como Bolaño pensou e estruturou o seu projeto literário ainda como
poeta infrarrealista, depois fazendo com que sua narrativa não perdesse o
espírito poético e, ainda, com a finalidade de pensar e analisar a literatura de
Roberto Bolaño e sua ligação a partir de uma ideia ―infra‖, é indispensável
apresentar, no primeiro capítulo da tese, a trajetória do início da carreira do
autor como poeta infrarrealista que propôs, junto com um pequeno grupo de
amigos, questionar e romper com a forma de escrita estabelecida pelo cânone.
Uma forma que procurou introduzir uma série de discursos e ferramentas
narrativas marginais, onde o sistema binário, centro e periferia, se disseminou
e se juntou, dando chance para abordar temas bastante polêmicos, como a
violência extrema, o que determinou a dinâmica dos textos forjados com uma
significativa e rigorosa estética, não só literária, mas também política.
Para complementar o pensamento, uma das passagens do livro Os
Intelectuais e as massas, de John Carey, o autor apresenta as ideias de Freud
sobre a formação das massas:

Freud concorda com Le Bon em que o indivíduo torna-se, na massa,


bárbaro e infantil [...] o que ocorre, explica Freud, é que o indivíduo,
ao tornar-se homem da massa, livra-se das repressões sobre seus
instintos inconscientes [...] De acordo com ela a horda primordial, que
era a forma primitiva da sociedade humana. Composta de filhos,
perseguida e dominada por seu ―pai primordial‖ ou líder da matilha, a
horda uniu-se contra o pai e o matou [...] (1993, p. 34)

A partir desse fragmento, talvez caiba uma metáfora como uma


possível leitura que auxiliará na elaboração dessa tese, a de que Roberto
Bolaño, os poetas da sua geração e os poetas pertencentes ao Movimento
Infrarrealista, tiveram a possibilidade de constituir um grupo de autores
viscerais - os escritores das décadas de 1970 e 1980, aqueles que escreviam
25

no momento em que o massivo começava a impregnar o literário -, ávidos de


sentimentos de destruição e de extermínio do pai, esse ser superior e intocável.
Mas, talvez, o que eles não contava, era que a horda, como aquela descrita por
Freud, se juntasse e fizesse de tudo para matá-lo, mesmo que esse pai
funcionasse como uma espécie de espelho.
Após essa localização, com a finalidade de identificar o ponto de
partida do projeto literário de Roberto Bolaño, julga-se ser pertinente um estudo
da sua obra com o objetivo de mostrar, como se apresenta, especificamente,
nesta tese, o romance policial e como se percebe a aproximação de sua
literatura com os aspectos da cultura de massa. Diz-se obra, pois o próprio
autor afirmou, em entrevista concedida à Angélica Rivera de Las Últimas
Noticias, em julho de 1998, que para entender seu projeto, toda sua obra
deveria ser lida:

Estoy condenado, afortunadamente, a tener pocos lectores, pero


fieles. Son lectores interesados en entrar en el juego metaliterario y
en el juego de toda mi obra, porque si alguien lee un libro mío no está
mal, pero para entenderlo hay que leerlos todos, porque todos se
refieren a todos. Y ahí entra el problema. (BOLAÑO apud
BRAITHWAITE, 2011, p. 118)

Frente à afirmação feita pelo próprio escritor, propõe-se um estudo do


romance policial, com enfoque em uma estética apresentada pelo autor que
utiliza aspectos dos gêneros ligados à cultura de massa. ―¿Qué hay detrás de
la ventana?‖ Pergunta-se o personagem Juan Garcia Madero, no final do
romance Los detectives Salvajes (2009, p. 608); esta será também uma das
perguntas desse estudo que se ampliará e se juntará, de maneira mais precisa,
a outras, partindo da reestruturação do romance policial clássico (que está no
centro da questão), chegando ao que está à margem, portanto na fronteira, no
limite, o romance infrapolicial. Um trecho de Felipe A. Ríos Baeza, no seu livro
Roberto Bolaño, una narrativa en el margen: desestabilizaciones en el canon y
la cultura, ajuda a pensar essa possibilidade de fronteira:

No obstante, es necesario realizar una puntualización: ese elemento


del ―margen‖ en Bolaño es mucho más conflictivo y dinámico de lo
que aparenta. Además, resulta decidor que tal noción haya sido
examinada por la filosofía, la sociología y la teoría literaria como una
zona de conflicto y ambivalencia, de diseminación y filtro, e incluso
como sinónimo de acepciones más complejas: ―borde‖, ―marco‖,
26

―límite‖ u otras mayormente socioculturales, como ―frontera‖. (RÍOS


BAEZA, 2013, p. 17)

Esta tese está constituída de três capítulos. O primeiro intitulado


Espaço de disputa está dividido em três seções: a) uma historiografia de
Roberto Bolaño e do Movimento Infrarrealista idealizado por ele; b) a ligação do
autor com a tradição e c) um resumo da obra 2666, que servirá como
localização para que quem leia a análise, possa entender de onde parte todo
esse estudo. O segundo capítulo intitulado Campo de batalha: o romance
infrapolicial, versa sobre a cultura de massa, a sociedade do espetáculo e o
gênero narrativo romance policial, apresentando suas variantes e trazendo a
proposta de leitura do capítulo La parte de los crímines, como romance
infrapolicial. O capítulo final intitulado Narrativas interrompidas, tentará mostrar
de onde partem as suas estratégias de composição e como, de fato, ele
compõe a nova estrutura que marcará sua escrita, principalmente no corpus de
estudo tomado para essa tese.
27

Capítulo I – Espaço de disputa


Yo soy un punto muerto en medio de la hora,
equidistante al grito náufrago de una estrella.
Un parque de manubrio se engarrota en la sombra,
y la luna sin cuerda
me oprime en las vidrieras.
Margaritas de oro
deshojadas al viento.

La ciudad insurrecta de anuncios luminosos


flota en los almanaques,
y allá de tarde en tarde,
por la calle planchada se desangra un eléctrico.

El insomnio, lo mismo que una enredadera,


se abraza a los andamios sinoples del telégrafo,
y mientras que los ruidos descerrajan las puertas,
la noche ha enflaquecido lamiendo su recuerdo.

El silencio amarillo suena sobre mis ojos.


¡Prisma!, diáfana mía, para sentirlo todo!

Yo departí sus manos,


pero en aquella hora
gris de las estaciones,
las palabras mojadas se me echaron al cuello,
y una locomotora
sedienta de kilómetros la arrancó de mis brazos.

Hoy suenan sus palabras más heladas que nunca.


¡Y la locura de Edison a manos de la lluvia!

El cielo es un obstáculo para el hotel inverso


refractado en las lunas sombrías de los espejos;
los violines se suben como la champaña,
y mientras las ojeras sondean la madrugada,
el invierno huesoso tirita en los percheros.

Mis nervios se derraman.


La estrella del recuerdo
naufragada en el agua
del silencio.
Tú y yo
coincidimos
en la noche terrible,
meditación temática
deshojada en jardines.

Locomotoras, gritos,
arsenales, telégrafos.

El amor y la vida
son hoy sindicalistas,
8
y todo se dilata en círculos concéntricos.

8
Poema Prisma de Manuel Maples Arce, um dos fundadores do movimento estridentista
mexicano que influenciou as ideias do movimento infrarrealista. Disponível em:
http://www.poemas-del-alma.com/manuel-maples-arce-prisma.htm. Acesso em: 03.01.2017
28

Nos anteceden las MIL VANGUARDIAS DESCUARTIZADAS EN LOS SESENTAS


Las 99 flores abiertas como una cabeza abierta
Las matanzas, los nuevos campos de concentración
Los Blancos ríos subterráneos, los vientos violetas
Son tiempos duros para la poesía, dicen algunos, tomando té, escuchando música en sus
departamentos, hablando (escuchando) a los viejos maestros. Son tiempos duros para el
hombre, decimos nosotros, volviendo a las barricadas después de una jornada llena de mierda
y gases lacrimógenos, descubriendo / creando música hasta en los departamentos, mirando
largamente los cementerios-que-se-expanden, donde toman desesperadamente una taza de té
o se emborrachan de pura rabia o inercia los viejos maestros.
[…]
Repito:
el poeta como héroe develador de héroes, como el árbol rojo caído que anuncia el principio del
bosque.
—Los intentos de una ética-estética consecuente están empedrados de traiciones o
sobrevivencias patéticas.
9
—Y es que el individuo podrá andar mil kilómetros pero a la larga el camino se lo come […]

As narrativas de Roberto Bolaño como espaço onde se relatam e


exploram as buscas, as memórias, as dores e outras questões relativas ao
homem; as últimas ditaduras da América Latina; a situação de inércia; a
precariedade; a violência e o terrorismo de Estado, que ocorreram e ainda
acontecem desse lado do Atlântico, também colocam em evidência o seu modo
de narrar, os procedimentos e as ferramentas com as quais elaborou, construiu
e articulou, não só sua estética, mas todo o seu projeto literário. Por que
começar um capítulo com duas epígrafes (o poema de Maples Arce e o
fragmento do Manifesto Infrarrealista) distantes no tempo, mas próximas e
complementares em seu conteúdo?
Existe um motivo, pois há muitas relações entre os poemas dos
autores estridentistas mexicanos – exemplificado com um poema de Manuel
Maple Arce – as ideias do Movimento Infrarrealista, as atitudes e as obras dos
artistas de vanguardas, o texto de ficção científica de um autor russo, a
Geração Beat, Roberto Bolaño 2666 e o gênero infrapolicial que serão
apresentados nas próximas páginas desta tese.
A partir de suas primeiras reflexões sobre as preocupações estéticas,
ele escreve o Manifesto Infrarrealista em 1976, que retomará as características
apresentadas pelos movimentos de vanguarda dos anos de 1920,
principalmente, o dadaísmo e o surrealismo europeus e o estridentismo

9
Fragmento do Manisfesto Infrarrealista, Déjenlo todo, nuevamente, escrito, em 1976, por
Roberto Bolaño. Retirado do livro: Nada utópico nos es ajeno. México: Tsunun, 2013, p.51-62
Disponível em: https://tsunun.files.wordpress.com/2013/05/nada-utc3b3pico-nos-es-ajeno-
manifiestos-infrarrealistas1.pdf. Acesso em: 19.01.2017.
29

mexicano. A poética do movimento infrarrealista (um tipo de neovanguarda dos


anos de 1970) estava associada com uma nova forma de experimentação, com
acontecimentos imaginários, irracionais e estranhos, com as galáxias
infrarreais, onde aconteciam coisas extraordinárias. O manifesto escrito por
Bolaño começa com uma citação extraída do relato La infra del dragón10,
escrito pelo autor russo Georgij Gurevic, em 1959. As ideias do manifesto
começam com as palavras do autor russo e parece ser um complemento das
ideias, escritas por Walter Benjamin, sobre o surrealismo, mas todas elas
deslocadas para a cidade do México e por que não dizer, para a América
Latina:

A Paris dos surrealistas é também um pequeno "universo" [...] No


maior, o cosmo, as coisas não parecem diferentes. Também ali há
encruzilhadas onde sinais espectrais lampejam no trânsito, e
inconcebíveis analogias e ligações entre fatos são a ordem do dia. É
a região da qual se comunica a lírica poesia do surrealismo.
(BENJAMIN apud HOBSBAWM, 1995, p. 178)

Mesmo parecendo um complemento das particularidades dos


movimentos de vanguarda, o manifesto surge como crítica e alerta, como se
ele dissesse para todos os autores que seguiam, com ele, naquela empreitada
de construir uma arte própria, que deixassem de lado o pensamento europeu,
vissem, pensassem e fizessem arte a partir do seu lugar de origem, que além
de se tornar única seria diferente. Os fatos da vida diária precisavam ser
narrados com roupagem e linguagem próprias, guardando influências, porém
sendo, sobretudo, original. Foi um desafio fundar um movimento que ajudasse
a pensar e construir um dos núcleos, a partir do qual, eles pudessem traçar o
início de suas narrativas poéticas e, especificamente, para ele mesmo, a
composição de um projeto literário original, onde houvesse a união entre o
texto visual, o humor, a ironia e a rebeldia para enfrentar a existência e os
dissabores do mundo.
Bolaño propôs um deslocamento do ato de escrever tradicional para
modelos menos explorados ou ainda desconhecidos onde pudesse caber toda
sua narrativa poética, apontando para o seu projeto literário como um todo. Foi

10
Ver anexo II. (p.202-218) Texto disponível em:
https://cuentoshistoriasdelmundo.blogspot.com.br/2014/11/la-infra-del-dragon-georgij-
gurevic.html. Acesso em: 03.01.17
30

mesmo necessário fundar um movimento e conviver com outros poetas para


que suas ideias fossem aceitas e, mais que tudo, lidas? Até que ponto
experimentar e viver a experiência ajudou na formação da sua estética? Existe
alguma coerência entre o Bolaño do Movimento Infrarrealista com o que
escreveu 2666? Diante dessas indagações, se faz necessário começar esta
tese, apresentando as influências que Roberto Bolaño recebeu e seu empenho
em formar um movimento que o ajudasse na sua formação como autor,
porque, segundo o próprio, como escritor, ele era melhor leitor.
O título sugestivo do romance, 2666, remete a um ano meramente
imaginário, pois este ano já havia aparecido em uma das obras emblemáticas
de Roberto Bolaño, o curto romance Amuleto. O ano é apresentado em uma
cena narrada pela personagem protagonista, Auxilio Lacouture, comparando
uma das ruas da Cidade do México, a Avenida Guerreiro ―como um cemitério o
ano de 2666, um cemitério escondido debaixo de uma pálpebra morta ou ainda
não nascida, as aquosidades desapaixonadas de um olho que, por querer algo,
acabou esquecendo tudo.‖ (BOLAÑO, 2008, p.65). Esta citação aponta para
um lugar, dentro da cidade, percebido e entendido como fronteiriço, o
cemitério, onde o espetáculo mortuário encontra o seu ponto final, a fronteira
entre vida e não existência, pensado como metáfora, um lugar em que a escrita
deve ser feita de outra maneira, sob outras formas, estruturas e bases, pois já
não se pode falar sobre temas atuais da América Latina presos às estruturas e
formas antigas de escrita, nem que para isso seja necessário pensar e criar um
novo gênero.
A capacidade que um autor possui em criar um mundo ficcional
baseado no real/factual, ou exatamente o contrário, proporciona uma escrita
reveladora das condições de produção que imperam nas sociedades atuais e
como essas produções são percebidas e entendidas. O romance 2666, escrito
por Roberto Bolaño em 2004, faz parte do tipo de narrativas que estão
inseridas nesse viés contemporâneo e ficcional convertido em representação,
tal sua intensidade e o seu rompimento com as regras de estrutura do romance
tradicional e a tendência de buscar um ponto intermediário entre a noção geral
de literatura e os objetivos e objetos particulares de cada autor e suas obras.
Nesse caso, é provável que, de tudo isso, tenha surgido a ideia de escrever um
31

romance em outras bases, com outra construção, ampliando e formando uma


nova variante do gênero policial, o romance infrapolicial.
Para que se entenda a estrutura de romance proposta por Bolaño em
2666 se faz necessário dar uma espiada no seu passado como poeta
infrarrealista e expor que a relação de Roberto Bolaño com o Movimento
Infrarrealista nunca deixou de existir. Na verdade, o que ele fez foi trazer as
características do movimento para outro contexto e convertê-las em geradoras
de uma fórmula própria de escrever sua narrativa. Realizou isso quando uniu a
poesia com a realidade da vida cotidiana, servindo como parte da
desconstrução de gêneros literários estabelecidos e muito bem estruturados
dentro de uma tradição, e por que não dizer, dentro de um cânone, que, ao
mesmo tempo, não pode ser esquecido, mas pode ser criticado e reinventado.
Essa nova forma de escrita fica logo clara nas páginas iniciais do romance, em
La parte de los críticos, momento em que Jean-Claude Pelletier conta como foi
a primeira vez e como se sentiu quando leu uma das obras de Benno von
Archimboldi:

Se vio, como queda dicho, a sí mismo, ascético e inclinado sobre sus


diccionarios alemanes, iluminado por una débil bombilla, flaco y
recalcitrante, como si todo él fuera voluntad hecha carne, huesos y
músculos, nada de grasa, fanático y decidido a llegar a buen puerto,
en fin, una imagen bastante normal de estudiante en la capital pero
que obró en él como una droga, una droga que lo hizo llorar, una
droga que abrió, como dijo un cursi poeta holandés del siglo XIX, las
esclusas de la emoción y de algo que a primera vista parecía
autoconmiseración pero que no lo era (¿qué era, entonces?, ¿rabia?,
probablemente), y que lo llevó a pensar y a repensar, pero no con
palabras sino con imágenes dolientes, su período de aprendizaje
juvenil, y que tras una larga noche tal vez inútil forzó en su mente dos
conclusiones: la primera, que la vida tal como la había vivido hasta
entonces se había acabado; la segunda, que una brillante carrera se
abría delante de él y que para que ésta no perdiera el brillo debía
conservar, como único recuerdo de aquella buhardilla, su voluntad. La
tarea no le pareció difícil.(BOLAÑO, 2013, p. 17)

Nesse fragmento já fica estabelecido que para ler 2666, assim como
para ler Benno von Archimboldi, é preciso um olhar mais astuto e audaz, muito
mais cuidadoso, prestando atenção nas pistas que possam levar a uma nova
forma de narrar, em direção a uma nova variante do gênero. Uma forma de
narrar que não despreza nenhum elemento, que retoma formas, ideias,
características e conceitos apresentados por autores dos movimentos artísticos
do inicio do século XX, quando a arte deixa de ser pensada em nicho e começa
32

a ser pensada para ser vista em qualquer lugar, onde arte pode ser tudo e
estar em todos os espaços.

1.1 – Roberto Bolaño e o Movimento Infrarrealista

O Infrarrealismo foi um movimento neovanguardista influenciado pelos


pensamentos dos poetas estridentistas mexicanos, pela poesia marginal da
Geração Beat, (formada na década de 1950, logo depois da 2ª guerra mundial
– como um movimento de contracultura), pelos anos de resistência, do amor
livre, dos Rolling Stones, de Carlos Santana, pelo submundo das drogas, das
viagens interiores, do esoterismo, da alimentação vegetariana, das filosofias
orientais, do repudio ao autoritarismo, dos anos da década de 1960. Naquele
momento, no México, vendiam a ideia de quem não estava debaixo do manto
do Estado, paternalista, priista, onde a moral cristã da grande família mexicana
era uma bandeira imposta, fazia parte da juventude rebelde, que havia
vivenciado a turbulência política daquela década, culminando nos anos duros
dos anos de 1970. Lógico que tais relações não eram tão orgânicas assim,
passavam por mediações e negociações e o Movimento Infrarrealista teve uma
razão de ser tanto política, como artística, mas, sobretudo, foi um movimento
cujo principal objetivo era apresentar uma postura diferente perante a vida e
uma nova forma de escrever poesia, fazendo alusão a um novo território, mas
visto de maneira contrária, de cabeça para baixo, no qual imperava a inversão
das regras do mundo em que viviam.
Assim como os anos da década de 1970 assistiram ao nascimento de
grupos de guerrilha campesina ou urbana compostos por jovens de uma classe
social média, também viu surgir grupos artísticos e entre eles os dos poetas
infrarrealistas que tinham como lema principal: ―nuestra ética es la revolución,
nuestra estética la vida: una-sola-cosa.‖ (BOLAÑO, 2013, p.56)
O movimento estridentista que aconteceu no México na década de
1920 acendeu o entusiasmo dos jovens infrarrealistas, pois era um movimento
imbuído de um espírito adiantado no tempo e fiel às ideias de rompimento que
vinham das vanguardas europeias e com textos que falavam das máquinas,
das fumaças das fábricas e do cosmopolitismo, mas o que o qualificou como
um movimento inovador foi a ruptura com a tradição e com a figura do
33

intelectual, onde um dos focos era uma mudança real que incidisse na vida das
pessoas. Pode-se dizer que, nestes aspectos, os infrarrealistas receberam a
influência, tomaram e ressignificaram as ideias estridentes do grupo. Vale
resaltar que no grupo de estridentistas também havia pintores, artistas
plásticos, que juntos pensaram uma das mais produtivas obsessões estéticas:
criar uma metáfora de uma grande metrópole moderna que foi denominada
Estridentópolis (PRIETO GONZÁLEZ, 2012).
Entretanto, por estarem mais perto em termos de realidade temporal,
foi a Geração Beat que talvez tenha influenciado mais o grupo infrarrealista,
pois eles viam naquela geração uma espécie de espelho, queriam montar
também sua gangue transviada, rebelde, marginal e, assim como eles,
buscavam extravagância, entusiasmo e uma vida sob a intempérie, a
experiência das ruas, dos becos, dos bares e dos cantos lúgubres das cidades.
O espírito que Bolaño e seu amigo Mario Santiago Papasquiaro buscavam nos
jovens, para compor o grupo, era igual ao que apregoava Jack Kerouac no seu
romance En el camino:

la única gente que me interesa es la que está loca, la gente que está
loca por vivir, loca por hablar, loca por salvarse, con ganas de todo al
mismo tiempo, la gente que nunca bosteza ni habla de [con] lugares
comunes, sino que arde, arde como fabuloso cohetes amarillos
explotando igual que arañas entre las estrellas y entonces se ve
estallar una luz y todo el mundo suelta un ‗¡Ahhh!‘ (KEROUAC, 2005,
p. 16)

As ruas estavam para os poetas infrarrealistas como a estrada para os


da Geração Beat; espaços de agitação e movimentações que os libertavam
das correntes de uma sociedade repressora. Nas ruas e na estrada existia a
liberdade de ir para aonde e quando quisessem. Não havia a necessidade de
explicações, de se moldar a uma estrutura que já não respondia mais às
expectativas das almas errantes e nem a responsabilidade de trabalhar, casar,
ter uma casa, juntar capital e viver uma vida de rotina preestabelecida. Nas
ruas e nas estradas sempre existia a possibilidade de um recomeço, de
experimentar e mudar a direção. Talvez só loucos e os destemidos fossem os
únicos que se interessariam por esses espaços, como fonte de produção
artística. Essa geração, bem como o movimento inaugurado por Bolaño, foi
muito criticada pelos intelectuais, pela academia, pelos espaços tradicionais de
34

produção cultural, pois os dois grupos traziam consigo a metáfora e a utopia de


mudança social no modo de ser e de escrever e afrontavam o establishment.
José Vicente Anaya, um dos integrantes do Movimento Infrarrealista, escreveu
no seu manifesto:

[...] nosotros nos negamos seguir el juego institucional de la ―CUL —


¿cul no es un prefijo de origen francés?— TURA‖ que implica la
teoría y práctica de los grupúsculos academicistas y sectas
reduccionistas que bregan en el poder editorial y que con sus
esquemas se vanaglorian de una absoluta corrección sobre lo que ―la
11
belleza debe ser‖.

Os poetas infrarrealistas impuseram uma forma de enfrentar os círculos


literários tradicionais, como já tinham feito os da Geração Beat. Entrando nos
lugares onde havia alguma apresentação, eles invadiam e confrontavam quem
se apresentava; além disso, liam, sem pedir licença, os seus textos, gritavam
palavras que podiam chocar. Na verdade, com esse tipo de comportamento,
estavam tentando construir o seu espaço de fala, deixando evidente que eram
diferentes de tudo que havia sido imposto, mostrando a necessidade urgente
de se libertarem de todas as convenções. Mas, diferentes dos escritores beats,
as intervenções e o movimento duraram pouco tempo. Segundo Juan Villoro

El infrarrealismo ni siquiera llegó a ser censurado. Fue ninguneado


totalmente [...] fueron vistos como vagabundos delincuenciales.
Pagaron demasiado caro su apuesta [...] Es decir, de acuerdo con la
teoría de Bolaño, el infrarrealismo sirvió para alimentar como tema su
obra narrativa y mitologizar ese mundo con Los detectives salvajes
[…] (VILLORO, 2013, p. 65-68)

Quando se analisa o prefixo infra, percebe-se a sua carga semântica


que, de algum modo, supria a vontade de ser diferente já a partir da própria
nomenclatura. Infra, para os poetas, era o que vinha de dentro (das partes
viscerais do indivíduo), o que saía dos meandros do submundo da terra e de
outras estrelas, mas também estava relacionado ao que permanecia embaixo
e, ao mesmo tempo, que sustentava e que dava base às suas ideias, atacava a

11
Fragmento do Manisfesto Infrarrealista, Por un arte de vitalidad sin límites, escrito, por José
Vicente Anaya. Retirado do livro: Nada utópico nos es ajeno. México: Tsunun, 2013, p. 44
Disponível em: https://tsunun.files.wordpress.com/2013/05/nada-utc3b3pico-nos-es-ajeno-
manifiestos-infrarrealistas1.pdf. Acesso em: 27.05.2014.
35

base da tradição literária vigente e a idiossincrasia mexicana. Esse ataque era


realizado através da palavra:

Vamos a retirar del caos las preguntas Vamos a descomponer el


sistema y a repetirnos una cosa distinta...Podemos caer en un charco
pero la jugada siempre nos será conocida La máquina de escribir del
futuro en cada acto de la intensidad impaciente el simbolismo insólito
el atrevimiento audaz Hemos saludado al orgasmo Hemos visitado
los hospitales psiquiátricos de la mente Exigir es atormentarnos
lacerarnos hasta la tormenta de la gripe cortarle las uñas a los
tenedores de la pasión y el suspiro seguir haciéndolo en este pinche
universo encerrado en los globos TNT del kapitalismo y sus
defraudadores Quien no aborda el lomo de la práctica de la ilusión no
contribuirá ni con ½ miligramo del rechazo en bloque de esta barbarie
Tienen la ambición de acabar en obra de arte Lo que era
contemporáneo ya ha dejado de serlo… Engarróteseme ahí poesía
contestataria nada de vanguardia ni clisé de lo nuevo El horizonte es
largo y hermoso como un beso prolongado en las diferentes mujeres
del sol y del hombre […] (BOLAÑO apud MADARIAGA CARO, 2010,
p. 43)

Esta é a parte de um texto assinado como Movimiento Infrarrealista


publicado na revista Correspondencia infra, revista menstrual del movimiento
infrarrealista, número octubre/noviembre de 1977. Um texto ardente, ferino e
atual, um texto que incomoda e perturba e que poderia fazer parte das páginas
do capítulo La parte de los crímenes, de 2666, o que faz pensar que a
infrarrealidade nunca deixou de estar presente na trajetória literária de Bolaño.
Muitos personagens, dentro da obra de Bolaño, poderiam ratificar não
só os aspectos infrarreais estéticos, mas também o espírito que rondava os
seus componentes. O movimento dos personagens, que possuem o
pensamento e a alma infrarrealista, ademais de ser um movimento físico é
interno, para dento de si mesmo, provocando perguntas, explodindo e
derramando ideias. Em 2006, podem ser destacados vários personagens, mas
dois deles merecem ser apontados como portadores dos aspectos e do espírito
de infrarrealidade: o professor chileno Óscar Amalfitano que ―tenía unas ideas
un tanto peculiares al respecto. No las tenía siempre, por lo que tal vez sea
excesivo llamarlas ideas. Eran sensaciones. Ideas-juego.‖ (BOLAÑO, 2013, p.
243). Esse personagem, além de ter ideias-jogo, é um ser errante e provocador
(estes são aspectos recorrentes a outros personagens), quando pendura um
livro de geometria, no varal de casa, fazendo alusão à obra A fonte, de Marcel
Duchamp, artista plástico do período das vanguardas:
36

Durante un rato se quedó quieto, respirando con la boca abierta,


apoyado en el palo horizontal del tendedero.Después entró en la
casucha como si le faltara oxígeno y de una bolsa de plástico con el
logotipo del supermercado al que iba con su hija a hacer la compra
semanal extrajo tres pinzas para la ropa, que él se empecinaba en
llamar «perritos», y con ellas enganchó y colgó el libro de uno de los
cordeles y luego volvió a entrar en su casa sintiéndose mucho más
aliviado.La idea, por supuesto, era de Duchamp.De su estancia en
Buenos Aires sólo existe o sólo se conserva un ready-made. Aunque
su vida entera fue un ready-made, que es una forma de apaciguar el
destino y al mismo tiempo enviar señales de alarma. [...] la idea es de
Duchamp, dejar un libro de geometría colgado a la intemperie para
ver si aprende cuatro cosas de la vida real. (Idem, 2013, p.245 e 251)

Assim, com essa iniciativa, tanto Amalfitano como Duchamp,


despertaram e modificaram o pensamento padrão do público, mostrando que
podiam ter um pensamento que fugia à ―normalidade‖ imposta, pois um objeto,
seja ele qual for, possui outro lado que vai além daquilo que é visto, o que vale
é a sua representação naquele momento, seja ela dentro de um museu, ou
pendurada em um simples varal de roupa. Esse objetivo de provocar a
mudança do pensar, presente nas bases do movimento infrarrealista, também
povoa as páginas de 2666.
O outro personagem que se destaca, dentro da obra, com atributos
infra é o escritor Benno Von Archimboldi, cujas características de vida e obra
remetem aos escritores do grupo infrarrealista: obra literária com pouco êxito,
não muito conhecida pelo público, que interessa a alguns leitores de culto, a
críticos seguidores de sua obra e um par de acadêmicos. Uma obra pouco
compreendida, posto que hermética, talvez escrita para ser entendida, anos
mais tarde, por ser visionária. Um autor que ninguém sabe onde vive, por onde
anda, que supostamente viveu percorrendo cidades pelo mundo e acabou
chegando ao México para resgatar seu sobrinho preso e acusado de
assassinar mulheres. Outro fator que chama atenção é que este autor, dentro
da trama, nasce no ano de 1920, o período quando as artes vanguardistas
ganham força e se expandem por toda América Latina, sendo o prelúdio e a
influência para os estilos e movimentos que acontecerão a partir delas.
Benno Von Archimboldi é pseudônimo de Hans Reiter12, um soldado do
exército alemão, que lutou durante a 2ª guerra mundial. Dentro da trama (essa

12
Pode-se pensar que, não foi à toa que Bolaño escolheu Hans Reiter como nome verdadeiro
de Benno von Archimboldi, pois esse nome é muito parecido e é quase uma referência direta
ao pintor e cineasta Hans Richter que transpôs para seus filmes a estética absurda e
37

passagem é narrada no último capítulo de 2666), ele encontrará os escritos


autobiográficos de um jovem escritor judeu, Boris Abramovitch Ansky, em um
local abandonado, numa aldeia de Kostekino, Ucránia. Bolaño, nessa parte,
brinca com o conceito de metaliteratura, ou seria infraliteratura? As ideias que
serviram de base e influenciaram os escritos de Ansky e do seu amigo Ivanov
(escritor de ficção científica), também influenciarão Reiter (Archimboldi), que,
metaforicamente, terá uma escrita com características vanguardistas como as
que entusiasmaram os poetas infrarrealistas. Esses aspectos aparecem mais
latentes, quando Archimboldi vai alugar uma máquina de escrever para,
finalmente, datilografar o seu primeiro romance Lüdicke. Segue parte do texto
do senhor que aluga a máquina:

[...] La escritura, en cambio, suele ser vacío. En las entrañas del


hombre que escribe no hay nada. Nada, quiero decir, que su mujer,
en un momento dado, pueda reconocer. Escribe al dictado. Su novela
o poemario, decentes, decentitos, salen no por un ejercicio de estilo o
voluntad, como el pobre desgraciado cree, sino gracias a un ejercicio
de ocultamiento. ¡Es necesario que haya muchos libros, muchos
pinos encantadores, para que velen de miradas aviesas el libro que
realmente importa, la jodida gruta de nuestra desgracia, la flor mágica
del invierno! [...] Toda obra que no sea una obra maestra es, cómo se
lo diría, una pieza de un vasto camuflaje. [...] Cuando comprendí esta
verdad dejé de escribir. Mi mente, sin embargo, no dejó de funcionar.
Al contrario, al no escribir funcionaba mejor. Me pregunté: ¿por qué
una obra maestra necesita estar oculta?, ¿qué extrañas fuerzas la
arrastran hacia el secreto y el misterio? […] Ya sabía que escribir era
inútil. O que sólo merecía la pena si uno está dispuesto a escribir una
obra maestra. [...] De igual manera, pocos son los escritores que
renuncian. Jugamos a creernos inmortales. Nos equivocamos en el
juicio de nuestras propias obras y en el juicio siempre impreciso de
las obras de los demás. Nos vemos en el Nobel, dicen los escritores,
como quien dice: nos vemos en el infierno. (Idem, 2013, p. 983-984)

Essa passagem não só ratifica as ideias difundidas pelos poetas infra:


a de escrever no vazio, a de buscar uma originalidade fora da caixa e a de
fazer a arte a partir da e com a vida; como também mostra, mais uma vez, de
forma irônica e ácida, a crítica que Bolaño, através desse personagem, faz à
tradição literária.
Roberto Bolaño, além de se sentir tocado por tudo que acontecia e
querer falar sobre alguns temas e fatos (o que fez alguns anos mais tarde,
quando escreveu as obras que abordam o momento político mais delicado do

experimental dos movimentos vanguardistas, entre elas a dadaísta, que reagiu aos
despropósitos da primeira guerra mundial.
38

Chile, – Amuleto, Estrella Distante e Nocturno de Chile – a ditadura cívico-


militar) também estava empenhado em criar um caminho para sua escrita, pois
tinha uma necessidade enorme de escrever, de mostrar suas ideias, de ser
original e começou a procurar os seus amigos poetas, músicos, pintores e
narradores. Encontrou no poeta mexicano Mario Santiago a possibilidade de
um diálogo convergente, pois tinham e viviam as mesmas inquietações e logo
viraram amigos inseparáveis e aos dois se juntaram Ramón e Cuauhtémoc
Méndez Estrada, Rubén Medina, José Peguero, José Vicente Anaya, José
Rosas Ribeyro e Guadalupe Ochoa, Juan Esteban Harrington, Jorge
Hernández, Lisa Johnson, Mara e Vera Larrosa, Gelles Lebrija, Pedro Damián,
Víctor Monjarás-Ruiz, Bruno Montané, Estela Ramírez e Lorena de la Rocha.
Esses poetas foram os que constituíram o Movimento Infrarrealista. Além de
verem nos poetas da Geração Beat seu alter ego, os poetas rebeldes tinham
muitas poesias para serem lidas, tanto as deles como as de outros autores,
que podiam servir como fonte de inspiração.
A poesia desses jovens nasceu da necessidade de libertação (de
pensamento e de alma) das convenções e dos limites impostos pela sociedade,
uma subversão do cotidiano e uma ruptura total com a realidade. Todos esses
poetas compartilhavam de um mesmo ideal: fazer uma poesia viva, apresentar
ideias extraordinárias e não usar apenas a palavra ou a imagem como recurso
literário, fazer de sua própria vida e vivência (cotidiana e andarilha) poesia.
Nesse duplo movimento, o de andar pela cidade e pelas palavras, os poetas
foram capazes de captar as mínimas manifestações revolucionárias de vida e
passá-las para o papel, com a finalidade de proporcionar uma verdadeira
desordem e modificação da realidade. Tudo isso com uma carga de ironia,
alegoria, humor e um aparente rompimento e descompromisso.
Ainda sobre a influência que sua geração recebeu, Bolaño ponderou:

Para mi generación, o para algunos poetas de mi generación, la


disyuntiva estaba entre una poesía comprometida con la lucha social,
que nos llevaba directos a la afasia, a la catatonia, como era la
poesía de Neruda, de la que realmente abominábamos, o la de
Octavio Paz, que era una poesía o una actitud con la que tampoco
comulgábamos, como de torre de marfil, o torre de algo, por la que no
sentíamos el menor interés. Y lo que buscábamos era una tercera vía
estética, algo que no fuera ni realismo socialista al que nos abocaba
Neruda ni ―la otredad‖ paciana. Y, de hecho, la encontramos en
Nicanor Parra, el poeta que más nos influyó. Sobre todo, lo que tenía,
y en grades dosis, era sentido de humor, algo que Paz no tenía, o al
39

menos nosotros éramos incapaces de vérselo. En Neruda también


faltaba. Y en Parra había muchísimo. Y el mejor sentido del humor de
mundo, que es el humor negro. (BOLAÑO apud BRAITHWAITE,
2011, p. 49)

Já que, neste trecho, Bolaño menciona Octávio Paz, deve-se


acrescentar que ele e Carlos Monsiváis davam as cartas do jogo,
determinavam quem seria publicado nas revistas literárias da época, eles
tinham o poder de decisão. Essa postura irritava os poetas infra, nutrindo um
sentimento de desprezo aos donos da cultura oficial mexicana, pois os
intelectuais que não eram providos pelo PRI13, ou tinham como pais literários
um dos dois, ficavam de fora do circuito.
Os poetas infra sentiam que faziam parte de um grupo poético diferente
do convencional. E somente o fato de se manterem afastados dos dois ícones
culturais, significava escolher um caminho árduo e difícil, sentir-se exilado em
sua própria terra, pois existiam dois pilares que fundamentavam a construção
da identidade do grupo. Um era a luta social, estar contra o governo, e o outro
era a paixão pela poesia e sua função de juntar vida e arte. Por isso, os infra se
diferenciavam daqueles que frequentavam os círculos acadêmicos, as oficinas
literárias e os organismos oficiais e encontraram refúgio nos escritores José
Revueltas (com toda sua irreverência) e Efraín Huerta (com a humildade ante o
ofício) por pura afinidade ideológica e forma de pensar coincidente. Esses dois
poetas, ambos jornalistas, nascidos no mesmo ano 1914, influenciaram a
escrita do grupo, pois eram poetas que prezavam a liberdade pessoal e
literária, poetas ligados aos grupos de esquerda, além de serem também
revolucionários, no seu fazer poético. Os dois produziram uma obra, cujos
temas estavam ligados à luta social e a cotidianidade da cidade mais um
motivo para servir de inspiração ao grupo dos novos poetas.
Juan Villoro, quando questionado, em uma entrevista para Noticias
Culturales Iberoamericanas (2009), sobre a existência atual de alguma
vanguarda e quem poderia representá-la, respondeu:

Una de las novelas más conocidas de mi generación es Los


detectives salvajes de Roberto Bolaño que se trata precisamente de
una vanguardia, esta vanguardia existió, es una vanguardia de mi
generación que eran los infrarrealistas, en la novela de Bolaño se

13
Partido Revolucionário Liberal, um dos principais partidos do México.
40

convierten en los viceralrealistas y la idea era, como siempre con las


vanguardias, cambiar el mundo a través de la palabra, vivir de otro
modo, para poder escribir de otro modo, cambiar la vida para cambiar
el arte.

A poesia infrarrealista nasceu da necessidade desses jovens


andarilhos vivenciarem a liberdade e romperem com as convenções e com os
limites sociais, econômicos, políticos e religiosos, que a sociedade lhes
impunha. Sua atitude era escrever uma poesia sem rodeios, sem opressão,
que incluía confrontar, de maneira direta e lúcida, o status quo, por isso
declararam guerra aos poetas que eles entendiam como acomodados,
sossegados e pacíficos.
O escritor e jornalista mexicano Heriberto Yépez, em seu artigo,
Historia de algunos infrarrealismos (2009), definiu o movimento como sendo
uma corrente poética que, por falta de publicações sistemáticas, apoio
contextual e decisão própria, não influiu diretamente na literatura mexicana tida
como ―oficial‖, pela qual nutriam um sentimento mútuo de repulsa; mas foi um
movimento poético-existencial que marcou seus participantes e converteu
alguns como Bolaño, Mario Santiago e José Vicente Anaya (os três principais)
em autores de culto. Por mais que o movimento tenha tido algum peso ou
tenha sido negado pelos críticos, ainda presos aos paradigmas antigos, teve o
seu valor, pois estava encharcado de humor, de olhar visionário e
neovanguardista, de aspectos populares e midiáticos. Neste sentido, o
infrarrealismo fez parte tanto da tradição de uma poesia abismal internacional
como do espírito da antipoesia latino-americana.
O infrarrealismo acabou se convertendo em um disparador e em uma
sinergia espaço-temporal de poetas que aconteceu entre 1974-1978, uma
coincidência de exilados, parias e outsiders. Definindo o movimento como
sendo um disparador e não um grupo fixo, Yépez (2009) continua dizendo que
o infrarrealismo foi entendido como um processo de emergência poética, uma
aceleração de diferentes processos individuais, a partir do qual cada um
construiu sua própria visão sobre escrita e existência. O disparo infrarrealista
explica a situação nômade de boa parte dos seus membros e também explica
sua imediata dissolução. O infrarrealismo, essencialmente, disparo e sinergia,
se converteu em uma diáspora e foi, acima de tudo, uma união de atitudes,
uma postura perante a vida, mais do que uma forma de fazer poesia.
41

Além de ter sido um movimento festivo, tragicômico, escandaloso e


com certa arrogância e muita ironia, o infrarrealismo queria se deparar com as
pulsões inconscientes mais profundas como as que eram buscadas pelos
artistas dadaístas e surrealistas. Havia dois pilares de construção da identidade
do grupo: um baseado na luta social (contra o governo), contrarrevolucionário
no sentido de abominar a aparente igualdade de liberdade vendida pelos
governos e autoridades e o outro a paixão pela palavra, pela poesia (fusão da
vida com a arte), usando uma linguagem direta, sem sofisticação e suavidade,
uma palavra crua e destemida. Não exista uma regra de estilo, o que contava
era o olhar de soslaio, enviesado e desconfiado em direção ao aceitável
socialmente, deixando tudo de lado e se jogando nos caminhos e nas
descobertas.
Bolaño traz o espírito e as características infra para dentro das suas
narrativas e, no romance Los detectives salvajes, ele relata a experiência de
construir um movimento literário, onde, além de mostrar como o mesmo foi
criado, tenta condensar e resumir o fim de uma época. Na primeira parte desse
romance, Bolaño registra o início do real visceralismo, correspondente ao
infrarrealismo. Depois da aparição desse romance, o grupo passou a ser
notório e reconhecido, por alguns estudiosos.
A obra citada apresenta uma dupla investigação, na verdade uma
investigação sobre investigação. Dois amigos, Arturo Belano e Ulisses Lima,
nos anos de 1970, vão atrás de pistas que os levem a encontrar uma escritora
mexicana (personagem do romance), a poetisa Cesárea Tinajero, que fundou,
na década de 1920, o movimento chamado real visceralismo (um grupo de
vanguarda de existência passageira). Os dois estão empenhados em retomar e
revisitar esse movimento de vanguarda.
O romance apresenta a oposição entre tradição/vanguarda e o novo
movimento, fadado a ser efêmero e que serve como introdução para a
discussão dessa oposição. Na narração, mesmo com a possibilidade de
fugacidade, o movimento acontece, ainda que tenha aparecido em uma única
publicação. O que os personagens buscam só fará sentido anos depois,
momento em que as vanguardas artísticas servirão para entender o caos da
época contemporânea.
42

Os personagens Belano e Lima retomam o primeiro movimento e


ressignificam e fundam o segundo (neo) real visceralismo, um movimento cujo
discurso os ajuda a chegar a um diferencial - ser distintos dos modelos
artísticos que estavam sendo produzidos - e criar um movimento poético,
inspirado naquele primeiro movimento de vanguarda. Fazem isso quando saem
para procurar Cesárea Tinajero, uma escritora e não um escritor, o gênero
feminino com autonomia para criação, rompendo assim com outra
característica do pré-estabelecido. Procurar Cesárea Tinajero também é sair
em busca dos movimentos artísticos e literários que justifiquem e fundamentem
a criação de um novo movimento. Esses dois jovens poetas sentem-se
herdeiros do movimento real visceralista e, a partir dele, querem revolucionar o
campo literário mexicano e latino-americano:

Todos los mexicanos somos más real visceralistas que estridentistas,


pero qué importa, el estridentismo y el realismo visceral son solo dos
máscaras para llegar a donde de verdad queremos llegar. ¿Y adónde
queremos llegar?, dijo ella. A la modernidad, Cesárea, le dije, a la
pinche modernidad (BOLAÑO, 2009, p. 460)

Na obra, Roberto Bolaño associa o real visceralismo com o


estridentismo, os dois movimentos estão vinculados sob a insígnia da
modernidade. Mesmo com a crise institucional imposta pelos golpes cívico-
militares, na América Latina, determinando o fim das vanguardas e priorizando
um novo estágio de influências e de alternativas possíveis da arte, processado
como manifestação consequente de uma crise ética, política e social, aparece
o único poema escrito por Cesárea Tinajero, intitulado Sion14, citado no
romance, composto por três linhas irregulares, uma reta, uma com curvas e
outra cheia de pontas irregulares e sobre as três está desenhado um retângulo,
portanto um poema visual, que suscitou nos personagens uma discussão sobre
como podiam interpretá-lo e, dentro dessa mesma discussão, qual o caminho
que a literatura segue.
Depois dessa pequena digressão e retomando o fio da escrita, ainda
que os poetas infrarrealistas entendessem que o progresso era uma fantasia e
que as cidades se apresentavam diante dos seus olhos como fracasso utópico,
Roberto Bolaño, que estava preocupado em obter reconhecimento literário,

14
Ver poema - Anexo III (p.219-222)
43

enquanto os outros optavam pelo trabalho coletivo, declarou a morte do


movimento infrarrealista no ano de 1979, ano em que ele e Bruno Montané
partiram para Espanha, Mario Santiago para Israel e Juan Esteban Harrington
para o Chile. Quando já na Espanha, Bolaño tenha procurado resgatar o
movimento, pretendendo publicar uma antologia com os textos dos poetas
infra.
Mario Santiago Papasquiaro voltou para o México e para o movimento
infra, continuou escrevendo poemas que ninguém queria publicar e
possivelmente estão entre os melhores da poesia mexicana do final do século
XX, sofreu acidentes, viajou, se apaixonou, teve filhos e viveu uma vida fora
dos círculos do poder mexicano, enquanto Roberto Bolaño abandonou o sonho
da contrarrevolução, foi viver sua própria vida e mudou da poesia para a
narrativa. Este foi o começo de destinos muito diferentes. (CARO, 2010)
Um poema de Papasquiaro, intitulado YA LEJOS DE LA CARRETERA15,
merece destaque nessa tese, não só por mostrar as características infra, mas
por revelar quais eram as influências que os poetas, seus companheiros de
época, recebiam.
Como a poesia infra foi uma porta de entrada para a narrativa de
Bolaño, pode-se pensar que sua obra está repleta de infrarrealidade, pois além
de ter rompido com estruturas narrativas prévias, entrou em um campo
simbólico de processo, viagem, trânsito, abismo, fronteira (não de não ser e
nem estar aqui e nem lá), rompendo com tudo que tinha sido proposto pela
academia. As ruas e as cidades passaram a ser sua biblioteca, lugares onde se
podia poetizar e problematizar a catástrofe e o caos, desarticulando a sintaxe
tradicional, indo em direção a um novo fazer poético narrativo, o que trouxe a
possibilidade de subverter não só a realidade, mas a forma de como se
escreve. O seu trabalho de poeta/escritor exigiu dele não só a busca, mas o
mergulho, que ultrapassou uma superfície aparente, e penetrou nos
submundos, nos meandros onde ninguém queria olhar, queria tocar, penetrou
também no mais sujo da alma humana e nas gretas esquecidas das questões
sociais, assim, propondo uma nova estética, eminentemente infra.

15
Ver poema de Mario Santiago – Anexo IV (p.223-226)
44

No geral, sintetizando o que foi apresentado, o infrarrealismo se


baseava em uma atitude de ruptura com os governos e o status quo literário,
portanto confrontava a cultura oficial e os intelectuais que se encontravam
dentro das estruturas do poder. Como parte da contracultura mexicana, Bolaño
e os outros infra percebiam que dentro das instituições culturais do país havia
uma continuação da cultura dominante, que lhes negava abrir espaço,
principalmente a poetas jovens iniciantes, pois estava mesmo interessada em
cooptar os escritores reconhecidos, lhes oferecendo bolsas e empregos no
exterior. A postura dos jovens infra era a de ir contra tudo isso, além de
divulgar uma estética marginal que buscava desintegrar as estruturas do poder,
tanto cultural como política, partindo de uma visão poética que transcendia a
dimensão física e era apresentada como atitude de vida, na verdade uma
forma de ser e atuar no mundo, não somente uma visão estética.
Antes de passar a outro ponto, uma fala de Bolaño ilustra e resalta a
ruptura com a tradição. Essa fala foi transcrita de uma entrevista para
Fernando Villagrán, quando o autor falou sobre o Movimento Infrarrealista:

[…] Yo creo que éramos bastante irresponsables y nuestra línea


teórica muy incoherente, básicamente lo que molestaba al status de
la literatura mexicana era que no estábamos con ninguna mafia,
ningún grupo de poder. La literatura mexicana en aquel época y
supongo que, en esta también, siempre ha habido parcelas en
clanes, señores de la guerra con sus samuráis y nosotros no
estábamos con ninguno. No estábamos ni con la izquierda stalinista,
dogmatica, dirigista, una izquierda espantosa, ni con la derecha
exquisita que de exquisita, francamente, no tenía nada, era una
exquisitez llena de polvo, ni con los vanguardistas que lo único que
les interesaba era ganar dinero y además hacer una vanguardia
periclitada basada en mucho tiempo atrás. Y nosotros lo que
hacíamos era molestar a todo mundo. Recuerdo alguien en un minuto
de gran inspiración, en su único minuto de gran inspiración, llegó a
publicar un texto que decía que Bolaño se va a Santiago y Santiago
también, porque no nos aguantaba en México, no nos querían para
nada. Y eso fue el grupo de infrarrealistas. Lo que pasa es que yo
cuando me voy de México ya no vuelvo, en cambio, Mario se fue de
México, estuvo viviendo en Europa, en Medio Oriente, pero volvió y a
16
él le hicieron pagar caro, muy caro.

16
Programa Off The Record Cultural.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qNhTTqu5Vsw Acesso em: 20.01.2017
45

1.2 – Ruptura com a tradição

Depois de apresentar as influências literárias que Bolaño recebeu


durante sua juventude como poeta infra, também é de grande valia, para a
construção desta tese, saber quais outros autores o animaram para continuar
com o seu labor de escritor que queria ser reconhecido e lido.
No seu livro Entre paréntesis, Bolaño relembra um poema escrito por
Nicanor Parra que cabe muito bem quando se fala de cânone, de literatura, de
exílio e desterro. O poema começa citando quatro grandes poetas chilenos.
Existem os que afirmam que os quatro grandes poetas do Chile são Gabriela
Mistral, Pablo Neruda, Vicente Huidobro e Pablo de Rokha; outros dizem que
são Pablo Neruda, Nicanor Parra, Vicente Huidobro e Gabriela Mistral; a ordem
varia segundo os interlocutores, mas sempre são quatro cadeiras e cinco
poetas, seria mais simples se falassem logo dos cinco grandes poetas do
Chile, até que Nicanor escreveu o seguinte poema:
―Los cuatro grandes poetas de Chile
son: tres
Alonso de Ercilla y Rubén Darío‖
Neste poema, Parra apresenta três ensinamentos: o primeiro quando
diz que os chilenos não têm nem Darío e nem Ercilla, e que eles não podem
ser propriedade dos chilenos, lê-los já é o bastante; o segundo quando deixa a
entender que o nacionalismo é nefasto, pois destrói a si mesmo; e o terceiro
quando afirma que os melhores poetas chilenos foram um espanhol e um
nicaraguense que passaram pelo Chile sem a menor intenção de
permanecerem naquele território. Os dois grandes poetas chilenos eram dois
viajantes, Bolaño termina o episódio dizendo: ―Y con esto creo que queda claro
lo que pienso sobre literatura y exilio e sobre literatura y destierro‖. (BOLAÑO,
2009, p.44-46)
De Nicanor Parra, Bolaño apreciava a sua diversidade de matizes e
registros e, sobretudo o seu humor, continua dizendo que ele conseguiu
sobreviver; nem a esquerda chilena de convicções direitistas, nem a direita
chilena neonazista e sem memória puderam com ele. Nem a esquerda latino-
americana neo-stalinista, nem a direita latino-americana globalizada também
não puderam com ele. Os professores medíocres latino-americanos, que
46

andam pelos campus das universidades norte-americanas, não puderam com


ele, assim como os seguidores de Parra não puderam com Parra. Disse Parra:
―Es un error ceer que las estrellas puedan servir para curar el cáncer‖. Ele tinha
mais razão que um santo. (PARRA apud BOLAÑO, 2009, p.92-93).
Para entender como Roberto Bolaño percebia e se relacionava com os
escritores que estavam ou não inseridos dentro do cânone, deve-se pensar
como a figura do escritor é entendida nos dias atuais. Será que é possível
enumerar os escritores em categorias? Como românticos, segundo Rodrigo
Fresán (2008), aqueles que veem a literatura e a sua prática como utopia
realizável, com uma vontade feroz de que tudo seja escrita, de que a tinta
tenha a mesma importância que o sangue e que se escreva desde a última
fronteira à beira do abismo? Como realistas, ultrarrealistas ou metaliterários
como muitos denominam Bolaño? Como os comprometidos com sua época; os
funcionários da palavra, aqueles que estão dentro da sua torre de marfim
esperando que as musas os inspirem? Como os que tentam ver publicados
seus livros em uma grande editora, fazendo parte de um mundo para poucos?
Como os que transitam pela ficção científica, os que narram a partir do relatório
policial, seguindo uma ordem cronológica próxima ao texto jornalístico? Ou, os
que são classificados como sendo uma mistura de todos eles, aqueles que
podem transitar pelo campo, no caso o literário?
Como autor, Roberto Bolaño elabora uma ficção estética, política e
possível a partir de eventos que partem de uma data específica – 1968 – e
servem como resposta ao horror e à violência de determinados casos
históricos, não apenas com a mera intenção de representá-los, mas como
forma de construir um projeto literário que terá como base escritores que estão
dentro de um cânone já estabelecido como é o caso de Jorge Luís Borges. As
palavras de Bolaño, presentes na crônica El bibliotecario valiente, mostram
outro lugar de onde parte sua literatura, nesse caso, de Jorge Luis Borges:

Después de su libro sobre piratas y otros forajidos, escribió dos libros


de relatos que probablemente son los dos mejores libros de relatos
escritos en español en el siglo XX. El primero aparece en 1941, el
segundo en 1949. A partir de ese momento nuestra literatura cambia
para siempre […] Varios, sin embargo, son sus méritos: una escritura
clara, una lectura de Whitman, acaso la única que aún se mantiene
de pie, un diálogo y un monólogo ante la historia, una aproximación
honesta al english verse. Y nos da clases de literatura que nadie
47

escucha. Y lecciones de humor que todos creen comprender y que


nadie entiende. En los últimos días de su vida pidió perdón y confesó
que le gustaba viajar. Admiraba el valor y la inteligencia. (BOLAÑO,
2009, p. 291)

Bolaño não só admirava a escrita de Borges como dizia que a partir


dele a literatura sofrera uma mudança tão grande que não seria mais a mesma.
Apesar de se inserir dentro de uma tradição literária, o autor de 2666 reelabora
as formas poéticas, estéticas e por que não dizer, ética, quando propõe o seu
lugar de escrita, além de apresentar novas formas literárias que predominam
sobre outras, dependendo qual é o objetivo que se deseja alcançar e por qual
razão.
Ignacio Echevarría propõe um mapa das devoções literárias de Bolaño,
mas diz que seria uma tarefa muito difícil por causa do seu enorme leque de
leitura. Esclarece Echevarría:

En lo que toca a la literatura estadounidense, ese mapa haría notorio


el ascendente que sobre Bolaño tuvieron escritores como Twain y
Melville, por supuesto, pero también Willian Burroughs y los escritores
de la generación beat; toda la novela negra, hasta llegar a James
Ellroy; Philip K. Dick y los autores de ciencia ficción. […] Más
complicado sería el levantamiento de ese mapa en lo relativo a las
lecturas de escritores europeos […] En cuanto a libros y escritores
latinoamericanos, Bolaño sembró muchas pistas, que en algunos
casos velaban otras igualmente relevantes. Así, por ejemplo, el
magisterio insistentemente invocado de Borges y Cortázar. […] en
otro plano, está la red de complicidades que estableció con algunos
escritores de su misma franja generacional, y mediante la cual
Bolaño contribuyó a actualizar el canon contemporáneo de la
narrativa del continente, en el que hoy día figuran nombres como los
de Daniel Sada, Juan Villoro, Horacio Castellanos Moya, Rodrigo Rey
Rosa, Ricardo Piglia, César Aira, Alan Pauls, Rodrigo Fresán o Pedro
Lemebel […] (ECHEVARRÍA, 2013, p.191)

Além de Echevarría, Andrea Torres Perdigón, em seu artigo Ricardo


Piglia y Roberto Bolaño: tradición y narratividad, (2012) cita David Fishelov e
traz a dinâmica do cânone estabelecida a partir de duas posturas: “el bando
que defende la beleza como critério y el bando que defende el poder. El
primero, al que llama ―The beauty party, which dominated criticism for
centuries, assumes taht the status of a great book is a function of certain
aesthetic qualities inherent in the work‖, no qual figuram as tendências como o
New Criticism, o formalismo russo, além de um debate mais atual e polêmico
levantado por Harold Bloom, ao afirmar que existe uma autonomia do texto
canônico que está acima de qualquer causa extraliterária social ou política.
48

E o segundo que define como ―el bando opuesto, es decir el del poder‖,
que segundo Fishelov é o grupo que traz as tendências críticas como a teoria
marxista (em particular Lukács, Trotsky, Fredric Jameson, Terry Eagleton).
Ainda que essas duas tendências, a da beleza e a do poder, são distintas entre
si, essa colocação serve para definir a partir de onde o cânone foi estruturado,
com uma predominância eurocêntrica, deixando de fora muitos autores que
têm uma proposta literária descentralizada, à margem do campo literário atual,
ou de autores, cuja produção literária mistura gêneros entendidos como
pertencentes à cultura de massa, como no caso desse estudo, o gênero
policial. Talvez o desenho dessa composição precise ser equânime, propondo
uma dissolução do que é denominado como literatura canônica e literatura de
massa, o que pode começar a desenhar uma nova proposta de cânone.
A construção, bem como a divulgação de um cânone literário, seja no
contexto das literaturas nacionais ou universais, ainda provoca, nos dias de
hoje, muitos debates, pois passa pelo entendimento de que representa algo
elitista, ligado ao mais exímio da literatura ou de uma cultura e da imortalidade
dos autores. Esses aspectos constituem o prestígio de um país como nação
cultural, dizendo que uma nação só tem cultura a partir de um cânone
estabelecido nas e pelas elites que a formam, deixando de lado os que estão e
configuram outros espaços.
Argumenta-se que o cânone, no âmbito das literaturas nacionais,
contribui ou serve para a construção das identidades nacionais e está
relacionado com aspectos de poder cultural institucional, que ajudam a definir
os valores de uma nação, de um continente ou de uma cultura determinada. Os
autores e as obras que incorporam o cânone formam a cúspide da cultura,
enquanto os que ficam excluídos fazem parte de um grupo de segunda
categoria, que não pode nem tentar chegar ao patamar de reconhecimento.
Os debates acirrados e todos os conceitos sobre cânone, levantados
por estudiosos, trataram sempre da construção de paradigmas e da imposição
de um determinado conceito de literatura, isto é, da canônica. O que deixa
transparecer que o cânone literário está ao mesmo tempo relacionado com as
diversas escolas literárias e estéticas (barroco, romantismo, realismo,
surrealismo, expressionismo, realismo mágico), e com as teorias literárias, tais
como o formalismo russo, o estruturalismo, a estética da recepção, etc.
49

Bolaño, de alguma maneira, tenta desconstruir esse espaço, no livro


Entre parêntesis; no artigo que escreveu sobe Jonathan Swift, Bolaño começa
com uma pergunta: ¿Por qué um autor se convierte en un clásico? E mais
abaixo responde:

Un clásico, en su acepción más generalizada, es aquel escritor o


aquel texto que no sólo contiene múltiples lecturas, sino que se
adentra por territorios hasta entonces desconocidos y que de alguna
manera enriquece (es decir, alumbra) el árbol de la literatura y allana
el camino para los que vendrán después. Clásico es aquel que sabe
interpretar y sabe reordenar el canon. (BOLAÑO, 2009, p. 166)

