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A ORIGEM DA ESPÉCIE HUMANA

Richard Leakey

Tradução de
ALEXANDRE TORT

Rio de Janeiro — 1997


Título original THE ORIGIN OF HUMANKIND
Copyright© 1994 by Richard Leakey e Orion Publishing Group Ltd.

“O nome e a marca The Science Masters foram publicados com a


autorização de seu proprietário John Brockman Associates, Inc.”

Direitos mundiais para a língua portuguesa reservados com exclusividade à


EDITORA ROCCO LTDA.
Rua Rodrigo Silva, 26 — 5º andar
20011-040 — Rio de Janeiro, RJ
Tel.: 507-2000 — Fax: 507-2244

Printed in Brasil - Impresso no Brasil

Revisão técnica
RUI CERQUEIRA

(Instituto de Biologia da UFRJ)


CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos
Editores de Livros, RJ.
Leakey, Richard E.
A origem da espécie humana / Richard Leakey;
tradução de Alexandre Tort; coordenação editorial: Leny
Cordeiro — Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
(Ciência Atual)
Tradução de: The origin of humankind
1. Evolução humana. 2. Homem - Origem. 3. Pré-história
I. Título, n. Série

CDD — 575.01 95-0095 CDU —576.1


Sumário

Prefácio.................................................................................... 9

1 - Os primeiros humanos.......................................................16

2 - Uma família numerosa.......................................................33

3 - Um tipo diferente de humano ............................................51

4 - Homem, o nobre caçador? ................................................66

5 - A origem dos humanos modernos.....................................83

6 - A linguagem da arte......................................................... 101

7 - A arte da linguagem......................................................... 117

8 - A origem da mente .......................................................... 134

Bibliografia e leituras adicionais............................................151


Prefácio
É o sonho de todo antropólogo desenterrar um esqueleto
completo de um ancestral humano primitivo. Para a maioria de
nós, contudo, este sonho permanece irrealizado; os caprichos
da morte, o enterro e a fossilização conspiram para deixar um
registro insuficiente, fragmentado da pré-história humana
Dentes e ossos isolados, fragmentos de crânios, geralmente
são estas as pistas a partir das quais a história da pré-história
humana deve ser reconstruída Não nego a importância destas
pistas, embora sejam frustrantemente incompletas; sem elas
haveria pouco a ser dito sobre a história da pré-história humana
Também não descarto a excitação pura de sentir a presença
física destas relíquias modestas; elas são parte de nossa
ascendência, ligadas a nós por gerações incontáveis feitas de
carne e osso. Mas a descoberta de um esqueleto completo
permanece como o prêmio maior.

Em 1969, fui agraciado com uma sorte extraordinária. Tinha


decidido explorar os depósitos de arenito que formam a vasta
margem leste do lago Turkana, ao norte do Quênia — minha
primeira incursão independente na região dos fósseis. Eu
estava motivado por uma forte convicção de que grandes
descobertas de fósseis seriam feitas lá, porque havia
sobrevoado a região um ano antes; percebi que os depósitos
em camadas eram repositórios em potencial da vida primitiva
— embora muitos duvidassem de meu julgamento. O terreno
era áspero e o clima implacavelmente quente e seco; mais
ainda, o cenário tem o tipo de beleza feroz que me atrai.

Com o apoio da National Geographie Society, reuni uma pe-


quena equipe — incluindo Meave Epps, que mais tarde tornou-
se minha esposa — para explorar a região. Uma manhã, vários
dias após a nossa chegada, Meave e eu estávamos retornando
ao nosso acampamento de uma excursão curta de exploração
por um atalho ao longo de um leito de rio seco, ambos
sedentos e ansiosos em evitar o calor escorchante do meio-dia.
De repente, vi diretamente à nossa frente um crânio fossilizado,
intacto, pousado sobre a areia alaranjada, as órbitas dos olhos
fitando-nos inexpres-

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sivamente. Era inconfundivelmente humano na forma. Embora


os anos decorridos tenham apagado de minha memória o que
falei exatamente para Meave naquele instante, sei que
expressei uma mistura de alegria e descrença sobre o que
havíamos encontrado.

O crânio, que imediatamente reconheci como o de um


Australopithecus boisei, uma espécie humana há muito extinta,
emergira recentemente dos sedimentos pelos quais o rio
sazonal corria. Exposto à luz do Sol pela primeira vez desde
que os elementos o haviam enterrado há quase 1,75 milhão de
anos, o espécime era um dos poucos crânios humanos antigos
intactos que até então fora encontrado. Semanas após a sua
descoberta, as fortes chuvas encheriam o leito seco com uma
corrente caudalosa; se Meave e eu não o tivéssemos
encontrado, a frágil relíquia certamente teria sido destruída
pela enchente. As chances de nos encontrarmos ali no
momento certo de recuperar para a ciência o fóssil há muito
enterrado eram mínimas.

Por uma coincidência curiosa, minha descoberta ocorreu uma


década, quase no dia, após minha mãe, Mary Leakey, ter
encontrado um crânio similar na garganta Olduvai, na
Tanzânia. (Este crânio, entretanto, tornou-se um pavoroso
quebra-cabeça paleolítico; teve que ser reconstruído a partir de
centenas de fragmentos.) Aparentemente eu herdara a
legendária “sorte dos Leakey”, desfrutada de modo notável por
Mary e meu pai, Louis. De fato, minha boa sorte continuou, na
medida em que as expedições seguintes que conduzi ao lago
Turkana descobriram muitos fósseis humanos mais, inclusive o
crânio intacto do gênero Homo mais antigo de que se tem
notícia, o ramo da família humana que finalmente deu origem
aos humanos modernos, o ramo Homo sapiens.

Embora quando jovem eu tivesse jurado não me envolver com


a caça aos fósseis — desejando evitar viver à sombra de meus
mundialmente famosos pais —, a magia pura do empreen-
dimento atraiu-me para ele. Os antigos e áridos depósitos da
África Oriental que sepultam os restos de nossos ancestrais
têm uma inegável beleza especial; ainda assim, são também
implacáveis e perigosos. A procura de fósseis e de artefatos de
pedra antigos é muitas vezes apresentada como uma
experiência romântica, e certamente possui seus aspectos
românticos, mas é uma ciência na qual os dados devem ser
recuperados a centenas ou milhares de quilômetros do conforto
do laboratório. É um empreendimento fisicamente desafiador e
exigente — uma operação logística da qual a segurança das
vidas das pessoas depende algumas vezes. Descobri que tinha
talento para organizar, para fazer com que as

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coisas fossem feitas em face de circunstâncias pessoais e


físicas difíceis. As muitas descobertas importantes na margem
leste do lago Turkana não apenas atraíram-me para uma
profissão que um dia rejeitei com veemência como também
estabeleceram minha reputação nela. Não obstante, o sonho
maior — um esqueleto completo — continuou a escapar-me.