Portanto, o cânone literário pode ser ao mesmo tempo fixo e


deslocado, e ainda assim está ligado à recepção e à discussão sobre obras
precedentes; no caso de Jorge Luís Borges e de Roberto Bolaño este é um
aspecto exemplar, pois ambos se destacam por confluir o teórico e o ficcional
nas suas obras, parecem sempre tratar de problemas teóricos e sobre o
cânone literário na sua própria prática literária, citando nomes de vários autores
e obras. Bolaño dá pistas de suas preferências com sua obra La literatura nazi
em América, uma coleção de mini biografias de personagens ínfimos e
recupera nesse livro a vontade transgressora da Historia universal de la
infamina de Borges e a expande de forma excessiva e, muitas vezes,
enfadonha. (MANZONI, 2008)
Pode-se dizer que os dois autores, com suas obras, lutam contra e a
favor do que ficou estabelecido como cânone. Todas as suas formas de prática
literária levam a uma predeterminada seleção de autores e obra. Afinal, todos
aqueles que reclamam cânones pessoais, repetem modelos já estabelecidos,
pois operam com os procedimentos de seleção, de exclusão e inclusão de
autores e obras.
O cânone pode ser apresentado com diversas funções, por exemplo, a
de estabelecer uma ordem cronológica, também pode apresentar determinados
temas e registros que servirão de base para uma futura genealogia literária.
O conceito formulado para esta tese, o de romance infrapolicial, evita
uma abordagem ideológica e propõe outro caminho, o de investigar as
estratégias discursivas que produzem os critérios para a formação ou negação
de uma tradição, sabendo que Bolaño com seu humor, seu sarcasmo e sua
ironia, mostra que sua eleição é produto da sua vasta e variada leitura, mas
50

que provoca um questionamento: a seleção de suas leituras está ligada à sua


concepção estética e junto a essa concepção revela sua própria maneira de
escrever? Ou ainda, o que os autores e as obras selecionadas por Bolaño têm
em comum? Essa sua seleção reflete uma concepção determinada de
literatura? Ele estabelece um cânone normativo ou dinâmico? Bolaño relativiza
todo tipo de tradição, quando confronta seus autores e textos, atribuindo-lhes
valorizações e apreciações divergentes? Muda a sua leitura através dos anos?
Qual é a função da seleção de autores e textos em Bolaño? O autor contribui
para formação de algum cânone ligado à nacionalidade ou à universalidade?
Pode-ser-ia responder todas essas perguntas dizendo que o cânone é
um conjunto de obras e autores que sobreviveram através dos séculos e que
cada cultura e cada século o seleciona de forma diferente. Ou ainda afirmando
que o cânone é constituído por livros que sobreviveram graças a sua própria
força, entendendo o cânone como um fenômeno que se autogera e/ou se
autorregula e que o leitor preparado será eleito para captar e construir junto um
cânone que é resultado de um fenômeno elitista, subjetivo, individual,
atravessando alguns séculos de disputa para estabelecer-se como matriz
universal.
Ao tentar se libertar da escravidão canônica, principalmente da estética
do Boom (o que não é nada fácil), Bolaño também responde, dizendo que a
tradição, embora deva ser respeitada dentro do seu espaço literário construído,
deve ser, ao mesmo tempo, confrontada. Ele realiza esse confronto, quando se
distancia das influências literárias acumuladas ao longo de sua trajetória e
quando também se distancia dos gêneros entendidos como tradicionais. Com
essa distância, ele acaba levando a sua escrita para outro lugar, com valor
estético diferente, nem maior, nem menor do que já estava definido como
canônico, mostrando que a sua escrita é o resultado de todas suas leituras
selecionadas (de autores que estavam postos dentro da tradição), mas não
deixando de confrontá-las, acrescentando o melhor do que foi escrito pelos
autores da tradição e modificando sua escrita para dizer que fora do cânone
pode se construir um projeto literário que também tenha valor, um valor que
não é só avaliado pelo mercado editorial, pela crítica, mas por todos que leem
e percebem que sua nova proposta literária tem um valor que transcende o
51

meramente literário. A sua estética está marcada não só pela escrita, mas por
toda a metáfora de ruptura e alegoria que contém.
A tradição ou o cânone de Bolaño é produto de prazer, portanto
arbitrário, não parte do que está estabelecido, não equivale ao cânone geral,
dito como universal ou de todos, mas sim da sua biblioteca particular, singular
e única, trazendo também aqueles que negaram a tradição literária, embora,
hoje, façam parte dela. Bolaño revela de onde partem suas eleições e como se
consolida determinado cânone, no caso o argentino. O autor escreve no seu
ensaio Derivas de la pesada:

Con Borges vivo, la literatura argentina se convierte en lo que la


mayoría de los lectores conoce como literatura argentina. Es decir:
está Macedonio Fernández, que en ocasiones parece un Valéry
porteño; está Güiraldes, que está enfermo y es rico; está Ezequiel
Martinéz Estrada; está Marechal, que luego se hace peronista: está
Mujica Láinez; está Bioy Casares, que escribe la primera novela
fantástica y la mejor de Latinoamérica, aunque todos los escritores
latinoamericanos se apresuren a negarlo; está Bianco, está el
pedante Mallea; está Silvina Ocampo, está Sábato, está Cortázar,
que es el mejor; está Roberto Arlt, que fue el más ninguneado de
todos. Cuando Borges se muere, se acaba de golpe todo. (BOLAÑO,
2009, p. 24)

O autor acredita que existe uma lacuna, defendida por ele como um
pesadelo, uma rua sem saída, um cenário a ser montado. Diz que na literatura
argentina existem três linhas, mas que não se aproximam ao bloco de autores
da estirpe de Borges. Autores anti-borgenianos que representam um
retrocesso, pois, são conservadores. Entretanto, ele não nega a força e a boa
escrita desses autores.
Na primeira linha aparece Osvaldo Soriano; na segunda, Roberto Arlt e
Ricardo Piglia e na terceira, que ele denomina como secreta, aparecem
Osvaldo Lamborghini e Cesar Aria. Bolaño não os considera assim tão ruins,
escrevem livros de fácil acesso ao público e que até podem ganhar dinheiro
com isso, mas perdem em originalidade, nenhum deles é tão original quanto os
mencionados anteriormente. Faz uma crítica pesada a Lamborghini e afirma
que ―Piglia me parece un de los mejores narradores actuales de Latinoamérica.
Lo que pasa es que se me hace difícil soportar el desvarío gangsteril, de la
pesada- que Piglia teje alrededor de Arlt, probablemente lo único inocente en
este asunto.‖ (BOLAÑO, 2009, p. 27).
52

De Charles Baudelaire a Franz Kafka, passando por Arthur Rimbaud,


de Macedonio Fernandéz a Allen Ginsberg, transitando pelos estridentistas, por
Jack Kerouac, Efraín Huerta, José Revueltas, Nicanor Parra, Jorge Luis Borges
e Julio Cortázar, implicitamente, Bolaño revela em qual tradição literária está
inserido e qual é o provável caminho de sua escrita.
Os grandes novelistas latino-americanos, segundo Miguel Carrera
(2011), os perseguidores do romance total, receberam uma influência maior do
romance anglo-saxão, mais pelo lado americano que o europeu. García
Márquez, Vargas Llosa ou Carlos Fuentes estavam muito mais interessados
em Ernest Hemingway e William Faulkner do que em Alain Robbe-Grillet ou
Nathalie Sarraute, enquanto Cortázar foi para Paris e traduziu Edgar Allan Poe.
Bolaño recebeu todas essas influências. Tanto que sua condição de
admirador, como a sua condição de escritor latino-americano, o levou a
interessar-se pela categoria do romance como obra total. Mas não se pode
negar a grande influência recebida de Jorge Luís Borges.
Borges foi o grande negador do romance, pois considerava que o
romance era um caminho de narrativa esgotada, em definitiva, superado pelo
conto. A superioridade do conto em relação ao romance resultava evidente em
Borges, porque a narração de uma história em função de seus personagens já
não tinha nenhum sentido. Uma história já não podia ser contada, seguindo
seus protagonistas e vendo como a trama se desenvolvia ao seu redor, ou
seja, seguindo os moldes clássicos do romance. Borges inverteu a fórmula e
seus personagens passaram a surgir de sua própria história. A trama se
convertia em uma desculpa para o desenho dos personagens que ficavam
subordinados a sua própria peripécia.
Para Bolaño, o único modo de conciliar as influências recebidas de
Borges, mas diferente dele, acreditando no romance, seria transformar a sua
escrita, modificando a sua base de construção e por isso sua obsessão pela
estrutura17 do romance. Considerava que, para compor um romance mais
próximo ao conto, a única forma de avançar na narrativa era mediante a
apresentação de novas estruturas, mas estruturas que não podiam surgir da

17
Aqui, estrutura = quadro definido de categorias; relações formais, estratégias, modelos,
sistema, características que não podiam ser modidificadas. Mas que em Bolaño, são
modificadas, pois de cada gênero narrativo ele traz a base, redefine e apresenta outro quadro
de categorias, outras relações, estratégia, modelo, sistema e características.
53

reordenação da trama e sim modificadas em todos os aspectos mais


profundos, estruturais. Seguindo as ideias de Borges, Bolaño considerava que
o romance já não podia viver da recomposição da trama, já que era um
caminho que estava esgotado. Entre relatar uma trama de forma linear e fazê-
lo de forma fragmentada já não fazia diferença, assim como negar a trama ou
ocultá-la por meio de vários narradores que contassem a história desde várias
perspectivas.
Bolaño, então, busca um novo tipo de estrutura como as que aparecem
nos contos de Borges, o desenho do personagem surge de sua trama, mas
diferente de Borges, Bolaño confia no romance, ainda que acredite que nele a
trama não seja possível. Como solução, elabora uma estrutura onde os
personagens se desenham de uma maneira borgeana. Agora, os personagens
não surgem da trama, mas de pequenos esboços de narração sem nenhuma
trama, das narrativas interrompidas que serão apresentadas no terceiro
capítulo desta tese. Ao invés de fazer crescer os fatos narrados, os reduz
ainda mais, por isso o tamanho da maioria dos seus romances seja curto, ainda
diante da enormidade de 2666 que, na verdade, por sua vontade, deveria ter
sido publicado como cinco pequenos romances, embora um complementasse o
outro.
A influência de Borges aparece tanto na sua forma de criação, como no
modo de encarnar a intertextualidade nos seus textos – escritores/leitores que
vão atrás de outros escritores/leitores. Às vezes, em Borges, os livros levam à
morte, diferente em Bolaño, onde são as histórias, o acaso, os crimes e a vida
em si mesma que podem levar à degradação. Como Borges, Roberto Bolaño
também jogou com os fatos históricos, modificando apenas alguns dados como
datas, lugares e nomes.
Bolaño, um leitor assíduo de Borges, recordou, em um dos seus artigos
de Entre paréntesis, que o primeiro livro que comprou na Europa, precisamente
em Madri, em 1977 e que guardava em sua biblioteca foi a Obra poética de
Borges. Para ele a leitura de Borges
54

[…] era la única lectura posible para mí, la única lectura que me podía
distanciar efectivamente de una vida hasta entonces desmesurada, y
la única lectura que me podía hacer reflexionar, porque en la
naturaleza de la poesía borgeana hay inteligencia y también valentía
y desesperanza, es decir lo único que incita a la reflexión y que
mantiene vive a una poesía. (BOLAÑO, 2009, p. 185)

Os textos de Bolaño, que fazem uma crítica à tradição, evitam uma


separação universal estabelecida dos que podem ou não figurar como
canônicos. Isso ele vai mostrando ao longo das suas narrativas ficcionais,
assim como em seu livro de ensaios e crônicas, Entre parêntesis. Logo, para
Bolaño, o cânone é um resultado dinâmico oriundo de um processo infinito de
leitura e reescritas, onde o autor contemporâneo subverte e recodifica as obras
anteriores descentralizando-as e reorganizando-as dentro de uma nova
possível tradição. Mas quem determina o cânone e sob que premissas? Lendo
o que Bolaño pretende como projeto literário a resposta poderia ser: os
escritores, os leitores, as instituições educacionais, as editoras, os críticos e os
meios de comunicação massiva.
A partir da relação entre cânone e poder, alguns autores, incluindo
Roberto Bolaño, partem de uma tendência de desfazer, reorganizar e
reescrever certas formas canônicas. Sob essa premissa, as mudanças nas
formas literárias recebem influência das transformações que ocorrem no
mundo socio-histórico-político, durante as quais a obra é produzida, mudando
assim a estrutura interna do próprio fazer literário e sua tradição.
O cânone se molda aos gêneros literários que são retomados em um
determinado momento histórico. Assim sendo, toda forma literária que se recria
ou que fica fora do cânone, provoca um tipo de significação diferente e as
formas literárias, que circulam entre as tradicionais, permanecem carregadas
de significados prévios, por isso seu consumo estabelece uma determinada
concepção de literatura. (PERDIGÓN, 2012)
Quando se pensa a importância da tradição literária no projeto literário
de Roberto Bolaño, existem alguns aspectos importantes a serem
mencionados. Além de ter sido um grande leitor, se dedicava de forma
exclusiva a escrever, não só apenas seus romances, mas ensaios e resenhas
críticas, o que confere a ele maior entendimento do que possa figurar como
literatura canônica, pois fazia uma análise do lugar da sua própria escrita em
55

relação à literatura anterior e com aquela que se identificava. Também não


deixava de valorizar a literatura produzida pelos seus contemporâneos e pelos
autores mais jovens.
Além de intenso e de ultrapassar o âmbito de literatura com intuito de
diversão, o projeto literário de Bolaño rompe barreiras dentro de uma estrutura
literária pré-estabelecida. Seus contos e, sobretudo, seus romance, ―han roto
las barreras que dividen a ambos géneros y han dado a la novela una agilidad,
una sensación de instantaneidad, casi una visión cubista, y al mismo tempo la
disciplina del relato.‖ Essas palavras de Juan Antonio Masoliver Ródenas, que
constam no seu artigo Palabras contra el tempo, complementam a ideia. (2008,
p. 314)
Seriam necessárias muitas páginas para citar outros tantos autores que
fazem parte da tradição literária lida por Bolaño, sobretudo que tipo de escrita
lhe interessa defender, por isso Borges aparece como uma das principais
influências sobre o autor e sua forma de escrita, que foge a uma determinada
norma, carregada de uma multiplicidade de formas narrativas, híbridas e
complexas, dando chance a uma nova leitura ou reescrita das formas
tradicionais que defendiam o bom gosto estético hegemonicamente
estabelecido como canônico.
Com o intuito de continuar o debate, há uma informação de Jorge
Herralde (2005) de que Roberto Bolaño, assim como Georges Perec, adorava
listas e as convertia em histórias. O próprio Herralde, parafraseando o escritor,
enumera os autores que Bolaño apreciava e conceituava como muito bons:
Borges, Adolfo Bioy Casares, Bustos Domeq, Sivina Ocampo, Rodolfo Wilcock,
Julio Cortázar, Manuel Puig, Copi, Nicanor Parra, Enrique Lihn, Gonzalo Rojas,
Jorge Edwards, às vezes José Donoso, Juan Rulfo, Sergio Pitol, Carlos
Monsiváis, Juan Marsé, Álvaro Pombo e Ricardo Piglia. Nomes óbvios, mas
que desenham uma cartografia precisa de incluídos e excluídos: por um lado, a
ebulição da literatura canônica, por outro, a guerra contra a tradição e o clichê.
Bolaño também admirava e lia com paixão e generosidade autores de
sua geração (autores que viveram o terror dos anos de ―chumbo‖ e a época
dos traumas posteriores às ditaduras) e os autores da geração dos anos de
1990, alguns dos escritores que apreciava: Fernando Vallejos, Jorge Volpi,
Alan Pauls. Pedro Lemebel, Javier Marías, Enrique Vila-Matas, Rodrigo Fresán
56

entre outros. Estas listas podem revelar como Bolaño percebia o cânone, não
só o latino-americano mas também o europeu, e o que esperava desses
autores, talvez uma literatura dentro da literatura, compartilhando um tema ou
uma forma comum de fazê-la. Especificamente, sobre Pedro Lemebel,
escreveu:

Lemebel no necesita escribir poesía para ser el mejor poeta de mi


generación. Nadie llega más hondo que Lemebel […] es valiente, es
decir sabe abrir los ojos en la oscuridad, en esos territorios en los que
nadie se atreve entrar. […] reconocí en Lemebel el espíritu indomable
del poeta mexicano Mario Santiago […] y entonces supe que ese
escritor marica, mi héroe, podía estar en el bando de los perdedores
pero que la victoria, la triste victoria que ofrece la Literatura (escrita
así, con mayúsculas), sin duda era suya. (BOLAÑO, 2009, p, 65-66)

Pedro Lemebel, autor de vários livros, entre eles Tengo miedo Torero,
é um dos escritores que está inserido na abundante produção em torno da
ditadura militar, das violações dos direitos humanos. Sua produção, muitas
vezes pensada, durante os anos de 1990, quando o Chile vivia o momento de
democracia neoliberal. A geração dos anos de 1980, da qual Bolaño fazia parte
em termos etários e formativos, soube muito bem como processar as
demandas literárias, principalmente as que envolviam o dilema de enfrentar
uma continua exposição artística em torno das violações cometidas em relação
aos direitos humanos.
Bolaño tinha muito apreço pelas narrativas de Pedro Lemebel, segundo
ele, um dos escritores mais brilhantes, o melhor poeta da sua geração, ainda
que não escrevesse poesia. Lemebel foi dos poucos escritores que não
buscavam apenas respeitabilidade, mas a liberdade. Ninguém chegou mais
fundo que Lemebel no que se refere ao debate do papel social da arte.
Lemebel, tanto nas suas obras, como nas suas performances artísticas,
mostrava, ao mesmo tempo, doçura e uma sensação de fim de mundo, aliada a
um ressentimento feroz. Bolaño reconhecia em Lemebel o espírito indomável
de seu amigo, o poeta mexicano Mario Santiago Papasquiaro. Lemebel foi
valente e soube abrir os olhos na escuridão, dentro de territórios em que
ninguém se atreveu a entrar. Não foi o primeiro homossexual dentro do
Parnaso chileno, mas foi o primeiro travesti que apareceu no cenário, sozinho,
iluminado por todos os holofotes e que falou ante um público literalmente
estupefato:
57

A mí no me perdonan que tenga boca, Robert, me dice Lemebel al


otro lado de la línea telefónica. Santiago resplandece con la
iluminación nocturna. Parece la última gran ciudad del Hemisferio
Sur. Los coches pasan bajo mi balcón y Pinochet está preso en
Londres. ¿Cuántos años faltan para el próximo? A mí no me
perdonan que recuerde todo lo que hicieron, dice Lemebel. ¿Pero
quieres saber lo que menos me perdonan, Robert? No me perdonan
que yo no los haya perdonado. (BOLAÑO, 2009; p. 77)

Do ponto de vista literário, Bolaño também considerava Juan Villoro,


Rodrigo Rey Rosa, Enrique Vila-Matas, Horacio Castellanos Moya, Javier
Cercas, Javier Marias, Rodrigo Fresán, Alan Pauls, como parte de um seleto
grupo, pelo fato de que todos escreveram obras importantes a partir da própria
experiência pessoal e cultural. Um grupo misto de escritores latino-americanos
e europeus, sem que essa divisão tivesse importância, já que todos
compartilhavam a mesma língua literária.
Bolaño acabou tomando para si as dores dos jovens escritores
marginalizados, pois com uma aparente e deliberada provocação e
prepotência, nutriu um sutil ressentimento em relação ao panorama literário
que o rodeava, pois o que queria era estar alheio a qualquer relacionamento
com o poder e, sempre que podia, afirmava que tinha um compromisso consigo
mesmo. No seu discurso, proferido em Caracas quando do recebimento do
prêmio Romulo Gallegos, falou do seu compromisso com a literatura, afirmando
que a pátria de um escritor não era somente sua língua, mas as pessoas que
amava e muitas vezes a pátria de um escritor não eram apenas as pessoas
que amava, mas sua memória e que a escrita de qualidade seria colocar a
cabeça na escuridão e saber saltar no vazio, compreender que a literatura era
um oficio perigoso.
Em sua última aparição pública, em uma conferência em Sevilha,
Roberto Bolaño defendeu sua geração e foi generoso com os poetas da nova
geração, quando de frente para sua própria pergunta, de onde vinha a nova
literatura latino-americana, respondeu:

Venimos de la clase media o de un proletariado más o menos


asentado o de familias de narcotraficantes de segunda línea que ya
no desean más balazos sino responsabilidad. [...] antaño los
escritores provenían de la clase alta o de la aristocracia y al optar por
la literatura optaban, por el escándalo social, por la destrucción de los
58

valores aprendidos por la mofa y la crítica permanente. Por el


contrario, ahora, […] los escritores salen de la clase media baja o de
las filas del proletariado y lo que desean […] es un ligero barniz de
respetabilidad. […] los escritores ahora buscan el reconocimiento no
de sus pares, pero de lo que suele llamar de ―instancias políticas‖, los
detenedores de poder […] y a través de éste, el reconocimiento del
público, es decir la venta de libros […] (BOLAÑO, 2009, p. 311)

Jorge Volpi afirmou em seu artigo Bolaño, epidemia (2008a) que todos
os escritores jovens latino-americanos, com 38 anos, tinham um ponto e um
vínculo em comum: todos se orgulhavam dele, todos o admiravam, todos eram
Bolaño. Para Bolaño pareceria estranha essa admiração, porque o mais
curioso era que quem tinha mais de 39 anos, com exceção de Fresán, Gamboa
e Paz Soldán, no geral, não admirava Bolaño ou o admirava com ressalvas.
Nesta época, onde as fronteiras geracionais não tem importância, que
desconfia das classificações dos livros, dos manuais acadêmicos, dos críticos
aduladores, que renega o cânone, resulta que os escritores com menos de 40
anos idolatram Bolaño. Diante de um fenômeno que se aproxima ao
paranormal e com inegáveis pinceladas de culto, cabe a pergunta, por quê?
Volpi respondeu dizendo que, para ele, Roberto Bolaño publicou três
―obras maestras‖: Estrella distante, Los detectives salvajes e Nocturno de Chile
que culminaram em seu romance póstumo, 2666. Nessas obras pode-se
encontrar o melhor que foi escrito sobre e na América Latina. Bolaño foi aquele
quem criou uma obra ampla, rica e variada, na qual cada escritor, crítico e leitor
podem encontrar algo novo, que estremeça, pois Bolaño escreveu em um estilo
cheio de acumulações, de polissíndetos, de orações coordenadas e
subordinadas caóticas, um estilo tão fácil de admirar e imitar e, ainda assim,
difícil.
Os amantes das histórias, os defensores da aventura, os que são
obsessivos pela trama, ficam fascinados pelos seus relatos circulares e um
tanto oníricos, cheios de detalhes imprevistos, de digressões e vivências em
outros mundos, de incursões paralelas, cheios, inclusive, de uma espécie de
suspense que ultrapassa a estrutura clássica do romance policial.
Uma parte reduzida e cada vez mais poderosa que faz parte da seita
de adoradores dos livros que falam sobre outros livros, os apreciadores da
literatura e da metaliteratura de Vila-Matas e Piglia, também encontram em
Bolaño uma boa dose de citações, de dissimuladas referências literárias, de
59

metáforas eruditas, de meditações sobre escritores excêntricos. Existem, até,


aqueles que gostam da experimentação formal e sentem que Bolaño se
arriscou nas formas, usando paradoxos, ambiguidades sintáticas, por causa de
sua fixação e empatia pela certeza e pelo caos ao mesmo tempo.
Depois desse trajeto, pelo qual se pode conformar um cânone literário
para Bolaño e com todo esse apanhado de escritores, ainda é importante
salientar que, no seu livro de contos Putas asesinas, o autor recupera a
imagem do escritor entre o momento da escrita e a sua paixão como leitor. A
parte intitulada Carnet de baile18 é um dos textos que pode mostrar bem o que
lia e de onde partia sua escrita. Em outro ensaio, Los mitos de Chtulhu
(dedicado a Alan Paus), presente na obra El gaúcho insufrible, Bolaño traçou
com muita ironia, acidez e lucidez, o caminho por onde e para onde marcha a
literatura na atualidade, apresentando uma onda de escritores preocupados
com o mercado em detrimento da boa escrita.19
Segundo Jorge Volpi (2008a), Bolaño conhecia muito bem os autores
que trazia com ele, os que admirava e os que odiava e geralmente eram os
mesmos. Negava os espanhóis que desprezava e invejava ao mesmo tempo.
Negava também os russos, porque o deixavam sem chão. Ficava entediado
com os alemães; os franceses ele sabia de cor e aos ingleses não dava muita
atenção. Já quanto aos autores latino-americanos, ao mesmo tempo, que o
irritava, também o comovia. Volpi completa o seu pensamento dizendo que

Cada mañana, luego de sorber un cortado [...] Bolaño dedicaba un


par de horas a prepararse para su lucha cotidiana con los autores del
boom. A veces se enfrentaba a Cortázar, al cual una vez llegó a
vencer por nocaut en el décimo round; otras se abalanzaba contra el
dúo de luchadores técnicos formado por Vargas Llosa y Fuentes; y,
cuando se sentía particularmente fuerte o colérico o nostálgico, se
permitía enfrentar al campeón mundial de los pesos pesados, el
destripador de Aracataca, el rudo García Másquez, su némesis, su
enemigo mortal y, aunque sorprenda a muchos su único dios junto
con ese dios todavía mayor, Borges. […] creció a la sombra de esa
pandilla todopoderosa y aparentemente invencible, esos superhéroes
vanidosos […] Bolaño los leyó de joven, los leyó de adulto y tal vez
los hubiese releído de viejo: nombrándolos o sin nombrarlos, cada
libro suyo intenta ser un respuesta, una salida, una bocanada de aire,
una réplica, una refutación, un homenaje, un desafío o un insulto a
20
todos ellos. (VOLPI, 2008b, p. 193)

18
Ver Conto - Anexo V (p.227-234)
19
Ver fragmento do ensaio - Anexo VI (p.235-237)
20
Destaque meu a frase em itálico.
60

A persistência na construção de um projeto literário que transforma sua


biografia como artista, junto com as séries de nomes e de obras utilizadas
como instrumento de composição de uma linhagem, projetou seus textos para
o espaço polêmico da reformulação canônica. Uma projeção sustentada por
uma poética que transita pelo prazer da leitura, pela ironia e pelo humor que
acaba criando uma identificação entre autor e leitor. (MANZONI, 2008)
Roberto Bolaño imprime outra concepção à literatura, que não
abandona a tradição, mas que se entendia como norma literária dentro do
cânone. Traz para dentro de sua narrativa outras formas de escrita que
pertencem à ordem da experimentação e da ruptura, como as propostas pelos
movimentos de vanguarda, a de ser plural. Aquelas que abolem ou
transpassam o limite das fronteiras dos gêneros, a extinção das autonomias e
das especificidades, assim como a diluição de arte em vida fragmentada e
impotente ou exatamente o contrário.
Em um dos seus ensaios, Bolaño esclarece sua visão de que a ―alta
literatura‖ se assemelhava a sua ideia de cânone e dos livros que considerava
como clássicos:

¿Por qué un autor se convierte en un clásico? Ciertamente, no por lo


bien que escribe; de ser así el mundo de la literatura estaría
superpoblado de cásicos. Un clásico, en su acepción más
generalizada, es aquel escritor o aquel texto que no sólo contiene
múltiples lecturas, sino que se adentra por territorios hasta entonces
desconocidos y que de alguna manera enriquece (es decir, alumbra)
el árbol de la literatura y allana el camino para los que vendrán
después. Clásico es aquel que sabe interpretar y sabe reordenar el
canon. Normalmente su lectura, según los bobitos, no es considerada
urgente. También hay otros clásicos cuya principal virtud, cuya
elegancia y vigencia, está simbolizada por la bomba de relojería, una
bomba que no sólo recorre peligrosamente su tempo sino es capaz
de proyectarse hacia el futuro. (BOLAÑO, 2009, p.166)

Para ele, a concepção de literatura é buscar lugares desconhecidos,


tanto em relação ao que e como quer dizer algo sem destruir a ideia de
literatura como obra de arte, que causa reflexão e estranheza, caracterizada
pela ausência de uma direção especifica e pela expansão de suas múltiplas
possibilidades estéticas. A escrita de qualidade para o autor é ―saber meter la
cabeza en lo oscuro, saber saltar al vacío, saber que literatura es um oficio
peligroso.‖ (BOLAÑO, 2009, p.36). Além disso, permanecer lúcido, buscando a
renovação, a readaptação das formas, estar aberto ao novo que pode ser
61

mantido dentro de um circuito canônico, posto que original, legítimo,


comunicável e denunciador.
Ainda que o seu projeto literário pareça ser tão aberto, no sentido
intertextual, polissêmico e metalinguístico, tentando violar as normas das
estruturas dos vários gêneros, existe sim um conjunto de uma obra
problemático, que pode ter como causas a sua representação, o modo de
como se escrever e se faz arte que, mesmo criticando os poderes dominantes,
pode vir a ser canônica, pois um dos efeitos mais fortes que sua obra produz,
provém ora da contradição entre estética e ética, ora da aproximação de
ambas, passando pelos riscos que assume ao mostrar sua capacidade de
transgredir e lutar contra as convenções e abrir novas possibilidades para a
arte, neste caso, a literatura.
Esse tipo de procedimento faz de Roberto Bolaño um autor canônico e
anticanônico ao mesmo tempo, pois quando apresenta uma nova forma, uma
desconstrução, o referente literário desaparece, inclusive a origem que a
motivou, produzindo um novo texto, mas onde sempre fica claro o referente
literário.
A princípio, Bolaño não acredita em um cânone e suas hierarquias,
pois está mais ligado às diferenças, às margens, aos gêneros massivos e
periféricos, portanto mais eclético. Nele existe um desejo infinito de
experimentar as diversas formas e fórmulas, tanto na seleção de suas leituras
como na sua maneira de narrar.
Para Roberto Bolaño, não existem as literaturas nacionais, universais
ou canônicas e sim literaturas que aprecia ou não, assim como não existe
escrita maior ou menor, mas sim aquela que cai no seu gosto, na biblioteca de
sua preferência. Além disso, ele não forma uma tradição literária estabelecida
pela história, ou pelas escolas literárias, mas é fiel ao lema onde cada autor
produz seus antecessores, mesmo cometendo um parricídio da tradição
literária que se dá através da recodificação, da transmutação e da releitura.
Há estudiosos que enxergam Roberto Bolaño, de 2666, como alguém
que chega perto do abismo ou que está de frente a um espelho opaco; ainda
existe os que consideram esta obra uma ofensa, uma sabotagem ou uma
negação ao Boom. (VOLPI, 2008a). Portanto há uma crítica de aceitação e
62

rejeição aos escritores que fizeram parte deste movimento literário. Bolaño
ratificou e esclareceu tal percepção dizendo que

El territorio que marca mi generación es el de la ruptura. Es una


generación muy rupturista, es una generación que quiere dejar atrás
no sólo el boom sino lo que genera el boom, que es una generación
de escritores muy comerciales. Es el territorio del parricidio por un
lado. Y por otro lado es el territorio de lo borgeano. Hay que
investigar todos los flecos, todos los caminos que ha dejado Borges
(BOLAÑO apud BRAITHWAITE, 2006, p. 107).

Depois do boom latino-americano houve ainda várias tentativas de


tentar rotular ou fabricar um fenômeno parecido, principalmente em relação à
distribuição, venda e formação de público, mas não ocorreu. O que aconteceu
foi o surgimento de vários movimentos pontuais como McOndo e o Crash (do
qual participou foi Jorge Volpi) que, além de possuírem materiais literários
interessantes e autores que estão em voga até o momento, também pensaram
uma mudança na sociedade, mas essa tentativa foi mais individualista, mas
focada no estilo e ética de cada autor do que precisamente no movimento
como um coletivo.
Então essa tentativa de recriar a partir do boom não foi possível, pois o
boom tinha como finalidade, clara e precisa, modificar o modelo de leitor
através de temas e técnicas de escrita inovadoras. Os jogos literários de
Rayuela, o realismo mágico de Cien años de Soledad apresentaram técnicas
narrativas ousadas e que foram parodiadas, em demasia, depois do seu
surgimento.
O boom, então, serviu a Bolaño como desafio, embora o sentimento de
repulsa pudesse ser maior, pois, pensando 2666 e a sua obra como um todo,
tanto para ele quanto para o escritor atual, que faz parte ou não de uma
tradição literária, o recado foi transmitido: o de não só buscar um lugar dentro
da sociedade, mas sim livrar-se dela e/ou buscar a intempérie, respirar e ter
como questão central a literatura com todas as suas colocações éticas e
estéticas. O que devem fazer é escrever algo novo, histórias que surjam do
mais profundo e velado da sociedade, do caos, da desordem, daquilo que está
na escuridão das experiências humanas, sem ingenuidade. Talvez o escritor
deva entrelaçar a cultura popular com a tradição, abrindo espaço para transitar
pelo território das polêmicas, encará-las de frente e mostrá-las de uma
63

maneira, se possível, original sem perder a elegância e sem fazer concessões,


ou ainda, pensar que a existência do mundo termine em um livro, como
pensara Mallarmé. Retomando a já citada entrevista com Fernando Villagrán e
mesmo que a vida termine em um livro e que esse mesmo livro deixe de existir,
o autor diz, com muita lucidez, que não existe a imortalidade de um autor, por
isso aquele que escreve deve se lançar ao vazio, para o lado de dentro e de
fora da existência:

Aquí entramos en algo terrible en la literatura qué es un escritor


menor, que es un escritor mayor, dentro de cuatro millones de años,
¿Cuatro millones de años? Si, o diez millones de años va
desaparecer el escritor más miserable del momento de Santiago de
Chile, pero que también va a desaparecer Shakespeare y va a
desaparecer Cervantes, todos estamos condenados al olvido, a la
desaparición, no sólo fisca sino la desaparición total, no hay
inmortalidad, y esto es una paradoja que los escritores conocen muy
de cerca y sufren muy de cerca, porque hay escritores que se lo
juegan todo por lo reconocimiento, por la inmortalidad […] no existe la
inmortalidad, es decir, en el gran futuro, en la eternidad, Shakespeare
y Menganito son lo mismo, son nada.

1.3 2666 – que obra é essa?

[…] 2666 ha sido, es, y posiblemente seguirá siendo


considerada como el testamento literario de Bolaño, una
suerte de Apocalipsis, dentro y fuera de la diégesis, que
tematiza el destino fatal e irremediable de un continente
que ha sido abandonado a su suerte, aquel continente
por el que deambuló toda una generación de jóvenes -
los nacidos en la época de los 50 – abocados al
21
fracaso.
Patricia Poblete Alday

Para que os leitores dessa tese não se sintam perdidos e que possam
entender melhor o que está sendo analisado, um breve resumo do livro é
necessário.
Pode-se dizer que 2666 além de ser, assim como toda obra escrita por
Bolaño, um complemento do Manifesto Infrarrealista Déjenlo todo, nuevamente,
é também um romance póstumo, com uma característica abismal, no sentido
de não terminar e de ser fragmentado, fugindo do aspecto tradicional do
romance, pois está dividido em cinco partes (que podem ser lidas como livros
autônomos) que se relacionam entre si. La parte de los críticos, La parte de

21
POBLETE ALDAY, Patricia. Bolaño: outra vuelta de tuerca. Santiago de Chile: Universidad
Academia de Humanismo Cristiano. 2010, p. 10
64

Amalfitano, La parte de Fate, La parte de los crímenes e La parte de


Archimboldi. Essas partes (livros) são cercadas pela presença, ou a ausência,
ou a busca de Benno Von Archimboldi, um escritor alemão cujas obras,
viagens e forma de vida são desconhecidas. Duas perguntas estão, de alguma
maneira, interligadas dentro da obra e se tornam uma espécie de enigma a ser
desvendado: quem é esse autor, Archimboldi? E quem é o assassino das
mulheres na cidade de fronteira entre México e os Estados Unidos?
A primeira parte do romance relata as peripécias de um grupo de
quatro críticos literários, especialistas na obra de Archimboldi que tentam
decifrar o paradeiro desse autor. Os críticos leem e seguem a pista do autor
levados por um desejo arbitrário, por isso o caráter excêntrico da busca
proposta.
Essa parte remete a outra busca similar a esta, dentro de outra obra de
Bolaño, Los detectives salvajes, quando Arturo Belano e Ulises Lima
empreendem uma busca à poeta Cesárea Tinajero, fazendo alusão de que a
viagem pode ser uma experiência vital, ligada à necessidade de partir e de
desprender-se.
Além de construir um personagem que só tem importância para quatro
críticos literários europeus, Bolaño provoca reflexões e faz uma crítica às
tradições literárias europeias e mexicanas (abrangendo a latino-americana).
Faz isso através da fala do personagem Amalfitano, que tenta ajudar os críticos
a encontrar o paradeiro de Archimboldi no México:

En realidad no sé cómo explicarlo –dijo Amalfitano–. La relación con


el poder de los intelectuales mexicanos viene de lejos.No digo que
todos sean así. Hay excepciones notables. Tampoco digo que los que
se entregan lo hagan de mala fe. Ni siquiera que esa entrega sea una
entrega en toda regla. Digamos que sólo es un empleo. Pero es un
empleo con el Estado. En Europa los intelectuales trabajan en
editoriales o en la prensa o los mantienen sus mujeres o sus padres
tienen buena posición y les dan una mensualidad o son obreros y
delincuentes y viven honestamente de sus trabajos. En México, y
puede que el ejemplo sea extensible a toda Latinoamérica, salvo
Argentina, los intelectuales trabajan para el Estado. Esto era así con
el PRI y sigue siendo así con el PAN. El intelectual, por su parte,
puede ser un fervoroso defensor del Estado o un crítico del Estado. Al
Estado no le importa. El Estado lo alimenta y lo observa en silencio.
[...] La literatura en México es como un jardín de infancia, una
guardería, un kindergarten, un parvulario, no sé si lo podéis entender.
El clima es bueno, hace sol, uno puede salir de casa y sentarse en un
parque y abrir un libro de Valéry, tal vez el escritor más leído por los
escritores mexicanos, y luego acercarse a casa de los amigos y
hablar. (BOLAÑO, 2013, p.161-162)
65

Nessa primeira parte do romance já aparecem algumas características


da obra, a de ser fragmentada e polissêmica. Depois a narrativa se desloca
para a segunda parte, La parte de Amalfitano, que conta a história de um
professor chileno radicalizado na cidade de Santa Teresa. Embora mude a
cena, a busca continua e a cidade permanece como o espaço de
desembocadura da trama. Mesmo sem saber ao certo por que foi parar
naquela cidade, Óscar Amalfitano realiza atividades comuns, a de professor e
pai, pois fora abandonado por sua mulher que preferiu seguir um poeta que
vivia trancado em um manicômio no norte da Espanha. Amalfitano representa a
condição da viagem e do exílio, além da solidão e da loucura da própria viagem
em si, até ao ponto de esquecer que tem uma filha e de pendurar no varal um
exemplar do livro, cena já citada anteriormente. Esta parte, não difere da
primeira e nem da última, tendo como elemento central a literatura.
Cristopher Domínguez Michael em seu artigo La literatura y el mal
(2005)22, amplia a questão dizendo: ―esta segunda novela está dispuesta
esencialmente para que Amalfitano y su hija nos introduzcan en la atmósfera
de irrealidad y sevicia de Santa Teresa, que se irá volviendo de una lectura casi
intolerable en La parte de los crímenes.‖
La parte de Fate percorre os abismos da fronteira e Bolaño sabe tratar
com habilidade essa questão, apresentando uma homenagem ―a decisiva
influencia de la cultura estadounidense en su formación, a través de las figuras
fronterizas del periodista negro, del predicador, del imposible militante del
Partido Comunista en Brooklyn y del hervidero, tan profundamente
estadounidense, de las teorías de la conspiración.‖ (DOMÍNGUEZ MICHAEL,
2005).
Em La parte de los crímenes, que será o corpus dessa tese, Bolaño se
aproxima, com a ajuda do livro de Sergio González Rodríguez Huesos en el
desierto (2003), aos feminicídios de Santa Teresa (um espelho de Ciudad
Juarez, embora Santa Teresa exista como espaço de fronteira no México, um
posto alfandegário). Os crimes acontecem com a mesma rapidez e

22
Artigo disponível em: : http://www.letraslibres.com/mexico/la-literatura-y-el-mal
Acesso em: 29.01.2017.
66

deslocamento como viagens que acontecem entre as fronteiras mexicanas e


estadunidenses e frente a tudo que ambos os lados possam representar.
Nessa parte, o relato das mulheres assassinadas, violentadas e
torturadas se mistura e se contrapõe à narração de personagens obscuros
(criminosos, jornalistas, inspetores, agentes policiais e narcotraficantes) que
transitam pelos dois lados da fronteira.
Uma vez mais, a fala de Domínguez Michael (2005) serve como
ilustração:

Yo no creía posible que se pudiese hacer literatura de tanto horror y,


al hacerlo, conservar al mismo tiempo el honor de las víctimas y el
honor de la literatura, encarando uno de los problemas morales
menos transitables de la creación artística. Si los crímenes se deben
a la difuminación del asesinato serial o a la multiplicación del rito
satánico, eso ya es cosa que, en 2666, depende de las estrategias
novelescas que Bolaño utiliza.

La parte de Archimboldi fecha o romance e apresenta o esboço da


figura do escritor alemão procurado pelos críticos e que funciona como uma
espécie de ponte que liga o terror e a violência da Segunda Guerra Mundial às
mortes das mulheres de Santa Teresa, mostrando o estado mais puro da
violência, do mal e do horror que persiste e está sendo disseminado por todo
mundo e, principalmente, pelas fronteiras dos países latino-americanos.
Deste modo, as partes (livros/fragmentos) aspiram a uma unidade, que
pode beirar a impossibilidade, mas da qual o autor é absolutamente consciente,
até chegar o ponto de assinalar que parte da intenção narrativa é mostrar a
verossimilhança de todas as partes diante da utopia do romance como uma
totalidade absoluta. Existe outra estratégia: além da verossimilhança o escritor
deseja atrair o leitor, como sempre faz, no momento em que conta algumas de
suas histórias.
O romance 2666, assim como outras obras de Bolaño, em destaque
Los detectives salvajes, caracterizam-se, fortemente, pelas possibilidades que
a literatura oferece para a vida, se opondo a um discurso autossuficiente e
hermético, tentando transmitir um sentimento de uma geração, como ele
mesmo menciona no seu discurso de Caracas:

Los que nascimos en la década del cincuenta y los que escogimos en


un momento dado el ejercicio de la milicia, en este caso sería
correcto decir la militancia, y entregamos lo poco que teníamos, lo
mucho que teníamos, que era nuestra juventud, a una causa que
67

creímos la más generosa de las causas del mundo y que en cierta


forma lo era, pero que en la realidad no lo era. De más está decir que
luchamos a brazo partid, pero tuvimos jefes corruptos, líderes
cobardes, un aparato de propaganda que era peor que una
leprosería, luchamos por partidos que de haber vencido nos habrían
enviado de inmediato a un campo de trabajos forzados, luchamos y
pusimos toda nuestra generosidad un ideal que hacía más de
cincuenta años que estaba muerto, y algunos lo sabíamos […] pero
igual lo hicimos, porque fuimos estúpidos y generosos, como son los
jóvenes, que todo lo entregan y no piden nada a cambio, y ahora de
esos jóvenes ya no queda nada, los que no murieron en Bolivia,
murieron en Argentina o en Perú, y los que sobrevivieron se fueron a
morir en Chile o a México, y los que no mataron allí los mataron
después en Nicaragua, en Colombia, en El Salvador. Toda
Latinoamérica está sembrada con los huesos de estos jóvenes
olvidados. (BOLAÑO, 2009, p.37-38)

Neste fragmento, quando ele reflete sobre a herança de projetos


políticos falidos e das catástrofes econômicas e humanas do século XX, pode-
se perceber que existe por trás de sua escrita, do seu projeto literário, uma
grande pergunta, trazendo a problemática de uma época: por que o projeto de
modernidade fracassou? Será que pode estar ligado às ideias iluministas e sua
relação com os genocídios do século passado? Qual o papel da arte, da
literatura dentro da sociedade e suas implicações éticas, estéticas e morais?
Talvez um papel mais próximo à vida, tendo a arte um papel consistente e
importante de resistência.
Além de transmitir o sentimento de uma geração e mostrar parte do
seu projeto literário, percebe-se que a elaboração de 2666, como uma obra
ficcional, cumpre uma tarefa indispensável para a sobrevivência do ser
humano: não só ajuda a predizer suas reações em situações hipotéticas, como
o obriga a representá-las em suas mentes, repetindo-as muitas vezes até
chegar à sensação de que estão sendo experimentadas de verdade, chegando
ao ponto de reconhecer a ficção como uma verdade possível, uma espécie de
―mentira contagiosa‖. Ainda, segundo Jorge Volpi, esta obra é um dos
romances mais poderosos, perturbadores e influentes escrito em espanhol, nas
últimas décadas. (2008a)
Em 2666, o poder como força exerce forte influência sobre o corpo e a
vida, revelando diferentes formas de poder que aparecem no mundo real e que
podem ser transportadas para a ficção e para dentro do mundo imaginário. A
noção de poder toma um sentindo tão intenso que se mistura ao conceito que
aparece dentro da realidade social, aquele que mostra que o ―campo literário‖
68

coloca em cheque e traz para o foco as relações de poder, tanto dentro da


estrutura literária como no plano histórico, político e social. A literatura pode
exercer algum tipo de poder dentro da configuração da vida histórico-político-
social? Até que ponto, os textos literários podem interferir na vida ou nas
práticas de modo de vida das sociedades contemporâneas?
Para entender de onde parte a narrativa de Roberto Bolaño, deve-se
perceber que o tipo de texto literário que ele constrói como ficcional é um tipo
de resposta a determinadas condições histórias que têm como início o ano , já
mencionado, de 1968 (ano em que Roberto Bolaño deixa o Chile, seu país de
origem, um ano que também pode-se pensar como o marco do início da
derrota das utopias, quando a arte perde o horizonte de prosperidade).
O ano citado é o momento de onde parte a estética de Bolaño, período
herdado diretamente e central para onde sua obra se volta, constantemente,
para refletir e, a partir daí, tentar observar todas as possíveis soluções para os
problemas gerados naquela época (principalmente os de ordem capitalista), se
é que podem ser solucionados depois e usando a literatura como espaço para
essa reflexão.
Bolaño traça um caminho, dentro de sua obra, que parte dessa data,
passando por problemas de outras épocas como as ditaduras dos anos de
1970, com suas mentiras, torturas, violações, mortes e desaparições; a
representação do exílio com suas identidades sem chão, à deriva, até chegar
aos mais atuais, mas não menos atrozes, com os feminicídios não resolvidos
em Ciudad Juárez. Bolaño gosta de transitar por temas que, ainda hoje,
parecem vetados por grande parte de escritores, pois arriscar-se compõe o seu
ser como escritor.
Por e com isso, sua estética aparece como subversiva e problemática,
já que rompe limites estabelecidos. O crítico literário, Rodrigo Fresán corrobora
essa afirmação, quando diz em seu artigo El samurái romântico: ―Una cosa
está clara, no hay dudas al respecto: Bolaño escribía desde la última frontera y
al borde del abismo. Sólo así se entiende una prosa tan activa y cinética y, al
mismo tiempo, tan observadora y reflexiva.” (FRESÁN, 2008, p.205)
Por ser um projeto literário audacioso, cujo foco é contar e mostrar de
outra maneira as mazelas da sociedade e a precariedade dos espaços dentro
das cidades, além de fazer essa analogia com a própria literatura, mostrando
69

que esta, muitas vezes, se exibe precária e nada autêntica, essa tese segue e
entra no capítulo, onde serão discutidos e analisados os gêneros que surgem a
partir romance policial.
70

Capítulo II - Campo de batalha: a cultura de massa e o romance


infrapolicial23

LOS DETECTIVES HELADOS

Soñé con detectives helados, detectives


latinoamericanos
que intentaban mantener los ojos abiertos
en medio del sueño.
Soñé con crímenes horribles
y con tipos cuidadosos
que procuraban no pisar los charcos de sangre
y al mismo tiempo abarcar con una sola mirada
el escenario del crimen,
Soñé con detectives perdidos
en el espejo convexo de los Arnolfini:
nuestra época, nuestras perspectivas,
24
nuestros modelos del espanto.
Roberto Bolaño

Toda a vida das sociedades nas quais reinam


as modernas condições de produção se
apresenta como imensa acumulação de
espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente
25
tornou-se uma representação.
Guy Debord

Este capítulo está dividido em partes, como fronteiras, mas com um


dado singular: essas fronteiras se visitam e se interpenetram. Essa divisão
servirá apenas para facilitar a compreensão de conceitos, pensamentos e
reflexões sobre dois assuntos: o primeiro, referente à sociedade do espetáculo
e o romance policial pertencente à cultura de massa e o segundo, a
modificação e a evolução do gênero narrativo, no caso o romance policial,
dividido em três de suas variações ou categorias: o romance polical clássico
– o que iniciou o gênero como tal –; romance noir, em português, romance

23
―Infra‖: o uso desse prefixo para compor a palavra infrapolicial, surgiu a partir de
ideias/conceitos apresentados por Roberto Bolaño, no seu Manifesto Infrarrealista: ―Vamos a
meternos de cabeza en todas las trabas humanas de modo tal que las cosas empiecen a
moverse dentro de uno mismo, una visión alucinante del hombre.[...] La muerte del cisne, […]
el último canto del cisne negro, NO ESTÀN en el Bolshoi sino en el dolor y la belleza
insoportables de las calles. Hacer aparecer las nuevas sensaciones – Subvertir la
cotidianeidad.‖ (BOLAÑO, 2013, p. 54, 61 e 62), Portanto, toda vez que aparecer o termo como
proposta de variante de gênero, foi pensado e analisado a partir do que foi exposto aqui,
entrar com tudo, uma caída vertical dentro dos esconderijos que o ser huamano traz consigo e
não são desvendados.
24
BOLAÑO, Roberto. La Universidade Desconocida. Barcelona: Editorial Anagrama S.A.,
Narrativas hispánicas, 2007, p. 340.
25
Fragmento do livro: DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução: Estela dos
Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 13.
71

negro, que será tratado como novela negra, nomenclatura usada na América
Latina, e a recente categoria: romance criminal que nesse estudo será
denominado como neopolicial latino-americano, uma variante que será
analisada e pensada como fronteira. Embora essa última categoria tenha
recebido várias denominações, essa foi a escolhida, pois abarca vários
conceitos que culminarão na proposta final desta tese, a de apresentar o
romance infrapolicial como sendo mais uma categoria do gênero, pensada
nessa tese, como a que pode dar conta de aspectos complexos que giram em
torno das questões relativas ao homem, da política e da economia, além das
discussões literárias, entre elas, as propostas que despontam a partir da escrita
de Roberto Bolaño.
Os conceitos, pensamentos e reflexões, que serão utilizados neste
capítulo, são resultado do trabalho teórico de estudiosos que analisam a
sociedade atual, como Guy Debord, Edgar Morin, Siegfried Kracauer, entre
outros, que ajudarão a pensar parte da obra 2666. Além dos autores já
mencionados, que abordam temas como a cultura de massa, o espetáculo, a
cotidianidade, também se realizará o diálogo com pensadores que escreveram
sobre o romance polical; nesse rol encontram-se Tzvetan Todorov, Mempo
Giardinelli, Enrique Rodrigues-Moura e Walter Benjamin.
Antes de apresentar o gênero em si e suas variante, faz-se necessário
uma reflexão introdutória que servirá para que seja entendia a sociedade que
está sendo abordada pelo autor.