No final do verão de 1984, com nossas respirações suspensas


e nossa esperança sempre crescente temperada pela dura rea-
lidade da experiência, meus colegas e eu vimos este sonho
começar a tomar forma. Naquele ano tínhamos decidido
explorar pela primeira vez a margem oeste do lago. Em 23 de
agosto, Kamoya Kimeu, meu amigo mais velho e colega,
localizou um pequeno fragmento de um crânio antigo que jazia
entre os seixos de uma encosta perto de uma ravina estreita
que havia sido esculpida pela corrente sazonal.
Cuidadosamente começamos uma busca por mais fragmentos
e em breve encontramos mais do que ousávamos esperar.
Durante as cinco temporadas que se seguiram a este achado,
significando mais de sete meses de trabalho de campo, nossa
equipe removeu mais de 1.500 toneladas de sedimentos na
busca intensa. Encontramos o que finalmente revelou ser
virtualmente o esqueleto completo de um indivíduo que morrera
na margem deste lago antigo há mais de 1,5 milhão de anos.
Batizado por nós como o garoto de Turkana, mal completara
nove anos quando morreu; a causa de sua morte permanece
um mistério.

Foi uma experiência verdadeiramente extraordinária desen-


terrar osso após osso fossilizado: braços, pernas, vertebras,
costelas, pélvis, maxilar, dentes e mais fragmentos de crânio. O
esqueleto do menino começou a ganhar forma, reconstruído
como indivíduo uma vez mais, depois de jazer em fragmentos
por mais de 1,6 milhão de anos. Nada tão completo como este
esqueleto pôde ser encontrado nos registros de fósseis
humanos até a época do Neanderthal, há uns meros 100 mil
anos. Independentemente da excitação emocional de tal
descoberta, estávamos cientes de que ela prometia um grande
entendimento de uma fase crítica da pré-história humana.

Uma palavra, antes de prosseguir com a história, sobre o jar-


gão na antropologia. Algumas vezes a torrente de termos
arcanos pode ser tão intensa que desafia a compreensão de
todos, exceto a dos profissionais mais dedicados. Evitarei este
jargão tanto quanto possível. Cada uma das várias espécies de
famílias humanas pré-históricas tem um rótulo científico — isto
é, o nome de sua espécie — e não podemos evitar a utilização
destes. A família humana de espécies tem seu próprio rótulo
também: hominídea.

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Alguns de meus colegas preferem utilizar o termo “hominídeo”


para todas as espécies humanas ancestrais. A palavra
“humano”, argumentam eles, deveria ser utilizada para nos
referirmos apenas a pessoas como nós. Em outras palavras, os
únicos hominídeos que podem ser designados como
“humanos” são aqueles que exibem nosso próprio grau de
inteligência, senso moral, e profundidade de consciência
introspectiva.

Tenho um ponto de vista diferente. Parece-me que a evolução


da locomoção ereta, que distinguiu os hominídeos antigos de
outros macacos de seu tempo, foi fundamental para a história
humana subseqüente. Uma vez que nosso ancestral distante
tornou-se um macaco bípede, muitas outras inovações
evolutivas tornaram-se possíveis, com o aparecimento
definitivo do Homo. Por esta razão, acredito ser justificado
chamar todas as espécies de hominídeos de “humanos”. Com
isto não quero dizer que todas as espécies humanas antigas
vivenciaram os mundos mentais que conhecemos hoje. Em seu
nível mais básico, a designação “humano” refere-se
simplesmente aos macacos que caminhavam de modo ereto —
macacos bipédes. Nas páginas seguintes adotarei

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este uso, e indicarei quando o estarei utilizando para descrever


aspectos que caracterizem apenas o homem moderno.

O garoto de Turkana era um membro da espécie Homo erectus


— uma espécie de suma importância na história da evolução
humana. A partir de linhas de indícios diferentes — alguns
genéticos, alguns fósseis —, sabemos que a primeira espécie
humana evoluiu há cerca de 7 milhões de anos. Na época em
que o Homo erectus surgiu em cena, há quase 2 milhões de
anos, a pré-história humana já estava em marcha. Não
sabemos ainda como muitas espécies humanas viveram e
morreram antes do aparecimento do Homo erectus; houve pelo
menos seis, e talvez o dobro deste número. Entretanto,
sabemos de fato que todas as espécies humanas que viveram
antes do Homo erectus eram, embora bipédes, marcadamente
simiescas em muitos aspectos. Elas tinham cérebros
relativamente pequenos, suas maxilas eram prognatas (isto é,
projetavam-se para a frente), e a forma de seus corpos era
mais simiesca do que humana em aspectos particulares, tais
como o peito em forma afunilada, pescoço pequeno e nenhuma
cintura. No Homo erectus, o tamanho do cérebro aumentou, a
face tornou-se mais achatada, e o corpo adquiriu uma
constituição mais atlética. A evolução do Homo erectus trouxe
com ela muitas das características físicas que reconhecemos
em nós mesmos: a pré-história humana evidentemente sofreu
uma grande reviravolta há 2 milhões de anos.

O Homo erectus foi a primeira espécie humana a utilizar o fogo;


a primeira a incluir a caça como uma parte significativa de sua
subsistência; a primeira capaz de correr como os humanos
modernos o fazem; a primeira a fabricar instrumentos de pedra
de acordo com um padrão definido; a primeira a estender seus
domínios para além da África. Não sabemos de forma definitiva
se o Homo erectus possuía algum tipo de linguagem falada,
mas diversas linhas de indícios sugerem isto. E não sabemos,
e provavelmente não saberemos nunca, se estas espécies
tinham algum grau de autopercepção, uma consciência
humanóide, mas minha suposição é de que a tinham.
Desnecessário dizer, linguagem e consciência, que estão entre
os aspectos mais valorizados do Homo sapiens, não deixam
traços nos registros pré-históricos.

O objetivo do antropólogo é compreender os eventos evolutivos


que transformaram uma criatura semelhante ao macaco em
gente como nós. Estes eventos têm sido descritos,
romanticamente, como um grande drama, com a humanidade
emergindo como a grande heroína da história. A verdade é
provavelmente

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bastante prosaica, com modificações climáticas e ecológicas


em vez de aventuras épicas conduzindo as transformações. As
transformações não prendem menos nossa atenção por causa
disto. Como espécie, somos agraciados com uma curiosidade
sobre o mundo da natureza e nosso lugar nele. Queremos
saber — precisamos saber — como nos tornamos o que
somos, e qual é o nosso futuro. Os fósseis que descobrimos
ligam-nos fisicamente ao nosso passado e desafiam-nos a
interpretar as pistas que eles encerram como uma maneira de
compreender a natureza e o curso de nossa história evolutiva.

Até que muitas relíquias mais tenham sido desenterradas e


analisadas, nenhum antropólogo pode ficar de pé e declarar:
“Isto foi assim”, com todos os detalhes. Há, contudo, uma boa
dose de concordância entre os pesquisadores sobre a forma
geral da pré-história humana. Nela, quatro etapas-chave
podem ser identificadas com toda a confiança.

A primeira foi a origem da família humana propriamente dita, há


cerca de 7 milhões de anos, quando espécies semelhantes aos
macacos com um modo de locomoção bípede, ou ereta, evo-
luíram. A segunda etapa foi a da proliferação das espécies
bípedes, um processo que os biólogos chamam irradiação
adaptativa. Entre 7 e 2 milhões de anos atrás, muitas espécies
diferentes de macacos bipédes evoluíram, cada uma adaptada
a circunstâncias ecológicas ligeiramente diferentes. Em meio a
esta proliferação de espécies humanas houve uma, entre 3 e 2
milhões de anos atrás, que desenvolveu um cérebro
significativamente maior. A expansão em tamanho do cérebro
marca a terceira etapa e sinaliza a origem do gênero Homo, o
ramo da árvore humana que levou ao Homo erectus e
finalmente ao Homo sapiens. A quarta etapa foi a origem dos
humanos modernos — a evolução de gente como nós,
completamente equipada com linguagem, consciência, ima-
ginação artística, e inovações tecnológicas jamais vistas antes
em qualquer parte da natureza.