2.1. Cultura de massa: o espetáculo

―¿Qué es 2666, si no el gran agujero negro de la humanidad, el crimen,


el horror? ¿cómo entender ese mal? Roberto lleva al lector hacia los agujeros
negros, que es una concepción infrarrealista‖
Estas reflexões, que aparecem no livro de Mónica Maristain El hijo de
mister playa (2012, p. 78), propostas por Rubén Medina (poeta e professor
mexicano, residente nos Estados Unidos e também um dos fundadores, junto
com Roberto Bolaño, do movimento infrarrealista) servirão como catalisador
deste capítulo. A questão levantada por Medina pode não obter uma resposta,
mas serve para pensar e ler La parte de los crímenes, do romance 2666, de
72

outro modo, a partir de gêneros inseridos e considerados dentro da literatura


como ―menores‖, aqueles que estão ligados diretamente à cultura de massa,
portanto na fronteira. Entretanto Bolaño extrapola as características do
romance policial e as amplia, por isso pensa-se em analisar essa parte a partir
de uma nova categoria: o romance infrapolicial.
Para tanto, faz-se necessário apresentar a cultura de massa sob a luz
e percepção de Simon During e Edgar Morin, conceito que será abordado
durante esta análise, juntamente com o de sociedade de massa, proposto por
Martín-Barbero, e sociedade do espetáculo elaborado por Guy Debord. Esses
conceitos foram selecionados, pois se entende o corpus proposto para este
estudo como integrante desses núcleos, o da cultura e da sociedade de massa,
além de perceber que romance policial, novela negra e romance neopolicial
latino-americano estão inseridos nesse lugar.
Organizador do livro The Cultural Studies Reader, Simon During
apresenta na sua introdução o pensamento de vários autores sobre o conceito
de cultura de massa, cânone e cultura popular. O autor diz que dentro dos
estudos culturais, cultura não se resume à alta cultura e o valor dela se tornou
flexível ao longo do tempo e dos diferentes espaços, direcionando-se para a
subjetividade dos indivíduos, pois é na vida individual que os efeitos culturais
da desigualdade social são mais visíveis. Segue o pensamento dos autores
apresentados por ele.
Richard Hoggart, no seu livro The Uses of Literacy, expressa que
cultura é uma categoria importante que nos ajuda a reconhecer que uma
prática de vida (como a leitura) não pode ser arrancada de uma grande rede
constituída por muitas outras práticas de vida como, por exemplo, o trabalho, a
orientação sexual e a vida familiar. Hoggart acredita que o enaltecimento aos
cânones não exclui a possibilidade de prestigiar a cultura popular de seu tempo
e que as duas expressões culturais são uma forma de resistência à cultura de
massa, pois o poder aquisitivo dos trabalhadores aumenta a disponibilidade
para comprar bens de consumo, principalmente os que estão ligados aos
meios de comunicação, como a televisão, por exemplo.
Esse pensamento complementa o de Michael Foucault quando divulga
a teoria de política cultural dizendo que ―a cultura não é nem um fim em si
mesma, nem o produto de agentes autônomos – sejam indivíduos ou
73

comunidades – mas um mecanismo de transmissão de formas de


―governamentalidade‖, para encomendar como agimos, pensamos, vivemos.‖ A
cultura está relacionada às estruturas governamentais. During critica esse
pensamento, pois seria uma visão superficial da subjetividade, onde o indivíduo
tende a ser apenas um produto dos atos governamentais, sem ter a
possibilidade de criticar e influenciar, durante o processo de
governamentalidade.
Para ampliar o tema, outro pensador se apresenta: Edgar Morin que no
seu livro Cultura de massas no século XX, afirma que cultura de massa seria a
terceira cultura, aquela ligada à imprensa, ao cinema, ao rádio e à televisão,
que se projeta e se desenvolve ao lado das culturas reconhecidas como
clássicas e nacionais. O autor continua afirmando que essa cultura aparece ―no
amanhã da Segunda Guerra Mundial, que a sociologia detecta, reconhece a
Terceira Cultura e a domina: mass-culture‖ (MORIN, 2011, p. 4).
Guy Debord em A sociedade do espetáculo, diz que o espetáculo é um
discurso interrompido e que a própria sociedade autorrealiza, sendo uma
gestão totalitária das condições da existência e de escolha do seu próprio
conteúdo. Na atualidade, o espetáculo ―expressa o que a sociedade pode
fazer, mas nessa expressão o permitido opõe-se de todo ao
possível‖,controlado pelos meios de comunicação de massa, de alguma
maneira pelo Estado. (DEBORD, 1997, p.21),
Ainda inserido no conceito proposto por Morin (2011), a cultura de
massa tem como público-alvo a massa social que abarca muitos indivíduos que
estão aquém e além das estruturas internas sociais. Ao mesmo tempo em que
pode ser controlada, censurada e contida pelo Estado, corrói, desagrega e é
autônoma, pois é cosmopolita por vocação e panfletária por extensão. Os
pensamentos de Edgar Morin e os de Guy Debord são convergentes e
apontam para um mesmo horizonte, uma sociedade que faz do espetáculo seu
sentido de vida, toda ela ligada e amarrada a um capitalismo exacerbado, onde
o mais do mesmo tem vez, é valorizado e nunca cessa.
Poderia também trazer para esse diálogo Walter Benjamin e seu
conceito do capitalismo como religião ou ainda o cadáver como emblema,
remetendo à alegoria e ao drama trágico, mas essa abordagem precisaria de
uma leitura apurada e dedicada do texto de Benjamin. Entretanto as suas
74

ideias do cadáver como emblema serão retomadas durante a análise do texto


de Bolaño como romance infrapolicial.
Esses pensamentos e reflexões são realizados a partir do advento dos
meios de comunicação de massa, principalmente TV e rádio. Já que esses
meios são concessões governamentais é lógico pensar em controle da
população, pelo Estado, através desses meios, aspecto que acontece ainda
nos dias de hoje, mesmo com o evento da internet e da globalização. O que se
vende como espetáculo que dá lucro, também serve como controle e
potencialização do consumo.
Vale lembrar que o texto de Morin foi escrito em 1962, quando a cultura
de massa não era elaborada por intelectuais, que tendiam a colocá-la nos
“infernos infraculturais”. Por um lado, era vista como diversão, barbárie, ligada
à plebe (o pensamento de direita) e, por outro, como o ópio do povo, a
mistificação deliberada, tendo o capital como o responsável de desviar a massa
dos seus problemas verdadeiros (uma visão da esquerda). Era uma divisão
bem marcada dentro da sociedade, mas que ainda serve para ser pensada na
contemporaneidade e usada nesse estudo. Para além da dialética esquerda -
direita, a cultura de massa era vista, principalmente, pelos intelectuais, como
mercadoria cultural ordinária, feia, kitsch, brega e sem valor. Ainda existem os
que percebem a cultura de massa como tal e outros que não se envergonham
de usá-la para se inserirem no mercado.
É uma dialética complexa, que precisa de mediação; de um lado, o
sistema de produção cultural e do outro, a necessidade cultural dos
consumidores, entendendo a cultura de massa como o produto que nasce
desse diálogo entre produção e consumo, pois nela o imaginário e o real têm
uma ligação muito íntima, ela alimenta e atrofia a vida. O consumo imaginário
acaba desembocando em uma busca real: ―ela torna fictícia uma parte da vida
de seus consumidores. Ela ―fantasmaliza‖ o espectador, projeta seu espírito na
pluralidade dos universos figurados ou imaginários, faz sua alma emigrar para
os inúmeros sósias que vivem para ele.‖ (MORIN, 2011, p. 166)
Morin ainda assinala em sua obra que, na cultura de massa, arte e vida
não são descontínuas e nem pretendem ir contra a vida cotidiana, muito pelo
contrário, pois são consumidas no decorrer das horas, têm um caráter
industrial, devem se prestar ao consumo diário, uma ―cultura no devir‖. Ele
75

ainda aborda a complexidade de compreender a cultura de massa, por esta


apresentar fronteiras fluídas referentes à técnica, à indústria, à alma e à vida
cotidiana e essa complexidade aumenta quando se pensa a cultura de massa
na América Latina, onde essas fronteiras são maiores, mais frágeis e que o
homem a aceita, mas não assume sua natureza transitória e evolutiva,
reconduzindo o espírito ao presente.
Ainda de acordo com Edgar Morin:

[...] a contribuição inesquecível da cultura de massa encontra-se em


tudo que é movimento: o western, o filme e o romance policial, melhor
ainda, criminal, o grande frenesi cômico e cósmico, a ficção cientifica,
as danças e ritmo afro-americanos, a reportagem radiofônica, o
sensacionalismo, o flash. Criações feitas não para os silêncios
meditativos, mas para adesão ao grande ritmo frenético e
exteriorizado do ―Espírito do Tempo‖. (MORIN, 2011, p.176-177)

Essa colocação do autor cabe, justamente, para o estudo do corpus La


parte de los crímines, com a possibilidade de ler o romance 2666 sob a
categoria de novela negra ou romance neopolicial latino-americano, mas com a
intenção de mostrar que deve ser mesmo lido através de uma nova variante, o
romance infrapolicial, portanto dentro da cultura de massa. A escritura desse
livro passa pela necessidade de ser original, de encontrar novas técnicas
literárias que estimulem o consumo e a leitura, provocando, como disse Morin,
―a constituição de uma nova esfera que se destacará da órbita da cultura de
massa para gravitar em torno da ‗alta cultura‘.‖ (2011, p. 178). Além de
provocar um ritmo mais que frenético, posto que extrapola o ―espírito do
tempo‖.
Como os conceitos se interpenetram, para ilustrar o de cultura de massa
proposto por Edgar Morin, tentando entender a proposta de Roberto Bolaño em
aproximar a cultura de massa (pensada como heterogênea) à outra pensada
como homogênea e hegemônica, sem que aquela seja vista apenas como
narcotizante e um meio de alienação, cabe apresentar como exemplo, que
também servirá como apoio para a leitura do espetáculo proposto por Debord,
um trecho do capítulo:

[...]un afilador de cuchillos que recorría la calle El Arroyo, en los lindes


entre la colonia Ciudad Nueva y la colonia Morelos, vio a una mujer
que se agarraba a un poste de madera como si estuviera borracha.
76

[...] Por el otro extremo de la calle, cubierto de moscas, vio venir al


vendedor de paletas. Ambos convergieron en el poste de madera,
pero la mujer había resbalado o ya no tenía fuerzas para sujetarse.
La cara de la mujer, a medias oculta por el antebrazo, era un amasijo
de carne roja y morada. El afilador dijo que había que llamar a una
ambulancia. El paletero miró a la mujer y dijo que parecía como si
hubiera peleado quince rounds con el Torito Ramírez. […] En las
ventanas de la acera de enfrente unas mujeres los observaban desde
las ventanas. Hay que llamar a una ambulancia, dijo el afilador. Esta
mujer se está muriendo. Al cabo de un rato llegó una ambulancia del
hospital y los enfermeros quisieron saber quién se hacía responsable
del traslado. [...] ¿Cómo me voy a responsabilizar de esta mujer si ni
siquiera sé cómo se llama?, dijo el afilador.Pues alguien tiene que
responsabilizarse, dijo el enfermero.¿Es que te has vuelto sordo,
buey?, dijo el afilador mientras sacaba de un cajón de su carrito un
enorme cuchillo de trinchar. Bueno, bueno, bueno, dijo el enfermero.
Órale, métanmela dentro de la ambulancia, dijo el afilador. El otro
enfermero, que se había agachado a examinar a la mujer caída
espantando las moscas a manotazos, dijo que era inútil que se
madrearan, que la mujer ya estaba muerta. (BOLAÑO, 2013, p.447-
448)

Pode-se perceber neste fragmento a atmosfera preparada por Bolaño,


não só em torno do crime em si, mas quando traz, ao cenário, personagens do
cotidiano das cidades, a figura de um sorveteiro, de um enfermeiro e de um
amolador que não sabem bem como proceder diante de uma mulher
desconhecida que está morrendo, que de fato morre e não fica claro o porquê,
mas eles são testemunhas de uma violência sem precedentes.
O personagem é usado como pista para o leitor, pois um amolador de
facas não transita por qualquer região da cidade, indicando que o fato ocorre
em uma zona periférica, na fronteira da fronteira. No parágrafo seguinte a
identidade da mulher é revelada e se trata de uma prostituta que pode ter sido
assassinada por um ou por vários dos seus clientes descontentes com o seu
serviço.
A representação e o espetáculo, entendidos como momento imediato,
estão montados para que qualquer transeunte pare e aprecie o quão direta e
demolidora a cidade pode parecer e até mesmo ser, no âmbito dos desejos e
das percepções, sem contar que a vida vale muito pouco diante dos olhares
dos curiosos, pois passa do discurso para a imagem. Segundo Guy Debord, ―O
espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento
autônomo do não vivo.‖ (1997, p. 13). O que não está mais vivo não faz mais
sentido, a não ser para saciar a necessidade de representação, de ser
77

espetáculo e uma total possibilidade de representação imagética do real por


excelência.
Para dar mais consistência ao espetáculo apresentado por Debord,
uma citação do livro de Marcelo Lopes de Souza, Fobópole, se junta ao já
apresentado e expande o panorama. Diz o autor:

A partir das últimas décadas do século XX, por várias razões e com
variações de país para país, o período de relativa ―calmaria‖ vai-se
extinguindo [...] a criminalidade ―ordinária‖, sem motivação política ou
religiosa direta, vai-se intensificando nas cidades de vários países, a
ponto de um novo vocabulário começar a dar o tom dos novos
tempos ―banalização da morte‖, cultura da violência. (SOUZA, 2008,
p. 39)

Quanto mais descreve os crimes que acontecem por todos os cantos


mais remotos da cidade de Santa Teresa, em 2666, Roberto Bolaño
potencializa a imagem do espetáculo e reafirma que o homem atual busca,
nessas imagens, repostas para o seu desconforto social, na maioria das vezes,
provocado por uma sociedade atrelada ao consumo, à aparência e não mais à
essência. Não importa a essência ou o que foram as mulheres que apareceram
mortas, assassinadas, mas sim a narração do espetáculo e das cenas
relatadas como reais, pois, conforme Guy Debord

[...] o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na


sociedade. [...] A própria separação faz parte da unidade do mundo,
da práxis social global que se cindiu em realidade e em imagem. A
prática social, diante da qual se coloca o espetáculo autônomo, é
também a totalidade real que contém o espetáculo. Mas a cisão a
mutila a ponto de fazer parecer eu o espetáculo é o seu objetivo. A
linguagem do espetáculo é constituída de sinais da produção
reinante, que são ao mesmo tempo a finalidade dessa produção.
(DEBORD, 1997, p.14-15)

O excesso de realidade apresentado nas linhas do romance se


equipara ao modelo de vida proposto pela sociedade atual, um modelo ligado
ao consumo, onde o capital é uma espécie de protagonista; o ser humano vive
para consumir e para que isso aconteça, precisa estar inserido no meio e
conseguir o capital adequado para tal. Essa busca intensa pelo vil metal acaba
desembocando na destruição da consciência e na incapacidade de
discernimento entre o real e o irreal. O excesso de realidade, beirando a
irrealidade leva ao prazer desmedido. Nessas condições, a fronteira entre
78

realidade e ficção se perde e quando, de alguma maneira, ela aparece é


líquida, fluida, frágil e efêmera.
Na sociedade do espetáculo, a solidez não tem vez e nem voz, as
catástrofes são iminentes, tem-se apenas a impressão da realidade, o que se
destaca é o irreal passado como real, promovido como espetáculo e que pode
ser consumido como um produto crível, não só promovido pelos meios de
comunicação, mas também proposto como imagens que manipulam a
realidade e a colocam em outra perspectiva, a que não passa pela reflexão,
pois é automática e rápida: ―[...] o espetáculo, tomado sob o aspecto restrito
dos ―meios de comunicação de massa‖ [...] dá a impressão de invadir a
sociedade como simples instrumentação.‖ (DEBORD, 1997, p. 20).
Em um mundo instantâneo, os espectadores vivem a possibilidade da
catástrofe, da violência e veem nelas uma exposição tão rotineira que já não se
surpreendem mais com o inusitado, portanto convivem com uma espécie de
alienação. Pensando ainda com Debord e percebendo ―a origem do espetáculo
como perda da unidade do mundo‖ (1997, p. 23), a morte (no caso, a violenta)
deixou de ser algo incomum e passou a fazer parte do cotidiano das cidades e
da vida de muitas pessoas.
Já Siegfried Kracauer aponta que a época capitalista é uma etapa no
processo de desencantamento e que ―o lugar onde se situa o pensamento
capitalista é a sua abstratividade. A sua predominância acaba instaurando um
espaço cultural que abarca todas as suas manifestações.‖ (2009, p.97). A
expansão do capitalismo faz que o homem se abstraia mais e mais, ficando
cada vez mais perto da automação e longe da razão, quanto mais consome
entretenimento pelos meios de comunicação massivos, menos preocupado fica
com o seu entorno, mais fora da sua realidade ele se encontrará, pois a
realidade passa a ser aquela promovida por aqueles meios. Esse pensamento
cria um espaço para que a razão deixe de intervir, é como se o ser tivesse sido
anestesiado por algo que é mostrado como ―verdade‖.
A literatura apresentada como a arte que causa estranhamento, se
apoia nos extremos com o intuito de devolver a sensibilidade, nesse caso os
crimes narrados com tanta crueldade e riqueza de detalhes ajudam o ser
humano a refletir sobre o que de fato é a vida e o valor que ela tem dentro da
sociedade atual. Afinal, vive-se na civilização, na barbárie ou entre ambas?
79

Transita-se entre mundos? Ou essa divisão já pode ser considerada


inexistente, já que um mundo absorve o outro e não se sabe o lugar de
pertencimento?
Além dos conceitos apresentados e para complementar o suporte
dessa análise, será exposto o conceito de sociedade de massa, proposto por
Jesús Martín-Barbero em seu livro Dos meios às mediações: comunicação,
cultura e hegemonia, o que ampliará o debate.
No prólogo do seu livro, Martín-Barbero diz que em respeito à cultura, o
mapa é claro e sem rugas, pelo lado antropológico, encarregado das culturas
primitivas: ―cultura é tudo, do machado às danças rituais e que, pela sociologia,
encarregada das culturas modernas, cultura é somente um tipo especializado
de atividade e de objetos, de práticas e produtos pertencentes ao cânone das
artes e das letras.‖ (2008, p. 13).
O autor continua traçando a visão sobre este conceito, passa pela
―afirmação e negação do povo como sujeito‖ até chegar ao momento em que
apresenta como título de um dos capítulos do seu livro: ―Nem povo nem
classes: a sociedade de massa, onde a ideia de uma ―sociedade de massas‖ é
bem mais velha do que costumam contar os manuais para estudiosos da
comunicação.‖ (2008, p. 52) Neste capítulo, Martín-Barbero amplia a discussão
e apresenta um mapa do pensamento de vários teóricos acerca do tema –
nova visão sobre a relação sociedade/massa e começa apresentando as ideias
de Tocqueville:

[...] se antes se situavam fora, como turbas que ameaçavam com sua
barbárie a ―sociedade‖, as massas se encontram agora dentro:
dissolvendo o tecido das relações de poder, erodindo a cultura,
dissolvendo a velha ordem. Estão se transformando de horda
gregária e informe em multidão urbana. (TOCQUEVILLE apud
MARTÍN-BARBERO, 2008, p.53)

A massa é apresentada por Tocqueville como sendo o início da


democracia moderna, trazendo para si mesma a sua própria destruição,
girando sobre si mesma para alcançar os pequenos prazeres vulgares que a
satisfaça. A importância de sua reflexão está centrada em uma pergunta
fundamental sobre o sentido da modernidade: ―Pode-se separar o movimento
pela igualdade social e política do processo de homogeneização e
uniformização cultural?‖ (TOCQUEVILLE apud MARTÍN-BARBERO, 2008, p.53).
80

Segundo sua proposta, essa contradição revela o medo que as mudanças


produzem.
Mais adiante, Martín-Barbero apresenta o conceito de massa segundo
outros autores, entre eles Engles (massa trabalhadora que gera uma sociedade
diferente); Stuart Mill (massa como sendo ―mediocridade coletiva‖); Gustave Le
Bon (massa como um fenômeno psicológico, de indivíduos dotados de alma
coletiva); passando por Freud e o fazer cultural das massas (nas massas além
dos instintos, existe produção).
Quando a massa se converte em público, como ficam suas crenças e
opiniões? No momento em que aparece a primeira teoria da comunicação, na
1ª metade do século XX, já como um desdobramento da teoria baseada no
pensamento de Ortega y Gasset do homem-massa que, segundo ele, não
pertence a uma classe, mas está em todas, cuja referência sócio-histórica se
encontra naqueles que estão na parte de baixo da pirâmide social. Ortega y
Gasset traz como tema do seu livro A desumanização da arte, a relação entre
massa e cultura, mas, para ele, existem dois pontos fundamentais que se
desdobrarão em A rebelião das massas:

Um: a ―cultura integral‖ definida por oposição à ciência e à técnica,


reafirmando aquele humanismo que delimita a cultura por sua
diferença com a civilização. [...] Dois: a cultura é antes de tudo,
normas. Quanto mais precisa, quanto mais definida a norma, maior é
a cultura. E com esse conceito se ―enfoca‖ a arte que se faz nesse
tempo! (ORTEGA Y GASSET apud MARTÍN-BARBERO, 2008, p.62-
63)

Após essas colocações sobre cultura, sociedade e cultura de massa,


outras questões emergem e perturbam: o que acontece culturalmente com as
massas? O que a massa produz de cultural? Ela consome o que produz? Qual
o lugar da manifestação da cultura de massa?
A cultura de massa tem uma ligação estreita com a modernidade, com
as misturas (hibridismo), com o espaço urbano, com a comunicação e,
portanto, com a mediação. Sua transmissão se dá, não somente por meios que
têm um alcance bem abrangente como jornais, televisão, cinema, rádio, mas
também através da literatura com destaque para alguns gêneros narrativos,
entre eles, a crônica, as histórias em quadrinho, os romances de ficção
científica e os policiais. Esses gêneros narrativos, entendidos como de cultura
81

de massa, podem aspirar a um lugar dentro do âmbito acadêmico? Podem ser


estudados até que venham a fazer parte de um espaço simbólico que os
intelectuais denominaram como cânone?
Talvez a resposta a essas indagações esteja no que apresenta Jean-
Marc Moura (2003). Existe uma necessidade da transdisciplinaridade dentro
dos estudos de Literatura Comparada e cabe dizer e complementar que não só
nos estudos de tal literatura, mas em todos os tipos de estudos literários, pois
deve existir um diálogo não só com as visões culturais contemporâneas, mas
se deve entender a cultura como algo dinâmico, um palco de negociações,
tensões, conflitos, repleto de contradições, percebendo e entendendo a fala
das minorias contra o eurocentrismo e o cânone e não enxergar a produção
literária apenas como extensão da literatura europeia. Segundo o autor, a
transformação de um cânone literário é mais complexa do que simplesmente
substituir uma biblioteca por outra. O cânone não é apenas um texto escrito,
impresso no papel, mas um discurso social, histórico, cultural e hegemônico,
engendrado dentro das práticas de literatura e de dominação.
Pelas razões apresentadas, esse estudo cruza a fronteira, faz a
travessia e passa a abordar as variantes do romance policial: romance policial
clássico, novela negra, romance neopolicial latino-americano e romance
infrapolicial, propondo outras reflexões: será que essas categorias podem ser
entendidas como sinônimas? Existe alguma diferença entre elas? Um pequeno
panorama, desde suas aparições, será apresentado, uma espécie de
historiografia ou genealogia do romance policial, assim como se tentará
mostrar quais as diferenças e igualdades que possam existir entre suas
variantes nos âmbitos estrutural e de compreensão sociocultural.
A análise, que também é a tese dessa pesquisa, sobre a composição
do romance infrapolicial, será realizada a partir de La parte de los crímenes,
pois se entende que, nesta parte, estarão presentes os elementos que
compõem o romance infrapolicial que será mais detalhado no terceiro capítulo
desse estudo.
82

2.2 – O gênero narrativo: romance policial e suas variações

Me hubiera gustado ser detective de homicidios, mucho


más que ser escritor. De eso estoy absolutamente
seguro. Un tira de homicidios, alguien que puede volver
solo, de noche, a la escena del crimen, y no asustarse
de los fantasmas. Tal vez entonces sí que me hubiera
vuelto loco, pero eso, siendo policía, se soluciona con un
26
tiro en la boca.
Roberto Bolaño

2.2.1 – Romance policial clássico

Dentro do gênero narrativo romance policial, como já foi mencionado,


pode-se estabelecer diversas categorias que marcam diferenças. Por uma
questão de cronologia e de genealogia, o romance policial clássico começa e
dá o tom nesta parte desse capítulo.
Ordem, moral e progresso são palavras base do pensamento filosófico
social do século XIX, época em que aconteceu a propagação do discurso da
ciência, da razão e de outras teorias desenvolvidas dentro do Positivismo,
levando os escritores a se apropriarem de ideias, de métodos científicos, os
transportando para dentro da escrita literária.
Antes de apresentar qualquer variação do gênero romance policial,
deve-se esclarecer que o romance, como gênero narrativo, em sua forma
ordinária, sempre esteve fortemente ligado ao espaço urbano e à burguesia,
configurando-se como um espaço narrativo literário onde tudo cabe e tudo é
possível, servindo para o escritor não só soltar a sua imaginação, mas também
para experimentar técnicas narrativas inovadoras.

Alargando continuamente o domínio de sua temática, interessando-se


pela psicologia, pelos conflitos sociais e políticos, ensaiando
constantemente novas técnicas narrativas e estilísticas, o romance
transformou-se, no decorrer dos últimos séculos, mas sobretudo a
partir do século XIX, na mais importante e mais complexa forma de
expressão literária dos tempos modernos. De mera narrativa de
entretenimento, sem grandes ambições, o romance volveu-se em
estudo da alma humana e das relações sociais, em reflexões
filosóficas, em reportagem, em testemunho polêmico, etc. O
romancista, de autor pouco considerado na república das letras,
transformou-se num escritor prestigiado em extremo, dispondo de um

26
Resposta concedida a Mónica Maristain, quando perguntado sobre o que seria se não fosse
escritor. In: BRAITHWAITE, Andrés. Bolaño por sí mismo: entrevistas escogidas. Chile:
Ediciones Universidad Diego Portales, 2006, p. 80.
83

público vastíssimo e exercendo uma poderosa influência nos seus


27
leitores. (SILVA, 1994, p. 671).

Quando se estuda um gênero narrativo, acaba-se por colocar em


xeque a noção de gênero em si, que rotula as obras literárias dentro de uma
classificação determinada: poema, relato, crônica, conto, romance, como se
uma não pudesse fazer parte da outra. Pensou-se assim por muito tempo e os
escritores se inseriam dentro de uma dessas categorias de escrita. Com o
passar do tempo, nos anos finais do século XIX e nos iniciais do século XX,
essa estratégia se modifica e há na produção literária uma guinada, onde a
intergeneracidade se torna possível. Isso acontece por causa do avanço
industrial/tecnológico, como também pelo aumento do público leitor que
demandará um mercado editorial.
A publicação de textos literários nos jornais, espaço predominante da
linguagem referencial e de apresentação dos fatos reais, das ―verdades‖,
contribui para que essa mistura, essa hibridação de gêneros comece e com ela
surge uma pergunta: afinal, essas obras literárias ficcionais veiculadas nos
jornais poderiam ser verdadeiras, tomadas como sendo da vida real?
Essa modificação e veiculação dos textos ficcionais unidas com o
pensamento racional, desenvolvido durante o período científico-industrial,
serviram como inspiração à literatura policial. Diversos autores, entre eles
Edgar Alan Poe, Conan Doyle, Maurice Leblanc, junto com sua produção
literária, serão testemunhas de ideias e ideais de uma sociedade
completamente científica, racional, lógica, antropocêntrica, onde não há lugar
para divagações e subjetividades. Uma sociedade vista e entendida como
civilizada, homogênea, racionalizada e um tanto desumana que tem, como sua
vitrine, os jornais.
O romance policial, determinado como clássico, aparece para encher
uma lacuna, um caminho inexplorado de entretenimento, pois, ao romper com
o romance tradicional, deixa de lado a inspiração e vai aliar-se às teorias
positivistas, à ciência, ao uso da lógica e da razão, estabelecendo um conjunto
de relações e de deduções. Então, surge um romance montado na base de
esquemas, de uma construção lógica, onde aparecem verdade, lei, detetive, e

27
Disponível em: https://pt.scribd.com/doc/178254087/Teoria-Da-Literatura-Aguiar-e-Silva
Acesso em: 20.09.2016
84

um conflito que culmina na revelação de um enigma (geralmente a solução de


um crime); é um romance, cuja forma narrativa está mais próxima ao conto e
aos relatos curtos e por essa característica, de ser breve, se torna mais fácil de
ser consumido e publicado em um meio de comunicação massivo, que dispõe
de pouco espaço.
Vale a pena esclarecer que entende-se por crime tudo que causa
desordem e foge e viola as leis de estabilidades dentro da sociedade,
causando transtorno, tais como assassinatos, roubos, furto, corrupção,
contravenção, etc. Quando a ordem é quebrada e as leis violadas, os atos
acontecidos nesse viés são determinados como crime. No vocabulário jurídico,
crime é toda ação cometida com dolo, ou infração contrária aos costumes, à
moral e à lei, que é legalmente punida, ou que é reprovada pela consciência.
Não se pode abordar o romance policial clássico sem apresentar Edgar
Allan Poe, autor norte-americano, como sendo o precursor e o fundador do
gênero. Muitos críticos colocam Poe nesse patamar e apontam três obras
como as iniciadoras do gênero: Os assassinatos da Rua Morgue (1841), O
mistério de Marie Roge (1843) e a A carta roubada (1845). O autor cria uma
estrutura para entreter, baseada na rigidez da lógica, seguindo um esquema
puramente matemático, dedutivo e preciso, onde não cabem devaneios. Além
disso, cria um investigador, Auguste Dupin, que usa da razão e da ciência, sem
necessidade de outros recursos, para desvendar os crimes. Nos seus contos, a
ambientação acontece em lugares fechados, nos casarões ou nas mansões
das classes altas, portanto nos espaços privados frequentados pela burguesia.
A ambientação mais propícia, para esse tipo de romance, seria a cidade, pois,
nesse espaço, além de poder perder-se na multidão, o criminoso é um
anônimo, o que torna mais difícil sua identificação. Com Edgar Allan Poe
surgirá a tríade que formará a base do romance policial clássico: o crime, o
detetive e o enigma.
No inicio do seu primeiro relato policial, Os assassinatos da Rua
Morgue, o escritor já mostra os elemento que outros autores também usarão
durante a escrita do romance policial:
85

As características mentais geralmente denominadas analíticas são,


em si mesmas, pouco suscetíveis a uma análise. Podemos apreciá-
las somente através de seus efeitos. Sabemos delas, entre outras
coisas, que quando possuídas em grau incomum, sempre são, para
seu possuidor, uma fonte do mais vivo prazer. Assim como o homem
robusto vibra em sua força e habilidade física, dedicando-se com
entusiasmo aos exercícios que põem seus músculos em ação, assim
o analista se glorifica naquela atividade moral que desembaraça e
deslinda. Encontra prazer até mesmo nas ocupações mais triviais que
lhe permitam exercer seus talentos. Ama os enigmas, os paradoxos e
os hieróglifos; exibe, na solução de cada mistério, um grau de
acurácia que parece sobrenatural às pessoas de compreensão mais
ordinária. Seus resultados, ainda que obtidos através da própria alma
e essência do método, apresentam, de fato, todo o aspecto da
intuição. A faculdade da resolução de problemas possivelmente é
muito fortalecida pelo estudo das matemáticas, especialmente pelo
mais elevado de seus ramos, o qual, injustamente, apenas em função
de suas operações de revisão dos fatos, vem sendo chamado de
análise, como se fosse somente isso. Todavia, calcular não é o
mesmo que analisar. (POE, 2011, p.40)

Allan Poe, além de inspirar vários autores a seguirem essa estrutura de


narrativa policial, também cria um público leitor que passa a consumir esse tipo
de gênero de entretenimento que era publicado e divulgado nos jornais e nas
pulps magazines28 da época.

2.2.1.1 - O crime e o enigma:

―Quanto mais negamos um crime, mas a consciência nos obriga a


pensar nele‖. Essa era a frase de abertura da série Teatro de Mistério29, escrita
por Hélio do Soveral e transmitida, nos anos de 1970, pela Rádio Nacional do
Rio de Janeiro, portanto para que exista um romance policial é preciso que haja
um crime, um acontecimento que desestabiliza a ordem.

28
Revista de péssima qualidade, impressão com muitos defeitos, erros e uma apresentação
sensacionalista, de baixo custo que consegue, por todas essas características, ser distribuída
por todo pais e é lida por um considerável número de leitores. O leitor não precisa pensar, pois
ela foi elaborada com a intenção de ser apenas um entretenimento, se distanciando assim, do
que é considerado cânone. (HERRERA, 2008, p.61-74). Para saber mais sobre as revistas
pulps de todos os gêneros só acessar o link Disponível em:
https://get.google.com/albumarchive/115487903311841341778?source=pwa.
Acesso em: 09.10.16. Mais sobre o assunto – Anexo VII (p.238-245)
29
Programa transmitido pela Radio Nacional do Rio de Janeiro. O link que segue traz uma
história interessante. O detetive da história, Inspetor Santos, surge nesse episódio como um
detetive que aparece nos programas de rádio e que os personagens ouvem um determinado
momento um desses personagens diz ao inspetor encarregado (no caso ele mesmo) que
deveriam convidar o Inspetor Santos para desvendar o crime.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=24IyLmQl6x4. Acesso em 09.10.2016
86

Segundo Tzvetan Todorov, o romance policial se divide em duas


espécies: o romance policial clássico (que teve seu auge no período entre as
duas guerras mundiais) e a novela negra (que surge depois da Segunda
Guerra Mundial). Todorov também denomina o romance policial clássico como
romance de enigma e para explicá-lo, toma como exemplo o romance de
Michel Butor, Inventário do tempo, cujo personagem, George Burton, é autor de
vários romances policiais diz ele ao narrador:

[...] toda novela policial construida sobre dos muertes, la primera de


las cuales, cometida por el asesino, no es más que la ocasión de la
segunda, en la cual él es la víctima del matador puro al que no se
puede castigar: el detective, […] el relato… superpone dos series
temporales: el tiempo de la investigación que comienza después del
crimen, y el tiempo del drama que conduce a él. (TODOROV apud
LINK, 2003, p.65)

Com esse exemplo, Todorov assinala que o romance policial clássico


traz na sua base estrutural uma dualidade, duas histórias: a do crime em si e a
da investigação e que não apresentam nenhum ponto em comum na sua forma
ordinária. A primeira história, a do crime, conta o que aconteceu de fato. E na
segunda história, a parte da investigação, o que acontece? Os personagens,
dessa parte, não atuam, eles aprendem, pois existe uma espécie de imunidade
ao redor do detetive como se ele fosse um Deus dotado de onipresença e
onisciência.
As páginas que estão entre a descoberta do assassinato e o momento
da solução do mesmo até a apresentação do culpado, são o momento de
aprendizado lento, não só para o leitor e para o narrador (quando esse não é o
detetive), mas para todos os personagens que compõem a trama, pois nelas
são examinados indício por indício, pista por pista, mostrando um tipo de
estrutura escrita de maneira geométrica, dedutiva, lógica, como se uma pessoa
estivesse ensinando, para leigos, como cortar uma carne sem desperdício, por
exemplo. Esse papel cabe ao detetive, uma espécie de guia, já que ele tem a
virtude e os poderes de resolver o mistério que envolve o assassinato. Um
detetive que nunca é questionado, sem defeitos ou máculas aparentes, um ser
solitário, incorruptível, racional, cuja função é devolver a ordem perdida.
Como o autor une uma história a outra? A primeira que corresponde à
realidade evocada, aos acontecimentos que podem acontecer de maneira
87

semelhante em nossas vidas, ao realismo que apresenta apenas os efeitos do


real sem se preocupar com as críticas sociais; com a segunda que corresponde
ao livro e ao relato em si e mais as técnicas usadas pelo autor para compor a
estrutura narrativa. Essa junção só é possível porque a primeira história, a do
crime, é a história da ausência, cuja característica é não aparecer no livro, pois
o narrador não conta, de modo direto, o que acontece com os personagens que
estão implicados na história, necessitando de outro, ou dele mesmo, para
contar, na segunda história, as palavras e os fatos observados:

El status de La segunda es, lo hemos visto, notoriamente exagerado:


es una historia que no tiene importancia alguna en sí misma, que
sirve solamente de mediadora entre el lector y la historia del crimen.
Los teóricos de la novela policial han estado siempre de acuerdo en
que el estilo, en este tipo de literatura, debe ser perfectamente
transparente, inexistente; la única exigencia a la cual obedece es la
de ser simple, claro, directo. (TODOROV apud LINK, 2003, p.66-67)

Neste ponto, existe uma diferença no romance escrito por Bolaño, que
está preocupado em mostrar a cumplicidade estabelecida entre território e
crime, onde aparece um cruzamento de informações e indícios que são
comuns dentro de uma sociedade anômica envolta pela nuvem capitalista.
Poderia dizer que esta é uma das características do romance infrapolicial, que
será visto mais adiante. Roberto Bolaño não conta uma segunda história,
sempre conta a primeira e a reforça quando apresenta múltiplos casos de
mulheres assassinadas. Dentro dessa estrutura, a história ausente (a dos
crimes) é ou foi entendida como real e a segunda, no caso as segundas (que
não passam nem de perto pela investigação) têm um peso ora menor, ora
equivalente, poderia dizer, dependendo do relato, mais ou menos significantes.
Ora a presença, ora a ausência explicam a existência das duas na
continuidade do relato. Um relato incompleto, pois a memória do texto está
dentro de um emaranhado, dentro de vários nós de dados impossíveis e
improváveis que não se desfazem.
Em La parte de los crímenes, a ausência, as descrições dos crimes,
estão presentes nos territórios periféricos, nos desertos, nos lixões, nos
terrenos baldios e também servem como um aspecto a mais na composição
estrutural do relato infrapolicial, pois existe uma explicação do narrador sobre o
fato acontecido, que se dá através de descrições e jogos temporais, e o teor
88

das informações que chegam é determinado pelo modo de como os fatos são
apresentados, nesse caso, uma apresentação fria, crua, cruel e muito violenta,
na qual somente sobrevive a narração como força dinâmica em movimento
com a finalidade de denúncia. Transcreve-se para exemplificar essa
característica:

El dieciséis de noviembre se encontró el cadáver de otra mujer en los


terrenos traseros de la maquiladora Kusai, en la colonia San
Bartolomé. La víctima, según las primeras averiguaciones, tenía entre
dieciocho y veintidós años y la causa de la muerte, según el informe
forense, fue asfixia debida a estrangulamiento. El cuerpo estaba
totalmente desnudo y su ropa se hallaba a cinco metros de distancia,
escondida entre los matorrales. De todas formas, no se encontró toda
la ropa sino sólo un pantalón tipo malla, de color negro, y unas bragas
rojas. Dos días después el cuerpo fue identificado por sus padres
como el de Rosario Marquina, de diecinueve años, desaparecida el
día doce de noviembre cuando fue a bailar al salón Montana, en la
avenida Carranza, no lejos de la colonia Veracruz, donde vivían. Se
da la casualidad de que tanto la víctima como sus padres trabajaban,
precisamente, en la maquiladora Kusai. Según los forenses, antes de
morir la víctima fue violada numerosas veces. (BOLAÑO, 2013, p.
753)

A primeira história é sempre bem marcada e a injustiça, retratada com


intensidade, se reflete nos dados que não tem um centro de ação, nos atos e
acontecimentos sem raízes e que acabam como se fossem assuntos
corriqueiros dentro da trama. A segunda história não pode se aliar à primeira,
pois não existe um detetive que vai desvendar o enigma; o que acaba
acontecendo é que eles passam para o âmbito do espetáculo, quando da
aparição da personagem Florita Almada, a vidente que faz contato com as
mortas através de um programa televisivo e tenta dar as respostas que
comporiam o quebra-cabeça.
No romance policial clássico, a segunda história aparece como o lugar
no qual todos os procedimentos são justificados e naturalizados, dando a eles
um ar natural. No caso do corpus analisado, a inexistência da segunda história
se dá pelo fato de como explicar a barbárie exacerbada, que se repete
exaustivamente, através de um enigma? Pela quantidade de mortas seria
necessário apresentar uma solução para cada um dos casos e, só assim,
através dessa estratégia, poderia ser devolvida a ordem, mas isso não
acontece. Essa possibilidade é tão remota quanto determinar um detetive único
para investigar todos os casos de assassinatos.
89

Antes de passar à análise do detetive é importante trazer uma reflexão


feita por um dos personagens do capítulo La parte de Fate. Essa reflexão surge
de uma conversa entre personagens, mostrando uma pista do que virá no
próximo capítulo, La parte de los crímines. A conversa é sobre a prisão de um
assassino em série e que mostrará o processo de evolução da sociedade e de
uma das teorias ou formas de retratar o romance policial. Diz o personagem:

En el siglo XIX, a mediados o a finales del siglo XIX, dijo el tipo


canoso, la sociedad acostumbraba a colar la muerte por el filtro de las
palabras. Si uno lee las cónicas de esa época se diría que casi no
había hechos delictivos o que un asesinato era capaz de
conmocionar a todo un país. No queríamos tener a la muerte en casa,
en nuestros sueños y fantasías, sin embargo es un hecho que se
sometían crímenes terribles, descuartizamientos, violaciones de todo
tipo, e incluso asesinato en serie. Por supuesto, la mayoría de los
asesinos en serie no eran capturados jamás, fíjese si no en el caso
más famoso de la época. Nadie supo quién era Jack el Destripador.
Todo pasaba por el filtro de las palabras, convenientemente
adecuado a nuestro miedo. ¿Qué hace un niño cuando tiene
miedo? Cierra los ojos. ¿Qué hace un niño al que van a violar y luego
a matar? Cierra los ojos. Y también grita, pero primero cierra los ojos.
Las palabras servían para ese fin. Y es curioso, pues todos los
arquetipos de la locura y la crueldad humana no han sido
inventados por los hombres de esta época sino por nuestros
antepasados. […] Usted dirá: todo cambia. Por supuesto, todo
cambia, pero los arquetipos del crimen no cambian, de la misma
manera que nuestra naturaleza tampoco cambia. Una explicación
plausible es que la sociedad, en aquella época, era pequeña. Estoy
hablando del siglo XIX, del siglo XVIII, del XVII. Claro, era pequeña.
La mayoría de los seres humanos estaban en los extramuros de la
sociedad. […] Durante la Comuna de 1871 murieron asesinadas miles
de personas y nadie derramó una lágrima por ellas. Por esa misma
fecha un afilador de cuchillos mató a una mujer e a su anciana madre
[…] y luego fue abatido por la policía. La noticia no sólo recorrió los
periódicos de Francia sino que también fue reseñada en otros
periódicos de Europa e incluso apareció una nota en el Examiner de
Nueva York. Respuesta: los muertos de la Comuna no pertenecían a
la sociedad, […] mientras que las mujeres muertas en una capital de
provincia francesa, si pertenecía, es decir, lo que a ellas les sucediera
era escribible, era legible. Aun así, las palabras solía ejercitarse más
en el arte de esconder que en el arte de desvelar. O tal vez
develaban algo. ¿Qué?, le confieso que lo ignoro. (BOLAÑO, 2013, p.
30
337- 339)

Surge um jogo temporal proposital, que faz parte da poética infrapolicial


de Roberto Bolaño, quando coloca La parte de Fate (onde aparece a citação
acima) antes de La parte de los crímines. Bolaño deixa o leitor intrigado e o
desafia nesse jogo de buscar ou não uma lógica entre as partes de sua obra.

30
Os trechos em negrito destacados por mim para enfatizar o argumento apresentado
90

Neste capítulo aparece uma jornalista, (que substitui outro que tinha sido
assassinado, supostamente Sergio González Rodríguez) que vai entrevistar o
suposto assassino das mulheres, Klaus Haas.
Quando existe essa divisão entre crimes que podem ser contados e
outros não, conferindo à palavra o poder de narrar, essa já é uma pista para o
leitor, que encontrará no capítulo seguinte, as centenas de mulheres
assassinadas na cidade de Santa Teresa. Estes assassinatos, quando
contados, apresentados através da palavra, narrados à exaustão, são
colocados assim de modo proposital, como uma forma de denunciar a violência
que já vem desde séculos anteriores e que apenas se repete e aparece cada
vez mais descrita, porque os corpos das mortas, no caso da obra, resolvem
ultrapassar a fronteira física e simbólica dos extramuros da sociedade e são
despejados em lugares inóspitos, mostrando que o cemitério atual não é mais
um lugar privado, mas a própria cidade.

2.2.1.2 - O detetive: dedução e racionalidade

O detetive do romance policial clássico é apresentado como um ser


soberano, objetivo, que não sai do seu espaço de trabalho ordenado e
higiênico (escritório ou laboratório), pois nesses espaços ele se sente
protegido, não recebe ameaças e não perde o controle. A partir desse lugar,
ele consegue desvendar o caso, sem precisar observar diretamente o local
onde algo aconteceu (um crime, um roubo, etc.) Ele consegue coordenar os
pensamentos e chegar a conclusões sobre osacontecimentos a partir da leitura
dos jornais ou apenas com o seu poder de reflexão dedutiva, capaz de
reconstruir os fatos ao redor do crime ou do roubo. Esse tipo de detetive não se
mistura com os policiais ou investigadores oficiais, ele trabalha por conta
própria e, na maioria das vezes, auxilia a polícia na conclusão do caso.
Esses detetives possuem características singulares, que são perecidas
com a de um ourives ou de um médico cirurgião, tal a precisão com que analisa
e cuida dos casos investigados. Primeiro recorrem à observação, lendo tudo
que está ao redor, prestando atenção a todos os detalhes (nas expressões e
nos pequenos gestos das pessoas), depois passam para o momento de
reflexão (não usa nada que seja subjetivo), testa várias hipóteses, refletindo
91

sobre o caso que está investigando. Para conseguir levar isso tudo adiante ele
faz uso de técnicas científicas como a física, a química, geologia, etc.
O método dedutivo parte do geral para o particular, do macro para o
micro, utilizando os princípios percebidos como verdadeiros e indiscutíveis,
permitindo a quem investiga chegar a uma conclusão puramente formal e
lógica (a lógica, para Aristóteles é a mãe da dedução). O método dedutivo
também aparece no pensamento racional dos enciclopedistas.
Geralmente, os detetives são celibatários, solitários, sem tempo para
romances; aliás, esse tema, o do amor, as intrigas amorosas envolvendo
detetives, não aparece nesse tipo de romance, para não desviar a atenção do
leitor da questão principal, o enigma que deve ser desvendado. O enigma se
encontra em uma esfera intelectual e o amor desviaria o foco do detetive que
não pode misturar razão com emoção. A fala de Watson, no livro, As aventuras
de Sherlock Holmes, ilustra a impossibilidade de um detetive ter um
relacionamento amoroso:

Ele era, em minha opinião, a máquina mais perfeita de raciocínio e


observação que o mundo jamais viu - mas, como amante, ter-se-ia
colocado em posição falsa. Nunca se referia às paixões sem zombar
e escarnecer delas. Eram admiráveis para o observador, excelentes
para arrancar o véu que encobre as motivações e as ações dos
homens. Mas para um raciocinador treinado admitir essas intrusões
em seu temperamento delicado e precisamente ajustado seria o
mesmo que introduzir um fator perturbador que poderia pôr em
31
dúvida todas as suas conclusões racionais.

A função do detetive é elucidar os incidentes que giram em torno do


fato acontecido e não perder tempo em construir um relacionamento amoroso.
Para Rainer Rochilitz, “o detetive é um moderno Quixote cuja certeza subjetiva
não tem nada de demoníaco, não contém nenhuma utopia”. 32
O detetive acaba sendo um mediador entre duas possibilidades de
mundo, o breve mundo onde acontece o crime e o mundo que é restaurado,
aquele que volta à ordem primeira, depois que ele desvenda os fatos. Ele não é

31
Fragmento retirado do livro virtual: Sherlock Holmes: edição completa do maior detetive de
todos os tempos. Disponível em:
http://cabana-on.com/Ler/wp-content/uploads/2013/07/Sherlock-Holmes-Arthur-Conan-Doyle-
Obra-Completa.pdf. Acesso em: 18.10.2016
32
RIEDEL, Dirce Côrtes. Reflexões sobre o romance policial. Revista Matraga, nº4-5. UFRJ,
1988, p.16. Disponível em:
http://www.pgletras.uerj.br/matraga/matraga04_05/matraga4e5a02.pdf
Acesso: 20.09.2016
92

um homem qualquer, pois através de um método racional de investigação,


desvenda não só o caso, como apresenta os aspectos psicológicos dos
envolvidos. Ele joga com o leitor, se mostrando mais astuto que todos. Se não
houver esse jogo, com a finalidade de entretenimento, tal romance não tem
porque existir, ele conquista muito leitores exatamente por causa dessa
característica. Não é à toa que nos dois exemplos que serão apresentados, o
primeiro fragmento de Assassinatos na Rua Morgue e o segundo de Um estudo
em vermelho, os narradores convidam o leitor para dentro da narrativa:

A narrativa que se segue provavelmente se tornará mais clara para o


leitor, se tomar em consideração os comentários e as afirmações que
acabo de expor. (POE, 2011, p.41)
O leitor pode me tomar por um incorrigível abelhudo quando
confesso o quanto esse homem estimulava minha curiosidade, e
quantas vezes tentei penetrar a reticência que ele mostrava com
relação a tudo. Antes de emitir um julgamento, porém, que se lembre
o quanto minha vida era sem objetivo e quão pouco havia para me
prender a atenção. Meu estado de saúde impedia que eu me
aventurasse fora de casa, a menos que o tempo estivesse
excepcionalmente propício, e eu não tinha nenhum amigo que me
visitasse e rompesse a monotonia de meu dia a dia. Saudei com
avidez o pequeno mistério que envolvia meu companheiro e passava
boa parte do meu tempo tentando desvendá-lo. (DOYLE, 2013, p. 19)
33

Os dois exemplos apresentados, além de trazer o leitor para dentro da


narrativa como cúmplice, mesmo que esse não alcance a perspicácia do
detetive, retratam o momento em que os narradores inserem o detetive na
trama. No segundo fragmento, quem descreve e chama o leitor é o Dr. John H.
Watson, aquele que será o ajudante de Sherlock Holmes, um ex-membro do
Departamento Médico do Exército, aspecto que reforça o uso da ciência aliado
à elucidação de casos.
Os detetives, dos romances policiais clássicos, se tornam uma espécie
de herói, restituidor da ordem e, antes do leitor, têm a mente pronta para
deduzir os fatos que só ele vê e sabe, chegando aos indícios, às pistas, aos
sinais que o ajudarão na conclusão intelectual do crime. É como se essas
características fossem encaradas, por ele mesmo, como uma espécie de arte.
Esses indícios estão presentes na narrativa desde o início, mas devem
surpreender o leitor no momento do seu desenlace, quando, finalmente, o
culpado será identificado e mais uma vez o detetive dá sentido à realidade
33
Palavras em negrito destacadas por mim.
93

brutal que acontece em torno dos fatos. Em uma conversa sua com Watson,
Holmes revela:

- Não, não é egoísmo, nem vaidade - disse, respondendo, como era


seu costume, meus pensamentos e não minhas palavras. - Se exijo
justiça para com minha arte, é porque é uma coisa impessoal, uma
coisa fora de mim mesmo. O crime é comum. A lógica é rara.
Portanto, deve enfatizar a lógica e não o crime. Você rebaixou o que
34
deveria ser uma série de conferências para uma série de contos.

Na criação desse tipo de detetives existe muito dos conceitos da


época, principalmente das teorias positivistas e dos conceitos de sociologia
propostos por Émile Durkheim que estava preocupado com a forma como as
sociedades poderiam manter sua integridade e coerência dentro de uma era
moderna que mudava a maneira de pensar e começava a romper laços
arraigados, alterando as relações familiares, religiosas e de trabalho.
Naquele momento, os fatos sociais começam a ser tratados como
―coisas‖, objetos passíveis de estudo e análise. O método hipotético-dedutivo
(possível resposta ou solução para um problema), utilizado na ciência social
por Durkheim, também acaba servindo como base para escritores, como,
Conan Doyle, construir o perfil e as características de seus detetives. Os dois,
sociólogo e escritor, são contemporâneos, vivenciaram o mesmo momento
histórico; o primeiro nasceu em 1858 e o segundo em 1859. Para confirmar o
pensamento do sociólogo apresenta-se o fragmento do capítulo II do seu livro
As regras do método sociológico, onde ele escreve:

Por isso, atualmente, a sociologia tem tratado, mais ou menos


exclusivamente, não de coisas, mas de conceitos. Comte, é certo,
proclamou que os fenômenos sociais são fatos naturais, submetidos
a leis naturais. Reconheceu-lhes, assim, o caráter de coisas, visto
que na natureza só há coisas. Mas quando, ao sair destas
generalidades filosóficas, tenta aplicar seu princípio e extrair dele a
ciência que nele estava contida, são ideias que toma como objeto de
estudo. Com efeito, a matéria principal da sua sociologia é o
progresso da humanidade no tempo. Parte da ideia de que há uma
evolução contínua do gênero humano, a qual consiste numa
realização sempre mais completa da natureza humana; e o problema
que ele trata é o de encontrar a ordem dessa evolução. (DURKHEIM,
2001, p.45)

34
Fragmento retirado do livro virtual: Sherlock Holmes: edição completa do maior detetive de
todos os tempos.
Disponível em: http://cabana-on.com/Ler/wp-content/uploads/2013/07/Sherlock-Holmes-Arthur-
Conan-Doyle-Obra-Completa.pdf.
Acesso em: 18.10.2016
94

Essa observação não fica só no âmbito da criação e caracterização do


detetive, afeta também a criação da forma narrativa do romance policial
clássico, onde os escritores demonstram-se menos preocupados com conteúdo
e mais com a forma, o molde, a fôrma, as regras e as estratégias de montagem
da estrutura do romance, que vai modificando. À medida que a sociedade se
transforma (principalmente com o aumento da população e das novas
tecnologias) a literatura também sente necessidade de alteração e dentro
dessa necessidade de mudança, o romance policial acrescentará à forma
clássica, outros ingredientes que culminaram na novela negra, outra variante
do romance policial.
Detetives como Sherlock Holmes, Hercule Poirot e Auguste Dupin,
entre outros, são arquétipos da perfeição, da racionalidade, da higienização
social, dos jogos científicos e psicológicos. É muito interessante a
apresentação do detetive feita por Walter Benjamin, no eu estudo Detective y
régimen de la sospecha. Aponta Benjamin:

En los tiempos del terror, cuando cada quisque tenía algo de


conspirador, cualquiera llegaba a estar en situación de jugar al
detective. Para lo cual proporciona el vagabundeo la mejor de las
expectativas. "El observador, dice Baudelaire, es un príncipe que
disfruta por doquier de su incógnito". Y si el "flâneur" llega de este
modo a ser un detective a su pesar, se trata, sin embargo, de algo
que socialmente le pega muy bien. Legitima su paseo ocioso. Su
indolencia es sólo aparente. Tras ella se oculta una vigilancia que no
pierde de vista al malhechor. Y así es como el detective ve abrirse a
su sensibilidad campos bastante anchurosos. Conforma modos del
comportamiento tal y como convienen al "tiempo" de la gran ciudad.
Coge las cosas al vuelo; y se sueña cercano al artista. Todo el mundo
alaba el lápiz veloz del dibujante. (BENJAMIN apud LINK, 2003, p.
20)

Diferente dos outros, Sherlock Holmes é construído como um


observador cuidadoso e por isso apresenta deduções lógicas, não usa de
adivinhações, mas do raciocínio e muitas vezes precisa visitar o local do crime
com a finalidade de procurar indícios tais como impressões digitais, objetos
fora do lugar, pegadas, fragmentos de roupas e outros objetos, etc. Neste
aspecto ele é muito diferente de Dupin que fica preso ao mundo das ideias e
das deduções puras. Não é à toa que um dos capítulos de Um estudo em
95

vermelho se intitula A ciência da dedução e nesse capítulo o próprio Holmes


fala para Watson sobre a diferença entre os dois.

Sherlock Holmes levantou-se e acendeu seu cachimbo. ―Sem dúvida


acha que está me elogiando ao me comparar com Dupin‖, observou.
―Em minha opinião, porém, Dupin era um sujeito muito inferior.
Aquele truque de se intrometer nos pensamentos com um comentário
oportuno depois de um quarto de hora de silêncio é por demais
aparatoso e superficial. Ele tinha algum talento analítico, sem dúvida;
mas não era de maneira alguma o fenômeno que Poe parecia
imaginar.‖ (DOYLE, 2013, p. 27)

Dupin e Holmes aparecem no rol de modelos de detetive mais


imitados, reescritos e reinventados, talvez por causa da tradução massiva das
obras de Poe e Doyle; não só inspiraram autores europeus, como também os
americanos. Na América Latina, no Chile, surge Alberto Edwards (advogado e
político) um dos primeiros a escrever dentro desse gênero. O autor apresenta o
detetive Román Calvo (entre 1912 -1920), o personagem aparece nos relatos
da Revista Pacifico Magazine e depois nos volumes de contos La catástrofe de
La Punta Del Diablo e Ramón Calvo El Sherlock Holmes Chileno.
No Brasil, o correspondente é a publicação, em forma de folhetim, de O
Mysterio, publicado em 1920, no jornal carioca A folha. Romance escrito por
quatro escritores: JJ. Medeiros e Albuquerque, Coelho Neto, Afrânio Peixoto e
Viriato Corrêa, cuja trama tem como foco principal o assassino Pedro
Albergaria, cuja finalidade de vida é se vingar de sua condição de pobreza,
matando o banqueiro Sanchez Lobo. Leitor de romances policiais, o jovem
planeja o crime perfeito para que não seja descoberto.
A figura do detetive, nessa obra, está encarnada em um investigador
da polícia, Major Mello Bandeira que reproduz o modo investigativo de Sherlock
Holmes, aplicando o método científico-tecnológico de investigação; por agir
dessa maneira ele recebe a alcunha de ―Sherlock da Cidade‖. Mas esse
detetive, diferente dos outros, não é levado muito a sério, pois na parte do
romance escrita por Coelho Neto, a mais humorística e irônica, ele sofrerá uma
crítica, não só ele como toda a instituição policial que caem no descrédito.
Depois, em 1932, JJ. Medeiros e Albuquerque escreve o livro, Se eu
fosse Sherlock Homes, inspirado no personagem de Conan Doyle.Nessa
variante do romance, a investigação está focada em apenas um sujeito, o
detetive, o único apropriado para desvendar o mistério. Embora tenha como
96

antagonista o criminoso, eles só se encontraram no final da narrativa quando a


sanção é empregada e a partir do esclarecimento do enigma. O criminoso é
entregue à instituição que o julgará e o punirá da maneira mais adequada e de
acordo com as leis do lugar. Assim a sociedade reconhece o valor do detetive e
o aponta como aquele que foi capaz de restabelecer a paz.
Portanto, além de apresentar pequenas sugestões de buscas que
culminarão na revelação final do enigma, em um romance policial clássico, o
escritor se baseia em um conjunto de perguntas que o ajudará a preparar a
estrutura de escrita pretendida; no caso desse gênero existem algumas
perguntas que orientam o autor e que servem de base para sua escrita, como
por exemplo: O que aconteceu? Como aconteceu? Como foi feito? Quem fez?
Por que fez? Perguntas que justificam a presença de um detetive e que serão
respondidas, por ele, no final da trama. Com isso, ele vira o herói que descobre
e prende o criminoso e restabelece a ordem, o salvador da pátria.
A estrutura do romance policial clássico é regressiva, entrega as
informações aos poucos, mas, como qualquer outro romance, tem o objetivo de
investigar e penetrar nos dramas humanos e, através deles, descobrir algumas
das contradições essenciais da complexa realidade social. Essa variação do
romance, afinal e no final, busca demonstrar, através da razão inquestionável,
a impossibilidade de um crime perfeito, um crime sem punição, pois a ordem
social deve ser restabelecida e quem tem capacidade para fazer isso é o
detetive.

2.2.2 – Novela Negra

O romance policial clássico passa pelo processo de mudança a partir


da segunda década do século XX, depois que os Estados Unidos viveram a
crise do crack da bolsa de valores, em 1929. Com o crescimento das máfias e
da corrupção, surgiu o gênero romance negro, novela negra, inspirado a partir
das populares revistas Pulps. Porém, esse tipo de gênero foi considerado um
gênero literário menor, um subgênero e menosprezado por muitos críticos, pois
estava em constante estado de urgência e exigência massiva de leitores. O
público leitor devorava aquele tipo de texto e por causa disso, editores
97

demandavam uma quantidade de relatos aos escritores para serem publicados


em série.
Lógico que a qualidade de muitos não se mantinha, portanto existia de
tudo: falta de rigor, mediocridade, descuido, clicheria e caricaturas. O que
importava mesmo não era a qualidade e sim a venda do gênero como produto
que seria consumido. Sem dúvida, todos esses aspectos fizeram com que os
críticos denominassem aquele produto como subgênero. Mesmo assim, quanto
mais saía publicado, ganhava mais leitores, pois as primeiras histórias do
gênero eram baseadas, segundo Mempo Giardinelli, na literatura gótica ou de
horror (Mary Shelley, Bram Stoker, etc.) ,na de aventuras (Herman Melville,
Joseph Conrad, etc.) e nas narrativas das conquistas do chamado Far West,
norte-americano (Francis Bret Harte, Ambrose Bierce, entre outros). Nas
narrativas de western já se encontrava o elemento que seria primordial dentro
da novela negra: o crime, que vai aparecer por causa do incremento gradual e
inevitável do capitalismo, trazendo como consequência a delinquência. Afirma
Giardinelli:

[...] Far West implica hablar de sus pioneros y de sus temáticas


sociales comunes: realismo a ultranza, cierto naturalismo,
descripciones costumbristas, acción rampante, heroísmo individual,
machismo, dinero, poder, corrupción, etc. Y un estilo también
identificable: prosa llana, seca, dura. Dada su inclusión dentro de las
corrientes del realismo literario, es evidente que también influenció a
la literatura latinoamericana moderna […] Temática y estilo son
comunes a ambos géneros (del Oeste y policial negro) porque ambos
se inscriben dentro del realismo crítico y ambos corresponden a una
misma sociedad que, aunque cambió mucho en algo menos de un
siglo (entre 1850 y 1920, aproximadamente), de todas formas
mantuvo su esencia y en su literatura se reconoce esa continuidad.
(2013, p. 41)

Desses três gêneros literários populares, a novela negra retirou quase


todos os elementos de composição que a caracterizam: o suspense, o medo
que provoca ansiedade no leitor, o ritmo narrativo, o ritmo da ação, a violência
e o heroísmo individual. A partir desses elementos, Samuel Dashiell Hammett e
Raymond Chandler, e outros autores, compuseram a base estrutural narrativa
das suas novelas negras, que contavam também com a luta do bem contra o
mal; a intriga argumentativa; a ambição; a corrupção; a crítica social; o poder; a
glória e o dinheiro como fatores capazes de modificar o destino dos seres
humanos. (GIARDINELLI, 2013)
98

Samuel Dashiell Hammett é considerado o precursor desse gênero,


também conhecido como hard-boiled (histórias violentas, com estilo seco e
frio), pois, a partir dele, o romance policial deixa de ser apenas um jogo. Sua
obra Cosecha Roja (Red Harvest), é considerada aquele que funda o gênero
narrativo novela negra; ele ainda escreveu outras obras: El halcón maltés (The
Maltese Falcon) e La llave de cristal (The Glass Key). O que faz das obras
desse autor únicas no gênero é sua originalidade e autenticidade, já que
Dashiell Hammett foi, ele mesmo, detetive da Agência de Detetives de
Pinkerton; talvez tenha vindo dessa sua função a facilidade de narrar, pois
partiu do real, de fatos e de pessoas que realmente acompanhou enquanto
detetive e acabou escrevendo regularmente para a revista The Black Mask. Por
terem se tornado tão populares, seus livros foram adaptados para as telas de
cinema, alcançando um público maior.
A novela negra, ou a literatura policial negra assim denominada por
Mempo Giardinelli, no prólogo do livro LatinAmerican Detective Fiction Writers:
A Bio-bibliographical Sourcebook, deve ser compreendida desde o ponto de
vista de Marcel Duhamel. A origem do nome, novela negra, se deve ao francês
criador, em 1945, da Serie Noire, nova forma de ficção sobre crimes, dentro de
outra realidade, a rua, cujos personagens transitavam ao lado de gangsteres,
mafiosos e assassinos. Os livros tinham uma capa preta com a borda amarela.
Segundo a definição de Javier Coma

Se trata de una literatura narrativa, con origen en los Estados Unidos


durante los años ‗20 y con desarrollo típico y primordialmente
norteamericano, ceñida al enfoque realista y sociopolítico de la
contemporánea temática del crimen, encausada paulatinamente
como un género determinado, y practicada mayoritariamente por
35
especialistas .

Giardinelli continua afirmando que a literatura policial negra produziu


uma mudança no tratamento do crime, especialmente porque reconhece nele
motivos e causas vinculadas com a realidade em que vivem os leitores. A
novela negra vincula o crime com a sociedade onde ele acontece, posto que

35
Latin American Detective Fiction Writers: A Bio-bibliographical Sourcebook. Darrel B.
Lockhart, editor. Prólogo/Introducción por Mempo Giardinelli. La novela negra en La America
Hispana.
Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/153934394/La-Novela-Negra-en-La-America-Hispana.
Acesso em: 15.06.2014
99

toda sociedade, e por consequência, toda literatura proposta a partir desse


gênero, apresenta o crime como um de seus protagonistas. O delito não é, em
realidade, um problema exato. Não existe crime gratuito, como não existe
ausência de causas, sejam elas individuais ou sociais, do mesmo modo que
não existe crime que seja perfeito. Cada delito é produto de relações (nesse
caso, ruins) entre os seres humanos. Também não existe um modelo de
criminoso, como os apresentados nos romances do século XIX, o que existe
são circunstâncias que levam qualquer pessoa a cometer um crime. Sempre
por trás de um crime existe a manifestação do poder, ainda que seja terminar
com a vida dos outros. Completa Giardinelli:

Y es que crimen, poder y dinero son como El miedo y La culpa: no se


puede vivir sin ellos. Súmesele ambición y machismo, y la
sobrestimación del arrojo personal, y se tendrá una lista bastante
completa de los valores que ―humanizaron‖ la novelística policial a
partir de Hammett y se verá qué tan estructurales son.
(GIARDINELLI, 2013, p. 84)

Com esse gênero se instala também a possibilidade de uma estética


diferente, na qual a realidade não fica por baixo e nem supera a ficção. A ficção
é verossímil, pois a realidade se conta como ficção. Por isso, essa narrativa
resulta tão questionadora como subversiva, pois tem relação com o tempo em
que se vive e com o mundo no qual as pessoas sabem que saem às ruas, mas
não sabem se voltam. A verossimilhança outorga ao texto uma credibilidade
que o legitima, garantindo sua projeção.
Muitos autores, que são reconhecidos como fundadores da novela
negra, antes foram escritores de novelas westerns e também escreveram para
a revista citada acima: Frank Gruber; Willian Riley Burnett e Horace McCoy,
este último um dos mais importantes escritores do gênero (GIARDINELLI,
2013, p. 43-44). Suas obras foram muito reconhecidas graças a um veículo
muito original, difundido amplamente por todo os Estados Unidos, as já
mencionadas pulp magazines, uma das novidades que causaram furor no país
durante os anos de 1920, junto com outros veículos ligados aàcultura de
massa, com o rádio e o cinema; por isso os textos, publicados nessas revistas,
eram considerados subliteratura, pois estavam ligados ao consumo massivo, à
popularidade e à enorme produção comercial, o que não quer dizer que não
100

havia textos com valor literário. Essas colocações são sempre feitas em
comparação ao que era entendido e definido como literatura pelos críticos.
De acordo com sua origem temporal e espacial, no seu inicio, a novela
negra costuma trazer como protagonistas gângster e detetives que se situavam
no contexto da Grande Depressão Americana e da lei seca, os quais
transitavam por um ambiente urbano, geralmente obscuro e sórdido, onde
reinava a violência.
A novela negra é uma espécie de continuidade do gênero western que
traz uma transformação, usa bases dos romances policiais clássicos, mas
deixando de ser apenas uma narrativa de entretenimento mediante enigmas
dentro de um espaço fechado e salta para uma novelística que transcende e
chega ao mundo externo, às ruas das cidades, ao mundo onde se vive mais
perto do real, cuja violência já não está separada do sistema, pois as relações
humanas, em si, já conformam uma forma de violência, uma expressão de
poder e submissão que implicam em violência. Portanto a cidade, nesse tipo
de romance, aparece mais sombria e também mais violenta, além de constituir
um espaço importante para a trama.
Os primeiros trechos de Cosecha Roja apresentam uma cidade que já
tem um apelido, Poisonville, que ajuda a entender como era o clima que
envolvia a cidade, a vila do veneno, algo lúgubre, sem identidade, povoada de
personagens com aparência degradante:

Fui al hotel Great Western, dejé allí las maletas, y me fui a dar un
vistazo a la ciudad. La encontré fea. Los edificios hacían gala de una
arquitectura afectada. Quizá había conocido tiempos mejores. Los
altos hornos, con sus chimeneas de ladrillo levantadas al sur frente a
una sombría montaña, habían impregnado la antigua pomposidad de
una capa de suciedad ocre y de un humo espeso. En consecuencia,
sus cuarenta mil habitantes vivían en una ciudad fea, hundida en un
valle limitado por dos insípidos montes; las minas contribuían en gran
manera a la fealdad general. Perdido entre las nubes negras que
salían de las chimeneas de los altos hornos, se veía el cielo. El primer
guardia que vi llevaba varios días sin afeitarse. El segundo había
perdido dos botones de su poco limpio uniforme. El tercero ordenaba
el tráfico en el cruce más importante de la ciudad, el de Broadway y
Union Street, con un cigarrillo en la boca. En ese momento dejé de
36
preocuparme por ellos. (HAMMETT, p.3)

36
Trecho retirado do livro digital. HAMMETT, Dashiell. Cosecha Roja. Disponível em:
http://www.edu.mec.gub.uy/biblioteca_digital/libros/h/Hammett,%20Dashiell%20-
%20Cosecha%20Roja.pdf. Acesso em: 11.10.2016
101

A instauração massiva da novela negra acontece nos anos de 1940, com a


inclusão da psicologia criminal, momento também em que há uma combinação entre
ação e suspense, quando os autores conseguem falar de conflitos essenciais do
tempo em que estavam inseridos, explorando em seus romances o substrato social
das crises: econômica, social, moral e política, que talvez não pudesse ser narrado por
outros gêneros literários, não tão ágeis e flexíveis como este.
Outro autor de destaque dentro da novela negra e que seguiu os
passos de Hammett foi Raymond Chandler. Ele não só escreveu ficção, como
também realizou estudos sobre esse romance, cuja finalidade era de obter,
para esse tipo de literatura, o reconhecimento devido nos meios literários.
Chandler publicou, tardiamente, seu primeiro conto na Revista Black Mask, aos
45 anos e alcançou respeito e fama graças a sete grandes de suas novelas
negras que se tornaram clássicas, protagonizadas por um detetive-filósofo
excepcional: Philip Marlowe. Seu primeiro romance foi El sueño eterno (The big
sleep) escrito em 1939.
Em seu estudo sobre o gênero, El simple arte de matar, Chandler
delineou os limites da novela negra. Para ele o realismo exigia muito talento,
conhecimento e consciência, somente Hammett tinha tudo isso e foi assim que
conseguiu demonstrar que o relato de detetives podia ser uma forma de
literatura importante. Escreveu Chandler em seu estudo:

Es fácil abusar del estilo realista: por prisa, por falta de conciencia,
por incapacidad para franquear el abismo que se abre entre lo que a
un escritor le gustaría poder decir y lo que en verdad sabe decir. Es
fácil falsificarlo; la brutalidad no es fuerza, la ligereza no es ingenio, y
esa manera de escribir nerviosa, al-borde-de-la-silla, puede resultar
tan aburrida como la manera vulgar; los enredos con las rubias
promiscuas pueden ser muy fatigosos cuando los describe un joven
gotoso que no tiene en la cabeza otro objetivo que describir un
enredo con rubias promiscuas. Y se ha hecho tanto de esto, que
cuando un personaje de una narración de detectives dice Yeah, el
37
autor es automáticamente un imitador de Hammett.

Além disso, ele afirmava que a novela negra não era um mero jogo de
dedução, mas uma maneira crua, brutal de contemplar a sociedade e seu

37
Trecho retirado do fragmento digital: CHANDLER, Raymond. El simple arte de matar.
Disponível em:
http://mimosa.pntic.mec.es/~sferna18/EJERCICIOS/2010-11/El_simple_arte_de_matar.pdf
Acesso em: 17.10.2016
102

tempo. Anexados a esta tese, seguem os apontamentos do autor sobre esse


gênero.38
Violência e dureza, dinheiro e poder, corrupção e crimes, não foram
temas e nem características exclusivas da novela negra, mas se tornaram
ingredientes utilizados por Hammett e Chandler para criar um estilo narrativo e
uma estrutura argumental que definiram as diretrizes da novela negra.
Essa categoria de romance promove a fusão de duas histórias: a
primeira que conta o que de fato ocorreu, e a segunda que explica como o
narrador e o leitor conhecem os fatos. Geralmente se suprime a primeira em
prol da segunda. Aqui, a narração do crime não é anterior ao momento do
relato, pois ele se dá (no caso, o relato) junto com a ação, produzindo um
deslocamento do foco do relato. Antes, ele se situava no processo mental e
lógico para resolver o mistério, obrigando o detetive sempre a olhar para trás;
agora, há uma substituição de retrospectiva que está ligada à prospecção.
O crime, nesse tipo de romance, passa a ser central e reflete a
sociedade, passando a ser o foco, o centro da narrativa, atravessando a
fronteira do como e chegando ao porquê. A sua importância está na forma de
como é narrado e acaba virando também um entretenimento. A novela negra,
nos Estados Unidos, desnuda os vícios e as ambições da sociedade capitalista,
onde o dinheiro e a busca por poder aparecem como os motores das relações
humanas, como sendo o provocador dos crimes, da marginalidade e da
injustiça. Além disso, ela apresenta uma linguagem de estilo realista, nova,
bastante dura e violenta, a linguagem das ruas, coloquial, onde a gíria está
presente. Geralmente é narrada em primeira pessoa, dando um tom maior de
realismo à obra. O detetive costuma ser um desencantado com a vida, solitário,
pobre, um perdedor que atua como justiceiro.
O tempo dos relatos deste romance revela-se linear, direto, consegue-
se saber dos fatos passados através de outros personagens, o narrador
conduz o leitor como se este estivesse assistindo a um filme. Embora no
passado, os diálogos trazem a sensação de presente e a resolução do crime
chega aos poucos. O cenário é, na maioria das vezes, urbano, opressivo,
realista, perigoso, violento e obriga o detetive a sair pela cidade e a misturar-se

38
Ver apontamentos – Anexo VIII (p.246-250)
103

com os diferentes estratos sociais, movendo-se por terrenos que desconhece,


mostrando que a topografia também pode servir como meio à crítica social. As
mansões e os casarões saem de cena e dão lugar à rua suja e becos sem
saída, onde a atmosfera sempre está carregada de fumaça e outros vapores.
A ação, neste tipo de romance, é muito dinâmica e se direciona para o
desfecho do crime, para resolução do mistério, entretanto o interesse gira em
torno de um crime inexplicável, gerado pela violência cotidiana constante e
progressiva.
O gênero narrativo novela negra está escrito de uma maneira que
chega até o leitor que se considera ―culto‖, quanto àquele que não tem
nenhuma pretensão de sê-lo e o lê pelo puro prazer da diversão. Esse tipo de
novela aparece quando a sociedade vive em pleno desenvolvimento industrial
e os centros urbanos crescem, com isso a criminalidade e a ilegalidade
aparecem, juntamente com a institucionalização do corpo policial e jurídico e
todos os aspectos que os rodeiam, tirando de cena o espaço privado e
inserindo o espaço público.
Naquele momento, acaba surgindo uma população leitora que
demanda uma indústria editorial, portanto a novela negra desponta como um
gênero tipicamente urbano, a serviço de uma literatura realista e crítica,
diminuindo a lacuna, até então existente, entre alta cultura (erudita) e cultura
popular (de massas). No seu artigo intitulado La novela negra en La transición
española como fenómeno cultural: una interpretación, Mari Paz Balibrea
assinala que

Géneros tradicionalmente percibidos como populares y de calidad


ínfima, estigmatizados en su propio formato y precio, o en la
proveniencia racial o el poder adquisitivo de sus cultivadores y
aficionados, se han visto reivindicados y exaltados como nuevas
fuentes de calidad artística. (BALIBREA, 2002, p. 113-115)

Em resumo, a novela negra passa a ser um espaço estratégico de


crítica ao status quo. Ainda neste artigo, a autora continua dizendo que a
novela negra possui uma estrutura de indagação que funciona como um
mecanismo de resistência, um espaço de negação do esquecimento, porque
todos os aspectos da trama levam a um empenho para saber o que realmente
aconteceu, mesmo que não se encontre um culpado. Afirma Balibrea:
104

[...] las narrativas ponen las armas detectoras del Estado moderno a
servicio del desvelamiento de la propia criminalidad de ese mismo
Estado y/o de aquellos más beneficiados y respetados por él: político,
hombres de negocios, respetables profesionales, etc. El resultado es
una experiencia lectora muy rica, pues en su fruición se aúnan en
primer término la satisfacción de un deseo de saber que se inaugura
con el planteamiento del misterio –a diferencia de la realidad en la
que pocas veces conocemos las respuestas a nuestras preguntas,
sobre todos si son de naturaleza social o política- ; en segundo
término, una trama de acción y aventura abierta al consumo masivo
[…] la narrativa negra […] en sintonía con un público, que además de
entretenerse, busca claves críticas para navegar una sociedad
conducida del desencanto al paro y a la euforia consumista, sin
detenerse nunca para efectuar una reflexión crítica. (BALIBREA,
2002, p. 117).

Existe, no século XXI, a proliferação desse tipo de narrativa, pois o


mundo continua mudando e esse tipo de romance é um dos que melhor reflete
os desajustes do sistema (nesse caso o sistema que abrande instituições e a
sociedade como um todo). Em Gijón, na Espanha, todos os anos, acontece um
grande encontro: Semana de La Novela Negra, que foi idealizada em 1998 e
dirigida até 2012, pelo escritor Paco Ignacio Taibo II. Nesse evento há várias
categorias de premiação para novos autores39. Um espaço ainda ocupado, em
sua maioria, por homens.

O detetive remunerado

Diferente do romance policial clássico, com o enigma como centro da


narração, que cria um detetive astuto com um amigo que o acompanha e o
ajuda a esclarecer o crime, mostrando a dedução pura, complexa, perfeita e
sem falhas, quase matemática, desafiando o sentido dedutivo do leitor, a
novela negra apresenta o protesto social, enigmas difusos, pois sai às ruas e
se enfrenta com a realidade. O detetive, aqui, será de outro tipo, um ser que se
molda ao momento de recessão pelo qual passava a sociedade norte-
americana, um homem comum que se adapta ao que vai investigar, tentando
ganhar a vida com seu trabalho como detetive. O detetive passa a ser
remunerado pelo seu trabalho. Segundo Raymond Chandler, deve ser um
homem que saiba encarar a tragédia social, que caminhe pela cidade e esteja

39
Site da Semana de La Novela Negra de Gijón: http://www.semananegra.org/index.html
Acesso em:13.10.2016
105

comprometido em buscar as evidências sem se assustar com o que vai


encontrar. Tem que ser o protagonista, um homem completo e comum e ao
mesmo tempo extraordinário que pertence ao tempo e ao mundo em que vive:

Debe ser el mejor hombre de este mundo, y un hombre lo bastante


bueno para cualquier mundo. Su vida privada no me importa mucho;
creo que podría seducir a una duquesa, y estoy muy seguro de que
no tocaría a una virgen. Si es un hombre de honor en una cosa, lo es
en todas las cosas. Es un hombre relativamente pobre, pues de lo
contrario no sería detective. Es un hombre común, pues de lo
contrario no viviría entre gente común. Tiene un cierto conocimiento
del carácter ajeno, o no conocería su trabajo. No acepta con
deshonestidad el dinero de nadie ni la insolencia de nadie sin la
correspondiente y desapasionada venganza. Es un hombre solitario,
y su orgullo consiste en que uno le trate como a un hombre orgulloso
40
o tenga que lamentar haberle conocido.

Dois detetives servem de modelo para essa análise. O primeiro, Sam


Spade, o detetive ficcional criado por Dashiell Hammett, em 1930, que
apresenta tais características. Dono de um caráter inflexível, irônico e durão,
um homem que fala a linguagem das ruas e não leva desaforo para casa. Seu
perfil aparece, no romance, desta maneira:

Samuel Spade tenía larga y huesuda la quijada inferior, y la barbilla


era una V protuberante bajo la V más flexible de la boca. Las aletas
de la nariz retrocedían en curva para formar una V más pequeña. Los
ojos, horizontales, eran de un gris amarillento. El tema de la V lo
recogía la abultada sobreceja que destacaba en media de un doble
pliegue por encima de la nariz ganchuda, y el pelo, castaño claro,
arrancaba de sienes altas y aplastadas para terminar en un pico
sobre la frente. Spade tenía el simpático aspecto de un Satanás rubio
(HAMMETT, 1969, p.5)

O segundo, Philip Marlowe, criado por Chandler em 1939, se converte


no ícone do detetive da novela negra, apresenta um perfil no qual existe a
mistura de dureza e ternura, um anti-herói romântico, um ser solitário,
eternizado nas adaptações dos romances para as telas dos cinemas. Esse
detetive é um homem que precisa ter um trabalho para sobreviver, pois vive em
uma época complicada, pós-recessão, nos Estados Unidos, é fruto de um país
em crise e por ser um homem urbano está habituado com os conflitos, a
violência e as tensões que estão sendo disseminadas por toda cidade.

40
Trecho retirado do fragmento digital: CHANDLER, Raymond. El simple arte de matar.
Disponível em:
http://mimosa.pntic.mec.es/~sferna18/EJERCICIOS/2010-11/El_simple_arte_de_matar.pdf
Acesso em: 17.10.2016
106

Os detetives que povoam as novelas negras já não possuem a


sagacidade racional dos detetives do romance policial clássico, não têm nada
de genial ou especial, precisam ir até aos lugares onde ocorreram os crimes
para buscar provas necessárias que ajudem a desvendar os casos. São tipos
durões que aguentam brigas, enrascadas e desqualificações, mas no fundo
são uns sentimentais; muitas vezes, as mulheres aparecem no seu caminho
para causar certo desequilíbrio emocional, pois, diferentes dos detetives do
romance policial clássico, são homens que amam, dotados de humanidade, de
desejos, embora posem de valentões. Geralmente, têm problemas com a
instituição policial, pois atrapalham o trabalho realizado pela polícia, por
estarem mais dispostos e disponíveis para elucidar o caso, para o qual foram
designados.
Embora continue sendo um tipo de herói, pois ainda consegue reverter
o quadro de desordem, o detetive já não encarna a racionalidade pura, o foco
da pergunta muda de como foi, para, por que aconteceu. Diante dessa
questão, mergulha na ação e vai atrás de provas. Marlowe de Chandler é um
detetive incorruptível, não se deixa contaminar e não cai nas armadilhas de
fazer seu serviço para receber em troca privilégios, o que lhe interessa é
realizar um bom trabalho, de maneira honesta e ser pago por ele. O próprio
Marlowe se apresenta no livro El largo adiós:

Soy detective privado y tengo mi licencia desde hace bastante


tiempo. Soy un tipo solitario, no estoy casado, estoy entrando en la
edad madura y no soy rico. He estado en la cárcel más de una vez y
no me ocupo de divorcios. Me gusta la bebida, las mujeres, el ajedrez
y algunas otras cosas. No soy muy del agrado de los polizontes, pero
conozco un par de ellos con los que me llevo bien. Soy hijo natural,
mis padres han muerto, no tengo hermanos ni hermanas, y si alguna
vez llegan a dejarme tieso en una callejuela oscura, como puede
pasarle a cualquiera en mi trabajo, y en estos días que corren a
mucha otra gente que se ocupa de cualquier cosa o de ninguna,
nadie, ni hombre ni mujer, sentirá que ha desaparecido el motivo y
fundamento de su vida. (CHANDLER, 1973, p. 130-131)

Na novela negra, o detetive deixa de ser infalível e é afetado por um


inimigo - a fragilidade de ser humano - que está escondido sob as pressões
sociais que revelam as verdades das circunstâncias, assim como as verdades
humanas. A palavra detetive vai se consagrar e virar adjetivo do gênero por
causa desse tipo de revista, ou da publicação de livros de bolso, de baixo
107

custo, traduzidos nos anos de 1940 e 1950, que também ajudaram na


propagação do gênero pela América Latina.
Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares criaram, em 1945, El Séptimo
Círculo, que teve um papel fundamental na divulgação, durante mais de
cinquenta anos, das variantes do gênero, além disso, descobriram outros
escritores do gênero. O primeiro exemplar da série foi La bestia debe morir, de
Nicholas Blake, traduzidos por Juan Adolfo Wilcock. Os narradores hispano-
americanos, segundo Giardinelli, reconhecem a influência recebida da novela
negra norte-americana:

[...] y no solo del género negro. Hoy puede asegurar que no hay
escritor latinoamericano contemporáneo que, en su juventud, no haya
sido fanático o frecuentador habitual de esta literatura. Y eso ha
dejado su huella más allá de que cada uno/una luego se haya
inclinado hacia otros géneros. Lo indudable es que buena parte de la
formación literaria de casi todos los autores de boom y de los que
vinieron luego fue la novela negra norteamericana. (GIARDINELLI,
2013, p.220)

Essa variante do gênero segue influenciando os autores da atualidade


que fazem uma adaptação ao estilo como uma forma de olhar a sociedade a
sua maneira, mostrando as diferentes realidades que aparecem por toda
América Latina. O escritor, de cada país, acaba apresentando as suas
particularidades. Escrever uma narrativa policial no México é muito diferente de
escrevê-la no Chile, no Equador ou no Brasil. Cada sociedade tem suas
características, peculiaridades e mazelas, cabe ao autor ressignificar a forma
para conseguir alcançar conteúdo. Portanto, quase não existe romance policial
latino-americano que não trate de temas ligados à violência e à desesperança
como: corrupção, miséria, desemprego, abismo social, degradação humana,
tráfico, prostituição e dinheiro, que serão tratados de maneira mais profunda na
terceira variante do romance: o romance neopolicial latino-americano.

2.2.3. Romance neopolicial Latino-americano

Segundo Émile Durkheim, ―o crime não se observa só na maior parte


das sociedades desta ou daquela espécie, mas em todas as sociedades de
todos os tipos. Não há nenhuma que não haja criminalidade.‖ (2001, p. 82) A
forma muda, mas os atos qualificados como criminosos continuam e sempre,
108

em todas as partes, existirão homens que cometerão crimes e serão reprimidos


pelo sistema penal. Partindo desta ideia, essa parte do capítulo comaçará a
traçar as características da variante do romance policial, que será denominado
de romance neopolicial latino-americano.
Também, nesta parte, aparecerão algumas ideias de Gustavo Forero
Quintero, apresentadas no seu artigo La novela de crímenes em America
latina: hacia uma nueva caracterización del género, publicado na Revista
Linguística e Literatura. Ele diz que na América Latina a definição de novela
que trata do crime evoluiu a ponto de exigir características distintas do gênero
policial e que faz sua análise a partir da aplicação de um conceito complicado e
difícil de ser usado nos estudos literários por seu caráter ambíguo e impreciso:
conceito de anomia social.
A palavra se origina do vocábulo grego, 'a' + 'nomos'; 'a' significa
ausência, falta, privação, inexistência; e 'nomos' quer dizer lei, norma; anomia
significa, portanto, falta de lei ou ausência de normas de conduta social. Em
âmbito geral, é a ausência de leis ou de um conjunto de normas de conduta
social que asseguram a ordem social. O estado de anomia provoca turbulência,
caos, implicando em uma patologia social que desemboca em uma crise
econômica, política e na degradação da sociedade. É o indicativo de desvio de
comportamento, onde resulta impossível o indivíduo se reconhecer, como tal,
dentro de uma norma social estabelecida, o impedindo de se adequar dentro
da sociedade.
Para o sociólogo Émile Durkheim, o primeiro a usar o termo, na sua
obra Da divisão do trabalho social, o estado anômico se estabelece quando a
sociedade sofre com a perda de valores compartilhados, onde os indivíduos
que a compõem e experimentam um grau de ansiedade e insatisfação
crescentes, deixam de ter paz; portanto, a anomia é uma condição onde quase
tudo passa a ser permitido e tolerado, não gerando nenhum tipo de punição e
quanto mais a sociedade se torna anômica, mas violenta ela se converte ou
vice-versa. Porém, é a própria sociedade a primeira interessada que o estado
de ordem e paz reine, diz o autor no prefácio da segunda edição de sua obra:

[...] se a anomia é um mal, é antes de mais nada porque a sociedade


sofre desse mal, não podendo dispensar, para viver, a coesão e a
regularidade. Uma regulamentação moral ou jurídica exprime, pois
essencialmente, necessidades sociais que só a sociedade pode
109

conhecer; ela repousa num estado de opinião, e toda opinião é coisa


coletiva, produto de uma elaboração coletiva. Para que a anomia
tenha um fim, é necessário, portanto, que exista ou que se forme um
grupo em que se possa construir o sistema de regras atualmente
inexistente. (DURKHEIM, 1999, p.X)

Esse estado de anomia social estará presente nos romances


neopoliciais latino-americanos, mostrando que a degradação ou a ausência da
norma servem como tema e fazem parte das estratégias desse tipo de
romance. Além disso, sugere uma redefinição do romance policial clássico e da
novela negra, permitindo estabelecer características próprias. Essa suposição
de redefinição ultrapassa o campo literário, pois reflete também sobre o
significado do que venha a ser lei, delito, sanção e impunidade dentro do
princípio penal e social; portanto, o romance neopolicial latino-americano é uma
variante que acontece e se propaga na América Latina a partir da anomia, mas
ainda trazendo consigo algumas características e influências da novela negra,
eminentemente norte-americana.
Muitos escritores do pós-boom receberam grande influência da novela
negra estadunidense, isso fica claro quando inserem, em seus textos, aspectos
ultrarreais dentro de uma ação ficcional, mostrando a crueza e a
verossimilhança dos diálogos, alimentando temas e tramas para as indústrias
de cinema e televisão. Diz Giardinelli:

La influencia norteamericana ha sido reconocida por muchos


narradores hispanoamericanos, y no solo del género negro. Hoy
puede asegurarse que no hay escritor latinoamericano
contemporáneo que, en su juventud, no haya sido fanático o
frecuentador habitual de esta literatura. Y eso ha dejado su huella
más allá de cada uno/una luego se haya inclinado hacia otros
géneros. Lo indudable es que buena parte de la formación literaria de
casi todos los autores del boom y de los que vinieron luego fue la
novela negra norteamericana. (GIARDINELLI, 2013, p. 220)

Enquanto a novela negra norte-americana surge de um individualismo


característico de sociedades liberais e capitalistas, tendo como disparo e
motivação principal, para o crime, a obsessão pelo dinheiro, o romance
neopolicial latino-americano emerge de um mundo desordenado, sem lei, tendo
como tema e motivação, para o crime, não o dinheiro, mas as diferencias e as
carências sociais: ―En cambio en nuestra literatura, más importante que el
dinero son los efectos de su injusta distribución.‖ (GIARDINELLI, 2013, p. 222)
110

Deste modo, o neopolicial latino-americano pode ser definido como um


romance no qual o delito, na maioria das vezes assassinatos, não é tratado
como um episódio ou uma motivação, mas como tema básico, do qual derivam
e com o qual estão relacionados todas as ações, dramas e conflitos humanos,
cada um com o seu peso, deixando um rastro de desolação, morte, crueldade e
violência. Mesmo que apareça um policial buscando evidências que reforcem o
suspense, o caminho fica aberto para que possa ser experimentado o terror, a
suspeita, a dúvida, durante os momentos do cotidiano e que o crime possa
ocorrer ou ser cometido por pessoas mais comuns, dentro da sociedade, não
importando quem seja: o vizinho, a mulher que vai ao supermercado, o
estudante, o homem que sempre está no bar, o advogado, um menor, um
amigo ou o pai de família, o empresário, o médico, o familiar próximo, entre
outros. Sobre todos esses personagens pode pesar o ato de extrema violência
ou a possibilidade do delito, o impulso assassino repulsivo que esconde algo
mais terrível, uma vontade desenfreada que aparece como reflexo da
perversão de uma sociedade que perdeu a humanidade.
Esses romances estão povoados de personagens condenados ao
esquecimento, que se impuseram um autoexílio, que vivem à margem de
sociedades que aparentemente são harmoniosas e civilizadas, e que mostram
a visão de desengano do mundo e do ser humano. Uma sociedade hipócrita
que massacra e vive de e pela aparência marcada, na própria narrativa, por
lugares abandonados, lúgubres, obscuros, taciturnos, um mundo que, no
fundo, causa repulsa e aversão, sem valores e sem justiça. A violência, em
termos sociais, apresentada como o valor máximo que está acima de qualquer
outro é, de alguma maneira, a que mantém a ordem, pois elimina a escória.
O crime se constitui em um tema popular e sua multiplicação adquire
diferentes significados, cuja análise não seria nada banal, pois o romance
neopolicial latino-americano é, em si mesmo, um relato sobre o crime, a ética e
a suposta verdade, portanto intersubjetivo (o que interessa é a maneira como
os sujeitos se revelam e se deslocam dentro da narrativa e na sociedade atual).
O neopolicial consegue atingir um imenso número de leitores por ser de fácil
compreensão, também sendo um modo de evasão da rotina cotidiana que
aponta, ao mesmo tempo, nas suas páginas, essa rotina.
111

O romance neopolicial latino-americano interessa porque humaniza


sem idealizar, critica sem ser panfletário, examina com muito cuidado a mente
dos assassinos sem usar nenhum juízo de valor, até mesmo mostrando certa
empatia por eles, como se eles fossem também vítimas de um sistema
econômico e social falido, o que não é muito fácil de ser narrado. Por isso os
autores desse tipo de romance se sentem desafiados em termos de elaborar
uma narrativa, pois tentam tratar, através da sua escrita, de temas profundos
que povoam a sociedade contemporânea, como a violência e o capitalismo
exacerbado, provocando reflexão e estranheza naquele que lê.
Mesmo diante de tamanho desafio estrutural, nesse tipo de romance
não há como escapar de um detetive, que geralmente é um policial, que
investiga um fato ou uma série de acontecimentos (especialmente crimes) que
infringiram as leis estabelecidas. Além disso, essa variante potencializa os
ambientes caóticos, com graves problemas sociais, onde as normas de
convivência, entre os cidadãos, foram reduzidas a um pronome, EU, muito
íntimo de si e pouco do outro. O que interessa, para a maioria dos que estão
dentro desse contexto, é individualismo e as vantagens que levarão em cima
dos outros, nem que para isso sejam chantagistas e corruptos.
Os autores, dessa vertente, exploram em suas narrativas o substrato
social de crise (econômica, social, política e moral), no qual vive a sociedade e
muitos deles, que fogem do ofício de serem jornalistas, utilizam técnicas do
jornalismo, na sua escrita, tais como: partir de um crime verdadeiro; ir ao lugar
onde o fato ocorreu; falar com as pessoas que vivem ou estavam na cena do
crime; anotar tudo que possa servir como indício; analisar o cenário (como as
pessoas do local se portam, se vestem), pois assim suas narrativas se
aproximam mais à realidade; por conseguinte, são mais consumidas, pois os
leitores identificam nelas a possibilidade de se parecerem como personagens
das mesmas.
Logo, é muito comum que escritores desse gênero, mostrem as
complexidades marginais das sociedades, os problemas sociais, econômicos,
políticos, principalmente os latino-americanos. O romance Días de combate, de
Paco Ignacio Taibo II faz uma reflexão e se converte, ao mesmo tempo, em um
mecanismo de denuncia:
112

-Bien, He asesinado once veces y he causado heridas menores. En


ese mismo intervalo de tiempo, el Estado ha masacrado a cientos de
campesinos, han muerto en accidentes decenas de mexicanos, han
muerto en reyertas cientos de ellos, han muerto de hambre o frío
decenas más, de enfermedades curables otros centenares, incluso se
han suicidad algunas docenas… ¿Dónde está el estrangulador?
-El Gran Estrangulador es el sistema.
-¡Bravo! –sonrió-. Ve, ¡ve!, es evidente. Yo sólo soy un hombre que
juega a la vida y la muerte, como ellos.
-A la vida y a la muerte ajenas.
-Privilegio que da ver el tablero de juego desde arriba, tener la
capacidad de mover las piezas. Sin embargo, no negará que me he
puesto en el juego, que he arriesgado y ganado la partida.
-¿Y las mujeres muertas?
-¿Y los centenares de hindúes muertos de hambre? No es válida su
pregunta.
Usted se dirá: la tribu se une y elimina al tigre. Yo le diré: ¿la tribu no
debería unirse para eliminar al sacerdote, a los guerreros, a los
parásitos? ¿No está el tigre dentro de la piel de la tribu? (TAIBO II,
2004, p. 150)

Este novo modelo de gênero trata o crime sob outro prisma, pois se
depara com a dialética: crime versus lei. Além disso, apresenta um criminoso,
cujo papel é o de perturbar a ordem estabelecida e denunciar, mesmo que de
uma maneira nada convencional, as imperfeições da sociedade que cada vez
se torna mais abismal, aumentando a fenda que há entre as classes sociais.
A proximidade, cada vez maior, dessa variante do romance ao
jornalismo acontece porque, atualmente, o jornalismo investigativo contribui
para que se possa entender o romance neopolicial latino-americano como um
espaço de denúncia, ultrapassando o lugar de entretenimento. A sociedade
precisa de respostas imediatas para as questões que envolvam a
precariedade, a violência, o abandono, o descrédito, a corrupção, etc., mas,
nem sempre, o jornalismo de investigação apresenta todas as respostas
necessárias, até porque sofre censura, e é nessa lacuna que crescem os
romances e os autores neopoliciais, que já contam com um público fiel.
Esse público consumidor, além de ter necessidade de conhecer o que
acontece, aposta nessa leitura, porque ela traz algumas características
relevantes para serem lidas dentro de uma sociedade dinâmica, que não pode
perder tempo que são: síntese; clareza; concisão; rapidez; foco; linguagem
acessível, entre outras, se assemelhando às crônicas jornalistas criminais. Um
fragmento do romance Consejos de un discípulo de Morrison a um fanático de
Joyce, de Roberto Bolaño, cujo foco narrativo é desde a perspectiva do
criminoso, serve como ilustração:
113

Al día siguiente la prensa solo hablaba de lo mismo, la violencia en


Barcelona y la inseguridad urbana; junto a nosotros aparecían como
personajes del día el par de punkies, unos chavales de san Adrián
que la noche anterior se habían cargado al dueño de un futbolín y a
un par de policías, y Ramón Correa, del famoso filicida, que se había
fugado de la Modelo. La alarma era mayor cuando se conocían las
estadísticas, más de quince muertos en menos de un mes, veinticinco
atracos a manos armadas y los únicos que habían sido capturados,
precisamente aquellos que no derramaron ni una gota de sangre,
eran los del Hispano Americano. A Ana y a mí nos encasillaban
aparte, vagamente locos, movidos por venganzas personales, tal vez
miembros de un grupúsculo terrorista. […] Volví a las noticias.
Parecía como si la ciudad se hubiera sumergido en una película de
gángsters que la aterrorizaba pero que simultáneamente la hacía
feliz. […] había regresado el reinado del terror, estos crímenes en el
fondo pretendían desestabilizar la democracia. (BOLAÑO, 2009, p.
73-74)

Enquanto, por um lado, a novela negra norte-americana surgiu das


questões sociais ligadas à depressão econômica de 1929, da proibição da
venda de bebida alcoólicas, do fortalecimento das máfias, do desenvolvimento
da indústria cinematográfica, baseando-se política e filosoficamente na
confiança no Estado e na capacidade regenerativa das suas instituições, cujo
detetive funcionava como um auxiliar da polícia e da justiça e todos juntos
restauravam a ordem rompida por um delito; por outro lado, no romance
neopolicial a aliança entre esses segmentos é quase impossível, porque, aqui,
além das instituições do Estado caírem no descrédito e na desconfiança,
encaradas como inimigas, sujeitas à corrupção e negociatas políticas obscuras,
a dinâmica social e econômica, em muitos países da América Latina, deriva do
narcotráfico, dos jogos ilícitos, da corrupção e da complexidade das relações
sociais, implicando uma conduta que exige nova configuração dentro da
literatura, que faça sentido, muito diferente do que foi sempre consumido e lido
como canônico.
Por isso, condutas anômicas (condutas marginais ligadas à violência,
aquelas que o indivíduo adota quando se vê privado das referências e dos
controles que organizam e limitam seus desejos e aspirações) e aspectos
anômicos como a violência gratuita, a delinquência, os crimes políticos, o
narcotráfico, determinam o surgimento de um novo gênero narrativo, no caso o
neopolicial, que se espalha por toda América Latina, narrando a violência, ao
mesmo tempo extrema e interna, tornando-se um fenômeno de mercado, pois
acaba sendo o espelho da vida real. Existe um caso particular que são as
114

narconovelas produzidas no México (geralmente produzidas nas cidades de


fronteira) que apresenta o escritor Émer Mendonza como um dos principais
representantes deste gênero.
Algumas obras de Roberto Bolaño, ou mesmo 2666, podem ser
classificadas como romance neopolicial latino-americano? Como os leitores se
perdem ou desfrutam de uma trama que os direcionam a um desfecho
inesperado, nada clássico? Como conseguem encontrar-se dentro de uma
narrativa onde detetives e assassinos não existem como os que os leitores
esperam? Estas são algumas questões que servirão como introdução da parte
que segue.

2.2.4 – Romance Infrapolicial

2666 es una de las primeras novelas en dar


cuenta de la realidad global del siglo XXI, una
novela total no sólo en el sentido de los muchos
temas que abarca, sino por la sensación de estar
41
trabajando muchos lugares al mismo tiempo.
Juan Villoro

A originalidade total e absoluta é muito difícil de existir dentro das


formas artísticas e a literatura não escapa a isto. As narrativas acabam sendo
uma reescrita, uma retomada do que houve anteriormente, portanto ser original
dentro de um gênero narrativo, como o policial, é um grande desafio. Roberto
Bolaño o encarou e tentou compor uma narrativa nova dentro de um gênero já
existente e muito explorado, o gênero policial. Percebe-se que sua tentativa
fugiu das outras variantes que derivaram desse gênero, por isso propõe-se
uma leitura infrapolicial do capítulo La parte de lós Crímenes.
Durante toda elaboração do seu projeto literário, talvez um dos mais
lúcidos da última década do século passado, Bolaño conviveu em um espaço
marginal (à deriva) que o potencializou e o moldou, recebendo influência de
muitos autores, desde os que escreveram os romances policias clássicos,
passando por Jorge Luis Borges (escritor muito admirado por Bolaño e
fundamental para compreender os caminhos da literatura latino-americana,
pois deixou uma rota do que deve ser entendido atualmente como ficção, em
41
Palavras do escritor Juan Villoro no documentário de Erik Haasnoot, Bolaño cercano.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7sCZoxNy_Fs. Acesso em: 02.11.2016
115

um mundo, em que cada vez parece mais difícil delimitar aquilo que se escreve
com o plano de experiência do individuo), chegando à geração dos escritores
do boom latino-americano. Influências à parte, seu projeto pode ser lido e/ou
analisado como original, na medida em que aparece como escrita de final de
ciclo, uma ponte entre dois séculos.
A obra de Bolaño fecha o século XX e abre o século XXI, já que a
maioria de seus livros foi escrita nesse período. Mas por que Bolaño e não
outro, já que havia outros no cenário e com muito mais visibilidade? Talvez a
resposta a essa pergunta esteja no fato de Bolaño, não só criar um grandioso
projeto literário, mas o de apresentar aos leitores uma nova vertente do
romance policial, o romance infrapolicial.
O romance infrapolicial como uma variante do gênero, ajuda a instaurar
uma paranoia de sentido que caracteriza a época atual, considerando o
comportamento, os gestos, as posturas corporais, as palavras pronunciadas,
as que ainda não foram ditas e as que se apresentam inseridas na trama
cotidiana como parte da paranoia. Se os romances neopoliciais latino-
americanos, dos últimos tempos, tratam o crime dentro de um ambiente de
ausência ou degradação da lei, como se o conjunto de leis não fosse mais
capaz de criminalizar o réu, os romances infrapoliciais extrapolam, ultrapassam
o ambiente da degradação social coletiva e da deterioração do individuo,
apresentando o que está nas camadas mais infras tanto dentro da sociedade,
assim como dento do abismo mais interno do ser humano ou ainda dentro da
transcendência do entendimento do que é ser humano.
Bolaño escreveu um texto, no qual uma das funções é o intercambio
fluido entre tradição e renovação que pode dar conta de algumas questões
polêmicas do cenário global. O autor constrói, de modo proposital, uma
narrativa da ficção sobre a ficção ou que oscila entre realidade e ficção
assumida de maneira infrarrealista (visceral) como realidade, onde coloca em
cheque, todo o tempo, o conceito de ética. Usa de uma estética ―absurda‖ (no
sentido de não ter regra, ou destituída de racionalidade) para denunciar a falta
de ética que assola a sociedade atual, principalmente a que vive na fronteira do
norte do México. Outra função é lançar mão da palavra e, a partir dela, propor
uma nova forma de narrativa, com o intuito de mergulhar no mais profundo do
116

mundo caótico, anômico, desvanecido, sujo, corrompido, que outras formas de


escritas não dão mais conta de mostrar.
Algumas dessas características estruturais e da composição do
investigador/detetive já foram mencionadas anteriormente, agora serão mais
ampliadas, definidas (talvez). Uma das características fortes do romance
infrapolicial é seu aspecto esquizofrênico e caótico, quanto à composição de
estrutura, a escolha dos personagens, os crimes que serão apresentados,
passando pelo perfil dos investigadores/detetives.
No capítulo La parte de los crímenes, diferente da estrutura de
romance policial clássico que é puramente geométrica, quando no final da
narrativa desvenda-se o crime e se descobre o assassino que deve sofrer
algum tipo de punição e da novela negra, que segue, amplia e desloca a
estrutura da variante anterior, Roberto Bolaño mostra os crimes como tivessem
sido retirados das páginas dos jornais, tais como se apresentaram,
promovendo um cruzamento de informações e indícios que não são nada
comuns; a preocupação do autor está no fato de sinalizar a cumplicidade
existente entre autor/leitor; cidade∕território de fronteira, crime/falta de punição e
sociedade/capital.
La parte de los crímenes pode ser lido como novela negra, romance
neopolicial, pois também apresenta características desses gêneros, fugindo da
lógica estrutural da novela policial clássica, já que as pistas para desvendar um
enigma são frágeis, sempre apontam para várias direções, não existe apenas
um investigador, mas um grupo que tenta desvendar o que acontece na cidade
de Santa Teresa. Além disso, o relato mostra uma visão de mundo que
desemboca em um mistério, que pode ou não ser desvendado, onde a figura
do detetive aparece como secundária e o crime, no caso os crimes, escondem,
talvez, um segredo.
Apesar dessa possibilidade de leitura, a obra difere da novela negra e
do romance neopolicial, porque, além de apresenta outro narrador que não o
investigador ou o assassino, também utiliza de estratégias narrativas que
confundem o leitor, que se deslocam e transitam por outros tipos de narração
que não é unicamente policial, que não só distraem, durante trama, os
investigadores, mas também o leitor. Será que essa forma de montar a
estrutura do romance infrapolicial é uma estratégia para encobrir, até o final, as
117

informações necessárias para chegar a alguma conclusão? Ou já não existe


nenhuma possibilidade de resposta para os crimes que acontecem na
atualidade, já que a violência virou algo corriqueiro, e não choca mais?
Roberto Bolaño se inspira, para escrever essa parte do seu romance,
no livro do jornalista mexicano Sergio González Rodríguez “Huesos en el
desierto”, um testemunho sobre os crimes contra as mulheres em Ciudad
Juárez, que se situa na fronteira do México com os Estados Unidos. Não só a
obra de González Rodríguez serve de inspiração, mas também o próprio
jornalista, se converte em um dos personagens do capítulo:

Por aquellos días el periódico La Razón, del DF, envió a Sergio


González a hacer un reportaje sobre el Penitente. Sergio González
tenía treintaicinco años, se acababa de divorciar y necesitaba ganar
dinero como fuera. Normalmente no hubiera aceptado el encargo,
pues él no era un periodista de crónica policial sino de las páginas de
cultura. […] Sergio González supo que en Santa Teresa, además del
famoso Penitente, se cometían crímenes contra mujeres, la mayoría
de los cuales quedaba sin aclarar. Durante un rato, mientras barría, el
cura habló y habló: de la ciudad, del goteo de emigrantes
centroamericanos, de los cientos de mexicanos que cada día
llegaban en busca de trabajo en las maquiladoras o intentando pasar
al lado norteamericano, del tráfico de los polleros y coyotes, de los
sueldos de hambre que se pagaban en las fábricas, de cómo esos
sueldos, sin embargo, eran codiciados por los desesperados que
llegaban de Querétaro o de Zacatecas o de Oaxaca, cristianos
desesperados, dijo el cura, un término extraño para venir,
precisamente, de un cura [...] (BOLAÑO, 2013, p. 470 e 474)

O livro de Sergio González Rodríguez registra o panorama do terror


que parece, em um primeiro momento, acontecer unicamente naquela região
do continente americano, mas com agudeza pode-se perceber que González
Rodríguez aponta para as contradições sociais e econômicas da América
Latina. As mulheres assassinadas são jovens pobres, têm entre 10 e 35 anos
de idade, e os crimes têm um caráter misógino, violam e assassinam as
mulheres porque, culturalmente, a sociedade patriarcal, sobretudo a mexicana,
as vê como valor de troca. Além disso, o Estado é omisso, negligente, ineficaz
e só consegue um ―bode expiatório‖ como sendo o assassino, por meio de
tortura, ferindo os protocolos internacionais dos direitos humanos e, em muitos
momentos, aparecem os seus representantes, nos meios de comunicação
denegrindo a honra e a dignidade das vítimas e de sua família. O livro ainda
expõe uma junção de forças, de um lado o narcotráfico e de outro a exploração
das indústrias maquiladoras.
118

Dentro da proposta da estrutura infrapolicial, tudo pode ser analisado e


tem valor. Onde estaria esse valor em 2666? Não só La parte de los crímenes,
mas todo romance não foge a essa regra e poderia ser lido como um gênero
híbrido, pois, além do viés criminal, apresenta traços de filmes, de séries de
TV, de crônicas policiais, de reportagens jornalísticas, de diário, de folhetim, de
tragédia, de thriller. O valor de ler a narrativa como romance infrapolicial
também estaria inserido neste aspecto, o de transitar por todos esses gêneros,
além de poder falar sobre a negligência do Estado e de sua relação com o
crime; sobre a verdade e suas formas de aparição; sobre a política e sua
relação com a moral e os costumes; sobre a lei e de suas formas de coação.
Da maneira como Roberto Bolaño o estruturou, o gênero também
questiona o valor do campo literário e acaba abrindo um espaço para esse tipo
de narrativa, pois em Bolaño a escrita entendida como canônica e a que passa
pelos meios massivos se misturam, atingindo um patamar onde a hibridez é
valorizada. O lógico e o paradoxo, a ficção e a realidade circunstancial, o
versátil e o único podem fazer parte de um mesmo lugar, nesse caso, o literário
que assume o desafio de provocar um diálogo, ou até mesmo um
enfrentamento que ocorre na fronteira dos patamares mencionados (cânone e
cultura de massa).
Para deixar essa marca mais forte, o autor percebe que uma das pistas
para intensificar sua ideia está no modo como apresenta a violência. Por
exemplo, quando mostra a violência extrema, o corpo das meninas sem sua
humanidade, revelando uma anomalia descabida, não só aquela que aparece
no corpo violado das vítimas, mas também a que está na mente de quem
cometeu o crime. A vítima sem sua forma humana é descrita sem nenhuma
censura, pois o que deve ser mostrado é a brutalidade com que foi tratada,
como se fosse algo, apenas um troço, qualquer coisa que não é considerada.
Sobre a desumanização dos corpos femininos e confirmando o modo como o
autor vai construindo o seu gênero, como mostram alguns fragmentos do
romance:

En junio murió Emilia Mena Mena. Su cuerpo se encontró en el


basurero clandestino cercano a la calle Yucatecos, en dirección a la
fábrica de ladrillos Hermanos Corinto. En el informe forense se indica
que fue violada, acuchillada y quemada, sin especificar si la causa de
la muerte fueron las cuchilladas o las quemaduras, y sin especificar
119

tampoco si en el momento de las quemaduras Emilia Mena Mena ya


estaba muerta. [...] (BOLAÑO, 2013, p. 466)
[...] murió en su casa y en su casa encontraron su cadáver, no en un
baldío, ni en un basurero, ni entre los matojos amarillos del desierto.
Se llamaba Felicidad Jiménez Jiménez y trabajaba en la maquiladora
MultizoneWest. Los vecinos la encontraron tirada en el suelo de su
dormitorio, desnuda de cintura para abajo, con un trozo de madera
incrustado en la vagina. La causa de la muerte fueron los múltiples
cuchillazos [...] (Idem, 2013, p. 491)
[...]En el caso de Mónica Posadas, ésta no sólo había sido violada
«por los tres conductos » sino que también había sido estrangulada.
El cuerpo, que hallaron semioculto detrás de unas cajas de cartón,
estaba desnudo de cintura para abajo. Las piernas estaban
manchadas de sangre. Tanta sangre que vista de lejos, o vista desde
una cierta altura, un desconocido (o un ángel, puesto que allí no
había ningún edificio desde el cual contemplarla) hubiera dicho que
llevaba medias rojas. La vagina estaba desgarrada. La vulva y las
ingles presentaban señales claras de mordidas y desgarraduras,
como si un perro callejero se la hubiera intentado comer [...] (Idem,
2013, p. 577)
A finales de septiembre fue encontrado el cuerpo de una niña de
trece años, en la cara oriental del cerro Estrella. Como Marisa
Hernández Silva y como la desconocida de la carretera Santa Teresa-
Cananea, su pecho derecho había sido amputado y el pezón de su
pecho izquierdo arrancado a mordidas. Vestía pantalón de mezclilla
de la marca Lee, de buena calidad, una sudadera y un chaleco rojo.
Era muy delgada. Había sido violada repetidas veces y acuchillada y
la causa de la muerte era rotura del hueso hioides. Pero lo que más
sorprendió a los periodistas es que nadie reclamara o reconociera el
cadáver. Como si la niña hubiera llegado sola a Santa Teresa y
hubiera vivido allí de forma invisible hasta que el asesino o los
asesinos se fijaron en ella y la mataron. (Idem, 2013, p. 584)

A multiplicidade de perspectivas e os diferentes pontos de vista que


compõem o relato favorecem cenas desse tipo. Personagens enfermos ou
enlouquecidos mostram, através de seus próprios olhos doentios, a realidade
tal e qual e como eles a observam e a compreendem.
Existe uma exaltação da monstruosidade que alcança outro patamar.
Por um lado, uma mente paranoica que comete o delito e por outro, um corpo
destruído, que se torna sublime42, mesmo quando toma o sentido de ser objeto.
O autor quer passar, ao leitor, a sensação de quem assassina, o seu momento
de êxtase. E, talvez, cause, em que lê, o sentimento de experimentar um duplo
impulso de repulsa e curiosidade, de repugnância e sublimação. O corpo se
transforma em um desejo, em uma busca pelo excesso, lugar onde o que não
pode ser dito se manifesta para adquirir uma natureza poética. O cenário, onde
os corpos são depositados como coisa, é composto por uma natureza dura,
obscura e asfixiante. São os lixões, os espaços e as paisagens desérticas ou

42
Do verbo sublimar: que pode ser captado pela mente sem que se tenha consciência.
120

de sujeira intensa, ao redor das maquiladoras, que favorecem a sensação de


caos, além de intensificar a sublimação desses mesmos corpos multilados. Há
um antagonismo entre os corpos delicados, jovens e vitais e os lugares brutos,
ásperos, mortos.
Esses espaços aparecem como metáfora de uma sociedade à deriva,
sem perspectiva, sem alento, sem vida. E quem consegue fazer a leitura,
conclui que os personagens, dessa sociedade doente, encontram-se diante de
novos espaços de opressão, geograficamente ilhados, marginalizados, como
vivessem em lugares de pesadelo. Bolaño é cruel, pois não permite que o leitor
recupere o alento, não há saída para o respiro e o coloca de frente com o pior
do ser humano, que pode ser também o pior em si mesmo. Os seus
personagens deixam a impressão de viverem sempre perturbados, dentro das
esferas infernais e diante de uma verdade reveladora, dizendo a todo instante
que o mal está aí e que a crueldade faz parte do cotidiano e se expande sem
ser sorrateira, vai além do que está visível, não pede mais licença para
aparecer, porque essa onda diabólica sempre existiu, mas não tão
escancarada. Na trama, a barbaridade sempre é evocada e sobrevive
independente de qualquer condição humana, pois acompanha os seres
humanos como se fosse uma condenação difícil de ser enganada.
A presença dos crimes, dos assassinos, dos diversos investigadores e
detetives, que fazem parte do enigma, do segredo, dão ao romance uma
dimensão dupla: uma que se entende dentro do cânone do gênero policial,
como uma peça essencial que reclama a solução do crime, restabelecendo a
verdade dentro da ficção e a outra estética que valoriza uma espécie de
―beleza‖ do crime, trazendo à tona o mal que se impõe. Existe uma
aproximação do romance criminal à crônica jornalística; no romance a verdade
pertence à ordem discursiva do texto (a narração em si) e na crônica a verdade
está no âmbito do factual.
No romance infrapolicial a estratégia narrativa é inversa, não segue
uma lógica de raciocínio. Os muitos assassinatos não permitem que se chegue
a uma conclusão, sem contar os vários espaços percorridos, pelos
investigadores, durante a trama, tais como ruas, igrejas, casas, sanatório,
bares, TV, etc. que também ajudam a camuflar pistas também, deixando os
casos de assassinatos inconclusos. Não existe uma investigação lógica, que
121

privilegie as relações dedutivas, muito pelo contrário, o que aparece é outra


forma de investigação, uma investigação múltipla que colhe, de vários
investigadores policiais, informações que levam a um ponto comum, de
convergência (se é que existe um): chegar a um assassino ou a um hipotético
assassino, que precisa ser entregue para que as autoridades se sintam
satisfeitas, apresentando, assim, à sociedade uma suposta solução. Mas não
há ponto em comum nos assassinatos das mulheres de Santa Teresa que
possa definir um assassino em série, que cumpra sempre com a mesma
assinatura nos cadáveres encontrados. Tirando um número pequeno de
mulheres que foram mortas da mesma maneira, nas outras centenas não
existe um padrão de execução.
Não existe uma conclusão final sobre os assassinatos, nem nada que
explique, até o final do romance, o porquê dessas atrocidades, deixando o
leitor confuso e sem ter uma resposta igual a que era dada nos romances
policiais clássicos, o enigma desvendado. Por isso a insistência em afirmar que
a lógica do romance infrapolicial é inversa, pois se opõe a outras lógicas,
compondo uma lógica alternativa, diferente, revolucionária que reorganiza a
forma de narrar do relato policial, não seguindo as que já foram mostradas
anteriormente. Os indícios também são outros e estão além da trama, se
encontram dentro das partes emocionais mais abismais de cada personagem,
em cada canto lúgubre dos lugares mostrados (as casas, as maquiladoras, os
desertos, as ruas, etc.), nas entrelinhas dos discursos das autoridades e dos
meios de comunicação. Os indícios são elevados a outro estágio, passam a ser
ilógicos não permitindo a resolução dos assassinatos. Os únicos válidos são os
crimes cometidos e narrados a exaustão, indícios que passam a figurar no
seguinte aspecto: é assim que se conta dentro de uma forma infratextual.
As pistas não servem somente para alimentar a estratégia de compor a
trama, mas extrapola e salta do espaço literário (ficcional) para o espaço real
(factual), onde narrador e leitor se deparam com as mazelas humanas e ficam
estarrecidos em constatar que a humanidade, além de não saber ou ter um
caminho de saída, não tem muito que fazer nem sabe qual caminho seguir, se
deparam com a encruzilhada narrativa e pessoal.
A estrutura do romance traz um discurso intertextual e infratextual,
além de ser uma conversa entre discursos diferentes, aprofunda-se em si
122

mesmo, olha para si, trazendo à tona essa proposta inovadora do autor, de
montar um romance com aspectos originais. Embora alguns outros autores
tenham ousado no modo de narrar, tais como: Julio Cortázar e Jorge Luís
Borges, Bolaño desconstrói e reorganiza, readapta, reestrutura, repagina a
partir das leituras desses autores e cria sua maneira, tentando ser diferente.
Uns dos aspectos que ele tenta inovar são os relacionados à criação de
personagens/narradores inválidos, incapazes de levar até o leitor informações
necessárias para resolução do mistério (no caso, os crimes).
A ordem de estrutura do romance infrapolicial traz o que é mais
inconsciente e que pode parecer inconsistente dentro de uma sociedade, cujo
principal sentido da vida é sobreviver, ainda que seja para denunciar a
violência corriqueira que já não cabe mais dentro de cada um, dentro de cada
cidade e dentro de cada composição que serve para construir um novo gênero
ou revisitar algum que já exista, mas que precisa ser renovado.
A estratégia proposta pelo autor, e muito bem utilizada pelo narrador da
trama, é a de desorientar os leitores, o encaminhando para um nível de leitura
e entendimento infratextual da narrativa, onde aparecem vários investigadores
que acentuam os aspectos mais profundos da estrutura do texto associado aos
aspectos mais profundos da estrutura social e econômica do lugar (onde
passam os fatos) e, por conseguinte, também integrados à estrutura emocional
de cada personagem que transita pelos espaços da trama.
Diante da variante infrapolicial, narrador e leitor entram em uma
espécie de inferno, de derrota, de buraco negro, de sordidez e já não
conseguem fazer a viagem de volta sem tremer, sem suar frio, sem temer e
sem ficar indiferente ao que acontece diante dos seus olhos emoldurados pelo
terror da existência, momento em que

La literatura, al contrario de la muerte, vive en la intemperie, en la


desprotección, lejos de los gobiernos y de las leyes, salvo de la ley de
la literatura que solo los mejores entre los mejores son capaces de
romper. Y entonces ya no existe literatura, sino el ejemplo. (BOLAÑO,
2009, p.284-285)

Atrás do romance infrapolicial e através dos não indícios, pistas,


pegadas e investigações, no final do capítulo La parte de los címines, muitos
cumprem o papel de detetives: os investigadores institucionais e os
123

particulares; a deputada; a vidente; os jornalistas; os policiais; os meios de


comunicação; os trabalhadores das maquiladoras; os habitantes do lugar; as
famílias das vítimas; o narrador; o leitor; sem contar os narcotraficantes e seus
seguranças; que estão sempre investigando um delito; e o próprio personagem
acusado de ser o assassino em série, Karl Haas, que convoca uma coletiva de
imprensa para dizer quem de fato vinha praticando todos aqueles assassinatos.
Esta parte do capítulo exemplifica o que foi mencionado.

En junio, Klaus Haas convocó mediante llamadas telefónicas una


conferencia de prensa en el penal de Santa Teresa [...] Sólo le dijo
que ahora estaba en posesión de un dato del que antes carecía y que
quería hacerlo público [...] Junto a Haas, mirando al frente, rígida,
como si por su cabeza pasaran las imágenes de una violación, estaba
su abogada, y alrededor los reporteros de El Heraldo del Norte, La
Voz de Sonora, La Tribuna de Santa Teresa, los tres periódicos
locales, y los de El Independiente de Phoenix, El Sonorense de
Hermosillo y La Raza de Green Valley, un periódico de pocas
páginas, de aparición semanal (en ocasiones quincenal o mensual),
que sobrevivía casi sin anuncios, de las suscripciones de algunos
chicanos de clase media baja de la zona comprendida entre Green
Valley y Sierra Vista, antiguos braceros establecidos en Río Rico,
Carmen, Tubac, Sonoita, Amado, Sahuarita, Patagonia, San Xavier, y
en cuyas páginas sólo aparecían historias de crímenes, cuanto más
horrendos, mejor [...]Les voy a decir quién asesinó a Estrella Ruiz
Sandoval, de cuya muerte se me acusa injustamente, dijo Haas. Son
los mismos que han matado por lo menos a otras treinta jóvenes de
esta ciudad. La abogada de Haas agachó la cabeza [...] Haas dijo: he
43
estado investigando . Dijo: he recibido soplos. 716-718

O infradetetive

E o detetive infrapolicial? Como é construído no romance de Bolaño?