Estes quatro eventos-chave fornecem a estrutura da narrativa


científica das páginas que vêm a seguir. Como ficará evidente,
no nosso estudo da pré-história humana estamos começando a
perguntar-nos não apenas o que aconteceu, e quando, mas
também por que as coisas aconteceram. Nós e nossos
ancestrais estamos sendo estudados no contexto de um
cenário evolutivo em desdobramento, do mesmo modo que
estudamos a evolução dos elefantes ou dos cavalos. Isto não é
negar que o Homo sapiens seja de muitos modos especial:
muita coisa nos separa mesmo do

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nosso parente evolutivo mais próximo, o chimpanzé, mas


começamos a entender nossa relação com a natureza no
sentido biológico.

As três décadas passadas testemunharam tremendos avanços


na nossa ciência, resultado de descobertas sem precedentes
de fósseis e de modos inovadores de interpretação e
integração das pistas que vemos neles. Como todas as
ciências, a antropologia é sujeita a diferenças de opinião
honestas, e algumas vezes vigorosas, entre os seus
praticantes. Estas algumas vezes originam-se de dados
insuficientes, na forma de fósseis e artefatos de pedra, e
algumas vezes das inadequações dos métodos de interpre-
tação. Portanto, há muitas questões importantes sobre a
história humana para as quais não há respostas definitivas, tais
como: qual a forma precisa da árvore da família humana?
Quando a linguagem falada sofisticada começou a evoluir? O
que provocou o aumento dramático no tamanho do cérebro na
pré-história humana? Nos capítulos seguintes, indicarei onde, e
por que, as diferenças de opinião existem, e algumas vezes
esboçarei minhas próprias preferências.

Tive a boa sorte de colaborar com muitos colegas excelentes


por mais de duas décadas de trabalho antropológico, pelo que
sou grato. A dois deles — Kamoya Kimeu e Alan Walker —
gostaria de agradecer de modo especial. Minha esposa,
Meave, tem sido uma colega e amiga das mais extraordinárias,
particularmente nas épocas mais difíceis.

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1 - Os primeiros humanos
Os antropólogos há muito têm se mostrado fascinados com as
qualidades especiais do Homo sapiens, tais como a linguagem,
as altas habilidades tecnológicas e a capacidade de fazer
julgamentos éticos. Mas uma das mudanças mais significativas
dos anos recentes tem sido o reconhecimento de que, a
despeito destas qualidades, nossa ligação com os macacos
africanos é realmente muito íntima. Como esta importante
mudança intelectual surgiu? Neste capítulo discutirei como as
idéias de Charles Darwin a respeito da natureza especial das
espécies humanas primordiais influenciaram os antropólogos
por mais de um século — e como novas pesquisas revelaram
nossa intimidade evolutiva com os macacos africanos e exigem
nossa aceitação de uma visão muito diferente do nosso lugar
na natureza.

Em 1859, no seu livro A origem das espécies* Darwin cuida-


dosamente evitou extrapolar as implicações da evolução para
os humanos. Uma frase cautelosa foi adicionada nas edições
posteriores: “A origem do homem e sua história serão
esclarecidas.” Em um livro subseqüente, A descendência do
homem, publicado em 1871, Darwin detalhou o conteúdo desta
frase curta. Voltando-se para um assunto que ainda era muito
delicado, ele efetivamente erigiu dois pilares na estrutura
teórica da antropologia, O primeiro tem a ver com o lugar onde
os humanos primeiramente evoluíram (inicialmente poucos lhe
deram crédito, mas ele estava certo), e o segundo diz respeito
à maneira ou forma dessa evolução. A versão de Darwin da
maneira pela qual a nossa evolução aconteceu dominou a
ciência da antropologia até poucos anos atrás, e revelou-se
errada

O berço da humanidade, disse Darwin, é a África. Seu racio-


cínio era simples:

Em cada grande região do mundo, os mamíferos vivos estão


intimamente relacionados com as espécies que evoluíram

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desta mesma região. Portanto, é provável que a África tenha


sido habitada anteriormente por macacos extintos
intimamente relacionados com o gorila e o chimpanzé: e

*
Publicado no Brasil em co-edição pela Editora Universidade de Brasília e Editora
Melhoramentos. (N. do T.)
como estas duas espécies são agora as que se relacionam
mais de perto com o homem, de algum modo é mais provável
que nossos progenitores primordiais tivessem vivido no
continente africano do que em outro lugar.

Devemos lembrar que, quando Darwin escreveu estas pa-


lavras, nenhum fóssil humano primordial tinha sido encontrado
em qualquer lugar; sua conclusão era inteiramente baseada em
teorias. Na época de Darwin, os únicos fósseis humanos
conhecidos eram do homem de Neanderthal, na Europa, e
estes representam um estágio relativamente tardio da evolução
humana

Os antropólogos não gostaram nada da sugestão de Darwin,


porque a África tropical era olhada com desdém colonialista: o
Continente Negro não era visto como um lugar apropriado para
a origem de uma criatura tão nobre como o Homo sapiens.
Quando mais fósseis humanos começaram a ser descobertos
na Europa e na Ásia na virada do século, mais zombarias
foram lançadas sobre a idéia de uma origem africana, Esta
atitude prevaleceu por décadas. Em 1931, quando meu pai
disse aos seus mentores na Universidade de Cambridge que
planejava procurar as origens humanas no leste da África,
recebeu uma pressão enorme para em vez disto concentrar
sua atenção sobre a Ásia. A convicção de Louis Leakey era
parcialmente baseada no argumento de Darwin e parcialmente,
sem dúvida alguma, no fato de que ele havia nascido e sido
criado no Quênia. Ele ignorou o conselho dos estudiosos de
Cambridge e conseguiu estabelecer a África Oriental como
uma região vital na história da nossa evolução primordial. A
veemência do sentimento anti-África dos antropólogos parece
agora estranha para nós, dado o vasto número de fósseis
humanos primordiais que tem sido recuperado neste continente
nos anos recentes. O episódio é também um lembrete de que
os cientistas são muitas vezes levados tanto pela emoção
quanto pela razão.

A segunda grande conclusão de Darwin em A descendência do


homem foi que as importantes características que distinguem
os humanos — bipedismo, tecnologia e cérebro grande —
evoluíram em conjunto. Darwin escreveu:

Se é uma vantagem para o homem ter suas mãos e braços


livres e ficar firmemente ereto sobre seus pés, (...) então não
vejo razão por que não teria sido mais vantajoso para os
progenitores do homem terem se tornado mais e mais eretos
ou
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bipédes. As mãos e os braços não poderiam ter se tornado


suficientemente perfeitos para manufaturar armas, ou atirar
pedras e lanças com pontaria precisa, enquanto fossem ha-
bitualmente utilizados para suportar o peso total do corpo...
ou enquanto fossem especialmente adaptados para subir nas
árvores.