Em La parte de los crímines não aprece um detetive aos moldes clássicos e
nem apenas um investigador; são vários, já que existem inúmeros casos de
assassinatos de mulheres. O primeiro a figurar na trama para investigar a
primeira morta é o chefe de polícia Pedro Negrete e outros policiais auxiliares:
―Al cabo de um rato, mientras fuera de La comisaría esperaba uma ambulancia,
llegó Pedro Negrete, el jefe de policía, seguido de um par de ayudantes [...]‖
(BOLAÑO, 2013, p. 444). Cinco dias depois acontece outro caso, outro
investigador entra em cena: ―[...] sometidos a um interogatorio que duró toda la

43
Parte em negrito destacada por mim.
124

noche, conducido por el ayudante del jefe de policía de Santa Teresa, el agente
Epifanio Galindo, com resuldos óptimos [...]‖ (Idem, p. 445).
Existe uma hierarquia entre esses policiais/investigadores, mas a
investigação e o interrogatório podem ser realizados por qualquer um,
independente da sua posição dentro da instituição policial. Durante toda trama
aparecem outros investigadores: Ángel Fernández; Juan de Dios Martínez;
José Márquez; Olegario Cura Expósito, mais conhecido como Lalo Cura (esse
é o que tem o perfil mais próximo de um detetive clássico); Ernesto Ortiz
Rebolledo; Efraín Bustelo; Noe Velasco; Francisco Alvarez; Carlos Marin; Juna
Carlos Reues; Lino Rivera; Élmer Donoso (esse policial nem chega a ficar em
cena, pois durante a sua primeira investigação escorrega e quebra as duas
pernas) e os norte-americanos Harry Magaña e Albert Kessler (ex-agente do
FBI), o segundo convidado para dar um curso de capacitação profissional para
um grupo seleto de alguns dos melhores policiais, o que causou certo
desconforto, pois os outros policiais da instituição mexicana achavam que ele
tinha ido cumprir o que fora determinado, dado o fracasso da capacidade dos
agentes mexicanos em resolver os casos dos assassinatos das mulheres de
Santa Teresa.
No final do capítulo, em uma conversa com o jornalista Sergio
González Rodríguez, aparece a figura do detetive particular contratado pela
deputada Azucena Esquivel Plata para descobrir o paradeiro de sua amiga,
Kelly Rivera Parker (nome adotado por Luz María) que havia desaparecido:

Lo primero que hice al volver al DF fue ir a ver un amigo que había


trabajado en la Procuraduría General de Justicia del Distrito Federal y
pedirle que me recomendara a un buen detective, un hombre fuera de
sospecha, un tipo que tuviera lo que hay de tener. Mi amigo preguntó
cuál era el problema. Se lo conté. Me recomendó a Luis Miguel Loya,
que habría trabajado en la Procuraduría General de la República.
¿Por qué no sigue allí?, le pregunté. Porque gana más en la empresa
privada. Yo me quede pensando que mi amigo no me había contado
todo lo que tenía que contarme, ¿porque desde cuándo la empresa
privada y la empresa pública son incompatibles en México?
(BOLAÑO, 2013, p.777)

Além desse detetive particular, aparece mais um novo investigador,


Luis Villaseñor, vindo de outra cidade, com a finalidade de resolver alguns
casos, já que a policia local não conseguia dar a devida atenção, ou já estavam
dentro de um esquema de corrupção que não tinham mais interesse de concluir
125

os casos das mulheres mortas: ―El caso le fue encargado al judicial Luis
Villaseñor, recién llegado de Hermosillo, quien tras uma semana de
interrogatorios llegó a la conclusión de que el asesino no era el esposo huido
sino el novio de María Elena, un tal Augusto o Tito Escobar [...]‖ (idem, p. 758-
759)
Esses investigadores, chefes de policia, se revezam nos inúmeros
casos que vão aparecendo, não só os das mulheres assassinadas, como
outros casos que envolvem narcotraficantes e um profanador de igrejas.
Outra característica que foge a do policial clássico é a do envolvimento
emocional dos investigadores. O tema do amor ou do envolvimento
sentimental, no romance policial clássico não aparecia ou pelo menos, não era
declarado explicitament; aliás, é uma das características desse tipo de
romance, a ausência do amor como tema, ou a possibilidade de envolvendo
amoroso dos detetives. Além de celibatários, o amor atrapalha o raciocínio
lógico, amar tira o foco da investigação. No romance infrapolicial além do tema
ser tratado, aparece o envolvimento de um dos investigadores, Juan de Dios
Martínez, com a diretora do centro psiquiátrico, Elvira Campos (mulher mais
velha e independente). Um relacionamento confuso e muito diferente, pois
quem termina se apaixonando é ele; para ela os encontros não passam de
sexuais e nada mais que isso, já para ele se dá em outro plano, ele quer ter
uma relação sólida e de convivência diária com ela, mas isso não acontece.
Assim ficou estabelecido no encontro entre eles:

Pocos días antes que apareciera Sergio González por Santa teresa,
Juan de Dios Martínez y Elvira Campos se fueron a la cama. Esto no
es nada serio, le advirtió la directora al judicial, no quiero que te
hagas una falsa idea de nuestra relación. Juna de dios Martínez le
aseguró que sería ella la que pusiera los límites y que él se limitaría a
respetar sus decisiones. Para la directora el primer encuentro sexual
fue satisfactorio. […] Era cuando ella lo llamaba cuando concertaban
las citas, siempre en casa de Elvira, […] Después, in preámbulos, se
iban al dormitorio y se dedicaban a hacer el amor durante tres horas.
[…] Después ella le recordaba, como si se lo hubiera pedido él, que
tenía que marcharse y el judicial decía es cierto o miraba inútilmente
la hora en su reloj y acto seguido se iba. Al cabo de quince días
volvían a encontrarse y todo transcurría idéntico a la última vez.
(BOLAÑO, 2013, p.480-481)

Em La parte de los crímines não existe um detetive que valha alguma


coisa, o que tem mais seriedade em investigar os casos é o jornalista Sergio
126

González Rodríguez que fica intrigado com o número de mulheres


assassinadas e quer entender o porquê dessas mortes e passa a fazer
investigação por conta própria. Lendo com cuidado o romance e o capítulo que
antecede o da parte dos crimes, La parte de Fate, a narrativa, de maneira sutil,
revela que um jornalista (provavelmente Sergio) foi assassinado, quando o
mesmo começara a mexer no vespeiro junto com a deputada Esquivel Plata,
portanto se conhece o princípio e o final de uma investigação que não é
narrada, mas existe e pode-se dizer que o papel de detetive, no romance
infrapolicial proposto por Roberto Bolaño, também pode ser exercido pelo
jornalista, o que escreve sobre os acontecimentos e nesse caso, sem ser
isento. Uma conversa entre Guadalupe Roncal, a nova jornalista que vai
investigar os casos e falar com Klaus Haas no presídio e Fate:

- Soy, como ya le he dicho, periodista –dijo Guadalupe Roncal-.


Trabajo en uno de los grandes periódicos del DF. Y me he alojado en
este hotel por miedo.
-Miedo a qué – dijo Fate.
-Miedo a todo. Cuando se trabaja en algo relativo a los asesinatos de
mujeres de Santa Teresa, una termina teniendo miedo a todo. Miedo
a que te peguen. Miedo a un levantón. Miedo a la tortura […]
-Porque soy mujer y las mujeres no podemos rechazar un encargo.
Por supuesto, yo ya sabía cuál había sido el destino o el final de mi
antecesor. Todos en el periódico lo sabíamos. El caso había sido muy
sonado y tal vez usted lo conozca. –Fate negó con la cabeza-. Lo
mataron claro. Se metió demasiado en el asunto y lo mataron. […] No
es el primer periodista muerto por lo que escribe. Entre sus papeles
encontré información sobre dos más. Una mujer locutora de radio,
que secuestraron en el DF y un chicano que trabajaba para un
periódico de Arizona llamado La Raza, que desapareció.(BOLAÑO,
2013, p375-376)

Para fechar esse capítulo, fica uma contribuição na parte dos anexos,
um quadro comparativo entre as variações dos gêneros do romance policial. 44
O próximo capítulo da tese apresentará a forma e como Roberto
Bolaño constrói o seu romance infrapolicial, onde, apesar de uma estrutura
bem montada, o conteúdo e denuncia a sobrepõe e acabam sendo mais
importante. O autor cria uma estrutura que é desafiadora e ao mesmo tempo
rápida, sem deixar de ser complexa e de apresentar elementos do romance
policial clássico, da novela negra e do romance neopolicial, mas de uma
maneira mais ampliada que desemboca no infrapolicial.

44
Quadro comparativo, elaborado por mim – Anexo IX (p.251-252)
127

Capítulo III – La parte de los crímenes: estratégias de construção

2666 es una obra tan bestial, que puede


acabar con mi salud, que ya es de por sí
delicada. Y eso que al terminar Los
detectives salvajes me juré no hacer nunca
más una novela río: llegué a tener la
tentación de destruirla toda, ya que la veía
45
como un monstruo que me devoraba.
Roberto Bolaño

En México, es muy peligroso indagar los


nexos del poder político y el crimen
organizado, pero no tanto como el hecho de
ser una mujer y vivir en una sociedad que,
día tras día, descubre cuánto su rostro
tiende a multiplicar en otras partes la
46
desolación de Ciudad Juárez.
Sergio González Rodríguez

Esse capítulo analisará como a estrutura literária proposta por Bolaño


pode unir-se a outros campos de estudo, como a sociologia, a filosofia e a
economia, para refletir e trazer à tona temas que abordam problemas
contemporâneos tais como: os assassinatos (feminicídio) das mulheres em
Ciudad Juárez e a classe precária dentro de sociedades notadas como
―hipercapitalistas‖ 47.

45
Parte da entrevista concedida a Antonio Lozano para a Revista Qué Leer, Barcelona, enero
de 2001. In: BRAITHWAITE, Andrés. Bolaño por sí mismo: entrevistas escogidas. Chile:
Ediciones Universidad Diego Portales, 2006, p. 122-123)
46
GONZÁLEZ RODRÍGUEZ, Sergio. Huesos en el desierto. Barcelona: Editorial Anagrama,
2002.
47
O vocábulo ―Hipercapitalismo‖ entendido além do capitalismo selvagem, um capitalismo
exacerbado que coloca a dignidade do ser humano em cheque. Um capitalismo que
incrementa cada vez mais as diferenças entre as pessoas, mesmo aquelas que fazem parte de
uma mesma classe político-socio-econômica, dentro de uma época neoliberal de servidão
financeira e capitalismo globalizado, apontados por Carlos Nelson Coutinho na apresentação
do livro Hegemonia às avessas. Junta-se a essas ideias a influência recebida a partir da leitura
do livro Primeiro como tragédia, depois como farsa, de Slavoj Žižek, quando ele diz: ―o
capitalismo é que é propriamente revolucionário; ele mudou toda nossa paisagem nas últimas
décadas, da tecnologia à ideologia [...] De outro lado, principalmente no domínio das relações
socioeconômicas, nossa época se percebe como uma época de maturidade, em que, com o
colapso dos Estados comunistas, a humanidade abandonou os antigos sonhos utópicos
milenaristas e aceitou as restrições da realidade (leia-se: a realidade socioeconomia capitalista)
com todas as suas possibilidades: VOCÊ NÃO PODE... participar de grandes atos coletivos
(que acabam necessariamente em terror totalitário), agarrar-se ao antigo Estado de bem-estar
social (torna as pessoas pouco competitivas e leva à crise econômica), isolar-se do mercado
global etc.etc. [...] A razão é que vivemos numa época pós-política de naturalização da
economia: em regra, as decisões políticas são apresentadas como questões de pura
128

Para realizar essa apreciação e continuando a análise do capítulo La


parte de los Crímenes. Agora é o momento de apresentar como o autor monta
a estrutura que dá a forma final ao que foi sugerido como variante do romance
policial, o infrapolicial. Diante da proposição dessa tese, pergunta-se: como
entender esses fenômenos do século XX (o século dos extremos que para
muitos autores termina em 1989), que se intensificam no século XXI, a partir
dos personagens (cadáveres) das mulheres assassinadas, na cidade mexicana
fronteriça com os Estados Unidos, Santa Teresa (cidade fictícia, uma espécie
de espelho e duplo de Ciudad Juárez) e a situação precária que cada uma
dessas mulheres vive enquanto ser social?
Para melhor leitura e entendimento de como é montada a estrutura do
romance infrapolicial, uma estrutura retorcida, aparentemente digressiva,
paralela e/ou fragmentada, como dizia o próprio autor, semelhante à febre, ao
delírio ou à enfermidade. Essa análise se debruçará no que será apontado
como narrativas interrompidas, cruzando alguns aspectos, entre eles: 1) a
escrita interrompida de Roberto Bolaño; 2) o feminicídio como interrupção da
vida das mulheres assassinadas em Santa Teresa; 3) a cidade de fronteira
pensada como um espaço interrompido e 4) a classe precária percebida
também como interrompida ou como interdição de um possível caminho de
ascensão ou descenso.
O próprio autor ajuda a pensar a originalidade de uma estrutura que
indica a outra variante do gênero proposta nesta tese, o romance infrapolicial.
Diz Bolaño, em uma entrevista a Daniel Swinburn, quando questionado sobre a
pressão temática:

[...] la presión temática siempre ha sido a la par con la presión de la


estructura. De hecho, cuando imagino un cuento o una novela o una
pieza teatral, lo que sea, menos tal vez un poema, el primer escollo,
el primer problema a resolver es el de la estructura, es decir, el
envoltorio. A fin de cuentas, lo que se cuneta siempre es una
variación de lo que el hombre se viene contando a sí mismo desde
hace miles de años. Lo que cambia, lo que permite que el árbol, si
aceptamos darle esa figura a la experiencia literaria, se mantenga
vivo y no se seque es la estructura, nunca el argumento. Esto, por
supuesto, no quiere decir que el argumento, el tema, no importe, claro
que importa, o tal vez lo que importa sea la dosificación del tema, la
reformulación de la ―dosis temática‖, pero lo importante es la

necessidade econômica; quando medidas de austeridade se impõem, dizem-nos vezes sem


fim que isso é simplesmente o que deve ser feito.‖ (ŽIŽEK ,2011, p. 12-13)
129

estructura. La estructura es la música de la literatura . (BOLAÑO apud


BRAITHWAITE, 2006, p. 82-83 e 127)

Essas colocações do autor reforçam a vontade de analisar e mostrar


como ele compõe a estrutura, imprimindo em sua obra um aspecto maior de
infarrealidade e de como pode ser lida como um romance infrapolicial. Vale
resaltar que essa é apenas uma análise que visa ampliar a abordagem sobre
Bolaño e sua narrativa, portanto um estudo que não se esgota aqui, cabem
muitas reflexões e análises.
Antes de passar a apresentação dos passos que servem como
construção do romance infrapolicial, seria bom dizer que, nesta obra, as cinco
partes são entrelaçadas entre si por um ponto submerso, infra, que está na
base do relato, feito por um narrador onisciente e andarilho, que entra e sai dos
espaços literários e que retira e coloca o leitor na trama no momento e da
maneira que ele quer, além desse narrador peculiar, existem dois fios
condutores, o primeiro que se constrói a partir da busca do escritor Benno von
Archimboldi e o segundo que parte do tema do feminicídio, os assassinatos
massivos de mulheres realizados na cidade de Santa Teresa.
Este capítulo, La parte de los crímines, é o tempo passado dos três
primeiros e da parte final do quinto, um jogo temporal, assim como fez Julio
Cortázar em Rayuela (O jogo da amarelinha), guardando as devidas
comparações e proporções, pois são romances distintos. O jogo, no caso de
2666, serve como base (infra) de construção do romance infrapolicial. Este
capítulo é o cerne da obra, aonde todos os outros chegam ou dele partem,
dependendo de onde se faça a leitura do livro. Se analisarmos a temporalidade
e a cronologia como sendo lineares, 2666 deveria ser lido de trás para frente,
assim haveria uma ―lógica‖ temporal.
Começando pela vida de Archimboldi e a sua construção como autor,
passando pelos assassinatos em Santa Teresa, se deslocando para parte do
jornalista Fate e depois o professor Amalfitano, chegando até à busca dos
críticos e voltando ao final do capítulo cinco, parece que Bolaño tomou, como
base, os jogos de estratégias (ele era um assíduo jogador), para construir a
trama que se desloca para inúmeras direções até chegar a um suposto final.
Esse jogo temporal, infratemporal, faz parte da construção do romance
130

infrapolicial que rompe com a cronologia linear apresentada nos romances


policiais, nas novelas negras e até mesmo nos neopoliciais.
O inferno, a obscuridade, as ruas desertas de uma cidade de fronteira,
as mulheres usadas como mão de obra barata para maquiladoras, o
capitalismo exacerbado, brotando das histórias, da terra e das relações, a
caída no abismo, a edificação do cemitério do mundo são mostrados na quarta
parte do livro, mas essa parte é a disparadora dos capítulos antecessores que
vão sendo apresentados para que o leitor entre e se choque com o que vai ser
descortinado frente a seus olhos. Se começasse o livro por esse capítulo, os
leitores teriam se acostumado à barbárie, não causaria estranheza e nem
haveria um porquê para continuar lendo o livro. A cifra do mal, juntamente com
sua banalidade, deve ser injetada aos poucos. Essa construção deixa ainda
mais visível o quanto o mal está enraizado na sociedade, de tal maneira que
muitos só o percebem quando são levados a pensar que essa banalidade, na
verdade, se tornou realidade. E esse capítulo, colocado nessa ordem, provoca
a sensação de incômodo, pretendida pelo autor, e impregna o leitor com uma
realidade que está mais próxima a ele do que ele possa imaginar:

Al mes siguiente, en mayo, se encontró a una mujer muerta en un


basurero situado entre la colonia Las Flores y el parque industrial
General Sepúlveda. En el polígono se levantaban los edificios de
cuatro maquiladoras dedicadas al ensamblaje de piezas de
electrodomésticos. Las torres de electricidad que servían a las
maquiladoras eran nuevas y estaban pintadas de color plateado.
Junto a éstas, entre unas lomas bajas, sobresalían los techos de las
casuchas que se habían instalado allí poco antes de la llegada de las
maquiladoras y que se extendían hasta atravesar la vía del tren, en
los lindes de la colonia La Preciada. En la plaza había seis árboles,
uno en cada extremo y dos en el centro, tan cubiertos de polvo que
parecían amarillos. En una punta de la plaza estaba la parada de los
autobuses que traían a los trabajadores desde distintos barrios en
Santa Teresa. Luego había que caminar un buen rato por calles de
tierra hasta los portones en donde los vigilantes comprobaban los
pases de los trabajadores, tras lo cual uno podía acceder a su
respectivo trabajo. Sólo una de las maquiladoras tenía cantina para
los trabajadores. En las otras los obreros comían junto a sus
máquinas o formando corrillos en cualquier rincón. Allí hablaban y se
reían hasta que sonaba la sirena que marcaba el fin de la comida. La
mayoría eran mujeres. En el basurero donde se encontró a la muerta
no sólo se acumulaban los restos de los habitantes de las casuchas
sino también los desperdicios de cada maquiladora. (BOLAÑO, 2013,
p. 449)
131

Todo o jogo estrutural e a forma de apresentação dos temas, usada pelo


autor, são identificados como características que pertencem ao que aqui se
denomina romance infrapolicial. Pode parecer pretensão ler 2666 sob outra
nomenclatura de gênero, mas é possível e a leitura pode e deve ser ampliada,
visto que todas as rupturas que ele promove, de tempo, locus, foco e estilo,
além de remeterem ao infrarrealismo, fazem parte do processo de elaboração
do seu projeto estético-literário.

3.1- Turbulência e violência

O século XXI começa turbulento, com o atentado às Torres Gêmeas,


nos EUA, com o terrorismo frenético disseminado em muitas partes do mundo,
com a violência contra as mulheres e as crianças, com a discriminação racial,
religiosa e social, tudo isso visto e vivenciado no momento preciso em que está
acontecendo, pois a globalização permite, através da internet, a experiência
imediata dos eventos que ocorrem longe ou perto dos que a eles assistem.
A banalidade do mal, proferida pela filósofa Hannah Arendt, aumenta e
não só o mal assim como a violência se banaliza muito mais; sobretudo a
violência cresce e muda de patamar, deixando de ser apenas física, passando
a ser subjetiva e simbólica. Os campos de concentração, de aniquilação e de
extermínio passam a ser o espaço urbano, representados pelas ruas das
grandes metrópoles e a população que vive esse extermínio é a mesma que
convive com a precariedade, aquela que não possui bens materiais e que
também acaba perdendo a sua dignidade enquanto ser humano, que não vale
nada, a não ser como mão de obra barata, usada de qualquer maneira e
descartada a qualquer momento quando não cumpre mais seu papel de servir.
Frente a esse quadro e momento, aos quais muitos autores não ficam
alheios e passam a usar o seu fazer literário para mostrar sua indignação à
sociedade, colocando-se diante desses acontecimentos, sem o uso de
nenhuma máscara, perante esse panorama e tocado por questões polêmicas,
Roberto Bolaño escreve, em 2004, seu romance 2666, publicado depois de sua
morte.
132

Esse estudo surge a partir da inquietação e do estranhamento


deixados nas linhas escritas por Bolaño, principalmente os causados pelos
temas abordados e narrados no capítulo já citado. Como dito anteriormente,
para construir sua estrutura, Bolaño dispôs de alguns recursos e entre eles
estavam os que serão apresentados. À estratégia do autor se junta esta análise
que partirá de uma tentativa de pensar alguns dos temas tratados por ele, sob
o ponto de vista de narrativas interrompidas. Como seria essa forma de pensar
e apresentar as questões que aparecem no texto de Bolaño? Partir-se-á do
entendimento da palavra ―interrompida‖, oriunda do verbo interromper e que
aqui se vestirá com alguns significados, entre eles descontinuidade; pausa; não
permissão ao funcionamento, à utilização ou ao acesso; impedimento ou
proibição para realização de algo; interdizer, interditar; paralisar; suspender;
deixar sem ação; tornar-se nulo; eliminar; neutralizar; inutilizar; anular; destruir
e desarticular o que estava aparentemente controlado.
Interromper também notada com o sentido de suspender a ação,
quebrar a continuidade de uma conversa, de um discurso, de uma cena, de um
tema; de uma finalização aparente que pode ser retomada a qualquer
momento; um desvio, um intervalo narrativo que, ao mesmo tempo, que é
interrompido se une com o restante da trama, informando ao leitor a existência
de uma ordem dentro da desordem. A interrupção, no caso desse capítulo,
aparece como se fosse uma experiência cinematográfica (o instantâneo do
recorte, cenas curtas e interrompidas, que se deslocam e são retomadas e
montadas para compor a narrativa fílmica final) e com a função de conceder a
oportunidade de direcionar o foco para trajetórias anteriores dentro do texto,
além de criar um espaço para ampliá-lo, levando a outro território temático,
portanto expandindo a trama e o olhar, permitindo ao leitor que construa a
narrativa em conjunto com o autor. O termo interrompido ainda pode se unir
aos termos: fragmentado, digressivo e paralelo com a finalidade de compor um
gênero que consiga narrar as questões relativas ao homem, à literatura, à
cultura, à sociedade, à falência e o enredamento do mundo.
Não existe uma colocação neutra por parte de Bolaño, quando da
construção de sua narrativa, as interrupções são feitas como um espelho da
vida que é vivenciada, todos os dias, por aqueles que habitam em países
periféricos, a crise é revelada como uma terapia de choque. Mesmo falando
133

sobre a crise financeira, as palavras de Žižek ajudam a compor o pensamento


de interrupção quando diz:
A crise financeira seria um momento de sobriedade, o despertar de
um sonho? Tudo depende de como ela será simbolizada, de qual
interpretação ou história ideológica se imporá e determinará a
percepção geral da crise. Quando o curso das coisas é interrompido
de forma traumática, abre-se campo para uma competição ideológica
―discursiva‖ – como aconteceu, por exemplo, na Alemanha no inicio
da década de 1930, quando, invocando a conspiração judaica, Hitler
triunfou na competição de qual narrativa melhor explicava as causas
da crise da República de Weimar e oferecia a melhor narrativa para
escapar da crise. (ŽIŽEK, 2011, p.27)

Consequentemente, analisar o capítulo a partir da interrupção, dá


margem não só para pensar que Bolaño propõe outra variante do gênero
policial, como para dizer onde cabem as reflexões sobre os acontecimentos
atuais e que o caminho de saída da crise, nesses países periféricos, pode estar
muito mais próximo da ideologia ―discursiva‖ de Hitler do que se possa
imaginar.
Há uma falha no sistema, a anomia está vigente, o perigo é iminente, o
colapso está cada vez mais perto, principalmente nas camadas sociais mais
pobres da sociedade. A narrativa predominante é a de crise, não só
econômica, mas também social, política e legal, que da maneira que é
conduzida pode adormecer os seres humanos e os levarem a pensar que o
despertar incomoda e que devem continuar sonhando. Mas sonhando com o
quê? O discurso é bem montado, o véu que encobre a visão daqueles que
precisam enxergar é bem opaco, portanto o despertar fica cada vez mais difícil,
mas não impossível. Daí a necessidade de narrativas que contribuam com
esse despertar e com o renascer da humanidade para que ela esteja disposta a
encarar a guerra contra o terror e não aceitar o que está sendo imposto pelo
sistema.
Por viverem em um estado de constante anomia, os que fazem parte
das sociedades dos países marginalizados, aceitam e levam como verdadeiro
qualquer discurso que os deixem aparentemente melhor, financeira e
socialmente, pois sabem que, em um Estado anômico, é muito difícil uma
punição e, além de aceitarem os discursos, os reescrevem para si e divulgam
para os que estão ao seu redor da maneira que mais lhes convêm. O micro,
cada vez mais, repete as ações do sistema macro. Não havendo punição
134

macro, também não haverá sanção no micro. Diante desse pensamento


―equivocado‖ as sociedades adoecem e entram em um abismo, em um
caminho sem volta, onde ganha quem tem mais poder, o fraco perde para o
mais esperto do momento.
Nessas brechas, onde surgem os pequenos e grandes delitos, as
ações de arruinar, matar, sonegar, corromper, iludir, explorar, violentar não são
mais sentidas como perversas, passam a ser entendidas como permitidas e de
algum modo, legais e a punição passa bem longe desse cenário.
O narrador de 2666 em La parte de los crímenes, faz que o leitor
aterrisse e constate a podridão do mundo e sinta que a cidade de Santa Teresa
é o espaço micro que reflete e contém o espaço macro, no caso a América
Latina, quiçá o mundo como um todo. A finalidade de Bolaño parece evidente,
a de mostrar que existe um horror humano que deve ser revelado, mas de um
modo cifrado, dado como pista, como enigma, como acontece tal qual em um
romance policial. E para levar a cabo sua finalidade, ele estrutura sua narrativa
dentro da infrarrealidade policial, onde a linguagem passa a ser breve e, ainda
que breve, seja capaz de dar conta de toda perversidade do mundo e das
circunstâncias que rodeiam o crime, nesse caso o feminicídio. Nesta parte,
toda brutalidade e crueldade são narradas com tantos detalhes e com tamanha
frieza e precisão que provocam náuseas em quem lê o texto:

Cuando ya finalizaba marzo, el mismo día, fueron encontradas las


dos últimas víctimas. La primera se llamaba Beverly Beltrán Hoyos.
Tenía dieciséis años y trabajaba en una maquiladora del Parque
Industrial General Sepúlveda. Su desaparición se produjo tres días
antes del hallazgo del cadáver. [...] Su cuerpo fue encontrado por
unos niños en unos baldíos al oeste del Parque Industrial General
Sepúlveda, un lugar de difícil acceso en coche. El cadáver
presentaba diversas heridas de arma en zona toráxica y abdominal.
Había sido violada vaginal y analmente y luego vestida por sus
asesinos, pues la ropa, la misma que llevaba cuando desapareció, no
mostraba ni un solo desgarrón ni agujero o quemadura de bala. El
caso lo llevó el judicial Lino Rivera, quien inició y agotó sus pesquisas
interrogando a las compañeras de trabajo y tratando de encontrar a
un novio inexistente. No se rastreó la zona del crimen ni nadie tomó
moldes de las numerosas huellas que había en el lugar. (BOLAÑO,
2013, p. 631-632)

Com o intuito de denúncia, de envolver o leitor na trama, a ponto que o


mesmo se sinta parte do horror, Bolaño cria uma atmosfera que se junta a sua
estética e monta esse capítulo, o mais político de todos. Sob a égide dos
135

corpos multilados, torturados, apresentadpos como emblema, símbolos de


derrota humana e aniquilamento, concentra Bolaño sua denúncia: corpos que
falam e clamam por justiça que nunca chega.

3.2 – Narrativas interrompidas

Sempre que alguém se dispõe a escrever sobre as questões literárias,


fica diante de muitos aspectos teóricos que podem ser analisados dentro de
uma determinada obra literária e entre eles se encontra a constituição da
estrutura narrativa dentro de um determinado gênero. Assim, serão expostas
algumas considerações para entender como, a partir da ideia de interrupção,
se elabora o romance infrapolicial. Por que não usar o conceito de
fragmentação no lugar de interrupção? A resposta a esta questão não é muito
simples, mas tenta ser esclarecedora. Porque, embora ambas percam o
sentido de totalidade, a fragmentação traz a ideia de quebra, de parte, de
porção, de hiato, de divisão, de ausência, de descontinuidade, de
individualização, de histórias incompletas e fracionadas que não são
retomadas, muitas vezes, sem começo, meio e fim. E a interrupção apresenta a
ideia de prosseguimento (interromper e retomar depois). O prefixo inter, cujo
significado é unir duas partes, liga um ponto a outro, entre e dentro,
acarretando a ideia de singularidade, de presença, de conjunto, de
justaposição, de retomada, de continuidade, de um final, mesmo que este não
seja o esperado, justamente o que acontece no capítulo que está sendo
analisado.
Existe o entendimento de que, nos outros capítulos, ou até mesmo na
costura desses capítulos, a narrativa de 2666 é fragmentada, sobretudo
quando apresenta os jogos de temporalidade, buscando uma forma não linear
do discurso. E os capítulos, ainda que autônomos e como fragmentos, compõe
um todo que é o livro, existindo uma coexistência entre os dois. A ideia
apresentada aqui será a de que a fragmentação dialoga com a digressão e a
interrupção com o paralelismo. Há que esclarecer que este capítulo, lido como
infrapolicial, usa a interrupção na base da sua elaboração, sem contar que os
prefixos infra e inter pressupõem ideias complementares, pois o que serve de
base (infra) tem uma relação de ligação (inter) com algo. As narrativas
136

interrompidas funcionam como base de estrutura do romance infrapolicial.


Narrativas contrárias, umas das outras, que na interrupção promovem a
continuidade e uma leitura única, conferindo à obra de Roberto Bolaño o valor
estético pretendido dentro do seu projeto literário, apresentado com uma
poética de produção e reprodução de interrupções aperfeiçoadas dentro de um
processo de construção aparentemente turbulento e caótico.
Como leitor, Roberto Bolaño era uma espécie de leitor enciclopédico 48,
eclético que lia Pascal, Lichetenberg, Wittgenstein e ao mesmo tempo Philip K.
Dick, James Ellroy, Rodrigo Fresán. De ficção científica à literatura policial,
passando pelos filmes da série B e X, de Edgar Allan Poe a Raymond Carver,
adentrando por Antón Chéjov, Jorge Luís Borges, Julio Cortázar e Georges
Perec. Sem deixar de lado a poesia dos franceses do século XIX e a dos
poetas chilenos Nicanor Parra e Enrique Lihn. Todas essas leituras e
escritores, de alguma maneira, influenciam a maneira diferente como Bolaño
trata a palavra e a estrutura literária nas suas obras e, além disso, ratificam que
a sua preocupação original é com a literatura, pois escrever, mais que alento e
complemento, é exercício, é profissão.
Existe dentro da sua forma de escrever uma interrupção entendida
como desconstrução (retomando a ideia de Derrida), que levará a uma
reconstrução estética de alguns gêneros narrativos, que passa pela ética e
pelos acontecimentos que estão no devir do século XXI: o terrorismo, a morte
pela morte, a falta de direitos humanos, a criminalidade e a violência nos três
níveis, a do Estado, a econômica e a da divisão da estrutura social. Nessa sua
desconstrução, para reconstruir, existe uma tensão entre política, ética e
estética que leva os seus leitores para além do que está visível, talvez para um
49
mundo infrapocalíptico que aponta para dentro da infraestrutura econômico-

48
Entende-se enciclopédico a partir da explicação dada pelo semiólogo italiano Omar
Calabrese, no seu livro, La era neobarroca: ―La enciclopedia se pensó no como lista de
ingresos finitas, ni como bloque cerrado de temas, sino como geografía de nudos temáticos,
cada uno representado por una condensación de argumentos entrelazados entre ellos y
colocable en el sistema global de manera centrada. Cada entrada, por tanto, hace referencia a
un nudo y el pasaje entre las voces constituye un laberinto. Nudo y laberinto se vuelven así en
la imagen estructural del saber mismo: un saber abierto, interdisciplinario, en movimiento,
continuamente sujeto al riesgo de la pérdida de orientación.‖ (1999, p. 152-153)
49
Este termo surge da junção de outros dois termos: infrarrealismo e postapocalipsis.
―Infra‖ remete ao já que foi apontado no capítulo dois e ―Apocalíptico‖ surge da ideia/conceito
postapocalipsis proposto por Carlos Monsiváis, citado por Juan Villoro em seu artigo El vértigo
horizontal. La ciudad de México como texto: “Nada lo define mejor que la noción de
137

social, descortinando os meandros de uma sociedade enferma, que teima em


não olhar para dentro de si mesma, se negando a fazer uma viagem
―infraexistencial‖. Se, dentro da sociedade, o que é dado como certo são as
aparências, nessa parte da obra de Bolaño paira uma dúvida e vem à tona
aquilo que está velado. Por exemplo, os assassinatos sem solução que
acontecem dentro da trama, sevem para quê? Não há mais como fechar os
olhos e não perceber que existe o feminicídio que muitos desconhecem e, se
conhecem, acham que é normal, faz parte, virou banal.
Nesta parte do romance, o autor descreve, enumera e cataloga, tal
como um criminalista, as centenas de cadáveres femininos, deixando o leitor
distante de uma interpretação cômoda e tranquila, mas ativando a sua
consciência, para tentar entender o que aqueles corpos reclamam. Além de
uma investigação policial, qual a profundidade e a possível transparência dos
fatos? Sim, houve crimes, mas como fazer que o leitor entenda a crueldade
(doença) dos fatos acontecidos que transita por trás dos assassinatos? Para
isso, o autor utilizará alguns recursos tais como: uma estrutura narrativa
interrompida; as inúmeras intertextualidades; ―intergenericidade‖50 e temas
variados dentro do mesmo capítulo que tentam achar uma possível saída do
labirinto. Mas esse pode ser um labirinto com várias saídas e muitas delas
falsas, levando o leitor a entrar e se perder dentro do mundo infrapocalíptico,
tal qual um buraco negro, o inferno, o caos, repleto de muitos nós, difíceis de
serem desatados que trazem a sensação de serem reais ainda que trágico.
As várias narrativas apresentadas nesse capítulo são interrompidas,
mas seguem o fluxo temporal, sequencial, dentro do espaço temporal proposto

postapocalipsis, a la que se ha referido Carlos Monsiváis. […] Nuestra mejor forma de combatir
el drama consiste en replegarlo a un pasado en el que ya ocurrió. Este peculiar engaño
colectivo permite pensar que estamos más allá del apocalipsis: somos el resultado y no la
causa de los males. Los signos de peligro nos rodean pero no son para nosotros porque ya
sobrevivimos de milagro. Imposible rastrear la radiación nuclear, el seísmo de diez grados o la
epidemia que nos dejó así. Lo decisivo es que estamos del otro lado de la desgracia. Diferir la
tragedia hacia un impreciso pasado es nuestra habitual terapia.‖ Portanto, infrapocalíptico
significará, a partir das duas ideias apontadas, um mergulho, uma incursão profunda, uma
subversão na/da realidade que já ultrapassou o horror, o caos, o colapso, a catástrofe cósmica,
o fim dos tempos, não só no âmbito humano, mas também no social, político e econômico,
onde não existe mais nenhuma possibilidade de utopia, deixando brotar novas sensações
obscuras e alegóricas.
50
O que é apontado como ―intergenericidade‖ – também conhecida como ―intertextualidade
intergêneros‖ ou somente ―intergênero‖ - é um diálogo entre gêneros diferentes, que trocam
informações e características e provoca, a partir dessa conversa, uma hibridização, momento
em que o texto passa a ter elementos variados pertencentes a vários gêneros, formando uma
espécie de quebra-cabeças.
138

que começa em 1993 e termina em 1997. Bolaño começa o capitulo


descrevendo a primeira mulher assassinada:

La muerta apareció en un pequeño descampado en La colonia Las


Flores. Vestía camiseta blanca de manga larga y falda de color
amarillo hasta las rodillas […] Eso ocurrió en 1993. En enero de 1993.
A partir de esta muerta comenzaron a contarse los asesinatos de
mujeres. Pero es probable que antes hubiera otras. (BOLAÑO, 2013,
p. 443)

Depois de algumas páginas expondo, com todos os detalhes possíveis, o


estado do corpo, das vestes e dos pertences das vítimas, além de apresentar
os investigadores e os chefes de polícia que averiguarão os casos, Bolaño
interrompe essas narrativas e começa a exposição de outra, que parece estar
fora de contexto, como se fosse uma colagem.
Interrompe as cenas dos assassinatos e narra a história de um
personagem peculiar, um homem que entra nas igrejas com a finalidade de
profanar seus espaços. A imprensa batiza esse sujeito como o penitente
endemoniado: ―En mayo ya no murió ninguna otra mujer [...] Pero a finales de
mes empezó el caso del profanador de iglesias. […] Padre, hay un hombre que
está haciendo sus necesidades en la iglesia, dijo la viejita‖ (BOLAÑO, 2013,
p.453). Esse penitente, além de urinar e defecar dentro das igrejas e sofrer de
uma doença denominada sacrofobia51, esfaqueou um sacristão e matou outros
dois homens, o padre e o zelador de uma das igrejas profanadas. Este caso foi
entregue a um investigador, Juan de Díos Martinez, que conhecerá a médica
psiquiatra Elvira Campos, diretora do manicômio de Santa Teresa.
Após a cena do penitente, voltam os relatos dos feminicídios, que
também são interrompidos para dar lugar à introdução do jornalista Sergio
González Rodríguez, cuja missão é fazer uma reportagem sobre o penitente,
mas acaba se inteirando da história das mulheres assassinadas. Agora é a vez
do leitor conhecer o início do envolvimento sexual entre o investigador e a
diretora do manicômio.
O registro e a estrutura usados pelo autor, para criar essas duas
narrativas interrompidas, se aproximam com os dos textos jornalísticos e das

51
Na obra, há uma passagem que explica o que venha ser sacrofobia: ―es el miedo o la
aversión a lo sagrado, a los objetos sagrados, particularmente a los de tu propia religión, dijo
Elvira Campos‖.(BOLAÑO, 2013, p. 475)
139

crônicas policiais que aparecem nos tabloides. Bolaño utiliza a intertextualidade


e a intergeneracidade, confundindo o leitor que, em muitos momentos, pensa
que está lendo uma reportagem, uma notícia saída em um jornal popular,
dadas as descrições precisas, além de usar uma linguagem simples,
referencial, permitindo que todos entendam. O uso do recurso de intergêneros
acontece quando Bolãnotoma como base para sua escrita op o livro do
jornalista mexicano, Sergio González Rodríguez, Huesos en el desierto. Ao
baserar-se nessa obra, Bolaño acercou-se às narrativas interrompidas, cujo
registro e estrutura fazem parte do modo de escrita jornalística.
A trama continua e há mais interrupções. Depois de mostrar a história
do penitente e voltar aos assassinatos das mulheres, é o momento de usar
recursos de outros tipos de textos, a fotonovela e o programa televisivo. O
narrador nos contará o envolvimento do investigador do caso do profanador
das igrejas com a psiquiatra encarregada de traçar o perfil desse personagem.
Nessa narrativa, que também sofrerá uma interrupção, o autor modifica e usa o
registro e a estrutura que se assemelham às narrações das fotonovelas, dos
folhetins ou dos livros que contam supostas histórias de amor com pitadas de
erotismo, além de, nesse momento, mudar o foco, pois o narrador e o
investigador se misturam e a cena é contada como se o investigador estivesse
por trás de uma câmera cinematográfica, percorrendo todo o ambiente, onde
tudo acontece, intercalando o ambiente onde se encontram com o diálogo entre
os personagens:

Pensó en poner el ejemplo de Drácula, que huía de los crucifijos, pero


supuso que la directora se reiría de él. ¿Y usted cree que el Penitente
sufre de sacrofobia? He estado pensando y creo que sí. Hace un par
de días destripó a un cura y a otra persona, dijo Juan de Dios
Martínez. El tipo del acordeón era muy joven, no más de veinte años,
y también era redondo como una manzana. Sus gestos, sin embargo,
eran los de un hombre de más de veinticinco, salvo cuando sonreía,
algo que hacía a menudo, y entonces uno se daba cuenta de golpe
de su juventud y de su inexperiencia. El cuchillo no lo lleva para
hacerle daño a nadie, a ningún ser vivo, quiero decir, sino para
destrozar las imágenes que encuentra en las iglesias, dijo la
directora. ¿Nos tuteamos?, le preguntó Juan de Dios Martínez. Elvira
Campos sonrió y movió la cabeza afirmativamente. Es usted una
mujer muy atractiva, dijo Juan de Dios Martínez. Delgada y atractiva.
¿A usted no le gustan las mujeres delgadas?, dijo la directora. La
violinista era más alta que el acordeonista e iba vestida con una blusa
negra y unas mallas negras. [...] Tenía el pelo lacio y largo hasta la
cintura y a veces cerraba los ojos, sobre todo en las partes donde el
acordeonista, además de tocar, cantaba. Lo más triste de todo, pensó
Juan de Dios Martínez, era que el narcotraficante o la espalda
140

trajeada del supuesto narco apenas se fijaba en ellos, ocupado en


conversar con un tipo con perfil de mangosta y con una fulana con
perfil de gata. ¿No nos tuteábamos?, dijo Juan de Dios Martínez. Así
es, dijo la directora. (BOLAÑO, 2013, p. 475 – 476)

Além da historieta de envolvimento sexual, entre os dois


personagens, surgirá uma narrativa que levará o leitor para o mundo televisivo,
já que aparecerá uma vidente, Florita Almada, convidada para participar de um
programa popular de TV, Una hora con Reinaldo. Essa senhora tem uma visão
com os assassinatos de mulheres, na cidade de Santa Teresa. O programa da
trama é como esses que vivem de seduzir e cativar o telespectador, um
programa de variedades onde o imediatismo e o não deixar que o outro pense,
impera, usando a morte como espetáculo e entretenimento, já que é um tipo de
produto que vende e tem público. Mais um registro e outra estratégia utilizada
pelo autor, para fazer com que o leitor sinta como se tivesse sentado no sofá
de casa assistindo a tal programa:

Florita Almada llegó muy mal y así nadie en La ciudad La vio, aunque el
programa al que ella estaba invitada, Una hora con Reinaldo, era uno de
los más populares de la televisión sonorense. Le tocó hablar después de
un ventrílocuo de Guaymas, […] Cerró los ojos. Abrió la boca. Su lengua
empezó a trabajar. Repitió la que ya había dicho: un desierto muy
grande, una ciudad muy grande, en el norte del estado, niñas
asesinadas, mujeres asesinadas. ¿Qué ciudad es ésa?, se preguntó. A
ver, ¿qué ciudad es ésa? Yo quiero saber cómo se llama esa ciudad del
demonio. […] ¡Es Santa Teresa! ¡Es Santa Teresa! Lo estoy viendo
clarito. Allí matan a las mujeres. Matan a mis hijas. (BOLAÑO, 2013, p.
544-547)

Com uma narrativa que faz um zigue-zague que intercala


características e estruturas de outros gêneros literários, o autor sempre volta
ao relato das mulheres assassinadas, contando outras histórias, como a do
jovem egresso do interior, Olegario Cura Expósito, conhecido como Lalo Cura,
que muda para a cidade, se converte no guarda-costas da mulher de um
narcotraficante, mas depois acaba virando um policial. Nesse seu novo papel,
ele encontra na delegacia uns livros (manuais) de técnicas de treinamento para
ser investigador, outro relato interrompido, mais uma paralisação do fluxo
narrativo, mais uma intertextualidade intergêneros. Nesse pedaço, a linguagem
usada é parecida com a usada nos manuais.
Dessa forma, os relatos continuam, depois de Lalo Cura e sua ligação
com o narcotráfico; há volta às narrativas das mortas, incluindo uma norte-
141

americana, momento em que também aparece um detetive norte-americano


para investigar o caso. Seguindo a enumeração, que são intercaladas com a
narrativa das mortes, o fluxo segue: volta o caso do investigador com a
psiquiatra; a vidente e o programa de televisão; o detetive norte-americano; a
visita do cônsul norte-americano ao prefeito de Santa Teresa; outra aparição da
vidente; a conclusão de que pode existir um serial killer, momento em que
encontram um suposto assassino, Klaus Haas, que é interrogado e preso como
sendo o matador das mulheres de Santa Teresa.
Como se nota, as interrupções não cessam: Haas na penitenciária; a
rotina e a violência no presídio; narcotráfico; mesmo com a prisão do suposto
criminoso, as mortes voltam acontecer; coletiva de imprensa com Klaus Haas;
mais cadáveres de mulheres assassinadas; Florita Almada volta a aparecer;
narcotráfico; volta à penitenciaria com a entrada de um criminoso integrante de
uma gangue; a história do criminoso; mais um encontro entre Elvira e Juan de
Díos; a indústria e snuff filmes (uma parte pesada dentro da trama); os médicos
legistas de Santa Teresa; conversa entre policiais: misoginia e machismo;
genealogia de Lalo Cura (aqui existe uma pista que remete o leitor ao livro Los
detectives salvajes, dando a entender que Lalo Dura pode ser filho de Ulisses
Lima ou de Arturo Belano); entra a história de Yolanda Palacio, encarregada
do Departamento de Delitos Sexuais de Santa Teresa; encontro entre o
jornalista Sergio González e o advogado de Reinaldo e Florita Almada; mais
relatos de mortes; Florita Almada encontra Sergio; Klaus Haas convoca
imprensa; a chegada de um detetive do FBI, Albert Kessler, em Santa Teresa;
o jornalista Sergio recebe um telefonema da deputada Azucena Esquivel Plata
para ajudá-la sobre uma amiga desaparecida.
Desde o aparecimento do detetive do FBI até o final do capítulo, além
dos feminicídios, as narrativas que serão relatadas são as que envolvem o
detetive, a deputada, o jornalista, e o suposto serial killer, Klaus Haas. O
capítulo termina com o último caso de 1997 que foi arquivado sem apresentar
nenhum culpado, mostrando, nas linhas finais, uma normalidade dentro de uma
realidade asfixiante:

Tanto este caso como el anterior fueron cerrados al cabo de tres días
de investigaciones más bien desganadas. Las navidades en Santa
Teresa se celebraron de la forma usual. Se hicieron posadas, se
rompieron piñatas, se bebió tequila y cerveza. Hasta en las calles
142

más humildes se oía a la gente reír. Algunas de estas calles eran


totalmente oscuras, similares a agujeros negros, y las risas que salían
de no se sabe dónde eran la única señal, la única información que
tenían los vecinos y los extraños para no perderse. (BOLAÑO, 2013,
p. 791)

Como se vê, nesse capítulo, existe um tema de base, os relatos das


mulheres assassinadas, que ajuda na composição da trama, por se tratar de
uma espécie de colagem ficcional que se utiliza das múltiplas interrupções para
formar um todo, mostrando ao leitor a possibilidade de criação de outra
categoria do gênero, que pode ser percebido e estudado como infrapolicial.
Como disse o próprio Bolaño no seu Manifesto Infrarrealista: ―‗Nuevas formas,
raras formas‘, como decía entre curioso y risueño el viejo Bertolt. [...] La
experiencia disparada, estructuras que se van devorando a sí mismas,
contradicciones locas.‖ (2013b, p. 53 e 55).

3.3 – Feminicídio52

A violência contra as mulheres se apresenta como um problema do


modelo de sociedade patriarcal, onde as mulheres ainda são vistas em uma
posição submissa, de reprodução, imperando o machismo, a misoginia, as
relações de poder e de ódio, ratificando o pensamento de Simone de Beauvoir,
em seu ensaio O segundo sexo (1970): ser mulher e/ou ser homem não
constitui em si uma entidade natural, pois depende de uma construção
histórica, política, social e cultural. A maneira de ser e atuar no mundo também
acontece através do corpo; no caso das mulheres, um corpo simbolicamente
frágil e passível de violação. (BEAUVOIR, 1970)
A partir da década de 1970, quando começa a haver uma mudança do
papel desempenhado pela mulher (que começa a atuar em áreas vistas como

52
Para entender o termo feminicídio, uso a Lei 13.104/15. Feminicídio é o homicídio qualificado
quando o crime for praticado por razões da condição de sexo feminino. O § 2º-A foi
acrescentado como norma explicativa do termo "razões da condição de sexo feminino",
esclarecendo que ocorrerá em duas hipóteses: a) violência doméstica e familiar; b)
menosprezo ou discriminação à condição de mulher, com alteração da pena para cada caso.
Por fim, a lei alterou o art. 1º da Lei 8072/90 (Lei de crimes hediondos) para incluir a
alteração, deixando claro que o feminicídio é nova modalidade de homic ídio qualificado,
entrando, portanto, no rol dos crimes hediondos.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/lei/L13104.htm
Acesso em:15.01.2017
143

masculinas, pretendendo igualdade em todos os níveis), os movimentos


feministas chamam atenção para as agressões e pelo reconhecimento da
violência contra as mulheres como sendo um problema social de graves
proporções, iniciando o processo de criminalização da violência de gênero, que
ainda hoje precisa ser discutido e analisado de perto, pois não existe o devido
respeito em relação ao papel da mulher na sociedade atual. Há mudanças no
padrão estabelecido, podendo a mulher ser provedora, consumidora, deixando
de ser reprodutora, mãe, dona de casa. Esse papel ainda choca e muitos
daqueles que agenciam o núcleo de poder querem a mulher de volta ao seu
papel inicial, o que já não é possível. Inicia-se, então, uma violência gratuita e
desmedida, só para dizer e ratificar quem tem a voz de comando.
A partir do entendimento de uma nova composição familiar, girando em
torno da figura feminina, do corpo feminino que deixa de pertencer ao espaço
privado, gera-se um incomodo e vários tipos de violência se revelam, e numa
escala progressiva a violência de gênero está compreendida desde o assédio
moral ao assassinato das mulheres. Apresentar uma análise das narrativas
interrompidas das mulheres violentadas e assassinadas, que povoam a trama
do capítulo, La parte de los crímines, é desafiador, pois muito já foi dito sobre o
assunto e a tentativa será a de trazer um novo olhar, a partir da obra de
Bolaño. É importante destacar que, quem lê essa parte da obra, começa a
entender a estreita relação do feminicídio com as relações econômicas e de
poder. Algumas questões são incentivadoras para esse entendimento: que
tipos de vidas interrompidas são essas? As mulheres assassinadas pertencem
a que classe social? Afinal, analisar esses aspectos é importante para o
entendimento da obra como um todo?

Feminicídio uma “tranquila” 53 e anômala destruição de corpos

Pode-se dizer, partindo da ideia de corpo como espaço simbólico e


sagrado, que existe um aspecto ―infra‖ (mais profundo e mais na base do
problema) que pode esclarecer a violência contra as mulheres – tanto na
cidade ficcional Santa Teresa como na real Ciudad Juárez. Este aspecto

53
A palavra tranquila usada no sentido de ser normal, de não causar nenhuma surpresa, nem
espanto, já que faz parte da vida das pessoas e visto como normal.
144

apontado como ―infra‖ está ligado à construção política do papel da mulher na


sociedade e a arraigados padrões culturais que as desprezam, negando a elas
o direito de ter voz e ainda, o mais elementar, o direito à vida, sujeitando-as à
exclusão, à opressão dentro e fora do meio familiar, nas relações afetivas,
dando chance ao ato mais grave que possa acometê-las: o feminicídio.
Feminicídio se refere aos homens que matam as mulheres e que usam,
sobre elas, uma violenta ação sexual contínua e inadequada, apenas por
serem mulheres. Esse fenômeno acontece, geralmente, em condições de
desigualdade econômica, onde inexiste uma política social que trate das
questões de gênero; além disso, há certa tolerância e minimização, por parte
do governo e instituições religiosas, em relação a esses assuntos, levando à
impunidade. Essa tolerância e impunidade trazem uma mensagem implícita de
permissividade social, mas também aponta que o ser mais frágil pode ser
exterminado.
O termo feminicídio, com base na lei que já foi mencionada, refere-se ao
homicídio decorrente dos maus tratos sexuais, nos quais estão presentes a
violação, a tortura, a mutilação e o extermínio das mulheres trabalhadoras,
meninas estudantes e prostitutas que acontecem fora do espaço domiciliar ou
dentro dele, transgredindo os direitos dessas mulheres como ser humano. A
violência exercida sobre as mulheres já se faz presente antes mesmo do
assassinato, pois aparecem nas diversas formas de maltrato, dano, repúdio,
assédio e abandono ao longo de suas vidas e continua, mesmo depois que
elas deixaram de existir, por causa da impunidade.
Geralmente, os crimes cometidos contras as mulheres são perpetrados
por homens desesperados e rejeitados psicológica e socialmente, por isso
refletem uma forma de impor e de delimitar espaço de poder, mas não pelo
diálogo e sim pela simples e gratuita agressão. Muitos desses assassinatos
estão ligados ao crime organizado, ao poder político e religioso, ao tráfico de
pessoas, de drogas, de armas, ao dinheiro e à mercadoria, a ações que giram
em torno das relações econômicas e muitos são classificados como em série –
aqueles que repetem um padrão. Esses assassinatos, em que a vítima não
conhece o seu algoz e fica privada de sua liberdade, viram uma espécie de
espetáculo explorado pelos meios de comunicação (TV, rádio, jornais, revistas
145

e internet) e passam a ser vistos como produto, pois reproduzir e explorar a


violência dá lucro.
Além disso, esses crimes acontecem em um contexto de violência
doméstica extrema ou em situação de insegurança pública e nas camadas em
que existe uma condição econômica e social marginal, se aproximando a um
mecanismo simbólico de poder contra as mulheres e mostram, em especial, a
crueldade sobre os corpos e a vida delas, apresentando novos componentes
de violência de gênero.
As mulheres que estão vulneráveis e sem proteção institucional,
geralmente vivem em zonas de ruína social onde predominam a insegurança, o
delito, a ilegalidade, o desmantelo das instituições e a ruptura do estado de
direito. Essas vítimas têm condições de vida precária, são invisíveis e tratadas
como coisas, pois devido à falta de proteção social, sindical e o desnível de
função laboral estão sujeitas a realizar as tarefas mais precárias e secundárias,
onde a jornada de trabalho é mais longa, o salário menor e a exploração é
explícita. A construção da cidadania feminina é desigual e heterogênea, porque
a mulher sempre é colocada em uma condição menor e de submissão, cujos
direitos, a elas reservados, são o da agressão, do castigo e da vingança. Uma
passagem da obra mostra um momento em que os policiais estão de folga e
começam a fazer piadas misóginas, diminuindo a figura feminina:

A esa misma hora los policías que acababan el servicio se juntaban a


desayunar en la cafetería Trejo‘s, un local oblongo y con pocas
ventanas, parecido a un ataúd. Allí bebían café y comían huevos a la
ranchera o huevos a la mexicana o huevos con tocino o huevos
estrellados. Y se contaban chistes. A veces eran monográficos. Los
chistes. Y abundaban aquellos que iban sobre mujeres. Por ejemplo,
un policía decía: ¿cómo es la mujer perfecta? Pues de medio metro,
orejona, con la cabeza plana, sin dientes y muy fea. ¿Por qué? Pues
de medio metro para que te llegue exactamente a la cintura, buey,
orejona para manejarla con facilidad, con la cabeza plana para tener
un lugar donde poner tu cerveza, sin dientes para que no te haga
daño en la verga y muy fea para que ningún hijo de puta te la robe.
Algunos se reían. [...] Y el contador de chistes decía: a ver, valedores,
defínanme una mujer. Silencio. Y la respuesta: pues un conjunto de
células medianamente organizadas que rodean a una vagina. Y
entonces alguien se reía, un judicial, muy bueno ése, González, un
conjunto de células, sí, señor. Y otro más, éste internacional: ¿por
qué la Estatua de la Libertad es mujer? Porque necesitaban a alguien
con la cabeza hueca para poner el mirador. Y otro: ¿en cuántas
partes se divide el cerebro de una mujer? ¡Pues depende, valedores!
¿Depende de qué, González? Depende de lo duro que le pegues. Y
ya caliente: ¿por qué las mujeres no pueden contar hasta setenta?
146

Porque al llegar al sesentainueve ya tienen la boca llena. Y más


caliente [...] (BOLAÑO, 2013, 689-690)

Várias explicações são dadas para que ocorra o feminicídio, mas a


mais recorrente é dizer que a culpa é da própria vítima e que os homens
comentem o crime porque, naquele momento, apresentavam um estado
alterado de consciência proveniente do uso de drogas ou álcool, ou porque é a
mulher quem provoca o homem e ele se altera, pois essa é a sua natureza, se
alterar e atacar a sua presa. Eles foram educados para reagir com violência
ante a todos os fatos que não gostam ou quando se sintam ameaçados, como
forma de afirmação e soberania de poder, assim sentem-se menos impotentes
e muito competentes.
As mulheres, vítimas de tal ação, não têm importância nenhuma para o
Estado, já que os seus direitos trabalhistas e humanos são violados, pertencem
a uma classe social sem valor político e econômico e são facilmente
difamadas, caluniadas, desonradas, substituídas e terminam, com essa
postura, sofrendo outro tipo de violência, a simbólica, um tipo de violência que
não deixa marcas aparentes.
Existem vários estudos sobre feminicídio, principalmente no México,
mas um trecho de um dos estudos servirá para ilustrar e compreender as
narrativas interrompidas das mulheres dentro do romance:

En 2003, 35.4 por ciento de las mujeres de 15 año y más, unidas y


residentes con su pareja, sufrían de violencia emocional ejercida por
su compañero o cónyuge, 27.3 por ciento padecían violencia
económica, 9.3 violencia física y 7.8 violencia sexual. Los estragos
que dejan la violencia en las mujeres y todos los miembros de su
familia son difíciles de reparar. Una vida con violencia impide a las
54
mujeres desarrollarse de manera autónoma.

Roberto Bolaño mostra que a literatura é um espaço importante que


traz à tona temas que devem ser debatidos e refletidos por toda sociedade e
entres esses temas aparecem o desaparecimento, o assassinato e a

54
Dados presentes no Segundo Informe de Gestión. Comisión para Prevenir y Erradicar la
Violencia contra las Mujeres en Ciudad Juárez. México, 2004. Disponível em:
http://www3.diputados.gob.mx/camara/content/download/208364/510442/file/Segundo%20Infor
me%20de%20gestion.pdf. Acesso em: 07.06.2016
147

decomposição dos corpos de mulheres brutalmente violadas e assassinadas:


―[...] fue encontrado um cuerpo de una niña de trece años, [...] su pecho
derecho había sido amputado y El pezón de su pecho izquierdo arrancado a
mordidas. [...] Había sido violada repetidas veces y acuchillada [...]‖ (BOLAÑO,
2013, p. 584).
No romance, o fenômeno do feminicídio aparece dentro de um contexto
específico: final do século XX, em uma cidade precisa, Santa Teresa,
localizada na fronteira com os Estados Unidos. Os crimes são contra mulheres
jovens, pobres, que foram sequestradas, torturadas, violentadas, mutiladas,
provavelmente por homens desconhecidos. Dentro da teoria do feminicídio, o
impulso de ódio, em relação à mulher, acontece como consequência da
infração, por parte delas, das leis que regem o patriarcado: a norma de controle
e /ou possessão do corpo feminino e a norma da superioridade masculina. A
corrente de ódio se dá quando a mulher ascende às posições de autoridade ou
de poder econômico, política e tradicionalmente ocupadas por homens. Neste
sentido, os crimes do patriarcado são, claramente, crimes de poder, ou seja,
crimes cuja dupla função é, neste modelo, simultaneamente, a retenção ou a
manutenção do poder e a reprodução do poder.
Dentro da trama, o feminicídio é muito mais que apenas assassinatos;
eles funcionam como uma metáfora da barbárie que está sendo disseminada
em todas as partes do mundo e em alguns lugares com mais ênfase do que em
outros. Essa metáfora mostra a entrada em um século atormentado, onde os
menos desprovidos de capital são suprimidos e abusados, sequestrados em
seus direitos de ser no mundo, formando uma classe precária. Existe uma
passagem que dialoga com essa reflexão, quando um dos personagens, o
jornalista Fate, conversa com o seu chefe de sessão e propõe a elaboração de
um artigo para o jornal.