Aqui, Darwin estava argumentando que a evolução de nosso


modo fora do comum de locomoção era diretamente ligado à
manufatura de armas de pedra. Ele foi mais longe e relacionou
estas transformações evolutivas com a origem dos dentes
caninos nos humanos, que eram insolitamente pequenos se
comparados com os caninos pontiagudos dos macacos. “Os
ancestrais primevos do homem eram (...) provavelmente
providos de grandes dentes caninos”, escreveu ele em vi
descendência do homem; “mas, à medida que gradualmente
adquiriram o hábito de usar pedras, bastões ou outras armas
para combater seus inimigos ou rivais, eles poderiam utilizar
suas mandíbulas e dentes cada vez menos. Neste caso, as
mandíbulas, junto com os dentes, tomar-se-iam reduzidas em
tamanho.
Estas criaturas bipédes que manejavam armas desenvolveram
uma interação social mais intensa, que exigia mais intelecto,
argumentou Darwin. E quanto mais inteligentes nossos
ancestrais se tornavam, maior era a sua sofisticação
tecnológica e social, o que por sua vez exigia um intelecto
ainda maior. E assim por diante, à medida que a evolução de
cada aspecto realimentava-se dos outros. Esta hipótese de
evolução correlacionada era um cenário muito claro para as
origens humanas, e tornou-se fundamental para o
desenvolvimento da ciência da antropologia.

De acordo com este cenário, a espécie humana era mais do


que simplesmente um macaco bípede; ela já possuía algumas
características que valorizamos no Homo sapiens. A imagem
era tão poderosa e plausível que os antropólogos foram
capazes de tecer hipóteses persuasivas em torno dela por
muito tempo. Mas o cenário projetou-se para além da ciência:
se a diferenciação evolutiva dos humanos em relação aos
macacos foi ao mesmo tempo abrupta e antiga, uma distância
considerável foi posta entre nós e o restante da natureza. Para
aqueles que têm a convicção de que o Homo sapiens é um tipo
fundamentalmente diferente de criatura, este ponto de vista
oferece consolo.

Esta convicção era muito comum entre os cientistas do tempo


de Darwin, e deste século também. Por exemplo, o naturalista
inglês do século XIX Alfred Russel Wallace — que também
inven-

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tou a teoria da seleção natural, independente de Darwin —


recusou-se a aplicar a teoria àqueles aspectos da humanidade
que mais valorizamos. Ele considerava os humanos demasiado
inteligentes, refinados, sofisticados, para terem sido o produto
de simples seleção natural. Caçadores e coletores primitivos
não teriam tido necessidade biológica destas qualidades,
raciocinava ele, e deste modo não poderiam ter surgido pela
seleção natural. A intervenção sobrenatural, achava ele, deve
ter concorrido para fazer os humanos tão especiais. A falta de
convicção de Wallace no poder da seleção natural deixou
Darwin muito abalado.

O paleontólogo escocês Robert Broom, cujo trabalho pioneiro


na África do Sul nos anos 30 e 40 ajudou a estabelecer a África
como o berço da humanidade, também expressou pontos de
vista fortes em relação à distinção humana. Ele acreditava que
o Homo sapiens era o produto final da evolução e que o resto
da natureza havia sido moldada para seu conforto. Como
Wallace, Broom buscava forças sobrenaturais na origem da
nossa espécie.

Cientistas como Wallace e Broom debatiam-se entre forças


conflitantes, uma intelectual, outra emocional. Eles aceitavam o
fato de que o Homo sapiens originava-se em última instância
da natureza pelo processo de evolução, mas sua crença na
espiritualidade essencial, ou essência transcendente, da
humanidade levou-os a construir para a evolução explicações
que mantinham a distinção humana. O “pacote” evolutivo
corporificado na descrição de Darwin de 1871 das origens
humanas oferecia esta racionalização. Embora Darwin não
invocasse uma intervenção sobrenatural, já no começo seu
cenário evolutivo tornou os humanos diferentes dos simples
macacos.

O argumento de Darwin exerceu sua influência até pouco mais


de uma década atrás, e foi efetivamente responsável por uma
grande discussão sobre quando os humanos apareceram pela
primeira vez. Descreverei o incidente brevemente, porque ele
ilustra a sedução da hipótese de Darwin de evolução
correlacionada. Ele também marca o fim de sua influência
sobre o pensamento antropológico.

Em 1961, Elwyn Simons, então na Universidade Yale, publicou


um trabalho que tornou-se um marco científico e no qual ele
anunciou que uma pequena criatura semelhante ao macaco,
chamada Ramapithecus, foi a primeira espécie de hominídeo.
Os únicos restos fósseis do Ramapithecus conhecidos na
época eram partes de um maxilar superior que tinham sido
descobertas por um jovem pesquisador de Yale, G. Edward
Lewis, na índia em 1932. Simons viu que os dentes laterais (os
molares e pré-mola-

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res) eram de alguma forma humanoides. E viu que os caninos


eram mais curtos e rombudos do que os dos macacos. Simon
também afirmou que a reconstituição de um maxilar superior
incompleto mostraria que ele era humanóide na forma — isto é,
um arco, alargando-se suavemente para trás e não uma forma
em “U”, como nos macacos modernos.

Nesta época, David Pilbeam, um antropólogo britânico da


Universidade de Cambridge, uniu-se a Simon em Yale, e juntos
eles descreveram estas características anatômicas
supostamente humanoides do maxilar do Ramapithecus. Eles
foram mais longe do que a anatomia, contudo, e sugeriram,
com base apenas nos fragmentos de maxilar, que o
Ramapithecus caminhava ereto sobre os dois pés, caçava e
vivia em um meio ambiente social complexo. Seu raciocínio era
semelhante ao de Darwin: a presença de uma suposta
característica humana (a forma dos dentes) implicava a
existência das restantes. Assim, o que se pensava ser a pri-
meiríssima espécie de hominídeo começou a ser vista como
um animal cultural — isto é, como uma versão primitiva dos
humanos modernos em vez de um macaco aculturado.

Os sedimentos a partir dos quais os fósseis do Ramapithecus


original foram recuperados eram antigos, como aqueles que
forneceram descobertas similares subseqüentes na Ásia e na
África. Simons e Pilbeam concluíram portanto que os primeiros
humanos apareceram há pelo menos 15 milhões de anos, e
possivelmente há 30 milhões de anos, e este ponto de vista foi
aceito pela grande maioria dos antropólogos. Mais ainda, a
crença em uma origem tão antiga colocou uma distância
confortável entre os humanos e o resto da natureza, que
muitos acharam bem-vinda.
No final dos anos 60, dois bioquímicos da Universidade da
Califórnia, em Berkeley, Allan Wilson e Vincent Sarich,
chegaram a uma conclusão muito diferente sobre quando a
primeira espécie humana evoluiu. Em vez de trabalhar com
fósseis, eles compararam a estrutura de certas proteínas
sangüíneas de seres humanos vivos e dos macacos africanos.
Seu objetivo era determinar o grau de diferença estrutural entre
as proteínas humanas e as dos macacos — uma diferença que
deveria aumentar, em conseqüência das mutações, com uma
taxa calculável em relação ao tempo. Quanto mais tempo os
humanos e os macacos tivessem se apresentado como
espécies diferentes, maior o número de mutações que teriam
sido acumuladas. Wilson e Sarich calcularam a taxa de
mutações e foram portanto capazes de utilizar seus dados
sobre as proteínas do sangue como um relógio molecular.

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De acordo com o relógio, a primeira espécie humana evoluiu há


apenas uns 5 milhões de anos, uma descoberta que estava em
discordância dramática com os 15 a 30 milhões de anos da
teoria antropológica dominante. Os dados de Wilson e Sarich
também indicaram que as proteínas do sangue em humanos,
chimpanzés e gorilas são igualmente diferentes umas das
outras. Em outras palavras, algum tipo de evento evolutivo há 5
milhões de anos provocou a ramificação de um ancestral
comum em três direções simultaneamente — uma ramificação
que conduziu à evolução não somente dos humanos modernos
mas também dos chimpanzés e gorilas modernos. Isto também
era contraditório com o que a maioria dos antropólogos
acreditava. De acordo com o conhecimento convencional,
chimpanzés e gorilas são os parentes mais próximos uns dos
outros, com os humanos afastados a uma grande distância Se
a interpretação dos dados moleculares era válida, então os
antropólogos teriam que aceitar uma relação biológica muito
mais próxima entre humanos e macacos do que a maioria
acreditava.

Uma disputa feroz eclodiu, com os antropólogos e os bio-


químicos criticando as técnicas profissionais uns dos outros
com o uso dos termos mais duros. A conclusão de Wilson e
Sarich foi criticada com base, entre outras coisas, no fato de
que seu relógio molecular era errático e portanto não poderia
ser confiável para fornecer um tempo preciso para os eventos
evolutivos passados. Por sua vez, Wilson e Sarich
argumentaram que os antropólogos davam importância
interpretativa em demasia a características anatômicas
pequenas e fragmentadas, e eram assim conduzidos a
conclusões inválidas. Na época fiquei ao lado da comunidade
dos antropólogos, acreditando que Wilson e Sarich estavam
errados.

O debate durou por mais de uma década, durante a qual mais


e mais indícios moleculares foram apresentados — por Wilson
e Sarich e também de modo independente por outros
pesquisadores. A grande maioria destes novos dados apoiava
a alegação original de Wilson e Sarich. O peso deste indício
começou a mudar a opinião dos antropólogos, mas a mudança
era lenta. Finalmente, no começo dos anos 80, descobertas de
espécimens muito mais completos de fósseis semelhantes ao
Ramapithecus, por Pilbeam e sua equipe no Paquistão e por
Peter Andrews, do Museu de História Natural de Londres, e
seus colegas na Turquia, resolveram a disputa (ver figura 1.1).

Os fósseis de Ramapithecus originais são na verdade


humanóides em alguns aspectos, mas a espécie não era
humana. A

21
tarefa de inferir um elo evolutivo com base em indício
extremamente fragmentado é muito mais difícil do que a
maioria das pessoas percebe, e há muitas armadilhas para os
incautos. Simons e Pilbeam haviam caído em uma dessas
armadilhas: a similaridade anatômica não implica de modo
unívoco uma relação evolutiva. Os espécimens mais completos
encontrados no Paquistão e na Turquia revelaram que as
supostas características humanóides eram superficiais. A
mandíbula do Ramapithecus tinha a forma de um V e não a de
um arco; esta e outras características indicavam que ele era
uma espécie de macaco primitivo (a mandíbula do macaco
moderno tem a forma de um U). O Ramapithecus vivera nas
árvores, como seu parente posterior, o orangotango, e não era
um macaco bípede, muito menos um caçador-coletor primitivo.
Mesmo os antropólogos mais aferrados à sua visão do
Ramapithecus como hominídeo ficaram convencidos pelos
novos indícios de que estavam errados e que Wilson e Sarich
estavam certos: a primeira espécie de macaco bípede, o
membro fundador da família humana, evoluíra em épocas
relativamente recentes e não em um passado muito distante.

Embora em sua publicação original Wilson e Sarich tenham


proposto uma data há 5 milhões de anos para este evento, hoje
indícios moleculares consensuais fizeram-na retroceder para
quase 7 milhões de anos. Entretanto, não tem havido recuos
com relação à intimidade biológica proposta entre os humanos
e os macacos africanos. Ao contrário, esta relação pode ser
muito mais íntima do que tem sido suposta. Embora alguns
geneticistas acreditem que os dados moleculares ainda
impliquem uma ramificação igual e tríplice entre humanos,
chimpanzés e gorilas, outros vêem isto de modo diferente. Do
seu ponto de vista, humanos e chimpanzés são os parentes
mais próximos uns dos outros, com os gorilas situados a uma
distância evolutiva maior.

O caso do Ramapithecus mudou a antropologia de duas


maneiras. Primeiro, demonstrou os perigos da inferência de
uma relação evolutiva em comum a partir de características
anatômicas em comum. Segundo, expôs a loucura de uma
aderência cega ao “pacote” darwiniano. Simons e Pilbeam
imputaram um estilo de vida completo ao Ramapithecus, com
base na forma dos dentes caninos: se havia uma característica
hominídea, supunha-se que todas estas características
estavam presentes. Como conseqüência da erosão do status
de hominídeo do Ramapithecus, os antropólogos começaram a
ficar inseguros em relação ao pacote darwiniano.

21

Antes de seguir o curso desta revolução antropológica, de-


veríamos examinar brevemente algumas das hipóteses que no
decorrer dos anos têm sido propostas para explicar como a
primeira espécie de hominídeos poderia ter surgido. É
interessante notar que cada hipótese nova que ganhava
popularidade refletia muitas vezes alguma coisa do clima social
da época. Por exemplo, Darwin via a elaboração de armas de
pedra como importante para abrir o pacote evolutivo da
tecnologia, bipedismo e tamanho do cérebro grande. A
hipótese certamente refletia a noção predominante de que a
vida era uma batalha e avanços eram obtidos com iniciativa e
esforço. Este espírito vitoriano permeava a ciência, e
determinou o modo pelo qual o processo de evolução, incluindo
a evolução humana, era visto.

Nas primeiras décadas deste século, os dias de glória do oti-


mismo eduardiano, afirmava-se que o cérebro e seus
processos mentais superiores haviam nos transformado no que
somos. Dentro da antropologia, esta visão social abrangente
era expressa na noção de que a evolução humana tinha sido
propelida inicialmente não pelo bipedismo mas por um cérebro
em expansão. Nos

23

anos 40, o mundo estava enfeitiçado com a magia e o poder da


tecnologia, e a hipótese do “Homem, o Fabricante de Artefatos”
tornou-se popular. Proposta por Kenneth Oakley, do Museu de
História Natural de Londres, esta hipótese sustentava que a
fabricação e a utilização de artefatos de pedra — não armas —
dava o impulso à nossa evolução. E quando o mundo estava
nas sombras da Segunda Guerra Mundial, uma diferenciação
mais sombria entre os humanos e os macacos foi enfatizada —
a da violência contra seus semelhantes. A noção de “Homem, o
Macaco Assassino”, primeiramente proposta pelo anatomista
australiano Raymond Dart, ganhou amplo apoio, possivelmente
porque parecia explicar (ou mesmo desculpar) os horríveis
eventos da guerra.

Mais tarde, nos anos 60, os antropólogos voltaram-se para o


modo de vida do caçador-coletor como chave para as origens
humanas. Diversas equipes de pesquisadores vinham
estudando as populações modernas de povos
tecnologicamente primitivos, particularmente na África, a mais
notável das quais eram os !Kung San (incorretamente
chamados de bosquímanos). Disto emergiu uma imagem de
um povo em harmonia com a natureza, explorando-a de
diversas maneiras ao mesmo tempo em que a respeitava. Esta
visão da humanidade coincidia com o ambientalismo da época,
mas, de qualquer modo, os antropólogos estavam impressio-
nados pela complexidade e segurança econômica da economia
mista de caça e coleta. A caça, porém, era o que foi enfatizado.
Em 1966, uma importante conferência antropológica à qual se
deu o nome de “Homem, o Caçador” foi realizada na
Universidade de Chicago. A idéia dominante no encontro era
simples: a caça fez dos humanos humanos.