Cuando su jefe de sección se puso al teléfono Fate le explicó lo que


estaba sucediendo en Santa Teresa. Fue una explicación sucinta de
su reportaje. Le habló de los asesinatos de mujeres de la posibilidad
de que todos los crímines hubieran sido cometidos por una o dos
personas, lo que convertía en los mayores asesinos en serie de la
historia, le habló del narcotráfico y de la frontera, de la corrupción
policial y del crecimiento desmesurado de la ciudad […] –Un retrato
del mundo industrial en el Tercer Mundo […] un aide-mémoire de la
situación actual de México, una panorámica de la frontera. (BOLAÑO,
2013, p. 373)
148

O perfil das mulheres que são encontradas sem vida, apresenta traços
comuns: mulheres jovens com um tipo definido, trabalhadoras, com pouco grau
de instrução, ou jovens estudantes (muitas são adolescentes) egressas das
cidades interioranas de outros estados mexicanos, contratadas como mão de
obra barata e que devem produzir em larga escala, portanto, permitindo o
controle e a disciplina que servem ao hipercapitalismo. As mulheres são
sequestradas, privadas de sua liberdade por alguns dias, sofrem tortura,
mutilações, são estranguladas e assassinadas e encontradas próximas às
maquiladoras ou aos parques industriais, lugares que são fonte de trabalho da
maioria delas, mas as pistas e evidências dos crimes são desconsideradas,
extraviadas, advogados e jornalista são ameaçados e, por parte das
instituições, há uma pressão para que não se descubra o culpado.
O capítulo começa e termina com a descrição detalhada das mulheres
sem vida, destratadas, humilhadas, exibidas como nada e usadas como e para
promover o espetáculo. As vítimas passam a ser vistas como as criminosas
delas mesmas, como se tivessem provocado a própria destruição, como se sua
morte fosse merecida e logo caem no esquecimento, pois aquelas vidas não
têm nenhuma função dentro da sociedade. O simples fato de ser mulher já é
um delito. As vítimas deixam de ter um nome e até mesmo um corpo, passam
a ser refugo, resíduo que deve ser descartado imediatamente.
Nessa parte, são narrados mais de cem casos de feminicídio. Como
Bolaño se baseou nos documentos e acontecimentos reais apresentados pelo
jornalista Sergio González Rodríguez, dentro da sua narrativa ficcional, ele
também abordará diferentes tipos de feminicídios: os causados por motivos
sexuais, os sexistas e os cometidos por causa da condição de dependência
química do agressor e pelo narcotráfico. As quantidades desses tipos de
crimes assinalam o descaso, a indiferença, a pseudo-incompetência e/ou a
cumplicidade entre autoridades policiais, a justiça e o próprio Estado, já que os
crimes se repetem e não são desvendados e, diante de tal silêncio dos órgãos
competentes, todos acabam perdendo a batalha.
Ao interromper e voltar a narrar com detalhes os assassinatos das
mulheres, talvez a intenção do narrador seja mostrar que a repetição exaustiva
sirva como um mecanismo que dê conta de denunciar o caos, o horror, a
barbárie, o inferno. Colocar o leitor frente a esse mundo infrapocalíptico seria
149

dizer e assinalar que todos são responsáveis pela morte dessas mulheres, pois
se calam diante da tal monstruosidade, tornando-a ordinária e fútil. Na
verdade, tornar-se fútil deveria ser incômodo e não uma aceitação. Portanto,
repetir o horror seria uma maneira de tirar o ser humano da passividade na
qual se encontra e da qual parece não querer despertar. Por isso, essas
narrativas interrompidas de Bolaño mostram que nada é simples, sempre
existirá um sentido oculto, uma intenção, que talvez seja a de esfregar na cara
da humanidade sua inércia diante de alguns assuntos polêmicos.
Bolaño chama a atenção e faz sua denúncia sobre a desvantagem do
sexo feminino e sua submissão, quando seleciona os papéis dos personagens
que compõe o capítulo, dizendo que o status de poder se encontra no sexo
masculino, pois esses são os policiais, os investigadores, o prefeito, o chefe de
policia, o médico legista, o profanador, os narcotraficantes, os jornalistas, os
integrantes das gangues, o cineasta, o agente do FBI, os assassinos, como se
todos eles fizessem parte de uma rede maior, ligada à corrupção e à
ilegalidade, até mesmo pelo fato do serial killer (o bode expiatório) ser um
estrangeiro, revelando que os homens do lugar, daquela cidade, têm um pacto
implícito, de não delatarem uns aos outro. Segue uma passagem do capítulo
como exemplo da formação da rede de cumplicidade:

En enero de 1997 fueron detenidos cinco integrantes de la banda los


Bisontes. Se les acusó de varios asesinatos cometidos con
posterioridad al apresamiento de Haas. Los detenidos eran Sebastián
Rosales, de diecinueve años, Carlos Camilo Alonso, de veinte, René
Gardea, de diecisiete, Julio Bustamante, de diecinueve, y Roberto
Aguilera, de veinte.[...] Los cinco tenían antecedentes de abusos
sexuales y dos de ellos, Sebastián Rosales y Carlos Camilo Alonso,
habían estado en prisión preventiva por la violación de una menor,
María Inés Rosales, prima carnal de Sebastián, la cual retiró la
denuncia a los pocos meses de haber ingresado éste en el penal de
Santa Teresa. [...] A los cinco se les acusó de haber secuestrado,
violado, torturado y asesinado a las dos mujeres muertas halladas en
el barranco de Podestá, así como de la muerte de Marisol Camarena,
cuyo cadáver fue encontrado en un tambo lleno de ácido, y de la
muerte de Guadalupe Elena Blanco, además de los asesinatos de
Estefanía y Herminia. [...] Por otra parte, cuando los Bisontes ya
estaban detenidos, se descubrió casualmente que uno de ellos,
Roberto Aguilera, era el hermano menor de un tal Jesús Aguilera,
interno en el penal de Santa Teresa y apodado el Tequila, gran amigo
y protegido de Klaus Haas. Las conclusiones no tardaron en
materializarse. Era muy probable, dijo la policía, que la serie de
asesinatos protagonizados por los Bisontes fueran asesinatos por
encargo. Haas pagaba, según esta versión, tres mil dólares por cada
muerta que reuniera unas características semejantes a sus propios
asesinatos. (BOLAÑO, 2013, p. 672-673)
150

Quanto ao papel feminino, é representado por mulheres frágeis que são


as assassinadas, a louca vidente, as mães que não sabem onde buscar as
filhas e a advogada Klaus Haas que acaba se apaixonando pelo cliente, ou a
encarregada do Departamento de Delitos Sexuais de Santa Teresa: ―Yolanda
Palacio y era una mujer de unos treinta años, de piel clara y pelo castaño,
formal, aunque detrás de su formalidad se vislumbraba el deseo de ser feliz, el
deseo de la fiesta permanente‖ (Idem, p. 703); e quando elas exercem um
papel que envolve algum tipo de poder, as mulheres agem como se fossem
homens; por exemplo, é Elvira quem define como, quando, onde e com que
regularidade vai encontrar o amante: ―Elvira Campos, por el contrario, no
quería ni oír hablar de una relación pública. [...] Encuentros personales cada
quince días. Un vaso de whisky o de vodka Absolut y paisajes nocturnos.
Despedidas esterilizadas.‖ (Idem, p. 532) ; ou como a deputada Azucena que
não pode aparecer e se encontra clandestinamente com o jornalista para
investigar o sumiço da amiga sem que ninguém saiba que é ela quem está por
trás da investigação: ―Sergio González Rodríguez recibió la llamada telefónica
de Azucena Esquivel Plata, periodista y diputada del PRI. Cuando contestó al
teléfono, [...] escuchó una voz de mujer, recia, mandona, imperativa, una voz
que no estaba acostumbrada a pedir perdón ni a que le dieran excusas.‖ (Idem,
p.729)
Depois de uma vasta pesquisa e leitura de vários artigos sobre
feminicídio, chega-se à conclusão da existência de uma epidemia de machismo
e misoginia, além disso, as pesquisas também confirmam que, na maioria dos
eventos, há uma relação de parentesco entre as vítimas e os criminosos.
151

3.4 – Anomia

Las ciudades no son sólo un fenómeno físico, un modo


de ocupar el espacio, de aglomerarse, sino también
lugares donde ocurren fenómenos expresivos que entran
en tensión con la racionalización con las pretensiones de
racionalizar la vida social. Han sido sobre todo las
industrias culturales de la expresividad, como
constituyentes del orden y de las experiencias urbanas
55
las que han tematizado esta cuestión.
Néstor García Canclini

As metrópoles, de um modo geral, para muitos artistas, inclusive os


escritores, passam a ser vistas como locus de imaginação e de algumas
utopias, principalmente a partir dos anos de 1930 em diante. Além disso, estão
associadas a um sistema econômico complexo e diferente das que estão no
interior. E quando se trata de uma cidade urbana que está localizada na
fronteira de um país, as complexidades são outras. O que pretende Bolaño
quando desloca a trama do seu livro para uma cidade de fronteira? Por que a
cidade de fronteira vira um tipo de texto, ou mesmo um personagem? Pode-se
dizer que, entre vários aspectos, as cidades de fronteira possuem um valor
simbólico, que foi sendo construído e desenvolvido, não só fisicamente, mas
também dentro do imaginário daqueles que a habitam. Seus moradores
projetam suas expectativas de outro modo, diferente dos que vivem em cidades
que fogem a essa característica, pois existe uma possibilidade de maior de
travessia, de cruzamento, por isso adquirindo outro sentido para seus
habitantes.
No caso específico da cidade de 2666, a ficcional Santa Teresa, um
referente a várias cidades reais, Bolaño insiste em sublinhar o grotesco e o
marginal como possível fonte de resposta para as perguntas sobre o que
ocorre.
Santa Teresa, a cidade do romance, ultrapassa os aspectos abordados
no fragmento citado de Néstor García Canclini, pois, além de ser uma cidade
imaginada como ―real‖, está localizada na fronteira, lugar onde existe uma
porosidade entre o legal e o ilegal, o formal e o informal, onde transitam todos

55
Fragmento do livro: CANCLINI, Néstor García. Imaginarios urbanos. Buenos Aires: Editorial
Universitaria de Buenos Aires, 1999, p. 72.
152

os tipos de pessoas, aquelas que estão atrás das oportunidades sejam elas
legais ou não. Uma cidade que possibilita a organização de cartéis, fazendo
com que as atividades ilícitas cresçam e se expandam, interagindo com o
cotidiano urbano, aumentando a violência e desenhando uma arquitetura
entendida como territorialidade móvel, deslocada entre os países fronteiriços,
entre a rua e a prisão.
É muito difícil estabelecer qual o domínio territorial das cidades que se
encontram nas fronteiras, qual o lado a ser seguido, qual processo político-
econômico-legal que impera? As relações, nesse espaço, se dão de maneira
distinta, talvez seja na junção ou no intercâmbio entre os territórios que
aconteça o processo. A cidade de Santa Teresa vive em torno da economia
gerada pelas maquiladoras, o que acaba desenvolvendo uma população com
baixos salários, onde vivem pessoas em condições precárias para as quais
viver se torna uma aventura complexa. Essa fonte de renda, ainda que pouca,
atrai muita gente à fronteira, principalmente as mulheres jovens, de origem
humilde, exato perfil das que serão assassinadas durante a narrativa. As
relações que se formam nessa cidade, acontecem de maneira conturbada,
caótica e acabam sendo uma fotografia da própria condição de fronteira, que
pode ser ultrapassada a qualquer momento, vivida como líquida e passageira.
As ações, os crimes e a vida, dentro do romance, acontecem do lado
mexicano da fronteira, o lado pobre, sombrio, desumano e ―bárbaro‖. A
fronteira, a todo momento, desperta a vontade da travessia para o lado dos
Estados Unidos, onde se vislumbra a possibilidade de uma vida melhor, o lado
desenvolvido, rico, humano e ―civilizado‖.
A divisão da cidade de Santa Teresa como um lugar onde ocorrem os
crimes, zona residencial e polo industrial, não diz quase nada se não forem
analisados os índices de violência em comparação aos indicadores de
infraestrutura, migração e ingressos. Dentro da narrativa o autor deixa claro
que existe uma deficiência de infraestrutura urbana, pois as mulheres
assassinadas moram em zonas que carecem de serviços básicos, como água,
esgoto e eletricidade e são nessas áreas residenciais onde vive o maior
número de trabalhadoras das maquiladoras.
Diante desse cenário urbano, La parte de los crímines tem como
topografia a cidade de Santa Teresa, local para onde se direcionam todas as
153

outras cinco partes do romance, todos os caminhos levam a ela. Levar todas as
partes do romance para esta cidade é umas das saídas, que o autor encontra,
para romper e desarticular com o rigor estrutural e narrativo apresentados nas
primeiras produções do gênero policial.
Santa Teresa é uma cidade que reproduz as condições do estado de
exceção, um pedaço de território fora da ordem judicial, onde todos os
acontecimentos são possíveis, onde os seus habitantes perderam os seus
direitos como cidadãos e podem ser aniquilados com total impunidade, local
em que o ser humano está abandonado e excluído; o ser humano é visto e
tratado como resíduo. (JARA, 2011)
Esse território, onde ocorrem os crimes, mostra aspectos importantes
que estão relacionados com as camadas sociais; nesse caso, as com menos
recurso econômico. Entre esses aspectos figuram a quebra de hierarquia de
categoria dos personagens que transitam pelo lugar, eles não são nem
protagonistas, nem secundários, se misturam e se revezam nos papéis,
rompendo outra fronteira, no caso a literária. Não existe um personagem
principal; há hibridez na sua construção, os personagens não são nem bons,
nem maus, culpados ou inocentes e as vítimas aparecem como mais uma na
estatística de morte, pois não possuem visibilidade social para que se cumpra a
lei. Portanto, não fará diferença no cotidiano da cidade quem morreu e quem
matou, basta uma resposta à população, mesmo que o culpado dos crimes
seja um inocente. O acesso a esta parte do romance promove uma tensão
entre o que se entende por modernidade periférica e fronteiras no mundo
latino-americano.
A tensão está no fato da cidade ficcional de Santa Teresa ser a
correspondente de Ciudad Juárez que se encontra na fronteira com os Estados
Unidos, sendo a cidade aonde todos os personagens e histórias narradas, em
2666, chegam, se encontram, transitam ou vivem. Poderia ser pensada como
protagonista dentro da obra, mas, na realidade, Santa Teresa é um posto
alfandegário, um posto de cruzamento entre La Ciudad del Paso y Ciudad
Juárez, uma zona de livre comércio, onde foram instaladas várias indústrias
maquiladoras de automóveis, de dispositivos elétricos e eletrônicos e quase
todas são de capital estrangeiro. Esta cidade de fronteira é um espaço de
limite, de extremidade, de ruptura, de interdição e, ao mesmo tempo, de fluxo,
154

de deslocamento, de vizinhança. Nesse espaço, quem a atravessa precisa


mostrar um documento que permite tal travessia, porque sem ele se configura
a possibilidade da fuga, o delito. Além disso, por ser um espaço limítrofe, sua
linha imaginária, é pluricultural, heterogênea, uma zona de troca onde essa
diferença se mistura e produz política, cultura e forma uma classe condizente
com suas características, podendo ser, simbolicamente, determinada como tal,
por ter atributos de abertura para o desconhecido.
Pode-se fazer uma analogia com o mito da travessia para os reinos
subterrâneos, para a terra dos mortos, o mundo inferior, o mundo de Hades.
Para entrar no reino de Hades, o morto era enterrado com uma moeda dentro
da boca que seria usada como pagamento a Caronte, o barqueiro responsável
de conduzir as almas para o mundo dos mortos. A moeda equivale ao
passaporte para cruzar a fronteira; se não houvesse essa paga, a travessia
seria interrompida, o cruzamento do rio até o reino de Hades não aconteceria.
Fazendo a comparação com esse mito, em uma entrevista, quando perguntado
como seria o inferno, Bolaño responde: ―Ciudad Juárez, que es nuestra
maldición y nuestro espejo, el espejo desasosegado de nuestras frustraciones
y de nuestra infame interpretación de la libertad y de nuestros deseos.‖
(BOLAÑO, 2009, p. 339). O reino de Hades seria a obra 2666 e, para chegar
até esse cemitério, é necessário ter uma moeda como passaporte para sua
travessia: a disposição de leitura.
Dentro da própria cidade de Santa Teresa existem muitos espaços de
fronteiras; de um lado, as indústrias maquiladoras com alta tecnologia, e os
bairros abastados, onde circula o capital; do outro, o deserto, os terrenos
baldios, os lixões, os bairros pobres onde moram as pessoas que servem ao
capital e acabam sendo vítimas da violência quando não cumprem bem o seu
papel. Talvez em uma cidade fronteiriça a barbárie possa ser vista como
normal, pois existe uma rota e possibilidade de fuga, o que permite às
autoridades dizerem que qualquer um que tenha cometido algum tipo de delito,
pode ter atravessado a fronteira. Na cidade de Santa Teresa, a intervenção
divina passa longe, pois é uma cidade localizada no deserto, condenada à
corrupção, a abusos, à impunidade; no caso a estrada e o deserto, diferente do
rio de Caronte, são os espaços que separam não só dois países, mas a vida da
155

morte e cruzá-las também pode ser um passaporte para condenação. Santa


Teresa aparece descrita assim:

Entraron por el sur de Santa Teresa y la ciudad les pareció un


enorme campamento de gitanos o de refugiados dispuestos a
ponerse en marcha a la más mínima señal.[...] Hacia el oeste la
ciudad era muy pobre, con la mayoría de las calles sin asfaltar y un
mar de casas construidas con rapidez y materiales de desecho.
[...]Hacia el este estaban los barrios de clase media y clase alta. Allí
vieron avenidas con árboles cuidados y parques infantiles públicos y
centros comerciales. [...]En el norte encontraron fábricas y tinglados
abandonados, y una calle llena de bares y tiendas de souvenirs y
pequeños hoteles, donde se decía que nunca se dormía, y en la
periferia más barrios pobres, aunque menos abigarrados, y lotes
baldíos [...]En el sur descubrieron vías férreas y campos de fútbol
para indigentes [...] y dos carreteras que salían de la ciudad, y un
barranco que se había transformado en un basurero, y barrios que
crecían cojos o mancos o ciegos y de vez en cuando, a lo lejos, las
estructuras de un depósito industrial, el horizonte de las
maquiladoras. [...]En la parte norte vieron una cerca que separaba a
Estados Unidos de México y más allá de la cerca contemplaron,
bajándose esta vez del coche, el desierto de Arizona. (BOLAÑO,
2013, p. 149, 170 e 171)

La parte de los crímines apresenta uma cidade onde o abismo, o


deserto e a fronteira se intensificam, uma cidade sem lei, pois são nesses
lugares interrompidos que são encontrados os corpos das mulheres
assassinadas, muitas delas sem identificação e outras cujo assassinato ainda
não foi solucionado, algumas que desejavam atravessar a fronteira para o lado
do país rico e outras que queriam ultrapassar a fronteira social, trabalhando
para chegar a outro patamar de poder aquisitivo, mas todas elas com uma sina
comum: perderem a vida em um espaço onde a violência não esbarra em
nenhum tipo de fronteira, a não ser a da irracionalidade delimitada por um fio
quase transparente de não ser, assim como é a América Latina em relação aos
Estados Unidos.
Santa Teresa é uma cidade sem esperança, que não perdoa, e quem
passa por ela não deixa de fazer parte do momento infrapocalíptico pelo qual a
humanidade passa, um mundo em desordem e repleto de desilusão. A cidade
também sugere outra metáfora: o espaço de fronteira entre realidade e ficção,
entre o mundo real e o literário, onde escrever é o momento de mostrar o
desapontamento, pois a derrota também se apresenta na forma de como será
descrita tal realidade; as formas e estratégias de como fazê-lo parecem que se
156

esgotaram, ou devem ser pensadas como fronteira, como interrupção que não
perturbam a fluidez da narativa.
A fronteira também pode apresentar-se como um espaço de tensões
dialéticas tais como ação/reação ou inércia, lugar e não lugar, diálogo e
imposição, disputa e aceitação, uma linha imaginária (ou não) que divide duas
realidades diferentes. A ideia de fronteira (até onde se deve ir) também
acontece na violência e no desespero, nos amores desenfreados e impossíveis
e nas buscas descabidas. Ultrapassa o limite que divide os territórios,
passando pelas formas de ser, agir, buscar, sendo percebida como algo que se
deve cruzar∕atravessar, passar de um lugar a outro, de uma etapa a outra. No
caso de Roberto Bolaño, passar de um tipo de escritura a outro, mudar o modo
de narrar, até mesmo inovar a estrutura de um gênero.
Não existem fronteiras, as quais não se deseja cruzar, ver o que está
do outro lado, a possibilidade de ser ou fazer diferente, escrever ou reescrever
de um modo onde barreiras devem ser transpostas, ações intrínsecas ao ser
humano que sempre teve a curiosidade de ver aquilo que é diferente, o que
está do outro lado da página, da vida, da cidade, dos afetos e dos crimes.
A partir do ponto de vista de García Canclini, as fronteiras, assim como
algumas cidades, são imaginadas por aqueles que desejam atravessá-las,
portanto a escrita de Bolaño, especialmente em La parte de los crímines, pode
ser vista, lida e analisada com um potencial que tanto bebe da realidade
imediata assim como do imaginário que a cidade traz em si. Também pode ser
considerada através de seus múltiplos discursos, gerando a possibilidade de
serem verdadeiros, embora carregados de heterogeneidade. As palavras de
Canclini ratificam tal percepção:

Este reordenamiento del mundo puede sintetizarse en dos palabras:


el pasaje de la internacionalización a la globalización. Llamamos
internacionalización a la apertura de las fronteras geográficas de cada
sociedad para incorporar bienes y mensajes de otras culturas
dispersas, generadas por un sistema con muchos centros, en el que
son más decisivas la velocidad para recorrer el mundo y las
estrategias para seducir a los públicos que la inercia de las
tradiciones locales. (CANCLINI, 1999, p.42)

A estrutura dessa escrita, a proposta por Bolaño, é um tipo de abertura


a outras formas de narrativa, rompe barreiras, posto que híbrida e está voltada
para um público que também sente a necessidade de ultrapassar fronteiras,
157

inclusive a do entendimento de ser no mundo e que não impede uma reflexão


crítica sobre a sociedade atual. A literatura não só, mas também, através dos
romances de Bolaño, com estrutura narrativa diferente, vai cumprindo o seu
papel político: aumentar o número de leitores e criar o hábito de leitura: ―Somos
individuos híbridos, que aprovechamos varios repertorios para enriquecernos,
formarnos y participar en escenarios distintos, no siempre compatibles.‖
(CANCLINI, 1999, p. 58)
Nos territórios fronteiriços da trama, o investigador ou o policial, depois
que se depara com um suposto assassinato, segue os seus sinais, mas, como
consequência desta busca, entra em um terreno efêmero, onde as pistas se
desintegram; mais uma vez o autor rompe com a estrutura do romance policial
clássico, quando mostra que: a) o personagem responsável pela busca não é
apenas um investigador ou policial, vários são encarregados para solucionar o
crime; b) aqueles que foram convocados não têm condições, não querem ou
são instruídos para não desvendar o crime, caminham pela cidade em busca
de indícios pro forma e, na maioria das vezes, em vão. O que Roberto Bolaño
tenta traçar, como já foi dito, é o retrato de uma sociedade doente, onde a
condição de muitos seres beira a pobreza e a marginalidade, permitindo que o
leitor se pergunte: afinal, quem é o assassino?

La siguiente muerta apareció en agosto de 1994, en el callejón de Las


Ánimas, casi al final, en donde hay cuatro casas abandonadas [...] En
su casa, donde vivía sola desde hacía tres años, no se encontraron
papeles personales ni nada que pudiera llevar a un rápido
esclarecimiento de su identidad. Algunas personas, no muchas,
sabían que se llamaba Isabel, pero casi todo el mundo la conocía
como la Vaca. [...] Según algunos de sus vecinos ejercía como puta
en un local del centro o de la Madero-Norte. Según otros, la Vaca
jamás había trabajado. Sin embargo no se podía decir que careciera
de dinero. [...] El caso fue llevado a medias por Epifanio Galindo y por
el judicial Ernesto Ortiz Rebolledo, a quienes se añadió como
refuerzo Juan de Dios Martínez, sin demasiado entusiasmo por
ninguna de las dos partes. (BOLAÑO, 2013, 521 – 522)

Santa Teresa é o inferno na terra, onde o crime adquire vários matizes:


o de perturbar a ordem social preestabelecida e o de causar uma sensação
perturbadora, pois o mal está ali, escondido, esperando para ser visto, sempre
que os leitores sejam capazes de aceitar a crueldade descabida que
acompanha o ser humano, além da maldade revelar-se como uma
condenação, da qual não consegue se desvencilhar. Por detrás de um crime
158

existe uma manifestação de poder, ainda que o poder esteja no fato de eliminar
vidas. Nesta parte do romance, as autoridades tentam apontar indivíduos
delinquentes ou imigrantes como culpados dos crimes, não assumindo sua
parte. Em Santa Teresa os grandes violadores das leis, como narcotraficantes
e mafiosos, se protegem ocultados pelas maquiladoras e pelo próprio Estado
que, junto com as autoridades, ajudam para que esse território continue sem
regras e para que os crimes continuem sem solução. Afinal quem mata? Dentro
da narrativa, também existe esta pergunta:

¿Si el asesino estaba preso, quién había matado a todas esas


mujeres? ¿Si los achichincles o cómplices del asesino también
estaban presos, quién era el culpable de todas esas muertes? ¿Hasta
qué punto era real esa infame e improbable pandilla juvenil llamada
los Bisontes y hasta qué punto era creación de la policía? ¿Por qué
se retrasaba una y otra vez el juicio a Haas? ¿Por qué las
autoridades federales no mandaban un fiscal especial que dirigiera
las investigaciones? (BOLAÑO, 2013, 698-699)

Portanto, se dentro do romance infrapolicial existem vários detetives,


na mesma proporção existem vários culpados pelas numerosas, infames e
inúteis mortes que são a ausência do Estado nos três âmbitos - municipal,
estadual e federal; a corrupção; as classes sociais mais abastadas; as
gangues; a pobreza; o narcotráfico; o sistema de exploração dentro das
maquiladoras; o tráfico de pessoas de arma e de influência; a fronteira; a
imigração; a instituição policial e a religiosa; os jornalistas e os meios de
comunicação que querem vender matérias sensacionalistas; a família; a
indiferença de todos, enfim, o capital.
Em La parte de los crímenes, Roberto Bolaño não só retoma,
ressignifica a estrutura do romance policial clássico mas também dá um giro
para outra direção, usando parte de histórias reais e criando uma topografia
com um ar obscuro que denuncia e diz que por trás da janela existe uma
literatura que se utiliza das estratégias de gêneros menos consagrados e
consegue atingir um público leitor, que se entretém lendo bons livros. Sobre
este aspecto Ignacio Echevarría fala sobre o lugar de Bolaño:

[…] creo que Roberto desde muy pronto, incluso antes de publicar y
desde luego antes de ser famoso, proyectó, como todo gran escritor,
su propio lugar en el mapa literario. Y como todo gran escritor se
propuso hacer ciertos desplazamientos y reordenar el canon. No
159

tanto porque él se pensara a sí mismo como un autor canónico, sino


para hacerse sitio (MARISTAIN, apud ECHEVARRÍA, 2012, p.184)

Há um caminho longo pela frente que começa a ser descortinado a


partir de uma colocação do próprio Roberto Bolaño, quando fala sobre o seu
desejo de criar intriga detetivesca, juntamente com uma proposição feita por
Daniel Link. As duas são convergentes e serão de grande valia para pensar os
aspectos que envolvem as novas estratégias usadas, pelo autor, para escrever
e traçar uma trama singular e para o que seja considerado como romance
infrapolicial. Segue a concepção de Bolaño:

En mis obras siempre deseo crear intriga detectivesca, pues no hay


nada más agradecido literariamente que tener a un asesino o a un
desaparecido que rastrear, introducir algunas de las tramas clásicas
del género, sus cuatro o cinco hilos mayores, me resulta irresistible,
56
porque como lector también me pierden.

A concepção de Link:

Hablar de género policial es, por lo tanto, hablar bastante más que de
literatura: por lo pronto de películas y series de TV, de crónicas
policiales, de noticieros, y de historietas: lo policial es una categoría
que atraviesa todos esos géneros. Pero también es hablar del Estado
y relación con el crimen, de la verdad y sus regímenes de aparición
de la política y su relación con la moral, de la Ley y sus regímenes de
coacción. (2003, p. 11)

A maioria dos romances policiais, até mesmo os atuais, focam mais no


crime e nas vítimas, deixando de lado a dimensão política que aparece em
torno dos delitos, por isso, o desafio em tentar desvendar a forma de escrita de
Bolaño com sua dimensão político-sócio-econômica e descobrindo que, para
ele, o mais importante, além de construir uma narrativa bem estruturada, e um
projeto literário audacioso, o que importa é apresentar temas polêmicos com
suas variadas formas de representação. Assim como, penetrar na
infrarrealidade foi necessário para os poetas infras desenvolverem sua poética,
aprofundar na estrutura do romance policial foi primordial para que Bolaño
chegasse a uma nova proposta de estrutura para escrever 2666.
Então, sua prosa poética, atravessa a fronteira do gênero, cai de modo
abismal nos aspectos da linguagem (desarticula a sintaxe tradicional), da

56
Revista Qué Leer (p. 118)
160

estrutura, da estética e das estratégias narrativas para se conformar em um


novo ritmo poético, como processo, viagem, trânsito, abismo, de não ser de
nenhum lugar, mas continuar buscando poesia na catástrofe e no caos, para
denunciar e subverter a realidade.

3.5 – A classe precária

A crise econômica mundial, a política de desequilíbrio entre os gêneros


não só afeta adversamente as mulheres como também as condições de vida
nas quais se encontram imersas e das quais não se excluem, muito pelo
contrário, interatuam. As mulheres também se encontram inseridas em um
contexto mais amplo, que contém e compreende sua experiência econômica e
social. Assim, a interrupção, o feminicídio, a fronteira, a anomia, a violência, a
turbulência encontram-se e fazem parte da classe precária que aparece como
a classe descrita por Bolaño.
Os conceitos de precariado e classe precária foram estudados a partir
dos textos de Ruy Braga, segundo sua reflexão:

[...] entendemos que em decorrência da mercantilização do trabalho e


da anarquia da reprodução do capital, a precariedade é constitutiva
da relação salarial [...] e identifica o precariado com a fração mais mal
paga e explorada do proletariado urbano e dos trabalhadores
agrícolas, excluídos a população pauperizada e o
lumpemproletariado, por considerá-la própria à reprodução do
57
capitalismo periférico. (BRAGA, 2012)

Junto com as ideias de Ruy Braga, para ampliar o entendimento do


termo, somam-se as colocações de Félix Guattari:

Dá para estimar que o essencial dessa crise mundial (que é, ao


mesmo tempo, uma espécie de guerra social mundial) é a expressão
da gigantesca ascensão de toda uma série de camadas
marginalizadas, por toda a superfície do planeta. São centenas de
milhares de pessoas que vivem com fome, e não só isso, mas
também centenas de milhares de pessoas que não podem se
reconhecer nos quadros sociais que são propostos. Essa crise de
modelos de vida, de modelos de sensibilidade, de modelos de
relações sociais, não existe somente nos países subdesenvolvidos

57
Não há referência sobre a página, pois essa citação de Ruy Braga foi retirada do livro em
formato de e-book da Kindle.
161

mais pobres. Ela existe também em amplas correntes das massas


dos países desenvolvidos. (GUATTARI, 1999, p.190)

Dentro do panorama de precariedade apresentado pelos autores e


inserido em um contexto de desigualdades, instabilidade, impunidade e da
inexistência de um Estado de direito para os menos abastados (quanto mais há
pressão da sociedade, mais o Estado usa do seu poder de controle), pode-se
traçar não só o perfil das mulheres assassinadas, como a classe da qual fazem
parte: são pessoas banidas para lugares abandonados e afastados das
cidades, onde a orfandade, a violência, a delinquência, o crime organizado, os
assassinatos, um número grande de desaparecidos e de presos constituem
sua população. São pessoas que se sentem e se acham indignas de frequentar
outros espaços, pois se veem como diferentes. Mas por que a maioria delas,
contratadas pelas maquiladoras, são mulheres? São contratadas não só por
ser mão de obra mais barata, mas por serrem jovens adolescentes resistentes,
solteiras e com mãos pequenas que podem manipular peças diminutas, operar
as máquinas e montar periféricos eletrônicos durante uma jornada longa de
trabalho, sem reclamar.
Roberto Bolaño está atento à deterioração das condições de trabalho,
não só presentes no México e à crescente instabilidade e expansão de postos
de trabalho com pouca remuneração; ele percebe a necessidade de criar uma
forma de denunciar essas condições que seja então, mais uma vez, através da
literatura. Escrever sobre isso requer disposição e cuidado, pois o cenário não
é nem um pouco promissor, uma vez que a precariedade, nas relações e
condições laborais, só aumenta e implica na vulnerabilidade social de muitos,
principalmente da juventude que entra mais cedo no mercado de trabalho e se
depara com um contexto de escassez e condições muito incertas. O trabalho
precário leva a uma redução salarial, à exclusão, empurrando esses
trabalhadores, em sua maioria terceirizados, para a formação de uma nova
classe, o precariado. Uma parte do capítulo, quando o jornalista Sergio
González encontra a encarregada do departamento de Delitos Sexuais,
Yolanda Palacio, mostra essa condição laboral:

Pues sí, Santa Teresa, dijo la encargada del Departamento de Delitos


Sexuales. Aquí casi todas las mujeres tienen trabajo. Un trabajo mal
pagado y explotado, con horarios de miedo y sin garantías sindicales,
162

pero trabajo al fin y al cabo, lo que para muchas mujeres llegadas de


Oaxaca o de Zacatecas es una bendición. [...]¿Así que aquí no hay
desempleo femenino?, dijo. No sea sangrón, dijo Yolanda Palacio,
claro que hay desempleo, femenino y masculino, sólo que aquí la
tasa de desempleo femenino es mucho menor que en el resto del
país. De hecho, se podría decir, grosso modo, que todas las mujeres
de Santa Teresa tienen trabajo. Pida cifras y compare. (BOLAÑO,
2013, p. 710-711)

As mulheres de Santa Teresa, que trabalham nas maquiladoras, fazem


parte dessa classe ou flutuam entre os empregos precários e a miséria
(desemprego), além de se sentirem inferiores e sem autoestima. Por isso,
cumprem o seu papel que é o de trabalhar para produzir a mercadoria barata
para classe média/alta poder consumir, evidenciando que essa classe realiza
aquilo que lhe é imposto e fortalece a lógica da sociedade hipercapitalista, que
sente a necessidade de explorar, de maneira extrema, todas as formas de
trabalho que a classe privilegiada não quer realizar, como as funções que vão
de empregados domésticos, chegando aos serviços terceirizados. Portanto, a
obrigação de ter esse tipo de classe funciona como uma espécie de
interrupção. As pessoas que fazem parte dessa classe são impedidas de
ascender socialmente e muitas vezes de descender, visto que, como
miseráveis proverão menos às classes mais abastadas, porque miséria implica
olhar primeiro para sua condição, pois a primeira necessidade de um miserável
é comer, o que não quer dizer que não tenha que trabalhar para isso, por isso
sobra para a classe precária essa função.
Na lógica do capital há uma aparente diminuição da diferença entre as
classes e da desigualdade social, já que a classe precária também tem algum
poder de compra, diferente dos que estão nos níveis mais baixos que não
conseguem sobreviver. O capital econômico faz parte de sua vida, ainda que
de modo precário; essa ilusão pode ser um fator de interrupção, de interdição
da ascensão, pois para quem antes não tinha nada, ter alguma coisa é
suficiente para se sentir privilegiado e inserido na sociedade consumidora, mas
o que essa classe não percebe é que o abismo entre classes fica cada vez
mais profundo e a possibilidade de mudança cada vez mais distante, posto que
interrompida pelos que, de fato, são abastados, porque para fazer parte de
uma classe média/alta repleta de direitos, não basta ter capital econômico,
também tem que possuir capital cultural. Nesse ponto, a lógica capitalista é
163

cruel, a classe precária fica em desvantagem e serve, cada vez mais, para
aumentar o capital para quem já é o dono do capital. As maquiladoras estão
localizadas nas regiões certas e possuem a mão de obra certa para aumentar
seu poder de dominar os espaços de ganho e controle social. A passagem
seguinte ilustra a associação das mortes com a condição precária e a tentativa
da mulher assalariada de ter voz:

En septiembre, en un descampado de la colonia Sur, envuelto en una


cobija y en bolsas de plástico de color negro se encontró el cuerpo
desnudo de María Estela Ramos. Tenía los pies atados con un cable
y presentaba señales de tortura. [...] María Estela Ramos vivía en la
colonia Veracruz y aquéllos no eran sus rumbos. Tenía veintitrés
años y un hijo de cuatro y compartía casa con dos compañeras de
trabajo en la maquila, una de ellas desempleada en el momento de
los hechos pues, según le contó a Juan de Dios, había intentado
organizar un sindicato. ¿Qué le parece a usted?, le dijo. Me botaron
por exigir mis derechos. El judicial se encogió de hombros. Le
preguntó quién se iba a encargar del hijo de María Estela. Yo, dijo la
sindicalista frustrada. ¿No hay familia, no tiene abuelos el escuincle?
(BOLAÑO, 2013, 721-722)

Afinal, até que ponto faz sentido analisar esse capítulo, ou parte dele,
apresentado as narrativas interrompidas e sua relação com o feminicídio, com
a fronteira e o precariado? Havendo um sentindo, qual seria o interesse de
Bolaño? Por que ele propõe esse tipo de escrita interrompida? Poderia
responder dizendo que, por causa da sua saúde frágil – ele próprio estava
prestes a cruzar a fronteira da vida em direção à morte – sabia que tinha pouco
tempo, teve pressa de deixar essa obra como reflexão profunda da sociedade,
conscientizando o leitor sobre assuntos densos, pouco falados. Por causa
dessa urgência em dizer, não teve tempo de apresentar tudo que desejava (a
verdadeira face do poder e a possibilidade de enfrentá-lo) dentro de uma
estrutura literária mais trabalhada; usou a narrativa episódica, os pequenos
flashes, a interdição do fluxo da narração, a lógica das interrupções
concentradas, justapostas e alternadas como aliados, juntou todos os seus
apontamentos e tudo que já tinha elaborado para escrever 2666, fez sua
colagem ficcional, um tipo de álbum de figurinhas, já que tinha que escrever,
sob um estado de urgência, sobre o tempo do caos, da violência, da crueldade,
da banalidade, do espetáculo, escrevendo tudo isso com sua condição
precária, para ser consumido e como forma de moldar a percepção do ser
humano diante do momento infrapocalíptico.
164

Mas também poderia responder dizendo que Roberto Bolaño, quando


escreve La parte de los crímines, exercita a ideia de fronteira como um lugar de
devir, de aproximação de diferenças. Ao mesmo tempo em que é o limite das
mesmas é a possibilidade de coexistência de heterogeneidade, portanto de
junção de gêneros textuais, mas respeitando as propriedades inerentes de
cada um. Mesmo quando ultrapassa a linha e a barreira, quando se desloca
entre os gêneros, na sua escrita, eles não deixam de ser, não perdem suas
características. O que acontece é a permissão de relações e alianças entre
gêneros diferentes, construindo um novo a partir dessa percepção de que o
romance infrapolicial fica na fronteira, no inframundo (além do submundo), no
reino do desequilíbrio, da forma literária fora da lei (anômica), apresentando um
texto abismal.
O romance infrapolicial de Bolaño está em permanente construção, não
se esgota e tem a intencionalidade de provocar uma leitura única para cada
leitor que interpretará cada interrupção, cada fronteira ultrapassada desde suas
perspectivas e em diferentes contextos de leitura, além de oferecer uma
representação ou uma antirrepresentação da realidade. É uma fórmula textual
deslocada constantemente de uma lógica sequencial ou aleatória para uma
lógica em construção intertextual, infratextual, permitindo que o leitor se perca
e ao mesmo se encontre dentro de sua leitura. Assim como a construção de
uma fronteira traz a ideia de zona de troca e tem o aspecto social e político
envolvido, o romance infrapolicial também os têm e apresenta uma tensão
entre ética e estética que pode conferir a esse gênero a tentativa de revelar a
dor do mundo, a partir dos corpos multilados das mulheres assassinadas na
fronteira.
Bolaño, quando utiliza outra estratégia narrativa com uma linguagem
desordenada, como nota impessoal, como relatório forense, tenta evitar ao
máximo o juízo de valor. As mulheres assassinadas, dentro dessa nova forma
de narrar, são a representação da crueldade, do sofrimento, do mal, da
violência que aflige a sociedade contemporânea. De alguma maneira, ao ler
essa parte do romance, o leitor se penaliza ou sofre diante dos corpos
inutilizados como lixo, ou então, reage e reflete: o que vale a vida diante do
caos, da desordem humana? A arte, nesse caso a literatura, provoca esse
efeito, mesmo que a vida apareça, ou seja, representada como banal, aqui a
165

violência e a crueldade não aparecem apenas como entretenimento, não são


gratuitas e podem ser entendidas como mercadoria.
166

Considerações finais

Um trabalho de pesquisa não se esgota a ponto de dizer que está


concluído, por isso a opção de traçar algumas considerações finais sobre o
estudo de parte da obra de Roberto Bolaño que ainda inspirará vários trabalhos
de análise. Nesta tese, foram abordados vários assuntos entre eles a influência
do texto de Roberto Bolaño, que não só supõe o intercâmbio fluido entre a
tradição e a renovação, como também apresenta uma reflexão do cenário
global contemporâneo inserido na arena literária do século XXI. Pode parecer
um paradoxo indagar a realidade misturando gêneros e propondo a
possibilidade de outra maneira de escrever o gênero, mas não é, pois no
quadro atual, há a necessidade de rever temas pesados, profundos,
complicados de outro modo. Um modo que o autor aprofunda e reafirma que o
policial, na América Latina, deve ser lido como infra e não como o gênero
tradicional.
Discorreu-se, neste estudo, sobre o inicio de sua carreira como
escritor, quando Bolaño já estava atendo às mudanças e queria produzi-las, de
tal modo que ele se concatenou com vozes e histórias urdidas como uma
grande peça literária, nunca desassociando poesia e prosa. O autor, já nos idos
dos anos de 1970, pretendia responder a grandes questões e, depois que
passou da poesia para prosa, começou a construir sua própria proposta de
mudança, no momento em que colocou novas estratégias de escrita para
compor outra vertente do romance policial. Mesmo que o movimento
infrarrealista tenha sido apontado como um movimento precário e pífio, dentro
do panorama literário, foi esse pequeno movimento que ofereceu instrumentos
para que essa mudança fosse executada, pois, como tantos outros, ele não se
conformava com o aparente, com o óbvio, mas com a caída no abismo vital,
com a finalidade de se perder em si mesmo, nos outros, nas estéticas, na sua
escrita, aliando vida e arte.
Esse é o centro, o cerne, a pulsação do projeto literário de Roberto
Bolaño que nunca deixou de ser um escritor visceral, infra, com toda carga
semântica e de conceito que essas palavras possam trazer. Sempre esteve
atento aos acontecimentos históricos e à vida cotidiana do seu tempo.
167

Bolaño é uma figura ao mesmo tempo incrível e contraditória, pois tudo


que pretendia ser como poeta e como preparação para o seu projeto literário,
só foi alcançado quando conseguiu publicar seus livros e entrar no mercado,
que tanto renegava como poeta infra, mas viu ali, diante da abertura das portas
das editoras, a possibilidade de mostrar o processo de construção de seu
projeto literário total, expondo que a infrarrealidade sempre esteve a seu lado.
Todo o projeto literário de Roberto Bolaño esteve vinculado ao aspecto
não linear de sua narrativa e a sua subjetividade simbólica, características
inerentes a sua poesia. Considera-se que suas obras narrativas apresentam
intensas doses de póiesis58 infra, nunca deixaram de ser poesia narrada, ou que
seus poemas nunca deixaram de ser narrativos, mesmo quando recebiam
pitadas de outros gêneros. Afinal, o que são os relatos das mulheres
assassinadas que não poesia? Poesias muito próximas dos seus poemas
infrarrealistas, repletos de técnicas de paralelismos sintáticos e semânticos, de
anáforas, metáforas, hipérboles e que se repetem pelo caminho com muita
exatidão. Também não é à toa que os personagens de 2666, como os
inspetores, os jornalistas, o profanador, as mulheres, o professor e sua filha, os
críticos, Klaus Haas e o próprio Archimboldi são o retrato e o fracasso que se
nota hoje, uma espécie de seres marginais que vagam sem rumo. A sua
grande ruptura é a de não ter guerreado com sua concepção de arte, cunhada
nos anos de 1970 junto com seu amigo Mario Santiago Papasquiaro, uma arte
vertiginosa e sem ponto de regresso.
O seu projeto foi muito bem elaborado e construído como uma forte
inclinação à autobiografia ou à biografia geracional, oferecendo a possibilidade
de poder dizer que a literatura pode dar à vida um discurso com entendimento
suficiente, mostrando que, quando a sociedade vivencia momentos de projetos
falidos e de catástrofes econômicas, de políticas sem éticas, a saída plausível,
para todos, é a arte. As grandes questões propostas por Bolaño foram: a) Por
que todos, dentro dessa modernidade tardia, fracassaram, não deram conta de
ser no mundo? b) Afinal, qual o papel da arte frente a esse abismo da

58
Palavra pensada a partir dos gregos, hedonistas, que utilizavam a palavra póiesis com o
significado inicial de criação, ação, confecção, fabricação e, posteriormente, arte da poesia e
faculdade poética.
168

existência? Será que existem respostas, ou possibilidades de algumas? Ou


haverá apenas a tentativa de reflexão e entendimento?
Talvez, pelas respostas inconclusivas, seu projeto literário está
encharcado de nostalgia, de melancolia e ao mesmo tempo cheio de
esperança. Incoerente, dirão alguns, mas a esperança nasce a partir da
tristeza, da reflexão nostálgica sobre determinado tema, lugar, pessoa ou
situação. Quiçá, também seja por tudo isso que os temas principais camuflados
dentro do seu projeto sejam a vida ainda que travestida de ausência; a luta
ainda que vista como cansaço e desistência; e as periferias entendidas e
tratadas como centro; e, sobretudo, a literatura que serve como entretenimento
e espaço de denúncia.
Durante as análises, também foi apontado que sua narrativa está
baseada nas contingências de como, quando, onde e para quê o indivíduo se
recria, sem contar no texto como caminho para encontrar e explorar a
identidade dos que se sentiam perdidos como ele. Percebeu-se que a obra de
Bolaño é muito analisada porque, além de ser muito conhecida dentro dos
meios acadêmicos, consegue fundir dois interesses: primeiro de que não existe
uma regra preestabelecida dentro da literatura que não pode ser modificada e
que tudo que envolve a escrita literária está dento de um continuo vir a ser, e,
segundo, ainda que a literatura esteja protegida por se tratar de ficção, a
criação literária elevada ao patamar de ser boa literatura ou rebaixada ao lugar
de literatura ruim, não deve figurar dentro dessa divisão dicotômica, pois todos
os textos levam ou falam do eu, do indivíduo e das várias vozes que esse
indivíduo possa apresentar; portanto rotulá-la, diminui a importância da escrita
literária.
Então, deu para compreender que, lendo La parte de los crímenes,
como romance infrapolicial, Bolaño revisita a tradição e promove uma mudança
na base da composição do romance, onde a ideia de um detetive racional com
seu ajudante, o desfecho do crime com uma sanção ao criminoso, aparece
modificada e transcende às narrativas que tenham sido construídas com essas
características. Chega-se ao termo de que ele propõe escrever um romance
policial impresso em novas bases, em bases infra, pois só a elaboração de
outra variante do gênero sustentaria a atitude de denúncia e a sua ironia, que
169

indicam, ao leitor, todo o caos do final do século que será, querendo ou não,
vivenciado por todos.
Ao longo do capítulo estudado, Bolaño aponta para as crueldades da
sociedade, falando de violência, das maquiladoras; da exploração das
mulheres como mão de obra barata, da complexidade das relações nas
cidades de fronteira, fazendo, de maneira simultânea, uma análise mordaz
sobre a crítica literária inócua, apresentando, em contrapartida, argumentos
que sustentam a ideia de que a literatura transcende à academia, o lugar
instituído como o das elites, e que o processo de criação literária tem tamanha
importância que ultrapassa os quinze minutos de fama, a venda de livros, a
cultura do entretenimento, pois ela é, para quase todos os escritores, sinônimo
de existência.
Por isso, Bolaño recria uma estrutura para o gênero narrativo romance
policial, o dotando de características infrarrealistas, que servirão como lugar
para tratar de todas, ou quase todas, as complexidades humanas e sociais da
América Latina; deste modo, para expor tal complexidade se faz necessário o
uso de um gênero mais elaborado. No final, todos os breves relatos que
compõem a história maior de 2666, ficam suspensos, abertos, sem solução,
pois não existe uma resposta que desvende o enigma. Tal como a vida, o texto
literário, escrito por ele, é uma porta de entrada para descobertas que ninguém
prevê ou espera.
Nesse intento de refletir sobre os nexos (ou a falta deles) entre
violência e arte e a tentativa de buscar características que possam compor o
perfil do romance infrapolicial, Bolaño transforma a figura do detetive, que deixa
de ser uno e central e passa a serem muitos e de vários tipos, pois a sua
finalidade dentro da trama, além de desvendar os crimes é a de buscar pistas,
indícios que contenham claras implicações éticas, fazendo uma analogia com a
literatura atual que, se não for comprometida com o papel de causar espanto e
desconforto, sucumbe junto com as grandes utopias, onde o compromisso ético
do escritor/detetive, dos personagens/detetives e dos leitores/detetives consiste
em procurar, nos tempos atuais, indícios e pistas de sua infradestruição. Cada
pista ou indício encontrado se subtraem, se diluem em uma ausência
insuportável que nunca termina, mesmo que sejam sentidos como presença.
170

No caso de Bolaño, a busca está nas vanguardas que não foram


vivenciadas em sua totalidade (ainda cabem muitos experimentos), por isso,
pode-se afirmar que Roberto Bolaño escreveu seu projeto literário sob suas
primeiras ideias infrarrealistas, escrevendo desde a consciência do seu próprio
passado estético, ético, ideológico, mergulhado em temas, como a violência e a
precariedade social, que ele transforma e tenta colocar em ordem, mas não
deixa de estar na lacuna, na brecha e no caos de qualquer existência.
O projeto literário de Bolaño tem uma única direção, o livro 2666,
síntese de toda sua escrita, pois todos os seus livros estão dentro de 2666. A
partir de uma leitura bem detalhada, fina, astuta, cuidada, atenta podem-se
encontrar pistas que comprovam que todos os livros estão dentro daquelas
1.125 páginas. Toma-se como exemplo um personagem que surge, primeiro
em um dos seus poemas59, depois no conto do seu livro Llamadas telefónicas,
El Gusano60. Esse personagem poderia ser identificado com qualquer
assassino, detetive, policial, ou mesmo com o assassino preso em 2666, Klaus
Haas e quem deixa escapar essa possibilidade é o próprio Bolaño. Quando foi
entrevistado por Fernando Villagrán, ele disse que o Gusano era um homem
branco, que se vestia de branco e, sobretudo, era muito frio; a partir dessas
características poderia deduzir que o Gusano sempre esteve metido em
atividades sombrias, delinquentes. Bolaño continua dizendo que o personagem
saiu do poema e passou para a narrativa, mas que o relato ainda era inédito, a
história de um povo do norte do México, do Estado de Sonora, de onde saiu o
Gusano. Um lugar onde todos são assassinos, um lugar que produz assassinos
excelentes, gente fria e decidida. Na poesia, ele menciona os povoados da
fronteira e no conto já aparece a cidade de Santa Teresa como lugar da ação.
Depois de ler os dois textos, nota-se que esse personagem, El Gusano,
poderia ser o reflexo do próprio autor, pois diz em sua poesia: ―Parecía um
chileno de veintidós años entrando em el Café La Habana‖ (BOLAÑO, 2007,
p.362)
A trajetória continua apontando para 2666: seu romance Estrella
distante surge do último capítulo de La literatura nazi em América, que também

59
Poema: El gusano (BOLAÑO, 2007, p.361-363) – Ver Anexo X (p.253-255)
60
Conto: El gusano (BOLAÑO, 2011, p. 71-83) – Ver Anexo XI (p.256-262)
171

está em Los detectives Salvajes, onde surge um capítulo de 12 páginas; essas


páginas se estendem para a composição do romance Amuleto e 2666 surge de
uma data citada em Amuleto. Se Amuleto, segundo o próprio autor, se converte
em o espelho negro de Los detectives salvajes, romance onde mostra o estado
de festa e de errância épica de um grupo, Amuleto é o contrário: mostra o
pesadelo individual e o vazio, um romance intimista e com uma voz delirante,
uma espécie de contraponto. Já não é a história épica dos jovens que saem a
buscar a poetisa Cesárea Tinajero, ou que fogem dela depois que a encontram.
Logo, 2666 seria a ampliação do espelho negro de Amuleto, mostrando que a
narrativa épica e a intimista se juntam e formam mais uma característica, a
bricolagem, que aparecerá no romance infrapolicial.
E, assim, Bolaño vai desenhando uma espécie de jogo, de exercício,
com a finalidade de esgotar o seu olhar sobre a América Latina, o que está
longe de acontecer, pois ainda existe muito que narrar. Por isso 2666 traz
todas as suas inquietações, todas as suas obras cifradas. Esses são alguns
exemplos, mas podem ser citados outros que mostram a ligação de todas as
suas obras, umas com as outras e todas em 2666.
Por fim, pode-se fazer a analogia entre a capa do livro 266661 e o
processo de criação do seu projeto literário e as mulheres assassinadas, em
Santa Teresa um caminho solitário, árido, seco, sob a perspectiva da espera, a
sua literatura como uma espécie de alento dentro de uma paisagem infértil,
residual, onde o que vale é escrever sob a intempérie, de frente para o que
possa ser um horizonte incerto, de horror, sem nenhuma expectativa, o
narrador sentado em uma cadeira sobre o que parece ser restos, corpos
humanos misturados com o lixo que o próprio ser humano produz. Estar frente
à porta do cemitério, cuja lápide principal traz gravado o ano de 2666, duas
vezes a besta, duas vezes o inferno.

61
Ver Anexo XII (p.263)
172

Referências Bibliográficas

Obras de Roberto Bolaño

BOLAÑO, Roberto; PORTA, A.G. Consejos de un discípulo de Morrison a un


fanático de Joyce. Barcelona: Acantilado, 2009.

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Colección Compactos, 2013.

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______. Estrela distante. Tradução Bernardo Ajzenberg. São Paulo:


Companhia das Letras, 2009.

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S.A., Narrativas hispánicas, 2007.

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S.A., Colección Compactos, 2011.

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S.A., Colección Compactos. 2009.

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______. Monsieur Pain. 3ª ed. Barcelona: Editorial Anagrama S.A., Narrativas


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______. Nocturno de Chile. 9ª ed. Barcelona: Editorial Anagrama S.A.,


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______. Putas asesinas. 9ª ed. Barcelona: Editorial Anagrama S.A., Colección


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______. Una novelita lumpen. Barcelona: Editorial Anagrama S.A., 2009.

______. Tres estridentistas en 1976. In: Revista Plural. México: noviembre de


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Sobre Roberto Bolaño e sua obra

AGUILAR, Gonzalo. Roberto Bolaño, entre la Historia y la melancolía. In:


MANZONI, C. Roberto Bolaño: La escritura como tauromaquia. Ed. Buenos
Aires: Ediciones Corregidor, 2002, p 145 - 151.

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196

ANEXO I

Consejos de un discípulo de Marx a un fanático de Heidegger


Mario Santiago Papasquiaro

"También es hora de recordar que nada


es bello, ni siquiera en Poesía, que no es
el caso".
W

El mundo se te da en fragmentos / en astillas:


de un rostro melancólico vislumbras una pincelada del Durero
de alguien feliz su mueca de payaso aficionado
de un árbol: el tembladero de pájaros sorbiéndole la nuca
de un verano en llamas atrapas pedazos de universo
lamiéndose la cara
el momento en que una muchacha inenarrable
se rasga su camisola oaxaqueña
exactamente junto a la medialuna de sudor
de las axilas
& más allá de la cáscara está la pulpa / debajo del ojo la pestaña
Quizás ni el Carbono 14 será capaz de reconstruir los hechos verdaderos
Ya no son los tiempos en que un pintor naturalista
rumiaba los excesos del almuerzo entre movimientos
de gimnasia sueca
& sin perder de vista los tonos rosazules / de flores
que no habría adivinado ni en sus más dulces pesadillas
-Somos actores de actos infinitos
& no precisamente bajo la lengua azul
de los reflectores cinematográficos-
por ejemplo hoy / que ves cómo Antonioni se pasea con su camarita de rutina
observado por aquellos que prefieren enterrar la cabeza entre la yerba
a emborracharse de smog o qué sé yo/ para que no aumenten los escándalos
que ya hacen intransitable la vía pública
por los que han nacido para ser besados largamente por el sol
& sus embajadores cotidianos
por los que hablan de coitos fabulosos/ de hembras que no crees
en esta edad geológica
de vibraciones que te harían tenaz propagandista del Budismo Zen
por los que se han salvado alguna vez de los accidentes
que la nota roja llama substanciosos
& que de paso -por ahora- no se cuentan entre las flores del Absurdo
Así en el trapecio en el alambre de equilibrio de este circo de mil pistas
un abuelo platica la emoción que sintió al ver a Gagarin
revoloteando como una mosca en el espacio
& lástima que la nave no se llamara Icaro I
que Rusia sea tan ferozmente antitroskista
197

& su voz entonces se disuelve


da de tumbos
entre aplausos & abucheos
la Realidad & el Deseo se revuelcan/ se destazan/
se desparraman una sobre otra
como nunca lo harían en un poema de Cernuda
corre espuma por la boca de aquel que dice maravillas
& pareciera que vive en el interior de las nubes
& no en los baldíos de este barrio

El aire húmedo de abril el viento lascivo del otoño


el granizo de julio & agosto
todos presentes aquí con sus huellas digitales

Alcohol orines/ qué no habrá servido de abono a esta yerba


cuántos jardineros sin el sueldo mínimo dejarían en esta trampa
sus escasas proteínas

Por ahora tú te tiendes bocabajo a la sombra de las piernas


largas & velludas de los parques
donde se reúnen
el que sueña con revoluciones que se estacionan
demasiado tiempo en el Caribe
el que quisiera arrancarles los ojos a los héroes de los pósters
para mostrar al desnudo lo hueco de la farsa
la muchacha de ojos verdes gatunos & fílmicos
aunque a lo mejor acercándose resultan azules
o quién sabe
el estudiante todo adrenalina & poros revoltosos
el que no cree en nadie/ ni en la belleza kantiana
de algunas admiradoras de Marcused
& estalla gritando que estamos podridos por la furia
deshidratados con tanto tomo de teoría
la putilla de ocasión que comparte el torrente de su soledad
con los desconocidos
dejando que la balanza de la oferta & la demanda
la inclinen la gracia la simpatía las vibraciones repentinas
-el Azar: ese otro antipoeta & vago insobornable-
los que vienen aquí a llorar/ hasta tallarse -como en madera-
un rostro de mártir paranoico
después de destrozar -& no precisamente de entusiasmo-
las butacas de los cines
el que escribe su testamento o su epitafio
en una servilleta arrugada
& luego lanza besos al aire -& todo mundo supone
que celebra su cumpleaños/ o el divino himeneo de antenoche-
& todas las hipótesis resultan frágiles para explicar
198

por qué utilizó una pistola & no un bote de pintura


si parecía capaz de seducir hasta la calentura/ el pulso
& la pupila del Giotto
el que siempre saluda con Yo estoy desesperado/ ¿y usted?
los que se aman rabiosamente como perros callejeros
-en las verdes & en las maduras-
& uno los llama enamorados floridos
& son un afrodisíaco
no solo para la sensibilidad de Marc Chagall
los que conocen en persona a la muerte
a la hora en que el suicidio se vuelve una obsesión
unas ganas despeinadas de morder & ser mordido
de poner un hasta aquí a tanto castillo de arena
que parece inderrumbable
de inventarse por segundos un poder
que las revolvedoras de cemento cotidianas te desbaratan
como si fueras un papel de estraza

Y entonces comprendes al que quisiera sepultar bajo toneladas


de plantas
edificios / tierra negra
el menor latido / la taquicardia de su historia íntima
te contagia el nerviosismo la intranquilidad de los que
hacen como que respiran / como que poseen un cierto dejo
de plantas carnívoras
& se pasan horas esperando a la compañera Ternura
esa call-girl que raras veces llega
los que vienen escapando de los gases lacrimógenos
& las macanas de las grandes avenidas
de las grandes & las pequeñas manchas
que ya no tienen remedio con aroma de pino
o la caricia de un kleenex
los que ignoran quiénes son ni lo quieren saber/ cuando el clima
tiene pero fama cada día
los eternos enfermos de amnesia que se chupan el dedo de alegría
porque aquí & no en Miami está el Paraíso Terrenal
los que juran declarar esto territorio libre isla independiente
que no degenere en chatarra ruina supermarket

En el instante en que una canción de moda


enreda su ritmo
a la peculiar batucada de la lluvia
& se instaura un orden fatalmente momentáneo
para que sigan dominando la escena
el cabello en desorden
los enormes ojos húmedos
& como surgida del claroscuro mismo de la noche
199

aparece una niña con los puños embarrados contra los muslos
repitiendo 1, 2, 3 veces:
Yo no soy un objeto sexual, no lo soy robots,
estoy viva / como un bosque de eucaliptos
Aquí donde la norma es ser implacablemente amables los unos
con los otros
& este es el mal menor

El parque tiembla / mis pasos interiores me llevan por las calles


de un puerto de mar verde
que los nativos llaman Mezcalina

Una sensación hasta ahora desconocida


como saber a ciencia cierta a qué sabe el A.D.N.
después de hacer el Amor

Si esto no es Arte me corto las cuerdas vocales


mi testículo más tierno dejo de decir tonterías
Si esto no es Arte
la rama de un árbol se dobla bajo el peso de un gorrión
o mejor dicho un gorrión termina por hacer trizas una rama
ya quebrada
Aún estamos con vida
de alguna manera hay que llamar a las islas de cristales
que con lujo de violencia patean las zonas más blandas de tus ojos

La realidad parece de mica de miniatura a escala


pero también tus párpados tu percepción & su camisa de fuerza
la materia & la Energía
& el ánimo para meter tu lengua entre su lengua
este es un día insólito
vibrante cotidiano anónimo
terrícola a más no poder como solemos decir
los días de fiesta o durante los cateos cada vez
más frecuentes de las casas
el miedo te ilumina el estómago & te lo quema

NO HAY ANGUSTIA AHISTÓRICA


AQUÍ VIVIR ES CONTENER EL ALIENTO
& DESNUDARSE

/consejos de un discípulo de Marx


a un fanático de Heidegger/

Poesía: aún estamos con vida


& tú me prendes con tus fósforos
mi cigarro barato
200

& me miras como a un simple cabello despeinado


temblando de frío en el peine de la noche

Aún estamos con vida

una mariposa de ojoverde & alasamarillas


se ha prendido en la solapa azul de mi chamarra
-mi cuerpo de mezclilla
se siente seductor radar humano imán de polen
adquiere por momentos la convicción de una galaxia
en pequeñito
cantando puras locuritas
entre Ohs de asombro-

¡Pucha qué luna!


exclama el millonario en soledad
& mísero en empleo
al que apenas ayer lo despidieron
porque no le emocionaban los cortocircuitos
de la cafetera burocrática

¡Qué luna!
como uña cortada
-como un gajo de esperma
suspendido
sobre el lomo negro de la noche

cuando se escucha
un crujir de nueces aplastadas -crac-
el zumbido el lloriqueo de una ambulancia
que otra vez no llega a tiempo

el rumor de las lagartijas con manchas de leopardo


trepando traviesísimas por la enredadera
en busca de alimento

los últimos ruidos de un picnic


donde la Desolación ha hecho de las suyas
& ha acabado voceando la proximidad del viento
que todo mancha & roe

Sin embargo uno aún camina por aquí como gorrión feliz
como Chaplin el día en que besó por primera vez a Mary Pickford
alguien pasea con un radio de transistores que parece su segunda oreja

Galileo descubre la ley del péndulo observando


el columpiar dulzón de estos amantes
201

violentamente unidos & medioconsumidos por la niebla


creyendo los muy necios que el Amor a dentelladas
terminará por brillar en Technicolor
Y esto en el mismo M2 a la misma hora
en que el Polo Norte & el Polo Sur
la Tesis & la Antítesis del mundo se conocen
como un aerolito incandescente & un ovni en problemas
e inexplicablemente se saludan:
Yo soy el que se ha grabado en la espalda de la chamarra de mezclilla
la frase: El núcleo de mi sistema solar es la Aventura
Me llamo así pero me gusta que me digan: Protoplasma Kid

Tú eres el que se muerde las uñas mientras hojeas la sección


de crímenes
con los dedos confundidos en lo tieso de la hoja del periódico
pero
¿son las noticias
los que las reportan
los que las leen como una
droga necesaria?
¿Quiénes Sherlock Holmes son los asesinos?