Na maioria das sociedades tecnologicamente primitivas, a caça


é geralmente uma responsabilidade masculina Não é surpresa,
portanto, que a crescente percepção das questões femininas
nos anos 70 colocasse em dúvida esta explicação das origens
humanas centralizada no homem. Uma hipótese alternativa,
conhecida como “Mulher, a Coletora”, sustentava que em todas
as espécies de primatas o núcleo da sociedade era o elo entre
a fêmea e a prole. E foi a iniciativa das fêmeas humanas em
inventar tecnologias e coletar alimentos (principalmente
vegetais) que podiam ser compartilhados por todos que
conduziu à formação de uma sociedade humana complexa.
Pelo menos assim se dizia.

Embora estas hipóteses diferissem no que era considerado o


agente principal da evolução humana, todas têm em comum a
noção de que o pacote darwiniano contendo certas característi-

24

cas humanas valorizadas era aceito bem no começo: ainda


pensava-se na primeira espécie de hominídeos como tendo
algum grau de bipedismo, tecnologia e tamanho do cérebro
aumentado. Os hominídeos eram portanto criaturas culturais —
e assim diferentes do restante da natureza — desde o início.
Nos anos recentes, reconhecemos que este não é o caso.

De fato, indício concreto da inadequação da hipótese


darwiniana foi encontrado nos registros arqueológicos. Se o
pacote darwiniano estivesse correto, então poderíamos esperar
ver a aparição simultânea nos registros arqueológicos e fósseis
de indícios de bipedismo, tecnologia e tamanho do cérebro
aumentado. Isto não acontece. Apenas um aspecto dos
registros pré-históricos é suficiente para mostrar que a hipótese
está errada: o registro dos artefatos de pedra

Ao contrário dos ossos, que muito raramente tornam-se fos-


silizados, os artefatos de pedra são virtualmente indestrutíveis.
Muitos dos registros pré-históricos são portanto constituídos
por eles, e são indícios sobre os quais o progresso da
tecnologia é inferido.

Os exemplos mais antigos de tais artefatos — lâminas gros-


seiras, raspadeiras e talhadeiras feitas de seixos dos quais
algumas lascas foram tiradas — aparecem nos registros de
cerca de 2,5 milhões de anos atrás. Se o indício molecular
estiver correto e a primeira espécie humana apareceu há uns 7
milhões de anos, então quase 5 milhões de anos se passaram
entre a época em que nossos ancestrais se tornaram bipédes e
a época em que começaram a fazer artefatos de pedra.
Qualquer que seja a força evolutiva que produziu um macaco
bípede, esta não era relacionada com a habilidade de fazer e
utilizar ferramentas. Entretanto, muitos antropólogos acreditam
que o advento da tecnologia há 2,5 milhões de anos realmente
coincidiu com o começo da expansão do cérebro.

A compreensão de que a expansão do cérebro e a tecnologia


são separadas no tempo das origens humanas forçou os
antropólogos a repensar sua abordagem. Como conseqüência,
as últimas hipóteses têm sido formuladas em termos biológicos
em vez de culturais. Considero isto um desenvolvimento
saudável para a profissão — porque pelo menos permite que
as idéias sejam testadas comparando-as com o que sabemos
da ecologia e do comportamento de outros animais. Ao fazer
isto, não temos que negar que o Homo sapiens possui muitos
atributos especiais. Ao contrário,

25
procuramos pelo surgimento destes atributos a partir de um
contexto estritamente biológico.

Com esta compreensão, a tarefa do antropólogo de explicar as


origens humanas foi redirecionada para a origem do bipedismo.
Mesmo reduzida a este único evento, a transformação evolutiva
não foi trivial, como observou Owen Lovejoy, anatomista da
Kent State University. “A passagem para o bipedismo é uma
das mudanças mais impressionantes que podemos ver na
biologia evolutiva”, escreveu ele em um artigo popular em
1988. “Há mudanças importantes nos ossos, na disposição dos
músculos que os movimentam, e no movimento dos membros.”
Uma olhada na pélvis dos humanos e dos chimpanzés é
suficiente para confirmar esta observação: nos humanos, a
pélvis é achatada e em forma de caixa, enquanto que nos
chimpanzés ela é alongada; e há também diferenças
importantes nos membros e no tronco (ver figura 1.2).

O advento do bipedismo não é somente uma importante


transformação biológica mas também uma importante transfor-
mação adaptativa. Como argumentei no prefácio, a origem da
locomoção bipède é uma adaptação tão significativa que é
justificável chamarmos todas as espécies de macacos bipédes
“humanos”. Isto não significa dizer que as primeiras espécies
bipédes possuíam algum grau de tecnologia, intelecto
desenvolvido, ou qualquer dos atributos culturais da
humanidade. Isto não aconteceu. Meu ponto de vista é que a
adoção do bipedismo era tão carregada de potencial evolutivo
— permitindo aos membros superiores a liberdade de se
tornarem um dia implementos manipulativos — que sua
importância deveria ser reconhecida na nossa nomenclatura.
Estes humanos não eram como nós, mas sem a adaptação ao
bipedismo não poderiam ter-se tornado como nós.

Quais foram os fatores evolutivos que promoveram esta forma


nova de locomoção no macaco africano? A imagem popular
das origens humanas muitas vezes inclui a noção de uma
criatura simiesca abandonando as florestas e dirigindo-se para
as savanas abertas. Uma imagem dramática sem dúvida, mas
completamente errônea, como foi recentemente demonstrado
por pesquisadores das universidades de Harvard e Yale que
analisaram a química do solo em muitas partes do leste da
África. As savanas africanas, com suas grandes hordas
migratórias, são relativamente recentes no ambiente, tendo se
desenvolvido há menos de 3 milhões de anos, muito depois de
a primeira espécie humana ter evoluído.

Se levarmos nossa imaginação de volta para uma África de 15


milhões de anos atrás, encontraremos um tapete de florestas

26

(A página 27 do livro apresenta a Figura 1.2, colada nas


páginas finais desse e-livro)

27

estendendo-se do oeste para o leste, abrigo de uma grande


diversidade de primatas, inclusive muitas espécies de
pequenos e grandes macacos. Em contraste com a situação de
hoje, as espécies de grandes macacos superavam as espécies
dos pequenos. Entretanto, forças geológicas que alterariam
dramaticamente o terreno e seus ocupantes nos próximos
milhões de anos estavam prontas para entrar em ação.

Por baixo da parte leste do continente, a crosta da Terra estava


se separando em duas partes, em uma linha que ia do Mar
Vermelho, através da Etiópia, Quênia, Tanzânia, até
Moçambique. Como conseqüência, o terreno elevou-se em
erupções como na Etiópia e no Quênia, formando grandes
montanhas de mais de 3.000 metros de altitude. Estes grandes
domos transformaram não apenas a topografia do continente
mas também o seu clima. Perturbando as correntes aéreas no
sentido oeste-leste que eram uniformes, os domos colocaram
as terras a leste sob condições de pouca chuva, impedindo a
manutenção das florestas úmidas. A cobertura contínua de
árvores começou a fragmentar-se, deixando um ambiente
dividido em um mosaico de florestas, bosques e arbustos.
Campos limpos, porém, eram ainda raros.

Há cerca de 12 milhões de anos, a ação contínua das forças


tectônicas mudou mais ainda o ambiente, com a formação de
um vale longo e sinuoso, que se estende do norte para o sul,
conhecido como o Vale da Grande Fenda. A existência do Vale
da Grande Fenda teve dois efeitos biológicos: ele coloca uma
formidável barreira na direção leste-oeste às populações
animais; e promove mais ainda o desenvolvimento de um rico
mosaico de condições ecológicas.

O antropólogo francês Yves Coppens acredita que a barreira


leste-oeste foi crucial para a evolução separada dos humanos
e dos outros grandes macacos. “Por força das circunstâncias, a
população dos ancestrais comuns dos humanos e grandes
macacos (...) encontrou-se dividida”, escreveu ele
recentemente. “Os descendentes ocidentais destes ancestrais
comuns prosseguiram sua adaptação à vida em um meio
arborífero e úmido; estes são os grandes macacos. Os
descendentes orientais destes mesmos ancestrais comuns, ao
contrário, inventaram um repertório completamente novo para
adaptar-se à sua nova vida em um ambiente aberto: estes são
os humanos.” Coppens chama este cenário de “East Side
Story”.*

28

O vale tem regiões montanhosas dramáticas com platôs flo-


restais de temperatura amena, encostas íngremes de mil
metros que terminam em baixadas quentes e áridas. Os
biólogos perceberam que ambientes variados desse tipo, que
apresentam muitos tipos diferentes de habitats, conduzem à
inovação evolutiva. Populações de uma espécie que antes
eram amplamente disseminadas e contínuas podem tornar-se
isoladas e expostas a novas forças de seleção natural. Esta é a
receita da transformação evolutiva. Algumas vezes esta
transformação leva ao esquecimento, se o ambiente favorável

*
Referência ao filme musical americano West Side Story, da década de 1960,
ambientado no lado pobre de Nova York. (N. do T.)
desaparece. Este, certamente, foi o destino da maioria dos
macacos africanos: apenas três espécies existem hoje — o
gorila, o chimpanzé comum e o chimpanzé pigmeu. Mas,
enquanto a maioria dos macacos sofreu com a mudança
ambiental, um deles foi agraciado com uma nova adaptação
que lhe permitiu sobreviver e prosperar. Este foi o primeiro
macaco bípede. Ser bípede conferiu-lhe claramente vantagens
importantes na luta pela sobrevivência em condições variáveis.
O trabalho dos antropólogos é descobrir quais eram estas
vantagens.

Os antropólogos tendem a ver a importância do bipedismo na


evolução humana de duas maneiras: uma escola enfatiza a li-
beração dos membros dianteiros que possibilita o transporte de
coisas; a outra enfatiza o fato de que o bipedismo é um modo
de locomoção mais eficiente do ponto de vista energético, e vê
a habilidade de transportar coisas simplesmente como um
derivado fortuito da postura ereta.

A primeira destas duas hipóteses foi proposta por Owen


Lovejoy e publicada em um artigo importante na Science em
1981. O bipedismo, argumentou ele, é uma maneira ineficiente
de locomoção, portanto ele deve ter evoluído para permitir o
transporte de coisas. De que modo a habilidade de transportar
coisas poderia ter dado aos macacos bipédes uma vantagem
competitiva sobre os outros macacos?

Em última instância, o sucesso evolutivo depende da produção


de uma prole que sobreviva, e a resposta, sugeriu Lovejoy, es-
tá na oportunidade que esta nova habilidade confere aos
macacos machos de aumentar a taxa reprodutiva das fêmeas,
ao coletar alimentos para ela. Os macacos, observou ele,
reproduzem-se lentamente, tendo um rebento a cada quatro
anos. Se as fêmeas humanas tivessem acesso a mais energia
— isto é, comida —, elas poderiam produzir de maneira mais
bem-sucedida uma prole maior. Se um macho ajudasse a
providenciar mais energia para uma fêmea coletando alimentos
para ela e sua prole, ela seria capaz de aumentar sua
produção reprodutiva.

29

Haveria uma conseqüência biológica adicional da atividade do


macho, desta vez no domínio social. Como o macho não teria
benefícios no sentido darwiniano em alimentar a fêmea a
menos que estivesse seguro de que ela estava produzindo a
sua prole, Lovejoy sugeriu que a primeira espécie humana era
monogâmica, com a família nuclear emergindo como uma
maneira de aumentar o sucesso reprodutivo, e assim vencer a
competição contra os outros macacos. Ele sustentou sua
argumentação com uma analogia biológica adicional. Na
maioria das espécies de primatas, por exemplo, os machos
competem entre si pelo controle sexual do maior número
possível de fêmeas. Durante este processo, muitas vezes eles
lutam um contra o outro, e são dotados de dentes caninos
grandes, que utilizam como arma. Os gibões são uma exceção
porque formam casais de macho e fêmea, e — presumivel-
mente porque não têm razão de lutar um contra o outro — os
machos têm dentes caninos pequenos. Os caninos pequenos
nos humanos primitivos podem ser uma indicação de que,
como os gibões, eles formavam casais de macho e fêmea,
argumentou Lovejoy. Os vínculos sociais e econômicos do
arranjo em torno da alimentação teriam por sua vez conduzido
a um aumento no tamanho do cérebro.

A hipótese de Lovejoy, que desfrutou apoio e atenção consi-


deráveis, é poderosa porque apela para pontos biológicos
fundamentais, e não culturais. Entretanto, ela tem pontos
fracos; por exemplo, a monogamia não é um arranjo social
comum entre povos tecnologicamente primitivos. (Apenas 20
por cento de tais sociedades são monogâmicas.) Portanto esta
hipótese foi criticada por parecer apoiar-se sobre uma
característica da sociedade ocidental, e não sobre uma
característica das sociedades de caçadores-coletores. A
segunda crítica, talvez mais séria, é que os machos das
espécies humanas primitivas conhecidas eram cerca de duas
vezes maiores do que as fêmeas. Em todas as espécies de pri-
matas que têm sido estudadas, esta grande diferença no
tamanho do corpo, conhecida como dimorfismo, correlaciona-
se com apoliginia, ou competição entre os machos pelo acesso
às fêmeas; o dimorfismo não é observado nas espécies
monogâmicas. Para mim, este fato por si só é suficiente para
afundar uma abordagem teórica promissora, e uma explicação
para os caninos pequenos que não seja a monogamia deve ser
procurada. Uma possibilidade é que o mecanismo de
mastigação dos alimentos exigisse um movimento de trituração
e não de estraçalhamento; caninos grandes prejudicariam tal
movimento. A hipótese de Lovejoy tem agora um apoio menor
do que há uma década.