Dadas las circunstancias desconfías hasta de tus propios ojos


forcejeos corretizas pleitos de qué calibres
se esconden bajo las ropas más rasposas

los miedosos se trepan a los árboles


los más ágiles prefieren andar señalando con el dedo
el momento exacto en que la atmósfera se enrarece
hasta decir basta
& comienzan a derrumbarse los aviones como en una secuencia
de cine mudo en la que los brazos de los moribundos
se mueven como aspas
sin explicarse el porqué de ese horizonte ensalivado por el fuego

Aunque el cielo -aparentemente- se vea sobrio & despejado


como enemigo irreconciliable de las Artes Plásticas
& casi nadie repare en el loquito que besa lame muerde su reloj
sin manecillas
mientras pregunta se estará enfriando la tierra
no nos estaremos saliendo de la órbita???
seguro de que en un caso así hasta Jerry Lewis lloraría sinceramente.
202

ANEXO II

La Infra del Dragón62


Georgij Gurevic

El círculo negro se cierne sobre las estrellas, plato opaco de bordes


turbios. Las estrellas se apagan en una extremidad para reaparecer media hora
después por la otra. En la constelación del Pez Volador hay una estrella de
más, la más luminosa, la más bella del cielo, nuestro Sol. Pero nosotros no
miramos al Sol, no es el encaje de las estrellas lo que nos atrae. Nuestras
miradas están fijas en el círculo negro, aunque nada se pueda distinguir en la
profunda oscuridad, ni a simple vista ni con el telescopio.
Seis personas componemos toda la tripulación de la nave cósmica: el
viejo Carusin, jefe de la expedición —le llamamos el Abuelo—; los esposos
Varencov, los esposos Juldasev y yo, Radij Blochin.
—¿Partimos? —preguntó el Abuelo.
—No hay nada que hacer —explicó Tolja Varencov, nuestro ingeniero
jefe—, El cohete está diseñado para posarse en tierra firme, y allí abajo hay
agua, un inmenso océano. No estamos equipados: seis operarios, todos de
baja calificación. Aunque nos pusiéramos a trabajar durante un año, para
intentarlo de alguna manera, luego nos hundiríamos. No podemos
arriesgarnos.
—El combustible es apenas suficiente —añadió Rachim Juldasev—. Lo
hemos controlado juntos. Descender significaría un retraso de siete años. Y no
disponemos de aire suficiente para tanto tiempo. La edad...
Ajsa le tiró de la manga. Rachim había olvidado que no era correcto
hablar de la edad del Abuelo, quien pasaba ya de los noventa.
—Entonces, volveremos con las manos vacías —observó Galja
Varencov.
En aquel momento, Carusin dijo con calma:
—Queda una solución...

62
Disponível em: https://cuentoshistoriasdelmundo.blogspot.com.br/2014/11/la-infra-del-dragon-
georgij-gurevic.html. Acesso em:19.01.2017
203

Miramos al jefe con perplejidad. Ajsa fue el primero en comprender.


—¡Nunca! —gritó.
—La vida se mide con hechos y no con años. —Estas palabras se las
había oído por primera vez al Abuelo diecisiete años antes.
Recuerdo la primera visita que le hice. Otoño tardío. Viento húmedo,
penetrante. Una trepidante aeromochila me transporta sobre negros campos de
hierba amontonada, sobre desnudos pueblos, sobre las plúmbeas olas del mar
de Kujbysev. Veo una empalizada azul sobre un despeñadero arcilloso, una
casita de ladrillos de cristal verde y el anciano junto a la cancela. Tiene el
cabello espeso y blanco, un blanco azul que parece sintético. Le reconozco.
Apagado el motor, aterrizo torpemente justo a sus pies, hasta acabar en un
foso.
—Vamos, quítese eso. Luego preséntese —me dijo, extendiéndome la
mano.
Así conocí a Pavel Aleksandrovic Carusin, el famoso capitán cósmico
que había participado en el primer vuelo a Venus, mandado la primera
expedición a los satélites de Júpiter, la primera a Saturno, la primera a Neptuno
y tantas otras... Allí, en la costa del mar de Kujbysev transcurrían los últimos
años de su vida gloriosa.
Mis relaciones con las estrellas eran hasta entonces sólo indirectas.
Ingeniero edilicio, trabajaba en la construcción de la estación interplanetaria
central en el monte Kilimanjaro, en el África oriental. El especialista destinado a
un sector ajeno tiene que rehacer las cosas a su manera. Además, yo era joven
y presuntuoso. Había preparado un proyecto de reconstrucción del sistema
solar. Por aquel entonces, a principios del siglo XXI, ya se había comprendido
que ningún planeta era apto para ser habitado. Por eso yo proponía
transformar sus condiciones: empujar a Venus y a Marte hacia la órbita
terrestre, dotar a Marte de una atmósfera artificial y depurar la atmósfera de
Venus de su ácido carbónico, proponía también dividir a Saturno, Urano y
Neptuno en fragmentos, para reducir su gravedad, y desplazar los cuerpos
resultantes a órbitas más próximas al Sol mediante explosiones atómicas.
Sobre Tritón pensaba situar una colonia de exploradores, a los que se
confiarían cruceros interestelares. Según mis cálculos, al cabo de unos cien mil
años, Tritón habría podido recorrer todos los sistemas estelares periféricos. Por
204

último, proyectaba educar niños en Júpiter de forma que, dada la mayor


gravedad, sus huesos y sus músculos se verían tan reforzados como para
convertirse en unos Hércules.
Con asombro por mi parte, estos grandes proyectos fueron
indefectiblemente rechazados. Pero no me rendía y testarudamente seguía
dirigiéndome a las principales instituciones y a los especialistas más conocidos.
Era natural que hablase de ello con Carusin, por lo que no dudé en volar al mar
de Kujbysev. Mucha gente se dirigía a Carusin: jóvenes que soñaban con
trabajar en el cosmos, autores y científicos en sus primeras armas. También en
los periódicos aparecía su nombre con frecuencia. La firma de Carusin estaba
al pie del Tratado de Desarme Definitivo de las naciones. En la fiesta de la Paz
Universal, junto a chinos, americanos y alemanes, Carusin había arrojado
simbólicamente a un horno Martin la primera carretada de ametralladoras y
morteros condenada a la fusión. Era, sin duda, uno de los personajes más
conocidos de su tiempo.
El viejo me escuchó sonriente, como habían hecho tantos otros, pero
con una bonachona condescendencia. Luego, me dijo:
—El problema, Radij Grigorjevic, es que corre usted demasiado.
Realmente, no tenemos necesidad de asentamos en los planetas del sistema
solar: sobre la Tierra estamos bien y hay espacio. Sus ideas podrán ser útiles
dentro de trescientos años. Tal vez se sentirá orgulloso de ello y pensará: ¡Qué
intuición! Pero se equivoca. No tiene mérito ocuparse de los problemas a
destiempo. Cuando sea necesario y posible, los hombres se preocuparán de la
reconstrucción de los planetas. Entonces resolverán sin fatigas todos los
problemas que desea usted afrontar hoy.
No estaba de acuerdo, pero no me enfadé. Vivir con el pensamiento
puesto en los siglos futuros me parecía honorable. Y seguí insistiendo a Pavel
Aleksandrovic sobre los detalles del proyecto. El viejo, sonriente, demolía mis
ideas, pero al mismo tiempo se animaba a proseguir. Tal vez le gustaba mi
fogosidad belicosa. Y, además, la villa estaba solitaria. En verano era distinto:
llegaban nietos y bisnietos y en el jardín resonaban alegres voces infantiles.
Pero en invierno, sólo había algunas cartas y el timbre del teléfono.
Pavel Aleksandrovic me escuchó, luego le escuché yo a él, mientras
dictaba a la secretaria electrónica sus famosas memorias. Justo entonces
205

empezaba a publicarlas en Komsomlskaja Pravda. Estoy seguro de que


recordarán el principio, la primera línea:
«Nuestra expedición salió hacia la Luna para empezar los
preparativos...»
Observé:
—Pavel Aleksandrovic, no se procede de manera tan... Todos inician
las memorias en su niñez, en el día de su nacimiento; muchos, incluso, en el
árbol genealógico, Pero usted se salta la cuarta parte de su vida y empieza en
el día en que partió hacia la Luna...
Entonces fue cuando le oí decir por primera vez:
—Radij, nosotros, los hombres del cosmos, tenemos nuestro propio
modo de contar. No medimos la vida por años, sino por descubrimientos, por
viajes. Por eso comienzo el libro con mi primera empresa.
—Pero al lector le interesa saber cómo es usted, qué hizo de joven,
cómo se ha convertido en un explorador del espacio.
El viejo no estaba de acuerdo. —No es verdad. Al lector no le intereso
yo, sino lo que yo he hecho. Cada época se ha inclinado por una profesión.
Hubo la época de los navegantes, la época de los escritores, de los aviadores,
de los inventores. Nosotros los cosmonautas somos los favoritos del siglo XXI.
No recuerdan siempre, somos los primeros en ser invitados y habitualmente se
nos reserva el lugar de honor. Estas palabras las encontrarán en
el Postsonplim del primer volumen de las Memorias, en donde se dice, entre
otras cosas
«He tenido la suerte de nacer con el alba de la época de los grandes
descubrimientos cósmicos. Los años de mi juventud coinciden con los años
jóvenes de la astronáutica. La Luna fue conquistada antes de que yo creciera.
Cuando era joven, soñé con conocer Venus; de adulto, con Júpiter; de anciano,
el viejo Neptuno.
La técnica me ha permitido realizar todos mis sueños. En menos de un
siglo, en el transcurso de mi vida, las velocidades han crecido desde ocho
hasta 8.000 kilómetros por segundo. Las posesiones de la Humanidad se han
engrandecido inconmensurablemente. A mitad del siglo pasado dominaba un
solo planeta con un radio de 6.300 kilómetros. Hoy posee una esfera cuyo radio
es de cuatro mil millones de kilómetros.
206

Nos hemos hecho más fuertes e inteligentes, hemos enriquecido la


física, la astronomía, la geología, la biología, a través de la comparación de
nuestro mundo con los otros. Sólo un sueño no se ha realizado: no hemos
encontrado hermanos racionales. Aún no estamos cansados, es cierto. Pero
hoy por hoy, es imposible continuar más adelante. Ahora hemos alcanzado ya
los confines del sistema solar, hemos visitado todos los planetas, frente a
nosotros está el espacio interestelar. Hemos recorrido cuatro horas-luz pero
para alcanzar la estrella más cercana hacen falta cuatro años-luz. Podemos
alcanzar una velocidad de 800 kilómetros por segundo, pero ahora nos haría
falta una velocidad cientos de veces mayor. Evidentemente, no alcanzaremos
los demás soles tan pronto, algunos sostienen que nunca lo conseguiremos. El
cohete de fotones y otros proyectos aún más atrevidos, por ahora no pasan de
proyectos. La época de los descubrimientos cósmicos deberá marcar el paso,
tal vez, durante tres o cuatro siglos.»
Los hombres van al cosmos con fines diferentes. Yo, por ejemplo,
como ingeniero, pensaba en construcciones a escala planetaria. Carusin, sin
embargo, confiaba en hallar seres racionales, y con esta esperanza en el
corazón pretendía descubrir nuevos mundos. Pero nada había que descubrir y
limitarse a actuar como piloto cósmico no era para él. Le convenía más el
descanso, los honores, los nietos, las memorias, la casita... Y así habría
terminado su vida, en un callejón sin salida, de no haber pensado yo de
improviso en la posible existencia de infra-soles.
En realidad, él mismo había provocado en mí aquella idea con su
obstinación de no querer admitir el hecho de que no quedase nada más por
explorar.
Este es mi razonamiento. Hasta los confines del sistema solar hay
cuatro horas-luz; hasta la estrella más cercana, cuatro años-luz. Un desmedido
océano de vacío. Pero, ¿estamos realmente seguros de que sólo haya un
vacío? Únicamente sabemos que en este espacio no hay estrellas luminosas;
de existir, serían visibles. ¿Y si existiesen cuerpos no luminosos u oscuros?
¿No podría suceder en los mapas celestes, al igual que en los de la Tierra, que
estén indicadas sólo las estrellas-ciudades y omitidas las estrellas-pueblos?
Tomemos, por ejemplo, una esfera de diámetro de quince años-luz.
Estarán comprendidos en ella cuatro soles: el nuestro, el Alfa de Centauro,
207

Sirio y Proción. También podríamos contar siete soles, porque, a excepción del
nuestro, los demás son estrellas dobles.
Pero en el mismo espacio se observan también una decena de
estrellas poco luminosas: enanas rojas, subenanas, enanas blancas. Son
estrellas próximas, casi todas invisibles a simple vista, cuya existencia sólo
hemos conocido en el siglo XX.
Por lo tanto, a simple vista se ven unas pocas, y con el telescopio,
algunas decenas. ¿No existen en el espacio centenares de cuerpos celestes
invisibles incluso con telescopio? Entre los miles de millones de estrellas poco
luminosas conocidas por nosotros, es difícil localizar un centenar de ellas más
pequeñas y cercanas.
También las temperaturas sugieren la misma conclusión.
En el mundo de las estrellas rige esta regla: cuanto mayor es la
estrella, tanto más caliente será; cuanto más pequeña, tanto más fría. Las
enanas rojas son unas diez veces más pequeñas que el Sol, tienen una
temperatura de 2 a 3.000 grados. Supongamos que existan cuerpos diez veces
más pequeños que las enanas rojas. ¿Cuál será su temperatura?
Probablemente, 1.000, 600, 300, 100 grados. Las mayores tendrán una
luminosidad insignificante; las otras, cero. A una temperatura inferior a los 600
grados, los cuerpos emiten únicamente rayos infrarrojos; es decir, invisibles.
Soles invisibles, negros como el carbón... Y nos interesarían aquellos que
tuviesen una temperatura en la superficie de treinta grados sobre cero,
planetas oscuros pero calientes, calentados desde dentro.
¿Por qué no los hemos descubierto aún? En parte, porque no los
hemos buscado; en parte, porque es difícil encontrarlos. Desde la Tierra es
absolutamente imposible verlos. En efecto, la Tierra emite también una luz
infrarroja, vivimos en medio de llamas infrarrojas. ¿Es acaso posible, estando
entre llamas, ver la luz de pequeñas estrellas lejanas?
Expuse con excitación todas estas consideraciones a Pavel
Aleksandrovic. Por el rabillo del ojo vi pasearse por sus labios una sonrisa
condescendiente, mientras fruncía las espesas cejas. ¡Y yo que pensaba haber
razonado con lógica! Conseguí terminar y esperé la sentencia.
—Es curioso, Radij —murmuró Carusin—. Un planeta calentado desde
su interior sería un mundo al revés. No puede ser como el nuestro. ¿Cree que
208

habrá vida en él? Las plantas no podrán existir, si no disponen de luz. ¿Y


animales? En la Tierra hay animales que viven a oscuras, en las cavernas y en
profundidades del océano. ¿Y en las formas superiores? ¿Podría haber formas
superiores en las tinieblas eternas?
De repente estalló en una carcajada y me golpeó con una mano en el
hombro.
—Haremos un nuevo viaje al cosmos, y podrá buscar su infra.
—¿También usted, Pavel Aleksandrovic?
Se ofendió, entendiendo la pregunta a su manera.
—¡Aún no soy tan viejo! No he cumplido todavía los ochenta y nueve
años. De acuerdo con las estadísticas, la edad media del hombre es de
noventa y dos y medio...
También yo me sorprendí cuando, seis meses después, el observatorio
central lunar nos comunicó el descubrimiento de la primera infra.
De no ser por Pavel Aleksandrovic, quién sabe cuánto tiempo se
hubiese tardado aún. Pero con ello había descuidado todo lo demás, incluso
sus memorias. Su secretaria electrónica no había hecho más que escribir
cartas a las organizaciones científicas y sociales, a sus viejos amigos
cosmonautas, a los científicos destacados en la Luna, en Marte, en Júpiter, en
lo o navegando en naves cósmicas de gran radio de acción. Presionó, insistió
con mucho calor para emprender la caza de los soles negros.
Me asombraba la energía del viejo. Parecía como si sólo hubiese
esperado una señal, allí en su casita. Tal vez era precisamente eso: esperar...
Ahora su vida tenía ya un nuevo objeto; descubrir mundos, lanzarse otra vez al
cosmos, buscar, descubrir...
Se descubrieron infras en la constelación de Lira, de Sagitario, de la
Osa Menor, de la Serpiente... Pero la más próxima e interesante para nosotros
fue localizada en la constelación del Dragón. La temperatura de superficie era
de 10 grados sobre cero; la distancia era sólo de siete días-luz.
Estaba sólo cuarenta veces más lejos que Neptuno. Un cohete interplanetario
podía cubrir tal distancia en catorce años.
Y el cohete partió un año después. A bordo, los Varencov, los
Juldasev, Pavel Aleksandrovic y yo. Sólo yo conozco las dificultades que debió
superar el viejo para conseguir que las autoridades nos incluyeran en el equipo
209

a él y a mí... A él, por su avanzada edad, y a mí, por ser demasiado joven e
inexperto.
Los primeros días de vuelo se asemejaron en todos sus detalles a una
primera excursión a Moscú. Fueron interesantes, pero conocíamos ya hasta los
más mínimos detalles, cien veces leídos, cien veces vistos en el cine.
La Tierra apareció desde lo alto como un globo gigantesco que cubría
el cielo. Gravedad cuadruplicada; luego, el milagro de lo imponderable. La
Luna, un mundo blanco y negro con la cara picada de viruelas. Los saltos
enormes del moderador, las sombras netas y negrísimas, los barrancos, el
polvo secular. Todo cuanto había leído y me había imaginado, pero al verlo me
quedé asombrado.
Después transcurrieron los días que los escritores no describen. Una
cabina de tres metros por tres, literas, una mesita, un armario. Una puerta, la
sala de mando con un telescopio, el cuadro de mandos, instrumentos,
máquinas calculadoras. Más allá, los depósitos, la sala de máquinas y medio
kilómetro de tanques llenos de combustible. Podíamos pasear a lo largo de los
depósitos, o bien ponernos la escafandra y lanzarnos al espacio. Luego, otra
vez la litera, la mesita, el armario. En resumen: una prisión.
Treinta años de absoluta segregación.
Tinieblas y estrellas, estrellas y tinieblas. El reloj de veinticuatro horas
se detuvo, pues de otro modo nos confundiríamos. Ninguna diferencia entre el
día y la noche. Afuera, estrellas, de día y de noche. Silencio. Calma. En
realidad, volamos en estado de movimiento uniforme y rectilíneo. En una hora,
cerca de un millón y medio de kilómetros; en un día, treinta y cinco millones. En
el diario consignamos: «23 de mayo. Recorridos mil millones de kilómetros.—
1ero. de junio. Hemos pasado la órbita de Saturno.» Para celebrarlo, comida de
gala. Canciones. Alegría. En realidad resulta algo convencional porque, tanto
antes como después de la órbita, sólo existe el vacío. Veíamos a Saturno como
desde la Tierra: como un pequeño punto luminoso.
Y Pavel Aleksandrovic, que inventa distracciones de todo género. Es
un maestro para llenar las horas. Incluso así, en el cohete, nunca tenía
bastante tiempo. Después del sueño, carga cósmica, por lo menos durante una
hora. Es indispensable, de otro modo los músculos se atrofian por falta de peso
constante. Paseo obligatorio en el espacio, control de las partes externas del
210

cohete; luego, de las internas. Trabajo en el telescopio. Comida. Luego, dos


horas dedicadas al dictado de sus memorias. Pavel Aleksandrovic me dicta a
mí. Luego, lectura de microlibros. El Abuelo leía una hora exacta y dejaba el
libro justo al sonar el último minuto. Un poco de juego y, también, a veces, algo
de lucha para levantar la moral. «Hay que esperar el mañana con
impaciencia», solía decir el viejo. Procuraba seguirle como podía, pues
comprendí que era lo único posible para no debilitarnos, degradarnos. Primero
llega la melancolía; luego, la pereza; luego, la enfermedad. Se descuida el
trabajo y se olvidan las obligaciones. En el cosmos estallaban frecuentes
tragedias: muchos se perdían, o a veces invertían la ruta.
Sólo hay un medio para salvarse de la melancolía: el trabajo. Pero es
precisamente trabajo lo que falta. El control, las pequeñas reparaciones, no
ocupan mucho tiempo. Me ocupaba de mi proyecto de reconstrucción de los
planetas, pero ante todo para mi propia satisfacción. La Humanidad es una
colectividad tan potente que por sí solos no se consigue vencerla. Después de
un año de vuelo, mis conocimientos, para la Tierra, habían quedado
anticuados.
Única ocupación racional: las observaciones astronómicas.
Preparábamos un catálogo, medíamos las distancias entre las estrellas.
Normalmente, se efectúa una triangulación. La base del triángulo es el
diámetro de la órbita terrestre; los dos ángulos de la base se obtienen con la
dirección de la estrella. Conocidos un lado y dos ángulos, se obtiene la altura,
que es la distancia a la estrella. Pero con este sistema, los triángulos resultan
afiladísimos, extremadamente alargados, los errores son grandes, y sólo es
aplicable a las estrellas más próximas. Nuestra posición era mejor. Lejos mil
veces más del Sol, podíamos medir las distancias con una precisión mil veces
mayor. En una palabra, todas las estrellas visibles con el telescopio. Una fuente
de ocupación para todo el viaje: medidas, cálculos, medidas, cálculos; luego,
anotarlo todo en el libro mayor: «Número de catálogo tanto; categoría espectro
AO; distancia siete mil ciento dieciocho años-luz.» Escribes y vuelve a ti la
melancolía. Durante siete días-luz gastamos toda una vida y hay siete mil años-
luz. Nadie llegará nunca con tales distancias a ese sol de la clase AO.
Aburrimiento, monotonía torturante y, a la vez, estado de alarma.
Durante años no sucedió nada, pero cada segundo puede significar una
211

catástrofe. En efecto, el vacío no está absolutamente vacío. Hay en él


meteoritos, polvo meteórico. Hasta las nubes de gas, a nuestra velocidad, son
peligrosas: es corno navegar por el agua. En el espacio hemos encontrado
también zonas más densas, desconocidas por la ciencia. Al entrar en ellas,
todo se desplaza, y se siente un peso en el pecho. El motivo no está claro. El
polvo meteorítico roe la envoltura, ataca el metal y genera corrientes errantes.
Así, poco a poco, todo se desgasta. Se descubren fugas de aire, los mandos
no funcionan, los instrumentos no cumplen su cometido. Durante años no pasa
nada, pero de pronto... Por eso siempre debe haber una guardia.
La tarea más pesada son los solitarios turnos de guardia. Te acuerdas
de la Tierra. Desearías estar en un bosque o en un campo. Ver florecer las
margaritas, escuchar el canto de las alondras. Desearías estar en medio de la
gente, en el Metro, en un estadio, en un desfile. Quisieras escuchar la bulla, y
no este rimbombante silencio; codazos, multitud, mucha gente, gente
desconocida, y mujeres, y chicas. Cerré los ojos: la Plaza Roja, el Kremlin,
banderas rojas... Los abrí: la litera, la mesita y el armario.
Así un día tras otro, un mes tras otro. Éramos seis en el cohete. Para
cada uno, dos años de guardia y cuatro de sueño. Un sueño artificial, claro
está: hibernación. No se hace solamente para ventaja nuestra, sino, sobre
todo, por economía. Durante los dos tercios del viaje, la dotación duerme, no
come, no bebe y casi no respira. En cuanto salimos del sistema solar y el
espacio se hizo más puro y disminuyó el peligro de choques, cuatro de
nosotros se prepararon inmediatamente para dormir. Primero, tres días de
ayuno; luego, la narcosis... el agua helada. La temperatura del cuerpo
disminuye poco a poco, llega hasta dos grados sobre cero, y el hombre se
queda como una piedra. Luego se le mete dentro del termostato, una caja de
cristal con regulación automática de la temperatura. Se precisa una gran
exactitud. Si la temperatura es demasiado alta, las bacterias vuelven a
activarse; si es demasiado baja, la sangre se hiela y los cristales lesionan los
tejidos. De esta forma, con los camaradas petrificados al lado, más allá de la
pared de cristal, comes, bebes, haces cálculos, respiras. Y cuando llega tu
turno de dormir no sientes nada. Sólo al principio la cabeza te pesa un poco a
causa de la narcosis. Luego, todo se vuelve negro... Luego, una llama de luz.
Han pasado cuatro años y te están devolviendo a la vida. Es el momento más
212

peligroso, porque el cerebro ha descansado, el pensamiento es


extraordinariamente límpido y la curiosidad grande: ¿Dónde estamos? ¿Quéha
sucedido durante estos cuatro años? Tienes unas ganas enormes de ponerte a
trabajar. Pero durante cuatro años, el corazón casi no ha latido y no puede
cambiar repentinamente de régimen. Por ejemplo, yo soporté bien el despertar,
pero el Abuelo sintió mucho malestar. Es viejo y tiene el corazón gastado. En el
primer sueño se portó bastante bien, pero después del segundo tuvo
desvanecimientos, dolores agudos en el corazón y en el hombro derecho. Ajsa,
nuestro médico, debió cuidarle durante cuatro horas, diagnosticando luego que
no soportaría otra prueba semejante. El viejo deberá, probablemente, estar
despierto durante los catorce años de nuestro regreso...
... Catorce años de viaje, hasta que llegó el momento en que pudimos
contemplar nuestra meta: un circulito negro que tapaba las estrellas. Habíamos
llegado con precisión; los astrónomos terrestres no se habían equivocado. Pero
no previeron una cosa: el infra del Dragón no era un cuerpo único, sino doble.
Existían dos soles negros: A y B. A era más pequeño; B, un poco más grande.
A, más próximo a nosotros; B, un poco más alejado. Un «poco» cósmicamente
hablando, porque la distancia que los separaba era mayor que la de la Tierra a
Saturno.
Temblábamos todos de impaciencia. Pavel Aleksandrovic en particular,
pese a no demostrarlo. Ya tenía dispuesto todo el equipo de los contactos inter
planetarios: señales luminosas, proyectores infrarrojos. También había un
alfabeto con cuadritos en relieve y una colección de figuras geométricas.
Llegó el día solemne del encuentro.
Por la mañana empezamos a frenar. Volvieron a aparecer lo alto y lo
bajo, cosas olvidadas en el aire cayeron sobre el pavimento. A mediodía, la
mancha negra de la infra empezó a crecer sensiblemente, a apagar las
estrellas una tras otra. Por fin nos encontramos frente a un gran plato opaco.
Nos detuvimos, convertidos provisionalmente en un satélite artificial de la infra.
Imaginen nuestra desilusión. Los astrónomos terrestres cometieron un
pequeño error. Habían calculado la temperatura de la superficie en diez grados
sobre cero, cuando en realidad era de seis bajo cero. La atmósfera era rica en
gases: metano y amoníaco, como en Júpiter; ácido carbónico, como en Venus;
mucho hidrógeno y vapor de agua en nubes densas y compactas. Bajo ellas se
213

abría un océano helado; hielos, nieve, glaciares. Espesor del hielo: decenas y
centenares de kilómetros. Lo supimos gracias a las explosiones.
No valía la pena viajar catorce años para ver una vulgar noche ártica...
El Abuelo estaba completamente abatido. ¡La última tentativa,
fracasada! ¡El sueño de toda una vida no se había realizado!
Decidimos visitar luego la infra B.
A primera vista parecía la cosa más natural del mundo. Estábamos allí,
¿por qué no hacerlo? Pero el cosmos tiene sus leyes. Allí todo depende del
combustible. En la Tierra, la duración del viaje, los kilómetros recorridos,
dependen del combustible; en el cosmos, sólo la velocidad. No se consume
siempre, sino sólo en la salida y la llegada. Ir a la segunda infra significaba
retrasar el regreso en tres o cuatro años. No deseábamos invertir más tiempo
en el viaje, pero cuando se queman treinta años de vida, tres más, tres menos,
tienen un valor relativo. Ninguno de nosotros quería dar media vuelta dejando
un mundo inexplorado.
Durante cerca de un año navegamos hacia la infra B. Vimos otra vez
cómo la pequeña mancha crecía y se transformaba en un círculo negro como el
carbón. Nuevamente frenamos, adoptamos una órbita circular y enviamos al
explorador automático a las tinieblas. La oscuridad no era esta vez completa,
sino surcada por relámpagos, probablemente debidos a temporales. Sobre la
pantalla eran visibles los contornos de las nubes. Por radio, el explorador
automático comunicó: temperatura del aire, + 23°. Quizá éste era el motivo del
error de nuestros astrónomos. Los rayos emitidos por los dos cuerpos, la infra
A y la infra B, se confundían en el espacio: la medida resultaba alrededor de +
10% próxima a la realidad.
Tampoco nuestros cálculos debían ser completos, porque el cohete
explorador cayó y se hundió. En el último instante vimos en la pantalla del
televisor una superficie líquida con profundas olas oblicuas. Enviamos un
segundo cohete, que dio varias vueltas alrededor de la infra. Vimos nubes;
vimos lluvia, perpendicular y no oblicua, como suele ser la de la Tierra, con
gotas más pesadas. Vimos de nuevo las olas, mares por todas partes, sólo
mar, ni siquiera una isla. Océano en el ecuador y océano en los polos. Era
lógico, porque la infra posee calor interno y el clima es igual en todas partes;
los polos no están fríos.
214

Ningún continente, ninguna isla, ninguna cima volcánica. Océano,


océano, solo océano...
¡Y nosotros que pensábamos encontrar, al igual que en la Tierra,
océanos y continentes! Porque los seres racionales se pueden desarrollar sólo
en tierra firme. También esperábamos estudiar el océano, pero partiendo de la
tierra firme: recorrerlo y descender hasta el fondo con una pequeña batisfera.
Pero nuestra astronave estaba adaptada sólo para posarse sobre tierra firme.
Este es el círculo negro que se sitúa entre las estrellas, plato opaco de
bordes turbios. Las estrellas se apagan por un extremo para reaparecer por el
otro media hora después. Constelaciones conocidas, aunque más luminosas y
con dibujos nuevos, complejos. En una hay una estrella de más, nuestro
querido Sol. Pero no miramos al Sol, no es el encaje de las estrellas lo que nos
atrae. Nuestras miradas están fijas sobre el círculo negro, aunque no se pueda
distinguir nada en la profunda oscuridad, ni a simple vista ni con el telescopio.
—¿Nos vamos? —preguntó el Abuelo. Es la centésima o la milésima
vez que hace esta pregunta. Sí, debemos partir, no hay otra solución. Nos
hemos exprimido el cerebro sin resultado. Hay que partir, sin haber descubierto
casi nada.
—Queda una solución —dice el Abuelo. Miramos al jefe con
perplejidad. Ajsa es la primera en comprender.
—¡Nunca! —grita—. ¿Pretende descender con la batisfera?
Todos estamos agitados. Sí, es posible descender con la batisfera,
pero no regresar con ella. El explorador automático no puede despegar. La
batisfera se quedaría allí abajo para siempre..., y con ella, su tripulante.
—No lo permitiremos —insistió Ajsa.
El Abuelo se encogió de hombros:
—Ajsa, tiene usted los clásicos prejuicios de los médicos. Cree que el
hombre sólo tiene derecho a morir por causa de una grave enfermedad. Pero
nosotros, los hombres del cosmos, tenemos nuestra propia manera de rendir
las cuentas de nuestra vida. La medimos por hechos y no por años.
—¿Con qué fin? —preguntó Rachim—. Hay que trabajar con
coherencia. Volvamos a la Tierra., informemos. La próxima expedición vendrá
equipada para estudiar el fondo...
—¿La próxima? ¿Cuándo? ¿Dentro de treinta años?
215

Tolja Varencov quería levantarse, proponerse a sí mismo. Galja le


agarró de la manga. Insistí en mi candidatura.
—Está decidido —afirmó el Abuelo—. No perdamos el tiempo en
discusiones inútiles. Os ordeno que se inicien los preparativos para el
descenso.
Estábamos ultimando los preparativos y aún no lo creíamos. Llegó la
tarde del despegue. El viejo capitán hizo preparar una cena de despedida, y él
mismo dispuso el menú. Proyectamos nuestra película favorita, un
documental, Las calles de Moscú. Luego escuchamos la Novena sinfonía de
Beethoven. Al viejo le gustaba porque era tumultuosa e invitaba a la lucha.
Bebimos champán. Luego cantamos una canción, nuestro himno cósmico. De
autor anónimo:
Para sondear el infinito
hará falta una eternidad.
Antes de que el viaje se acabe
el capitán nos dejará.
¡Pero allí, en el infinito,
hallaremos a la Humanidad!
Ajsa lloraba, y también Galja. Un poco ebrio, pregunté:
—¿No tiene miedo, Pavel Aleksandrovic? Y él contestó:
—Sí, Radij, tengo mucho miedo. Pero lo que más me asusta es que
todo esto no sirva para nada. Tal vez lo único que lograré ver serán aguas
negras...
Le tomé de la mano:
—Pavel Aleksandrovic, tiene razón, quizá no haya nada. ¡Renuncie!
Y ya sólo somos cinco. En silencio, con los labios apretados, lloramos
ante el altavoz. Un zumbido, un pitido, un golpe, un grito. La atmósfera de la
infra está saturada de electricidad: son parásitos.
Al fin, la voz tranquila de Carusin se deja oír a través del ruido de las
descargas. El Abuelo está aún con nosotros. En la cabina resuena la familiar
voz baja, ronca.
—He apagado el proyector —explicó—. La oscuridad no es absoluta.
Rayos y relámpagos continuos, breves y ramificados. Se divisan nubes planas,
216

como en Júpiter; están rasgadas. El aire es denso. En los márgenes de las


corrientes hay fuertes torbellinos.
Algunas palabras, a veces frases enteras, se pierden. Luego
empezamos a oír mejor.
—El aire se hace más transparente —continúa el Abuelo—. Veo el mar.
Superficie negra como el carbón. Olas no muy altas, parecen encrespaduras.
Desciendo lentamente, el aire es muy denso. Gravedad fortísima. Me resulta
difícil moverme. Hasta la lengua me pesa.
De pronto, una exclamación de alegría.
—¡Pájaros! ¡Pájaros espléndidos! Otros más, otros... ¡Tres juntos! Han
desaparecido en un instante. ¿Los han visto en el televisor? He logrado verlos.
Son de cabeza redonda, cuerpo grueso, alas pequeñas, vibrantes. Me parece
que se asemejan a nuestros peces voladores. Tal vez sean peces voladores y
no pájaros. Pero volaban a bastante altura.
Una fuerte caída. Silencio.
—¿Han oído? He entrado en el agua. El impacto ha sido fuerte, pero
no importa. He apagado la luz. Me acostumbro a la oscuridad.
Poco después:
—Me hundo lentamente, unos dos metros por segundo. He encendido
de nuevo el proyector. Veo un espectáculo extraordinario. Torbellinos, olas,
bancos. ¡Cuántas cosas! Parecen pequeños cangrejos. Cuanto más bajo, más
aparecen. En la Tierra sucede lo contrario: en las profundidades, la vida
disminuye. Pero es a causa del calor: allí viene de lo alto; aquí, de abajo.
»¿Y esto qué es? Largo, negro, sin cabeza, sin cola. Ballena,
cachalote. Es veloz, deja una estela de luz, tiene una fila de puntos luminosos
en el costado. Parecen ojos de buey. ¿Será un submarino? Hago señales con
el proyector : dos-dos-cuatro, dos-tres-seis, dos-dos-cuatro.
»No me hacen caso. Ha desaparecido a la derecha. Ya no lo veo.
Otros monstruos más; son como un cruce entre la tortuga y el pulpo. Pero
tienen únicamente cinco tentáculos: uno detrás, a manera de timón, y los otros,
dos a cada lado. Las extremidades terminan en gruesas ventosas. Parece un
fanal. El dorso está cubierto con un escudo. Tienen los ojos saltones, sobre
tallos móviles, la boca de trompa. Puedo dar todos estos detalles porque uno
avanza hacia mí. Aquí está. Ahora mira por el ojo de buey. Es horrible; tiene
217

una mirada inteligente. La pupila, con un cristalino y el iris fosforescente. Emite


una luz verdosa, como los ojos de los gatos. He leído que los pulpos terrestres
tienen una mirada humana, pero nunca los he visto y no puedo comparar.
»E1 proyector ilumina el fondo. Está cubierto de algunas raíces
nudosas. Parecen corales o nenúfares. Veo gruesos troncos, tienen ramas de
las que cuelgan cálices dirigidos hacia abajo; algunos parecen apoyados en el
fondo. Los cálices de nuestros nenúfares están dirigidos hacia arriba para
recibir el alimento que se hunde en el agua. Pero éstos, ¿qué buscarán en el
fango? ¿Restos descompuestos? De todas formas, no todos tocan el fondo.
¿Buscan calor tal vez? Entonces son plantas. ¿Plantas sin luz? Imposible. Pero
la luz existe: son rayos infrarrojos. ¿Es posible que la energía suministrada por
los rayos infrarrojos pueda producir albúmina, escindir el ácido carbónico? Es
poca y habría que acumularla. Pero también las hojas verdes de la Tierra
acumulan energía. En efecto, son sólo los rayos luminosos los que
descomponen el ácido carbónico.
»Estoy detenido —continuó, poco después, el viejo—. He encallado en
los matorrales del fondo. Puedo mirar con calma. Estoy cada vez más
convencido de que debajo de mí hay plantas. Ahora pasa un pez grueso, sin
cabeza. Huye aterrado. Otro, largo, con dientes, lo aferra, se lo lleva hacia
arriba. Aquí, sin duda, la corriente de la comida va de abajo a arriba. Los
pájaros luminosos son el último eslabón.
Oímos un estruendo y varios sordos golpes metálicos.
—La batisfera se ha movido —explicó el Abuelo—. Alguien la ha cogido
y la arrastra. No logro ver lo que es. Delante del ojo de buey no hay nada. El
fondo está en pendiente, cubierto de vegetación. Pero, es extraño, las plantas
están dispuestas en líneas rectas, como en un huerto. Veo algo muy grande
que se mueve lentamente, arranca las plantas de raíz y las engulle como un
monstruo voraz. No veo bien... Esa especie de máquina viva desaparece ahora
por un lado. Ahora diviso una cadena de escollos. Paso por encima. Un
abismo... La batisfera desciende, la presión aumenta. ¡Adiós! ¡Recuerdos a
Moscú!
Silencio. Un segundo más tarde, de improviso, un grito:
—¡Una grieta!
218

Oímos unos golpes, siempre más frecuentes. Parece que el agua


penetra en la cabina.
. —¡Oh!...
La columna de agua debió arrollarle. Le oímos decir aún,
precipitadamente:
—En el fondo... Construcciones... Una ciudad... Calles iluminadas...
Una cúpula... Esferas, torres flotantes... Veo unos seres extraños... Por todas
partes... Tal vez sean...
Una caída, un grito de dolor...
Luego, un silbido y el rumor de los parásitos.
Cinco hombres, en profundo silencio, miran el círculo negro, aunque es
imposible ver nada en él, ni a simple vista ni con el telescopio.
—Volveremos dentro de trece años —dice Tolja Varenkov.
219

ANEXO III

Amadeo Salvatierra, calle República de Venezuela, cerca del Palacio de


la Inquisición, México DF, enero de 1976.

¿Cómo que no hay misterio?, dije. No hay misterio, Amadeo, dijeron


ellos. Y luego me preguntaron: qué significa para ti el poema. Nada, dije, no
significa nada. ¿Y por qué dices que es un poema? Pues porque Cesárea lo
decía, recordé yo. Por eso y nada más, porque tenía la palabra de Cesárea. Si
esa mujer me hubiera dicho que un pedazo de su caca envuelta en una bolsa
de la compra era un poema yo me la hubiera creído, dije. Qué moderno, dijo el
chileno, y luego mencionó a un tal Manzoni. ¿Alessandro Manzoni?, dije yo
recordando una traducción de Los novios debida a la pluma de Remigio López
Valle, el licenciado candoroso, y publicada en México aproximadamente en
1930, no estoy seguro, ¿Alessandro Manzoni?, pero ellos dijeron: ¡Piero
Manzoni!, el artista pobre, el que enlataba su propia mierda. Ah, caray. El arte
está enloquecido, muchachos, les dije, y ellos dijeron: siempre ha estado
enloquecido. En ese momento vi como sombras de saltamontes en las paredes
de la sala, detrás de los muchachos y a los lados, sombras que bajaban del
cielorraso y que parecían querer deslizarse por el empapelado hasta la cocina
pero que se hundían finalmente en el suelo, así que me restregué los ojos y les
dije órale, a ver si me explican de una vez por todas el poema, que llevo más
de cincuenta años, en cifras redondas, soñando con él. Y los muchachos se
frotaron las manos de pura excitación, angelitos, y se acercaron a mi asiento.
Empecemos por el título, dijo uno de ellos, ¿qué crees que significa? Sión, el
monte Sión en Jerusalén, dije sin dudarlo, y también la ciudad suiza de Sion,
en alemán Sitten, en el cantón de Valais. Muy bien, Amadeo, dijeron, se nota
que has pensado en ello, ¿y con cuál de las dos posibilidades te quedas?,
¿con el monte Sión, verdad? Me parece que sí, dije. Evidentemente, dijeron
ellos. Ahora vamos con el primer corte del poema, ¿qué tenemos? Una línea
recta y sobre ésta un rectángulo, dije. Bueno, dijo el chileno, olvídate del
rectángulo, has de cuenta que no existe. Mira sólo la línea recta. ¿Qué ves?
220

Una línea recta, dije. ¿Qué otra cosa podría ver, muchachos? ¿Y qué te
sugiere una línea recta, Amadeo? El horizonte, dije. El horizonte de una mesa,
dije. ¿Tranquilidad?, dijo uno de ellos. Sí, tranquilidad, calma. Bien: horizonte y
calma. Ahora veamos el segundo corte del poema:

¿Qué ves, Amadeo? Pues una línea ondulada, ¿qué otra cosa podría
ver? Bien, Amadeo, dijeron, ahora ves una línea ondulada, antes veías una
línea recta que te sugería calma y ahora ves una línea ondulada. ¿Te sigue
sugiriendo calma? Pues no, dije comprendiendo de golpe por dónde iban, hacia
dónde querían llevarme. ¿Qué te sugiere la línea ondulada? ¿Un horizonte de
colinas? ¿El mar, olas? Puede ser, puede ser. ¿Una premonición de que la
calma se altera? ¿Movimiento, ruptura? Un horizonte de colinas, dije. Tal vez
olas. Ahora veamos el tercer corte del poema:

Tenemos una línea quebrada,


Amadeo, que puede ser muchas cosas. ¿Los dientes de un tiburón,
muchachos? ¿Un horizonte de montañas? ¿La Sierra Madre occidental?
Bueno, muchas cosas. Y entonces uno de ellos dijo: cuando yo era pequeño,
no tendría más de seis años, solía soñar con estas tres líneas, la recta, la
ondulada y la quebrada. Por aquella época yo dormía, no sé por qué, bajo la
escalera, o al menos en una habitación muy baja, junto a la escalera.
Posiblemente no era mi casa, tal vez estábamos allí sólo de paso, acaso fuera
la casa de mis abuelos. Y cada noche, después de quedarme dormido,
aparecía la línea recta. Hasta allí todo iba bien. El sueño incluso era placentero.
Pero poco a poco el panorama empezaba a cambiar y la línea recta se
transformaba en línea ondulada. Entonces empezaba a marearme y a sentirme
cada vez más caliente y a perder el sentido de las cosas, la estabilidad, y lo
único que deseaba era volver a la línea recta. Sin embargo, nueve de cada diez
veces a la línea ondulada la seguía la línea quebrada, y cuando llegaba allí lo
221

más parecido que sentía en el interior de mi cuerpo era como si me rajaran, no


por fuera sino por dentro, una rajadura que empezaba en el vientre pero que
pronto experimentaba también en la cabeza y en la garganta y de cuyo dolor
sólo era posible escapar despertando, aunque el despertar no era
precisamente fácil. Qué raro, ¿no?, dije yo. Pues sí, dijeron ellos, es raro.
Verdaderamente es raro, dije yo. A veces me orinaba en la cama, dijo uno de
ellos. Vaya, vaya, dije yo. ¿Has entendido?, dijeron ellos. Pues la mera verdad
es que no, muchachos, dije yo. El poema es una broma, dijeron ellos, es muy
fácil de entender, Amadeo, mira: añádele a cada rectángulo de cada corte una
vela, así:

¿Qué tenemos ahora? ¿Un


barco?, dije yo. Exacto, Amadeo, un barco. Y el título, Sión, en realidad
esconde la palabra Navegación. Y eso es todo, Amadeo, sencillísimo, no hay
más misterio, dijeron los muchachos y yo hubiera querido decirles que me
sacaban un peso de encima, eso hubiera querido decirles, o que Sión podía
esconder Simón, una afirmación en caló lanzada desde el pasado, pero lo
único que hice fue decir ah, caray, y buscar la botella de tequila y servirme una
copa, otra más. Eso era todo lo que quedaba de Cesárea, pensé, un barco en
un mar en calma, un barco en un mar movido y un barco en una tormenta. Por
un momento mi cabeza, les aseguro, era como un mar embravecido y no oí lo
que los muchachos decían, aunque capté algunas frases, algunas palabras
sueltas, las predecibles, supongo: la barca de Quetzalcoatl, la fiebre nocturna
de un niño o una niña, el encefalograma del capitán Achab o el encefalograma
de la ballena, la superficie del mar que para los tiburones es la boca del vasto
infierno, el barco sin vela que también puede ser un ataúd, la paradoja del
rectángulo, el rectángulo-conciencia, el rectángulo imposible de Einstein (en un
universo donde los rectángulos son impensables), una página de Alfonso
222

Reyes, la desolación de la poesía. Y entonces, después de beber mi tequila,


llené mi copa otra vez y llené la de ellos y les dije que brindáramos por Cesárea
y vi sus ojos, qué contentos estaban los pinches muchachos, y los tres
brindamos mientras nuestro barquito era zarandeado por la galerna.
223

ANEXO IV

O poema de Mario Santiago Papasquiaro, dedicada a Efraín Huerta,


apresenta a forma e os temas utilizados pelos poetas infrarrealistas:

YA LEJOS DE LA CARRETERA63

Vibraciones / vibraciones látigos /


un sonido viene de la sombra / pronto
forma una esfera / una granja / un grupo /
una armada / un universo de universos
Henri Michaux

A la memoria de Infraín

Unos pantalones mugrosos & la muerte en el pecho


¡Órale!
Nos vemos ahí en el muro
/ pasando el vado /
los vientos cristalizándose a la izquierda
las aletas del polvo: tus aletas
el oasis arponeándonos lo seco
En la hija de tu ojo / el cementerio
Mezcalito echando flores:
La Tierra y su contrario: 2 venados
silenciosos como ruidos en sus bodas
No deberías ir / pero deberías ir

(En esta sombra se acurruca esa rara fruta


que es el corazón anfibio & precoz devenir infrarrealista)

Hijos de Pablo de Rokha somos


Desde antes de escribir esto / ya volábamos
Luego el continuum de lo escrito fue menos vigilado
Bailó el aliento en la punta de la lengua
Nos transfiguramos acariciando el ayayay de cada llaga

Somos poetas
Tám-Táms del negro sol
que nos imanta

63
Disponível em: https://www.poeticous.com/mario-santiago-papasquiaro/ya-lejos-de-la-
carretera?locale=es. Acesso em: 19.01.2017.
224

Ni lúmpenes ni proletarios
El pequeñodios cobrasalarios
ni la pluma rompe en los abismos nuestros
Las auroras infras en la Casa de Usher de la araña:
Juega al balero el dulce clítoris / se embarca como a las 5 montañas en
dos cuatros
a galope tierno & crines sueltas

Rubayat ama
a
Ramayana

Nuestra lengua ha sido púa


Es sandía / chorreante vagabunda de ancha risa
Aventura que nos ha abierto escoriaciones
Lo que éramos lo somos en el crescendo de los ecos
A tales hombros: tales caderas
A esos tobillos / aquellos pasos
El aprendizaje de la limpieza al escalpelo

Gris es la teoría...
Rojo el vellón de la Cannabis / la Inhalámbrica

¿La lucha? / Contra el poder de $igno$ fari$éico$


(máscara vs. cabellera)
l0 años después seguimos siendo Tribu
/ dondequiera lúbricos /
en Jalalpa, Minneapolis, Iquitos, Ivre Sur de Seine, Gerona,
el Barranco & la Cañada
Perros habitados por las voces del desierto
Tlamantinis obscecados
por la flama del canto por el cuerpo
& la flama del cuerpo que es el canto
¡Tlacoyos de realidad!

El rastrojo del lenguaje no germina


si no es en hechos menguaje ya encarnado

La hazaña marabusina en tierras nahuas


–¿De a cómo la liebre lírica? / ¿con alas?
–Feliz No cumpleaños
225

El infrarrealismo no es l vocablo-lija
Nos han antologado nuestras noches
Cada textículo en su sitio / que bien puede ser nuestro milagro nómada

Es Hora Zero otra vez


Jesús Luis rasga en su luz ―Canciones para gandallas‖
Hay estrellas como hay ganas
hay abismos & hay caminos

Las pirañas de anteayer


son iguanas a futuro
Olas, olas, olas de sed

–¿Qué decían de nosotros esos empleados televisivos?


/ hijos del feliz oficio & el próspero cheque de honorarios /
–Oh Santas Risas Satánicas
–¿Ni Billy Burroughs lo sabe?
El petate da de brincos
/ Son cocuyos en la aurora /
-¿Será eso l hai-kai sirio?
¿Un poeta náutico en la sierra?
¿El orgasmo del delirio?

10

Poesía endecasilabóiler
hermanita de Édgar Allan & Black Sabbath
caradiajos & chintreras
qué de arrastres
labrados en la entraña de la entraña

11

Toco viento
: azar turgente :
Nuestra raíz está hablando
/ no el enjuague del Poder & sus taquillas
sus tarifas, sus castigos, muecas cínicas, su estertor de vanidades /

12

Que Tin-tán queme su saco


Los caminos están llenos de otros seres
/ no el cubículo ni el cargo /
Recuerda cuerpo cuanto viviste
226

Cuánto evangelio de cielos abiertos


/ Subterráneamente: soberanamente /
Porque no será el miedo a ningún miedo
el que nos haga poner a media asta
el géiser ígneo de nuestra indignación

& este número 13

Bien lo dice:
La Poesía mexicana se divide en 2
La puesía mexicana & el infrarrealismo
/ Río Tula a remover /
227

ANEXO V

CARNET DE BAILE64

1. Mi madre nos leía a Neruda en Quilpué, en Cauquenes, en Los


Ángeles. 2. Un único libro: Veinte poemas de amor y una canción desesperada,
Editorial Losada, Buenos Aires, 1961. En la portada un dibujo de Neruda y un
aviso de que aquélla era la edición conmemorativa de un millón de ejemplares.
¿En 1961 se había vendido un millón de ejemplares de los Veinte poemas o se
trataba de la totalidad de la obra publicada de Neruda? Me temo que lo
primero, aunque ambas posibilidades son inquietantes, y ya inexistentes. 3. En
la segunda página del libro está escrito el nombre de mi madre, María Victoria
Avalos Flores. Una observación tal vez superficial, contra todos los indicios, me
hace concluir que no fue ella quien escribió su nombre allí. Tampoco es la letra
de mi padre, ni de nadie que yo conozca. ¿De quién, entonces? Tras observar
cuidadosamente esa firma desdibujada por los años tengo que admitir, si bien
con reservas, que es la de mi madre. 4. En 1961, en 1962, mi madre tenía
menos años de los que yo tengo ahora, no llegaba a los treintaicinco, y
trabajaba en un hospital. Era joven y animosa. 5. Los Veinte poemas, mis
Veinte poemas, han recorrido un largo camino. Primero por diversos pueblos
del sur de Chile, después por varias casas de México DF, después por tres
ciudades de España. 6. El libro, por supuesto, no era mío. Primero fue de mi
madre. Ésta se lo regaló a mi hermana y cuando mi hermana se fue de Gerona
rumbo a México me lo regaló a mí. Entre los libros que me dejó mi hermana
mis favoritos eran los de ciencia ficción y la obra completa, hasta ese momento,
de Manuel Puig, que yo mismo le había regalado y que entonces releí. 7.
Neruda ya no me gustaba. ¡Y menos aún los Veinte poemas de amor! 8. En
1968 mi familia se fue a vivir a México DF. Dos años después, en 1970, conocí
a Alejandro Jodorowski, que para mí encarnaba al artista de prestigio. Lo
busqué a la salida de un teatro (dirigía una versión de Zaratustra, con Isela
Vega), le dije que quería que me enseñara a dirigir películas y desde entonces
me convertí en asiduo visitante de su casa. Creo que no fui un buen alumno.

64
BOLAÑO, Roberto. Putas asesinas. 9ª ed. Barcelona: Editorial Anagrama S.A., Colección
Compactos, 2011, p. 207-216)
228

Jodorowski me preguntó cuánto gastaba en tabaco cada semana. Le dije que


bastante, pues desde siempre he fumado como un carretero. Jodorowski me
dijo que dejara de fumar y que ese dinero lo invirtiera en pagar unas clases de
meditación zen con Ejo Takata. De acuerdo, dije. Durante unos días estuve con
Ejo Takata, pero a la tercera sesión decidí que eso no era lo mío. 9. Abandoné
a Ejo Takata en plena sesión de meditación zen. Cuando quise dejar la fila el
japonés se abalanzó sobre mí blandiendo un bastón de madera, el mismo con
el que golpeaba a los alumnos que así se lo pedían. Es decir, Ejo ofrecía el
bastón, los alumnos decían sí o no y en caso de ser la respuesta afirmativa Ejo
les descerrajaba unos planazos que atronaban el espacio en penumbra
impregnado de incienso. 10. A mí, sin embargo, no me ofreció la posibilidad de
denegar los golpes. Su ataque fue fulminante y estentóreo. Yo estaba junto a
una chica, cerca de la puerta, y Ejo estaba al fondo de la habitación. Supuse
que tenía los ojos cerrados y creí que no me iba a escuchar cuando me
marchara. Pero el pinche japonés me escuchó y se abalanzó sobre mí gritando
el equivalente zen de banzai. 11. Mi padre fue campeón de boxeo amateur en
la categoría de los pesos pesados. Su invicto reinado se circunscribió al sur de
Chile. A mí nunca me gustó boxear, pero aprendí desde chico; siempre hubo
un par de guantes de boxeo en mi casa, ya fuera en Chile o en México. 12.
Cuando el maestro Ejo Takata se abalanzó gritando sobre mí probablemente
no pretendía hacerme daño, tampoco esperaba que yo automáticamente me
defendiera. Los planazos de su bastón servían generalmente para
desentumecer los nervios agarrotados de sus discípulos. Pero yo no tenía los
nervios agarrotados, yo sólo quería largarme de allí de una vez por todas. 13.
Si crees que te atacan, te defiendes, ésa es una ley natural, sobre todo a los
diecisiete años, sobre todo en el DF. Ejo Takata era nerudiano en la
ingenuidad. 14. Según Jodorowski, él había introducido a Ejo Takata en
México. Durante una época Takata buscaba drogadictos por las selvas de
Oaxaca, la mayoría norteamericanos, que no habían podido regresar después
de un viaje alucinógeno. 15. Por lo demás, la experiencia con Takata no hizo
que dejara de fumar. 16. Una de las cosas que me gustaba de Jodorowski era
que hablaba de los intelectuales chilenos (generalmente en contra) y me incluía
a mí. Eso me proporcionaba una gran confianza, aunque por descontado yo no
tenía la más mínima intención de ser como aquellos intelectuales. 17. Una
229

tarde, no sé por qué, nos pusimos a hablar de poesía chilena. El dijo que el
más grande era Nicanor Parra. Acto seguido, se puso a recitar un poema de
Nicanor, y luego otro, y luego finalmente otro. Jodorowski recitaba bien, pero
los poemas no me impresionaron. Yo era por entonces un joven hipersensible,
además de ridículo y muy orgulloso, y afirmé que el mejor poeta de Chile, sin
duda alguna, era Pablo Neruda. Los demás, añadí, son unos enanos. La
discusión debió de durar media hora. Jodorowski esgrimió argumentos de
Gurdjieff, Krishnamurti y Madame Blavatski, luego habló de Kierkegaard y
Wittgenstein, luego de Topor, Arrabal y él mismo. Recuerdo que dijo que
Nicanor, de paso para alguna parte, se había alojado en su casa. En esa
afirmación entreví un orgullo pueril que desde entonces nunca he dejado de
percibir en la mayoría de los escritores. 18. En alguno de sus escritos Bataille
dice que las lágrimas son la última forma de comunicación. Yo me puse a llorar,
pero no de una manera normal y formal, es decir dejando que mis lágrimas se
deslizaran suavemente por las mejillas, sino de una manera salvaje, a
borbotones, más o menos como llora Alicia en el País de las Maravillas,
inundándolo todo. 19. Cuando salí de casa de Jodorowski supe que nunca más
iba a volver allí y eso me dolió tanto como sus palabras y seguí llorando por la
calle. También supe, pero esto de una forma más oscura, que no volvería a
tener un maestro tan simpático, un ladrón de guante blanco, el estafador
perfecto. 20. Pero lo que más me extrañó de mi actitud fue la defensa más bien
miserable y poco argumentada, pero defensa al fin y al cabo, que hice de Pablo
Neruda, de quien sólo había leído los Veinte poemas de amor (que por
entonces me parecían involuntariamente humorísticos) y el Crepusculario, cuyo
poema «Farewell» encarnaba el colmo de los colmos de la cursilería, pero por
el cual siento una inquebrantable fidelidad. 21. En 1971 leí a Vallejo, a
Huidobro, a Martín Adán, a Borges, a Oquendo de Amat, a Pablo de Rokha, a
Gilberto Owen, a López Velarde, a Oliverio Girondo. Incluso leí a Nicanor
Parra. ¡Incluso leí a Pablo Neruda! 22. Los poetas mexicanos de entonces que
eran mis amigos y con quienes compartía la bohemia y las lecturas, se dividían
básicamente entre vallejianos y nerudianos. Yo era parriano en el vacío, sin la
menor duda. 23. Pero hay que matar a los padres, el poeta es un huérfano
nato. 24. En 1973 volví a Chile en un largo viaje por tierra y por mar que se
dilató al arbitrio de la hospitalidad. Conocí a revolucionarios de distinto pelaje.
230

El torbellino de fuego en el que Centroamérica no tardaría en verse envuelta ya


se avizoraba en los ojos de mis amigos, que hablaban de la muerte como quien
cuenta una película. 25. Llegué a Chile en agosto de 1973. Quería participar en
la construcción del socialismo. El primer libro de poemas que compré fue Obra
gruesa, de Parra. El segundo, Artefactos, también de Parra. 26. Tenía menos
de un mes para disfrutar de la construcción del socialismo. Por supuesto, yo
entonces no lo sabía. Era parriano en la ingenuidad. 27. Asistí a una exposición
y vi a varios poetas chilenos, fue espantoso. 28. El once de septiembre me
presenté como voluntario en la única célula operativa del barrio en donde yo
vivía. El jefe era un obrero comunista, gordito y perplejo, pero dispuesto a
luchar. Su mujer parecía más valiente que él. Todos nos amontonamos en el
pequeño comedor de suelo de madera. Mientras el jefe de la célula hablaba me
fijé en los libros que tenía sobre el aparador. Eran pocos, la mayoría novelas de
vaqueros como las que leía mi padre. 29. El once de septiembre fue para mí,
además de un espectáculo sangriento, un espectáculo humorístico. 30. Vigilé
una calle vacía. Olvidé mi contraseña. Mis compañeros tenían quince años o
eran jubilados o desempleados. 31. Cuando murió Neruda yo ya estaba en
Mulchén, con mis tíos y tías, con mis primos. En noviembre, mientras viajaba
de Los Ángeles a Concepción, me detuvieron en un control de carretera y me
metieron preso. Fui el único al que bajaron del autobús. Pensé que me iban a
matar allí mismo. Desde el calabozo oí la conversación que sostuvo el jefe del
retén, un carabinero jovencito y con cara de hijo de puta (un hijo de puta
revolviéndose en el interior de un saco de harina), con sus jefes de
Concepción. Decía que había capturado a un terrorista mexicano. Luego se
retractó y dijo: terrorista extranjero. Mencionó mi acento, mis dólares, la marca
de mi camisa y de mis pantalones. 32. Mis bisabuelos, los Flores y los Grana,
intentaron vanamente domar la Araucanía (aunque no fueron capaces ni de
domarse a sí mismos), por lo que es probable que fueran nerudianos en la
desmesura; mi abuelo Roberto Avalos Martí fue coronel y estuvo destinado en
varias plazas del sur hasta una jubilación temprana y oscura, lo que me hace
pensar que fue nerudiano en el blanco y en el azul; mis abuelos paternos
llegaron de Galicia y Cataluña, dejaron sus vidas en la provincia de Bío-Bío y
fueron nerudianos en el paisaje y en la laboriosa lentitud. 33. Durante algunos
días estuve encerrado en Concepción y luego me soltaron. No me torturaron,
231

como temía, ni siquiera me robaron. Pero tampoco me dieron nada para comer
ni para taparme por las noches, por lo que tuve que vivir de la buena voluntad
de los presos que compartían su comida conmigo. De madrugada escuchaba
cómo torturaban a otros, sin poder dormir, sin nada que leer, salvo una revista
en inglés que alguien había olvidado allí y en la que lo único interesante era un
artículo sobre una casa que en otro tiempo perteneció al poeta Dylan Thomas.
34. Me sacaron del atolladero dos detectives, ex compañeros míos en el Liceo
de Hombres de Los Ángeles, y mi amigo Fernando Fernández, que tenía un
año más que yo, veintiuno, pero cuya sangre fría era sin duda equiparable a la
imagen ideal del inglés que los chilenos desesperada y vanamente intentaron
tener de sí mismos. 35. En enero de 1974 me marché de Chile. Nunca más he
vuelto. 36. ¿Fueron valientes los chilenos de mi generación? Sí, fueron
valientes. 37. En México me contaron la historia de una muchacha del MIR a la
que torturaron introduciéndole ratas vivas por la vagina. Esta muchacha pudo
exiliarse y llegó al DF. Vivía allí, pero cada día estaba más triste y un día se
murió de tanta tristeza. Eso me dijeron. Yo no la conocí personalmente. 38. No
es una historia extraordinaria. Sabemos de campesinas guatemaltecas
sometidas a vejaciones sin nombre. Lo increíble de esta historia es su
ubicuidad. En París me contaron que una vez llegó allí una chilena a la que
habían torturado de la misma manera. Esta chilena también era del MIR, tenía
la misma edad que la chilena de México y había muerto, como aquélla, de
tristeza. 39. Tiempo después supe la historia de una chilena de Estocolmo,
joven y militante del MIR o ex militante del MIR, torturada en noviembre de
1973 con el sistema de las ratas y que había muerto, para asombro de los
médicos que la cuidaban, de tristeza, de morbus melancholicus. 40. ¿Se puede
morir de tristeza? Sí, se puede morir de tristeza, se puede morir de hambre
(aunque es doloroso), se puede morir incluso de spleen. 41. ¿Esta chilena
desconocida, reincidente en la tortura y en la muerte, era la misma o se trataba
de tres mujeres distintas, si bien correligionarias en el mismo partido y de una
belleza similar? Según un amigo, se trataba de la misma mujer que, como en el
poema de Vallejo «Masa», al morir se iba multiplicando sin dejar por ello de
morir. (En realidad, en el poema de Vallejo el muerto no se multiplica, quienes
se multiplican son los suplicantes, los que no quieren que muera.) 42. Hubo
una vez una poeta belga llamada Sophie Podolski. Nació en 1953 y se suicidó
232

en 1974. Sólo publicó un libro, llamado Le Pays oü tout estpermis (Montfaucon


Research Center, 1972, 280 páginas facsímiles). 43. Germain Nouveau (1852-
1920), que fue amigo de Rimbaud, pasó los últimos años de su vida como
vagabundo y como mendigo. Se hacía llamar Humilis (en 1910 publicó Les
poemes d'Humilis) y vivía en las puertas de las iglesias. 44. Todo es posible.
Eso todo poeta debería saberlo. 45. Una vez me preguntaron cuáles eran los
jóvenes poetas chilenos que a mí me gustaban. Tal vez no emplearan la
palabra «jóvenes» sino «actuales». Dije que me gustaba Rodrigo Lira, aunque
éste ya no pueda ser actual (pero sí joven, más joven que todos nosotros)
puesto que está muerto. 46. Parejas de baile de la joven poesía chilena: los
nerudianos en la geometría con los huidobrianos en la crueldad, los
mistralianos en el humor con los rokhianos en la humildad, los parrianos en el
hueso con los lihneanos en el ojo. 47. Lo confieso: no puedo leer el libro de
memorias de Neruda sin sentirme mal, fatal. Qué cúmulo de contradicciones.
Qué esfuerzos para ocultar y embellecer aquello que tiene el rostro
desfigurado. Qué falta de generosidad y qué poco sentido del humor. 48. Hubo
una época felizmente ya pasada de mi vida en que veía por el pasillo de mi
casa a Adolf Hitler. Hitler no hacía nada más que caminar pasillo arriba y pasillo
abajo y cuando pasaba por la puerta abierta de mi dormitorio ni siquiera me
miraba. Al principio pensaba que era (¿qué otra cosa podía ser?) el demonio y
que mi locura era irreversible. 49. Quince días después Hitler se esfumó y yo
pensé que el siguiente en aparecer sería Stalin. Pero Stalin no apareció. 50.
Fue Neruda el que se instaló en mi pasillo. No quince días, como Hitler, sino
tres, un tiempo considerablemente más corto, señal de que la depresión
amenguaba. 51. En contrapartida, Neruda hacía ruidos (Hitler era silencioso
como un trozo de hielo a la deriva), se quejaba, murmuraba palabras
incomprensibles, sus manos se alargaban, sus pulmones sorbían el aire del
pasillo (de ese frío pasillo europeo) con fruición, sus gestos de dolor y sus
modales de mendigo de la primera noche fueron cambiando de tal manera que
al final el fantasma parecía recompuesto, otro, un poeta cortesano, digno y
solemne. 52. A la tercera y última noche, al pasar por delante de mi puerta, se
detuvo y me miró (Hitler nunca me había mirado) y, esto es lo más
extraordinario, intentó hablar, no pudo, manoteó su impotencia y finalmente,
antes de desaparecer con las primeras luces del día, me sonrió (¿como
233

diciéndome que toda comunicación es imposible pero que, sin embargo, se


debe hacer el intento?). 53. Conocí hace tiempo a tres hermanos argentinos
que murieron intentando hacer la revolución en países diferentes de
Latinoamérica. Los dos mayores se traicionaron mutuamente y de paso
traicionaron al menor. Éste no cometió traición alguna, y murió, dicen,
llamándolos, aunque lo más probable es que muriera en silencio. 54. Los hijos
del león español, decía Rubén Darío, un optimista nato. Los hijos de Walt
Whitman, de José Martí, de Violeta Parra; desollados, olvidados, en fosas
comunes, en el fondo del mar, sus huesos mezclados en un destino troyano
que espanta a los supervivientes. 55. Pienso en ellos estos días en que los
veteranos de las Brigadas Internacionales visitan España, viejitos que bajan de
los autocares con el puño en alto. Fueron 40.000 y hoy vuelven a España 350 o
algo así. 56. Pienso en Beltrán Morales, pienso en Rodrigo Lira, pienso en
Mario Santiago, pienso en Reinaldo Arenas. Pienso en los poetas muertos en
el potro de tortura, en los muertos de sida, de sobredosis, en todos los que
creyeron en el paraíso latinoamericano y murieron en el infierno
latinoamericano. Pienso en esas obras que acaso permitan a la izquierda salir
del foso de la vergüenza y la inoperancia. 57. Pienso en nuestras vanas
cabezas puntiagudas y en la muerte abominable de Isaac Babel. 58. Cuando
sea mayor quiero ser nerudiano en la sinergia. 59. Preguntas para antes de
dormir. ¿Por qué a Neruda no le gustaba Kafka? ¿Por qué a Neruda no le
gustaba Rilke? ¿Por qué a Neruda no le gustaba De Rokha? 60. ¿Barbusse le
gustaba? Todo hace pensar que sí. Y Shólojov. Y Alberti. Y Octavio Paz.
Extraña compañía para viajar por el Purgatorio. 61. Pero también le gustaba
Eluard, que escribía poemas de amor. 62. Si Neruda hubiera sido
cocainómano, heroinómano, si lo hubiera matado un cascote en el Madrid
sitiado del 36, si hubiera sido amante de Lorca y se hubiera suicidado tras la
muerte de éste, otra sería la historia. ¡Si Neruda fuera el desconocido que en el
fondo verdaderamente es! 63. ¿En el sótano de lo que llamamos «Obra de
Neruda» acecha Ugolino dispuesto a devorar a sus hijos? 64. ¡Sin ningún
remordimiento! ¡Inocentemente! ¡Sólo porque tiene hambre y ningún deseo de
morirse! 65. No tuvo hijos, pero el pueblo lo quería. 66. ¿Como a la Cruz,
hemos de volver a Neruda con las rodillas sangrantes, los pulmones
agujereados, los ojos llenos de lágrimas? 67. Cuando nuestros nombres ya
234

nada signifiquen, su nombre seguirá brillando, seguirá planeando sobre una


literatura imaginaria llamada literatura chilena. 68. Todos los poetas, entonces,
vivirán en comunas artísticas llamadas cárceles o manicomios. 69. Nuestra
casa imaginaria, nuestra casa común.
235

ANEXO VI

Los mitos de Chtulhu - fragmento65


En realidad la literatura latinoamericana no es Borges ni Macedonio
Fernández ni Onetti ni Bioy ni Cortázar ni Rulfo ni Revueltas ni siquiera el dueto
de machos ancianos formado por García Márquez y Vargas Llosa. La literatura
latinoamericana es Isabel Allende, Luis Sepúlveda, Ángeles Mastretta, Sergio
Ramírez, Tomás Eloy Martínez, un tal Aguilar Camín o Comín y muchos otros
nombres ilustres que en este momento no recuerdo.
La obra de Reinaldo Arenas ya está perdida. La de Puig, la de Copi, la
de Roberto Arlt. Ya nadie lee a Ibargüengoitia. Monterroso, que perfectamente
bien hubiera podido declarar que tres de sus personajes inolvidables son
Mándela, García Márquez y Vargas Llosa, tal vez cambiando a Vargas Llosa
por Bryce Echenique, no tardará en entrar de lleno en la mecánica del olvido.
Ahora es la época del escritor funcionario, del escritor matón, del escritor que
va al gimnasio, del escritor que cura sus males en Houston o en la Clínica
Mayo de Nueva York. La mejor lección de literatura que dio Vargas Llosa fue
salir a hacer jogging con las primeras luces del alba. La mejor lección de
García Márquez fue recibir al Papa de Roma en La Habana, calzado con
botines de charol, García, no el Papa, que supongo iría con sandalias, junto a
Castro, que iba con botas. Aún recuerdo la sonrisa que García Márquez, en
aquella magna fiesta, no pudo disimular del todo. Los ojos entrecerrados, la piel
estirada como si acabara de hacerse un lifting, los labios ligeramente fruncidos,
labios sarracenos habría dicho Amado Nervo muerto de envidia.
¿Qué pueden hacer Sergio Pitol, Fernando Vallejo y Ricardo Piglia
contra la avalancha de glamour? Poca cosa. Literatura. Pero la literatura no
vale nada si no va acompañada de algo más refulgente que el mero acto de
sobrevivir. La literatura, sobre todo en Latinoamérica, y sospecho que también
en España, es éxito, éxito social, claro, es decir es grandes tirajes,
traducciones a más de treinta idiomas (yo puedo nombrar veinte idiomas, pero
a partir del idioma número 25 empiezo a tener problemas, no porque crea que

65
BOLAÑO, Roberto. El gaucho insufrible. Barcelona: Editorial Anagrama S.A., Narrativas
hispánicas, 2006. Este fragmento consta de uma edição online do livro
236

el idioma número 26 no existe sino porque me cuesta imaginar una industria


editorial y unos lectores birmanos temblando de emoción con los avatares
mágico-realistas de Eva Luna), casa en Nueva York o Los Ángeles, cenas con
grandes magnatarios (para que así descubramos que Bill Clinton puede recitar
de memoria párrafos enteros de Huckleberry Finn con la misma soltura con que
el presidente Aznar lee a Cernuda), portadas en Newsweek y anticipos
millonarios.
Los escritores actuales no son ya, como bien hiciera notar Pere
Gimferrer, señoritos dispuestos a fulminar la respetabilidad social ni mucho
menos un hatajo de inadaptados sino gente salida de la clase media y del
proletariado dispuesta a escalar el Everest de la respetabilidad, deseosa de
respetabilidad. Son rubios y morenos hijos del pueblo de Madrid, son gente de
clase media baja que espera terminar sus días en la clase media alta. No
rechazan la respetabilidad. La buscan desesperadamente. Para llegar a ella
tienen que transpirar mucho.
Firmar libros, sonreír, viajar a lugares desconocidos, sonreír, hacer de
payaso en los programas del corazón, sonreír mucho, sobre todo no morder la
mano que les da de comer, asistir a ferias de libros y contestar de buen talante
las preguntas más cretinas, sonreír en las peores situaciones, poner cara de
inteligentes, controlar el crecimiento demográfico, dar siempre las gracias.
No es de extrañar que de golpe se sientan cansados. La lucha por la
respetabilidad es agotadora. Pero los nuevos escritores tuvieron y algunos aún
tienen (y Dios se los conserve por muchos años) padres que se agotaron y
gastaron por un simple jornal de obrero y por lo tanto saben, los nuevos
escritores, que hay cosas mucho más agotadoras que sonreír incesantemente
y decirle sí al poder. Claro que hay cosas mucho más agotadoras. Y de alguna
forma es conmovedor buscar un sitio, aunque sea a codazos, en los pastizales
de la respetabilidad. Ya no existe Aldana, ya nadie dice que ahora es preciso
morir, pero existe, en cambio, el opinador profesional, el tertuliano, el
académico, el regalón del partido, sea éste de derecha o de izquierda, existe el
hábil plagiario, el trepa contumaz, el cobarde maquiavélico, figuras que en el
sistema literario no desentonan de las figuras del pasado, que cumplen, a
trancas y barrancas, a menudo con cierta elegancia, su rol, y que nosotros, los
237

lectores o los espectadores o el público, el público, el público, como le decía al


oído Margarita Xirgu a García Lorca, nos merecemos.
Dios bendiga a Hernán Rivera Letelier, Dios bendiga su cursilería, su
sentimentalismo, sus posiciones políticamente correctas, sus torpes trampas
formales, pues yo he contribuido a ello. Dios bendiga a los hijos tarados de
García Márquez y a los hijos tarados de Octavio Paz, pues yo soy responsable
de esos alumbramientos. Dios bendiga los campos de concentración para
homosexuales de Fidel Castro y los veinte mil desaparecidos de Argentina y la
jeta perpleja de Videla y la sonrisa de macho anciano de Perón que se proyecta
en el cielo y a los asesinos de niños de Río de Janeiro y el castellano que
utiliza Hugo Chávez, que huele a mierda y es mierda y que he creado yo.
Todo es, a final de cuentas, folclore. Somos buenos para pelear y
somos malos para la cama. ¿O tal vez era al revés, Maquieira? Ya no me
acuerdo. Tiene razón Fuguet: hay que conseguir becas y anticipos
sustanciosos. Hay que venderse antes de que ellos, quienes sean, pierdan el
interés por comprarte. Los últimos latinoamericanos que supieron quién era
Jacques Vaché fueron Julio Cortázar y Mario Santiago y ambos están muertos.
[…]
Si pudiéramos crucificar a Borges, lo crucificaríamos. Somos los
asesinos tímidos, los asesinos prudentes. Creemos que nuestro cerebro es un
mausoleo de mármol, cuando en realidad es una casa hecha con cartones, una
chabola perdida entre un descampado y un crepúsculo interminable. (Quién
dice, por otra parte, que no hayamos crucificado a Borges. Lo dice Borges, que
murió en Ginebra.)
Sigamos, pues, los dictados de García Márquez y leamos a Alejandro
Dumas. Hagámosle caso a Pérez Dragó o a García Conte y leamos a Pérez
Reverte. En el folletón está la salvación del lector (y de paso, de la industria
editorial). Quién nos lo iba a decir. Mucho presumir de Proust, mucho estudiar
las páginas de Joyce que cuelgan de un alambre, y la respuesta estaba en el
folletón. Ay, el folletón. Pero somos malos para la cama y probablemente
volveremos a meter la pata. Todo lleva a pensar que esto no tiene salida.
238

ANEXO VII
Pulps Magazines
As revistas populares, pulps magazines, explodiram na virada do
século XIV para o XX. Esse meio de divulgar uma literatura, que estavam
sendo escritas para atingir uma gama maior da população, principalmente as
que precisavam de algum entretenimento, agrupava alguns tipos de histórias:
western, horror, fantasia, detetive, ficção científica, relatos eróticos, que depois
se tornaram gêneros literários, em si mesmos, transportados para os livros,
permanecendo até os dias atuais, embora reescritos para atender as
demandas do mundo contemporâneo. As revistas eram divididas por tipo:
Weird Tales relatavam histórias de horror e fantasia; Amazing Stories narravam
os contos de ficção científica; Black Mask apresentavam as histórias de
detetive e assim por diante. Entre os países que consumiam mais esse tipo de
revista estavam Estados Unidos, Inglaterra, França, Canadá e outros.
As revistas eram impressas em um papel barato, aqui no Brasil
conhecido como papel jornal, depois passou por uma repaginada e essas
revistas deixaram de ser chamadas de pulps somente por causa do custo
barato, mas também sinônimo de dinamismo narrativo, com personagens com
perfis bem delineados, onde apareciam heróis, vilões, ação, drama, aventura,
erotismo e exotismo. Essas revistas tiveram um tempo de duração, até o
período do pós-guerra e foram substituídas pelos livros de bolso, que
republicou várias séries e romances das revistas pulps, até chegarem, com o
seu nome de registro nas telas de cinema com o filme de Quentin Tarantino,
Pulp Fiction. Hoje, muitas dessas revistas fazem parte de acervo de muitos
colecionadores.
No Brasil, as narrativas que povoavam esse tipo de revista chegam em
forma de folhetim e a partir de 1950 em forma de livro de bolso vem baratos
para poderem ser adquiridos pela população mais precária. Seguem algumas
capas das revistas.
239
240
241
242

Livros de Bolso zz7 – Ilustração de José Luis Benício da espiã Brigitte


Montfort
Brigitte, personagem de ficção, espiã criada pelo espanhol
Antonio Vera Ramírez, que usava o pseudônimo de Lou Carrigan. Esses livros
foram lançados no Brasil nos anos 1960.
243

Outras Pulps magazines


244
245
246

ANEXO VIII

Doze notas de Raymond Chandler sobre o gênero negro66

DOCE NOTAS ACERCA DE LA NOVELA DE MISTÉRIO:

1. Debe ser una novela con credibilidad, tanto en sus situaciones como en
el desenlace; con acciones, personajes y circunstancias plausibles (no
se valen los finales tramposos ni las manidas historias de ―círculos
cerrados‖. Nada de elaborar escenarios tan sofisticados como los de
Agatha Christie en el tren a Calais);
2. Debe ser técnicamente solvente, sólida, tanto en el método de asesinar
como en el de detección. Nada de venenos fantásticos ni efectos falsos.
Si el detective es un policía, debe proceder como si lo fuera y tener la
mentalidad y el físico de uno de ellos. Conan Doyle y Poe fueron
primitivos en este arte. Ellos hicieron cosas que hoy no pueden admitirse
(también las policías era rudimentarias en sus tiempos). Conan Doyle
mostró que no sabía todo acerca de Scotland Yard y sus hombres.
Christie comete la misma estupidez;
3. Hay que ser muy honesto con el lector, algo que siempre se dice pero no
siempre se hace. Los hechos importantes no solo no hay que ocultarlos;
tampoco hay que distorsionarlos con falsos énfasis. Y los hechos no
importantes no deben ser proyectados como si lo fueran para engañar al
lector. Este debe tener todos los elementos para resolver el problema ;
tampoco crear tramas que exijan conocimientos especiales en los
lectores;
4. Debe ser realista, tanto en los personajes, como en escenarios y
atmósferas. Debe tratarse de gente real en un mundo real;
5. Debe haber una historia convincente y sólida , aparte de los elementos
policiacos. La investigación en si misma debe ser una aventura digna de
ser leída;

66
GIARDINELLI, Mempo. El género negro: orígenes y evolución de la literatura policial y su
influencia en Latinoamérica. 1ªed. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2013, p. 111-113.
247

6. Para lograr esto, la historia debe contener algo de suspenso, aunque


sea solo intelectual. Esto no quiere decir que deba haber amenazas y
menos quiere decir que el detective deba vivir amenazado gravemente.
Debe haber conflictos, físicos, éticos o emocionales y solo algunos
elementos de peligro en el más amplio sentido de la palabra;
7. Debe haber colorido, elevación y cierto brío en la narración;
8. Debe tener la suficiente simpleza esencial como para ser explicado todo
al final. Posiblemente esta sea una de las reglas más frecuentemente
violadas. El desenlace ideal es aquel en el cual todo se revela y explica
en un momento de la acción. Pero esto es raro, porque todas las buenas
ideas son raras. La explicación debe ser no demasiado bree (excepto
en los guiones). Pero debe ser interesante en sí misma; algo que los
lectores estén ansiosos por saber y no una nueva y larga historia con
nuevos ambientes, nuevos personajes y nuevas complicaciones. No es
juego limpio que el lector retenga miles de trivialidades para después
decirle que dos o tres eran las decisivas. Ni debe hacerse que el lector
sepa de química, metalurgia o las costumbres de la Patagonia;
9. Debe esperarse que el receptor sea un lector razonablemente
inteligente. Aunque esta es una cuestión muy difícil de definir;
10. La solución debe verse inevitable una vez revelada. Esta es una regla
importante en cualquier ficción. Hay que hacer que el lector no se sienta
trampeado ni loco, o en todo caso que se sienta que el engaño es
honorable;
11. No hay que hacer todo a la vez. Si se trata de una obra de enigma, más
o menos fría, no puede también incluirse una aventura violenta ni un
apasionado romance. Por otra parte, una atmósfera de terror destruye
un pensamiento lógico. El detective no puede estar amenazado y ser un
héroe al mismo tiempo; ni el asesino puede ser una víctima atormentada
por las circunstancias y a la vez un pesado;
12. Debe penarse al criminal en un sentido o en otro, pero no
necesariamente mediante la acción legal. Contrariamente al criterio
popular, este requerimiento no tiene nada que ver con la moralidad.
Simplemente, es parte de la lógica de la detección.
248

Aunque el título refiere a doce notas o reglas, en realidad son más


pues hay una adenda del propio Chandler, con fecha de revisión de 18 de abril
de 1948, en la que se incluyen otras trece ideas sobre el género.

ADENDA A LOS APUNTES SOBRE LA NOVELA DE MISTERIO


(EXTRACTOS)

1. La perfecta historia detectivesca no puede ser escrita. El tipo de


mente que pueda desarrollar un problema perfecto no es el tipo de
mente que pueda producir el trabajo artístico de la escritura.
2. El camino más efectivo para concebir un simple misterio es hacerlo
detrás de otro misterio. Pero eso es prestidigitación literaria. Esto es
volver loco al lector, a lo Christie, haciéndolo resolver un problema
equivocado.
3. Se ha dicho que ―a nadie le importa el cadáver‖. Pero esto es
palabrería. Significa tirar a la basura un elemento valioso. Es como
decir que la muerte de tu tía no te importa más que la muerte de un
desconocido.
4. Los diálogos petulantes y pretenciosos nunca son agudos.
5. Un misterio seriado no puede hacer una buena novela misterio. Las
novelas por entregas basan su éxito en que el lector no puede leer el
siguiente capítulo enseguida. En forma de libro, estos cortes dan el
efecto de un falso suspenso e irritan al lector.
6. Los asuntos amorosos siempre debilitan una novela de misterio,
porque si se ha creado suspenso es antagónico y no complementario
para resolver el problema. Los asuntos amorosos que interesan a
este trabajo son aquellos que complican el problema porque agregan
dudas al detective, pero los cuales al mismo tiempo uno como lector
siente que no sobrevivirán a la historia. Un verdadero buen detective
nunca se casa; él ha perdido las esperanzas y eso es parte de su
encanto.
7. El hecho de que el amor interese en las grandes revistas y en los
guiones cinematográficos no hace que eso sea artístico. Las revistas
249

no se interesan por los cuentos de misterio como un arte; no se


interesan por ninguna escritura como arte.
8. El héroe de las historias policiacas es el detective. Todo hace a su
personalidad. Si su detective no tiene personalidad, usted creó uno
muy pequeño. Y así tendrá muy pocas buenas historias de misterio.
Naturalmente.
9. El criminal nunca puede ser el detective. Esta es una vieja regla. Por
esta razón: el detective por tradición y definición es el buscador de la
verdad. Y es una amplia garantía para el lector que el detective
siempre esté en su lugar.
10. La misma imposición debe aplicarse en las historias en primera
persona en que el narrador es el criminal. Personalmente, creo que
las narraciones en primera persona pueden ser acusadas de
deshonestidad, porque posibilitan la supresión de razonamiento del
detective al tiempo que solo dan cuenta de sus palabras y actos. El
detective toma decisiones que no se dan a conocer al lector: dice los
hechos pero no explica lo que esos hechos producen en su mente.
¿Es esto una convención permisible o es fraude? Para mí es fraude,
porque el lector debe llegar al desenlace junto con el detective.
11. El asesino nunca debe ser un loco. El asesino no es tal si no ha
cometido asesinato en el sentido legal.
12. Hemos dicho que no hay posibilidad de perfección absoluta en las
obras de misterio. Por la razón que dimos en la primera nota y por
otra: la actitud del lector consigo mismo. Hay lectores de todas las
clases y muchos niveles de cultura: está el adicto al enigma, que
establece una competencia entre su agudeza y la del escritor, y sí él
adivina la solución se siente ganador; está el lector que solo se
interesa en sus sensaciones de sadismo, crueldad, sangre y muerte
(algo de esto hay en todos); una tercera clase es el lector
―preocupado-por-los-personajes‖, al que no le preocupa mucho la
solución; la cuarta clase e la más importante, y es el intelectual
literario que lee estas novelas porque éstas son casi las únicas
clases de ficción que no le quedan grandes. Estos lectores saborean
el estilo, las caracterizaciones, los vaivenes de la trama y demás
250

virtuosidades mucho más que la solución. Pero usted no puede


satisfacer a todos los lectores. Yo, como lector, casi nunca trato de
encontrar la solución al misterio. Simplemente, no considero
importante la lucha entre el escritor y el lector. Para ser franco, creo
que esta lucha es un entretenimiento para tipos de mentalidad
inferior.
13. Se ha sugerido que toda ficción depende, en cierta forma, del
suspenso. Pero la técnica del suspenso es una cualidad del escritor.
Responde más bien a esa curiosa dualidad psicológica en la mente
del lector, que le permite preocuparse por lo que hay escondido
detrás de la puerta pero a la vez sabiendo que el héroe o la heroína
no morirán. ¿Qué es lo que crea este efecto? De las muchas posibles
razones, yo sugiero dos: la inteligencia y las emociones funcionan en
niveles distintos. La reacción emocional ante las imágenes visuales y
los sonidos, o las evocaciones ante las descripciones literarias, son
independientes del razonamiento. El primitivo elemento del miedo
nunca está lejos de la superficie del nuestros pensamientos.
Cualquier cosa que lo llame puede derrotar la razón por un rato. La
otra razón es que el cualquier tipo de literatura u otras proyecciones
la parte siempre es más determinada que el todo. La escena que el
lector tiene ante sus ojos es la que domina sus pensamientos. Res al
final que el libro, visto como un todo, será recordado y considerados
sus meritos, pero durante la lectura el factor dominante es el capitulo
251

ANEXO IX
Quadro comparativo entre as variantes do gênero narrativo:
romance policial clássico; novela negra; romance criminal e romance
infrapolicial
252
253

ANEXO X

EL GUSANO

Demos gracias por nuestra pobreza, dijo el tipo vestido con harapos.
Lo vi con este ojo: vagaba por un pueblo de casas chatas,
hechas de cemento y ladrillo, entre México y Estados Unidos.
demos gracias por nuestra violencia, dijo, aunque sea estéril
como un fantasma, aunque a nada nos conduzca,
tampoco estos caminos conducen a ninguna parte.
Lo vi con este ojo: gesticulaba sobre un fondo rosado
que se resistía al negro, ah, los atardeceres de la frontera,
leídos y perdidos para siempre.
Los atardeceres que envolvieron al padre de Lisa
a principios de los cincuenta.
Los atardeceres que vieron pasar a Mario Santiago,
arriba y abajo, aterido de frío, en el asiento trasero
del coche de un contrabandista. Los atardeceres
del infinito blanco y del infinito negro.

Lo vi con este ojo: parecía un gusano con sombrero de paja


y miraba de asesino
y viajaba por los pueblos del norte de México
como si anduviera perdido, desalojado de la mente,
desalojado del sueño grande, el de todos,
y sus palabras eran, madre mía, terroríficas.

Parecía un gusano con sombrero de paja


ropas blancas
y mirada de asesino
Y viajaba como un trompo
por los pueblos del norte de México
sin atreverse a dar el paso
sin decidirse
a bajar al D.F.
Lo vi con este ojo
ir y venir
entre vendedores ambulante y borrachos
temido
con el verbo desbocado por calles
de casas de adobe
Parecía un gusano blanco
con un Bali entre los labios
o un Delicados sin filtro
Y viajaba de un lado a otro
de los sueños
tal que un gusano de tierra
arrastrando su desesperación
comiéndola.
254

Un gusano blanco con sombrero de paja


bajo el sol del norte de México
en las tierras regadas von sangre y palabras mendaces
de la frontera, la puerta del Cuerpo que vio Sam Peckinpah
la puerta de la Mente desalojada, el puritito
azote, y el maldito gusano blanco allí estaba
con su sombrero de paja y su pitillo colgado
del labio inferior, y tenía la misma mirada
de asesino de siempre.

Lo vi y le dije tengo tres bultos en la cabeza


y la ciencia ya no puede hacer nada conmigo.
Lo vi y le dije sáquese de mi huella so mamón
la poesía es más valiente que nadie
las tierras regadas con sangre me la pelan, la Mente desalojada
apenas si estremece mis sentidos.
De estas pesadillas sólo conservaré
estas pobres casas
estas calles barridas por el viento
y no su mirada de asesino

Parecía un gusano blanco con su sombrero de paja


y su pistola automática debajo de la camisa
y no paraba de hablar solo o con cualquiera
acerca de un poblado que tenía
por lo menos dos mil o tres mil años
allá por el norte cerca de la frontera
con los estados Unidos
un lugar que todavía existía
digamos cuarenta casas
dos cantinas
una tienda de comestibles
un pueblo de vigilantes y asesinos
como él mismo,
casas de adobe y patios encementados
donde los ojos no se despegaban
del horizonte
(de ese horizonte color carne
como la espalda de un moribundo)
¿Y qué esperaban que apareciera por allí?, pregunté
El viento y el polvo, tal vez
Un sueño mínimo
pero en el que empeñaban
toda su obstinación, toda su voluntad

Parecía un gusano blanco con sombrero de paja y un Delicados


colgando del labio inferior
Parecía un chileno de veintidós años entrando en el Café la Habana
y observando a una muchacha rubia
sentada en el fondo
255

en la Mente desalojada
Parecían las caminatas a altas horas de la noche
de Mario Santiago
En la Menta desalojada
En los espejos encantados
En el huracán del D.F.
Los dedos cortados renacían
con velocidad sorprendente
Dedos cortados, quebrados, esparcidos
en el aire del D.F.
256

ANEXO XI

EL GUSANO

Parecía un gusano blanco, con su sombrero de paja y un Bali


colgándole del labio inferior. Todas las mañanas lo veía sentado en un banco
de la Alameda mientras yo me metía en la Librería de Cristal a hojear libros.
Cuando levantaba la cabeza, a través de las paredes de la librería que en
efecto eran de cristal, ahí estaba él, quieto, entre los árboles, mirando el vacío.
Supongo que terminamos acostumbrándonos el uno al otro. Yo llegaba
a las ocho y media de la mañana y él ya estaba allí, sentado en un banco, sin
hacer nada más que fumar y tener los ojos abiertos. Nunca lo vi con un
periódico, con una torta, con una cerveza, con un libro. Nunca lo vi hablar con
nadie. En una ocasión, mientras lo miraba desde los estantes de literatura
francesa, pensé que dormía en la Alameda, sobre un banco o en los portales
de alguna de las calles próximas, pero luego conjeturé que iba demasiado
limpio para dormir en la calle y que seguramente se alojaba en alguna pensión
cercana. Era, constaté, un animal de costumbres, igual que yo. Mi rutina
consistía en ser levantado temprano, desayunar con mi madre, mi padre y mi
hermana, fingir que iba al colegio y tomar un camión que me dejaba en el
centro, donde dedicaba la primera parte de la mañana a los libros y a pasear y
la segunda al cine y de una manera menos explícita al sexo.
Los libros los solía comprar en la Librería de Cristal y en la Librería del
Sótano. Si tenía poco dinero en la primera, donde siempre había una mesa con
saldos, si tenía suficiente en la última, que era la que tenía las novedades. Si
no tenía dinero, como sucedía a menudo, los solía robar indistintamente en una
u otra. Se diera el caso que se diera, no obstante, mi paso por la Librería de
Cristal y por la del Sótano (enfrente de la Alameda y ubicada, como su nombre
lo indica, en un sótano) era obligado. A veces llegaba antes que los comercios
abrieran y entonces lo que hacía era buscar a un vendedor ambulante,
comprarme una torta de jamón y un jugo de mango y esperar. A veces me
sentaba en un banco de la Alameda, uno oculto entre la hojarasca, y escribía.
Todo esto duraba aproximadamente hasta las diez de la mañana, hora en que
comenzaban en algunos cines del centro las primeras funciones matinales.
Buscaba películas europeas, aunque algunas mañanas de inspiración no
discriminaba el nuevo cine erótico mexicano o el nuevo cine de terror
mexicano, que para el caso era lo mismo.
La que más veces vi creo que era francesa. Trataba de dos chicas que
viven solas en una casa de las afueras. Una era rubia y la otra pelirroja. A la
rubia la ha dejado el novio y al mismo tiempo (al mismo tiempo del dolor, quiero
decir) tiene problemas de personalidad: cree que se está enamorando de su
compañera. La pelirroja es más joven, es más inocente, es más irresponsable;
es decir, es más feliz (aunque yo por entonces era joven, inocente e
irresponsable y me creía profundamente desdichado). Un día, un fugitivo de la
justicia entra subrepticiamente en su casa y las secuestra. Lo curioso es que el
allanamiento tiene lugar precisamente la noche en que la rubia, tras hacer el
amor con la pelirroja, ha decidido suicidarse. El fugitivo se introduce por una
ventana, navaja en mano recorre con sigilo la casa, llega a la habitación de la
pelirroja, la reduce, la ata, la interroga, pregunta cuántas personas más viven
allí, la pelirroja dice que sólo ella y la rubia, la amordaza. Pero la rubia no está
257

en su habitación y el fugitivo comienza a recorrer la casa, cada minuto que


pasa más nervioso, hasta que finalmente encuentra a la rubia tirada en el
sótano, desvanecida, con síntomas inequívocos de haberse tragado todo el
botiquín. El
fugitivo no es un asesino, en todo caso no es un asesino de mujeres, y salva a
la rubia: la hace vomitar, le prepara un litro de café, la obliga a beber leche, etc.
Pasan los días y las mujeres y el fugitivo comienzan a intimar. El
fugitivo les cuenta su historia: es un ex ladrón de bancos, un ex presidiario, sus
ex compañeros han asesinado a su esposa. Las mujeres son artistas de
cabaret y una tarde o una noche, no se sabe, viven con las cortinas cerradas,
le hacen una representación: la rubia se enfunda en una magnífica piel de oso
y la pelirroja finge que es la domadora. Al principio el oso obedece, pero luego
se rebela y con sus garras va despojando poco a poco a la pelirroja de sus
vestidos. Finalmente, ya desnuda, ésta cae derrotada y el oso se le echa
encima. No, no la mata, le hace el amor. Y aquí viene lo más curioso: el
fugitivo, después de contemplar el número, no se enamora de la pelirroja sino
de la rubia, es decir del oso.
El final es predecible pero no carece de cierta poesía: una noche de
lluvia, después de matar a sus dos ex compañeros, el fugitivo y la rubia huyen
con destino incierto y la pelirroja se queda sentada en un sillón, leyendo,
dándoles tiempo antes de llamar a la policía. El libro que lee la pelirroja, me di
cuenta la tercera vez que vi la película, es La caída, de Camus. También vi
algunas mexicanas más o menos del mismo estilo: mujeres que eran
secuestradas por tipos patibularios pero en el fondo buenas personas, fugitivos
que secuestraban a señoras ricas y jóvenes y que al final de una noche de
pasión eran cosidos a balazos, hermosas empleadas del hogar que
empezaban desde cero y que tras pasar por todos los estadios del crimen
accedían a las más altas cotas de riqueza y poder. Por entonces casi todas las
películas que salían de los Estudios Churubusco eran thrillers eróticos, aunque
tampoco escaseaban las películas de terror erótico y las de humor erótico. Las
de terror seguían la línea clásica del terror mexicano establecida en los
cincuenta y que estaba tan enraizada en el país como la escuela muralista. Sus
iconos oscilaban entre el Santo, el Científico Loco, los Charros Vampiros y la
Inocente, aderezada con modernos desnudos interpretados preferiblemente por
desconocidas actrices norteamericanas, europeas, alguna argentina, escenas
de sexo más o menos solapado y una crueldad en los límites de lo risible y de
lo irremediable. Las de humor erótico no me gustaban.
Una mañana, mientras buscaba un libro en la Librería del Sótano, vi
que estaban filmando una película en el interior de la Alameda y me acerqué a
curiosear. Reconocí de inmediato a Jaqueline Andere. Estaba sola y miraba la
cortina de árboles que se alzaba a su izquierda casi sin moverse, como si
esperara una señal. A su alrededor se levantaban varios focos de iluminación.
No sé por qué se me pasó por la cabeza la idea de pedirle un autógrafo, nunca
me han interesado. Esperé a que acabara de filmar. Un tipo se acercó a ella y
hablaron (¿Ignacio López Tarso?), el tipo gesticuló con enojo y luego se alejó
por uno de los caminos de la Alameda y tras dudar unos segundos Jaqueline
Andere se alejó por otro. Venía directamente hacia mí. Yo también me puse a
andar y nos encontramos a medio camino. Fue una de las cosas más sencillas
que me han ocurrido: nadie me detuvo, nadie me dijo nada, nadie se interpuso
entre Jaqueline y yo, nadie me preguntó qué estaba haciendo allí. Antes de
258

cruzarnos Jaqueline se detuvo y volvió la cabeza hacia el equipo de filmación,


como si escuchara algo, aunque ninguno de los técnicos le dijo nada. Después
siguió caminando con el mismo aire de despreocupación en dirección al
Palacio de Bellas Artes y lo único que tuve que hacer fue detenerme, saludarla,
pedirle un autógrafo, ocultar mi sorpresa al constatar su baja estatura que ni
siquiera los zapatos con tacón de aguja lograban disimular. Por un momento,
tan solos estábamos, pensé que hubiera podido secuestrarla. La mera
probabilidad me erizó los pelos de la nuca. Ella me miró de abajo hacia arriba,
el pelo rubio con una tonalidad ceniza que yo desconocía (puede que se lo
hubiera teñido), los ojos marrones almendrados muy grandes y muy dulces,
pero no, dulces no es la palabra, tranquilos, de una tranquilidad pasmosa,
como si estuviera drogada o tuviera el encefalograma plano o fuera una
extraterrestre, y me dijo algo que no entendí.
La pluma, dijo, la pluma para firmar. Busqué en el bolsillo de mi
chamarra un bolígrafo e hice que me firmara la primera página de La caída. Me
arrebató el libro y lo estuvo mirando durante unos segundos. Sus manos eran
pequeñas y muy delgadas. ¿Cómo firmo, dijo, como Albert Camus o como
Jaqueline Andere? Como tú quieras, dije. Aunque no levantó la cara del libro
noté que sonreía. ¿Eres estudiante?, dijo. Contesté afirmativamente. ¿Y qué
haces aquí en vez de estar en clases? Creo que nunca más volveré a la
escuela, dije. ¿Qué edad tienes?, dijo ella. Dieciséis, dije. ¿Y tus papás saben
que no vas a clases? No, claro que no, dije. No me has contestado una
pregunta, dijo ella levantando la mirada y posándola sobre mis ojos. ¿Qué
pregunta?, dije yo. ¿Qué haces aquí? Cuando yo era joven, añadió, los novillos
se hacían en los billares o en las boleras. Leo libros y voy al cine, dije. Además,
yo no hago novillos. Ya, tú desertas, dijo. Esta vez fui yo el que sonreí. ¿Y qué
películas se ven a esta hora?, dijo ella. De todas, dije yo, algunas tuyas. Eso
pareció no gustarle. Volvió a mirar el libro, se mordió el labio inferior, me miró y
parpadeó como si le dolieran los ojos. Después me preguntó mi nombre.
Bueno, pues firmemos, dijo. Era zurda. Su letra era grande y poco clara. Me
tengo que ir, dijo alargándome el libro y el bolígrafo. Me dio la mano, nos la
estrechamos y se alejó por la Alameda de vuelta hacia donde estaba el equipo
de rodaje. Me quedé quieto, mirándola, dos mujeres se le acercaron unos
cincuenta metros más allá, iban vestidas como monjas misioneras, dos monjas
mexicanas misioneras que se llevaron a Jaqueline hasta quedar debajo de un
ahuehuete. Después se les acercó un hombre, hablaron, después los cuatro se
alejaron por una de las sendas de salida de la Alameda.
En la primera página de La caída, Jaqueline escribió: «Para Arturo
Belano, unestudiante liberado, con un beso de Jaqueline Andere.»
De golpe me encontré sin ganas de librerías, sin ganas de paseos, sin
ganas de lecturas, sin ganas de cines matinales (sobre todo sin ganas de cines
matinales). La proa de una nube enorme apareció sobre el centro del D.F.,
mientras por el norte de la ciudad resonaban los primeros truenos. Comprendí
que la película de Jaqueline se había interrumpido por la proximidad inminente
de la lluvia y me sentí solo. Durante unos segundos no supe qué hacer, hacia
dónde ir. Entonces el Gusano me saludó. Supongo que después de tantos días
él también se había fijado en mí. Me volví y allí estaba, sentado en el mismo
banco de siempre, nítido, absolutamente real con su sombrero de paja y su
camisa blanca. Al marcharse los técnicos cinematográficos, comprobé
asustado, el escenario había experimentado un cambio sutil pero determinante:
259

era como si el mar se hubiera abierto y pudiera ahora ver el fondo marino. La
Alameda vacía era el fondo marino y el Gusano su joya más preciada. Lo
saludé, seguramente hice alguna observación banal, se puso a diluviar,
abandonamos juntos la Alameda en dirección a la avenida Hidalgo y luego
caminamos por Lázaro Cárdenas hasta Perú.
Lo que sucedió después es borroso, como visto a través de la lluvia
que barría las calles, y al mismo tiempo de una naturalidad extrema. El bar se
llamaba Las Camelias y estaba lleno de mariachis y vicetiples. Yo pedí
enchiladas y una TKT, el Gusano una Coca- Cola y más tarde (pero no debió
de ser mucho más tarde) le compró a un vendedor ambulante tres huevos de
caguama. Quería hablar de Jaqueline Andere. No tardé en comprender,
maravillado, que el Gusano no sabía que aquella mujer era una actriz de cine.
Le hice notar que precisamente estaba filmando una película, pero el Gusano
simplemente no recordaba a los técnicos ni los aparejos desplegados para la
filmación. La presencia de Jaqueline en el sendero en donde se hallaba su
banco había borrado todo lo demás. Cuando dejó de llover el Gusano sacó un
fajo de billetes del bolsillo trasero, pagó y se fue.
Al día siguiente nos volvimos a ver. Por la expresión que puso al verme
pensé que no me reconocía o que no quería saludarme. De todos modos me
acerqué. Parecía dormido aunque tenía los ojos abiertos. Era flaco, pero sus
carnes, excepto los brazos y las piernas, se adivinaban blandas, incluso fofas,
como las de los deportistas que ya no hacen ejercicios. Su flaccidez, pese a
todo, era más de orden moral que físico. Sus huesos eran pequeños y fuertes.
Pronto supe que era del norte o que había vivido mucho tiempo en el norte, que
para el caso es lo mismo. Soy de Sonora, dijo. Me pareció curioso, pues mi
abuelo también era de allí. Eso interesó al Gusano y quiso saber de qué parte
de Sonora. De Santa Teresa, dije. Yo de Villaviciosa, dijo el Gusano. Una
noche le pregunté a mi padre si conocía Villaviciosa. Claro que la conozco, dijo
mi padre, está a pocos kilómetros de Santa Teresa. Le pedí que me la
describiera. Es un pueblo muy pequeño, dijo mi padre, no debe tener más de
mil habitantes (después supe que no llegaban a quinientos), bastante pobre,
con pocos medios de subsistencia, sin una sola industria. Está destinado a
desaparecer, dijo mi padre. ¿Desaparecer cómo?, le pregunté. Por la
emigración, dijo mi padre, la gente se va a ciudades como Santa Teresa o
Hermosillo o a Estados Unidos. Cuando se lo dije al Gusano éste no estuvo de
acuerdo, aunque en realidad la frase «estar de acuerdo» o «estar en
desacuerdo» para él no tenían ningún significado. El Gusano no discutía
nunca, tampoco expresaba opiniones, no era un dechado de respeto por los
demás, simplemente escuchaba y almacenaba, o tal vez sólo escuchaba y
después olvidaba, atrapado en una órbita distinta a la de la otra gente. Su voz
era suave y monocorde aunque a veces subía el tono y entonces parecía un
loco que imitara a un loco y yo nunca supe si lo hacía a propósito, como parte
de un juego que sólo él comprendía, o si no lo podía evitar y aquellas salidas
de tono eran parte del infierno. Cifraba su seguridad en la pervivencia de
Villaviciosa en la antigüedad del pueblo; también, pero eso lo comprendí más
tarde, en la precariedad que lo rodeaba y lo carcomía, aquello que según mi
padre amenazaba su misma existencia.
No era un tipo curioso aunque pocas cosas se le pasaban por alto. Una
vez miró los libros que yo llevaba, uno por uno, como si le costara leer o como
si no supiera. Después nunca más volvió a interesarse por mis libros aunque
260

cada mañana yo aparecía con uno nuevo. A veces, tal vez porque de alguna
manera me consideraba un paisano, hablábamos de Sonora, que yo apenas
conocía: sólo había ido una vez, para el funeral de mi abuelo. Nombraba
pueblos como Nacozari, Bacoache, Fronteras, Villa Hidalgo, Bacerac, Bavispe,
Agua Prieta, Naco, que para mí tenían las mismas cualidades del oro.
Nombraba aldeas perdidas en los departamentos de Nacori Chico y
Bacadéhuachi, cerca de la frontera con el estado de Chihuahua, y entonces, no
sé por qué, se tapaba la boca como si fuera a estornudar o a bostezar. Parecía
haber caminado y dormido en todas las sierras: la de Las Palomas y La
Cieneguita, la sierra Guijas y la sierra La Madera, la sierra San Antonio y la
sierra Cibuta, la sierra Tumacacori y la sierra Sierrita bien entrado en el
territorio de Arizona, la sierra Cuevas y la sierra Ochitahueca en el noreste
junto a Chihuahua, la sierra La Pola y la sierra Las Tablas en el sur, camino de
Sinaloa, la sierra La Gloría y la sierra El Pinacate en dirección noroeste, como
quien va a Baja California. Conocía toda Sonora, desde Huatabampo y
Empalme, en la costa del Golfo de California, hasta los villorrios perdidos en el
desierto. Sabía hablar la lengua yaqui y la pápago (que circulaba libremente
entre los lindes de Sonora y Arizona) y podía entender la seri, la pima, la mayo
y la inglesa. Su español era seco, en ocasiones con un ligero aire impostado
que sus ojos contradecían. He dado vueltas por las tierras de tu abuelo, que en
paz descanse, como una sombra sin asidero, me dijo una vez.
Cada mañana nos encontrábamos. A veces intentaba hacerme el
distraído, tal vez reanudar mis paseos solitarios, mis sesiones de cine
matinales, pero él siempre estaba allí, sentado en el mismo banco de la
Alameda, muy quieto, con el Bali colgándole de los labios y el sombrero de paja
tapándole la mitad de la frente (su frente de gusano blanco) y era inevitable que
yo, sumergido entre las estanterías de la Librería de Cristal, lo viera, me
quedara un rato contemplándolo y al final acudiera a sentarme a su lado.
No tardé en descubrir que iba siempre armado. Al principio pensé que
tal vez fuera policía o que lo perseguía alguien, pero resultaba evidente que no
era policía (o que al menos ya no lo era) y pocas veces he visto a nadie con
una actitud más despreocupada con respecto a la gente: nunca miraba hacia
atrás, nunca miraba hacia los lados, raras veces miraba el suelo. Cuando le
pregunté por qué iba armado el Gusano me contestó que por costumbre y yo le
creí de inmediato. Llevaba el arma en la espalda, entre el espinazo y el
pantalón. ¿La has usado muchas veces?, le pregunté. Sí, muchas veces, dijo
como en sueños. Durante algunos días el arma del Gusano me obsesionó. A
veces la sacaba, le quitaba el cargador y me la pasaba para que la examinara.
Parecía vieja y pesada. Generalmente yo se la devolvía al cabo de pocos
segundos, rogándole que la guardara. A veces me daba reparo estar sentado
en un banco de la Alameda conversando (o monologando) con un hombre
armado, no por lo que él pudiera hacerme pues desde el primer instante supe
que el Gusano y yo siempre seríamos amigos, sino por temor a que nos viera
la policía del D.F., por miedo a que nos cachearan y descubrieran el arma del
Gusano y termináramos los dos en algún oscuro calabozo.
Una mañana se enfermó y me habló de Villaviciosa. Lo vi desde la
Librería de Cristal y me pareció igual que siempre, pero al acercarme a él
observé que la camisa estaba arrugada, como si hubiera dormido con ella
puesta. Al sentarme a su lado noté que temblaba. Poco después los temblores
fueron en aumento. Tienes fiebre, dije, tienes que meterte en la cama. Lo
261

acompañé, pese a sus protestas, hasta la pensión donde vivía. Acuéstate, le


dije. El Gusano se sacó la camisa, puso la pistola debajo de la almohada y
pareció quedarse dormido en el acto, aunque con los ojos abiertos fijos en el
cielorraso. En la habitación había una cama estrecha, una mesilla de noche, un
ropero desvencijado. En el interior del ropero vi tres camisas blancas como la
que se acababa de quitar perfectamente dobladas y dos pantalones del mismo
color colgados de sendas perchas. Debajo de la cama distinguí una maleta de
cuero de excelente calidad, de aquellas que tenían una cerradura como de caja
fuerte. No vi ni un solo periódico, ni una sola revista. La habitación olía a
desinfectante, igual que las escaleras de la pensión. Dame dinero para ir a una
farmacia a comprarte algo, dije. Me dio un fajo de billetes que sacó del bolsillo
de su pantalón y volvió a quedarse inmóvil. De vez en cuando un escalofrío lo
recorría de la cabeza a los pies como si se fuera a morir. Pero sólo de vez en
cuando. Por un momento pensé que tal vez lo mejor sería llamar a un médico,
pero comprendí que eso al Gusano no le iba a gustar. Cuando volví, cargado
de medicinas y botellas de Coca-Cola, se había dormido. Le di una dosis de
caballo de antibióticos y unas pastillas para bajarle la fiebre. Luego hice que se
bebiera medio litro de Coca-Cola. También había comprado un pancake, que
dejé en el velador por si más tarde tenía hambre. Cuando ya me disponía a
irme, él abrió los ojos y se puso a hablar de Villaviciosa.
A su manera, fue pródigo en detalles. Dijo que el pueblo no tenía más
de sesenta casas, dos cantinas, una tienda de comestibles. Dijo que las casas
eran de adobe y que algunos patios estaban encementados. Dijo que de los
patios escapaba un mal olor que a veces resultaba insoportable. Dijo que
resultaba insoportable para el alma, incluso para la carencia de alma, incluso
para la carencia de sentidos. Dijo que por eso algunos patios estaban
encementados. Dijo que el pueblo tenía entre dos mil y tres mil años y que sus
naturales trabajaban de asesinos y de vigilantes. Dijo que un asesino no
perseguía a un asesino, que cómo iba a perseguirlo, que eso era como si una
serpiente se mordiera la cola. Dijo que existían serpientes que se mordían la
cola. Dijo que incluso había serpientes que se tragaban enteras y que si uno
veía a una serpiente en el acto de autotragarse más valía salir corriendo pues
al final siempre ocurría algo malo, como una explosión de la realidad. Dijo que
cerca del pueblo pasaba un río llamado Río Negro por el color de sus aguas y
que éstas al bordear el cementerio formaban un delta que la tierra seca
acababa por chuparse. Dijo que la gente a veces se quedaba largo rato
contemplando el horizonte, el sol que desaparecía detrás del cerro El Lagarto,
y que el horizonte era de color carne, como la espalda de un moribundo. ¿Y
qué esperan que aparezca por allí?, le pregunté. Mi propia voz me espantó. No
lo sé, dijo. Luego dijo: una verga. Y luego: el viento y el polvo, tal vez. Después
pareció tranquilizarse y al cabo de un rato creí que estaba dormido. Volveré
mañana, murmuré, tómate las medicinas y no te levantes.
Me marché en silencio.
A la mañana siguiente, antes de ir a la pensión del Gusano, pasé un
rato, como siempre, por la Librería de Cristal. Cuando me disponía a salir, a
través de las paredes transparentes, lo vi. Estaba sentado en el mismo banco
de siempre, con una camisa blanca holgada y limpia y unos pantalones blancos
inmaculados. La mitad de la cara se la tapaba el sombrero de paja y un Bali le
colgaba del labio inferior. Miraba al frente, como en él era usual, y parecía
sano. Ese mediodía, al separarnos, me alargó con un gesto hosco varios
262

billetes y dijo algo acerca de las molestias que yo había tenido el día anterior.
Era mucho dinero. Le dije que no me debía nada, que hubiera hecho lo mismo
por cualquier amigo. El Gusano insistió en que cogiera el dinero. Así podrás
comprar algunos libros, dijo. Tengo muchos, contesté. Así dejarás de robar
libros por algún tiempo, dijo. Al final le quité el dinero de las manos. Ha pasado
mucho tiempo, ya no recuerdo la cifra exacta, el peso mexicano se ha
devaluado muchas veces, sólo sé que me sirvió para comprarme veinte libros y
dos discos de los Doors y que para mí esa cantidad era una fortuna. Al Gusano
no le faltaba el dinero.
Nunca más me volvió a hablar de Villaviciosa. Durante un mes y medio,
tal vez dos meses, nos vimos cada mañana y nos despedimos cada mediodía,
cuando llegaba la hora de comer y yo volvía en el camión de la Villa o en un
pesero rumbo a mi casa. Alguna vez lo invité al cine, pero el Gusano nunca
quiso ir. Le gustaba hablar conmigo sentados en su banco de la Alameda o
paseando por las calles de los alrededores y de vez en cuando condescendía a
entrar en un bar en donde siempre buscaba al vendedor ambulante de huevos
de caguama. Nunca lo vi probar alcohol. Pocos días antes de que
desapareciera para siempre le dio por hacerme hablar de Jaqueline Andere.
Comprendí que era su manera de recordarla. Yo hablaba de su pelo rubio
ceniza y lo comparaba favorable o desfavorablemente con el pelo rubio
amielado que lucía en sus películas y el Gusano asentía levemente, la vista
clavada al frente, como si tuviera a Jaqueline Andere en la retina o como si la
viera por primera vez. Una vez le pregunté qué clase de mujeres le gustaban.
Era una pregunta estúpida, hecha por un adolescente que sólo quería matar el
tiempo. Pero el Gusano se la tomó al pie de la letra y durante mucho rato
estuvo cavilando la respuesta. Al final dijo: tranquilas. Y después añadió: pero
sólo los muertos están tranquilos. Y al cabo de un rato: ni los muertos, bien
pensado.
Una mañana me regaló una navaja. En el mango de hueso se podía
leer la palabra «Caborca» escrita en finas letras de alpaca. Recuerdo que le di
las gracias efusivamente y que aquella mañana, mientras platicábamos en la
Alameda o mientras paseábamos por las concurridas calles del centro, estuve
abriendo y cerrando la hoja, admirando la empuñadura, tentando su peso en la
palma de mi mano, maravillado de sus proporciones tan justas. Por lo demás,
aquel día fue idéntico a todos los otros. A la mañana siguiente el Gusano ya no
estaba.
Dos días después lo fui a buscar a su pensión y me dijeron que se
había marchado al norte. Nunca más lo volví a ver
263

ANEXO XII
Capa do livro 2666

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