30
A segunda teoria importante do bipedismo é muito mais con-
vincente, em parte por sua simplicidade. Proposta pelos
antropólogos Peter Rodman e Henry McHenry, da Universidade
da Califórnia, em Davis, a hipótese afirma que o bipedismo foi
vantajoso em condições ambientais em mutação porque
oferecia um meio mais eficiente de locomoção. À medida que
as florestas encolhiam, os recursos alimentares dos habitats
florestais, tais como árvores frutíferas, teriam se tornado muito
dispersos para serem explorados de forma eficiente pelos
macacos convencionais. De acordo com esta hipótese, os
primeiros macacos bipédes eram humanos apenas quanto ao
seu modo de locomoção. Suas mãos, mandíbulas e dentes
teriam permanecido similares aos dos macacos, porque sua
dieta não mudara, apenas sua maneira de obtê-la.

Para muitos biólogos, esta proposta inicialmente parecia im-


provável: pesquisadores da Universidade de Harvard haviam
mostrado alguns anos antes que caminhar sobre duas pernas é
menos eficiente do que caminhar sobre quatro. (Isto não
deveria ser uma surpresa para qualquer um que tenha um gato
ou um cachorro; ambos correm, embaraçosamente, muito mais
rápido do que seus donos.) Os pesquisadores de Harvard
tinham, entretanto, comparado a eficiência energética do
bipedismo nos humanos com o quadrupedismo nos cavalos e
cachorros. Rodman e McHenry chamaram a atenção para o
fato de que a comparação apropriada deveria ser entre
humanos e chimpanzés. Quando estas comparações são
feitas, conclui-se que o bipedismo nos humanos é mais
eficiente do que o quadrupedismo nos chimpanzés. Um
argumento de eficiência energética como uma força da seleção
natural em favor do bipedismo, concluíram eles, é portanto
plausível.

Tem havido muitas outras sugestões sobre os fatores que


conduziram a evolução do bipedismo, tais como a necessidade
de olhar por cima da grama alta para controlar os predadores e
a necessidade de adotar uma postura mais eficiente para
refrescar-se durante a procura por alimentos durante o dia. De
todas elas, acho a de Rodman e McHenry a mais persuasiva,
porque tem bases firmes na biologia e adapta-se às mudanças
ecológicas que estavam acontecendo quando as primeiras
espécies humanas estavam evoluindo. Se a hipótese estiver
correta, isto significará que, quando encontrarmos fósseis das
primeiras espécies humanas, podemos deixar de reconhecê-los
como tais, dependendo dos ossos que obtivermos. Se os ossos
forem os da pélvis ou dos membros inferiores, então o modo
bípede de locomoção será evidente, e seremos capazes de
dizer “humanos”. Mas se encontrar-

31

mos certas partes do crânio, da mandíbula, ou alguns dentes,


eles podem parecer com os dos macacos. Como saberíamos
que eles pertencem a um macaco bipède ou a um macaco
convencional? É um desafio excitante.

Se pudéssemos visitar a África de 7 milhões de anos atrás para


observar o comportamento dos primeiros humanos, veríamos
um padrão mais familiar aos primatólogos, que estudam o
comportamento dos macacos e dos pequenos macacos
arborícolas, do que aos antropólogos, que estudam o
comportamento dos humanos. Em vez de viver em agregados
de famílias nos bandos nômades, como os caçadores-coletores
modernos o fazem, os primeiros humanos provavelmente
viviam como os babuínos das savanas. Grupos de mais ou
menos trinta indivíduos buscariam alimentos através de um
grande território de modo coordenado, retornando à noite para
dormir em lugares escolhidos, como encostas de rochedos ou
grupos de árvores. As fêmeas maduras e suas proles
constituiriam a maior parte do grupo, com apenas uns poucos
machos adultos presentes. Os machos estariam continuamente
à procura de oportunidades de acasalamento, com os
indivíduos dominantes obtendo sucesso maior. Machos
imaturos ou de baixo prestígio estariam na periferia do grupo,
muitas vezes procurando alimentos por si mesmos. Os
indivíduos no grupo teriam o aspecto humano do caminhar
ereto mas se comportariam como os primatas das savanas. À
frente deles estão 7 milhões de anos de evolução — um
padrão de evolução que seria complexo, como veremos, e de
nenhum modo absolutamente certo. Pois a seleção natural
opera de acordo com as circunstâncias imediatas e não tendo
em vista um objetivo de longo prazo. O Homo sapiens fi-
nalmente evoluiu como um descendente dos primeiros
humanos, mas não havia nada de inevitável a respeito disto.

32
2 - Uma família numerosa
Pela minha contagem, espécimens de fósseis com vários graus
de incompletude, representando pelo menos um milhar de
indivíduos das várias espécies humanas, têm sido recuperados
na África Oriental e do Sul da parte mais antiga dos registros
arqueológicos, isto é, de cerca de 4 milhões até quase 1 milhão
de anos atrás (muitos mais neste último registro). Os fósseis
humanos mais antigos encontrados na Eurásia podem ter cerca
de 2 milhões de anos de idade. (O Novo Mundo e a Austrália
foram povoados muito mais recentemente, há uns 20 mil e 55
mil anos respectivamente.) Portanto, é justo dizer que a maior
parte da ação na pré-história humana aconteceu na África. As
questões a que os antropólogos devem responder sobre esta
ação são duas: primeiro, que espécies constituíram a árvore de
família humana entre 7 e 2 milhões de anos atrás, e como elas
viveram? Segundo, como eram as espécies relacionadas umas
com as outras sob o ponto de vista evolutivo? Em outras
palavras, qual era a forma da árvore de família?

Meus colegas antropólogos deparam com dois desafios prá-


ticos quando tratam com estes problemas. O primeiro é o que
Darwin chamava “a extrema imperfeição do registro geológico”.
Na sua A origem das espécies, Darwin devotou um capítulo
inteiro as lacunas frustrantes encontradas nos registros, as
quais são conseqüência das forças caprichosas da fossilização
e mais tarde da exposição dos ossos. As condições que
favorecem o enterro rápido e a possível fossilização dos ossos
são raras. E sedimentos antigos podem tornar-se expostos pela
erosão — quando, por exemplo, uma corrente passa através
deles —, mas quais as páginas da pré-história que são
reabertas desta maneira é puramente uma questão de acaso, e
muitas páginas permanecem escondidas de nossas vistas. Por
exemplo, na África Oriental, o repositório mais promissor de
fósseis humanos primordiais, há muito poucos sedimentos com
fósseis pertencentes ao período compreendido entre 4 e 8
milhões de anos atrás. Este é um período crucial na pré-história
do homem, já que ele inclui a origem da família huma-

33

na. Mesmo para o período que vem após os 4 milhões de anos


temos muito menos fósseis do que gostaríamos.

O segundo desafio surge do fato de que a maioria dos


espécimens de fósseis descobertos são pequenos fragmentos
— um pedaço de crânio, um osso da face, parte de um osso do
braço, e muitos dentes. A identificação de espécies a partir de
indícios escassos desta natureza não é tarefa fácil e algumas
vezes é impossível. A incerteza resultante permite que surjam
muitas diferenças científicas de opinião, na identificação da
espécie e no discernimento das suas inter-relações. Esta área
da antropologia, conhecida como taxonomia e sistemática, é
uma das mais controvertidas. Evitarei os detalhes dos muitos
debates e, em vez disto, concentrarei a atenção na descrição
da forma geral da árvore.

O conhecimento dos registros de fósseis humanos na África


desenvolveu-se lentamente, começando em 1924 quando
Raymond Dart anunciou a descoberta da famosa criança
Taung. Compreendendo o crânio incompleto de uma criança —
parte do crânio, face, maxilar inferior e caixa craniana —, o
espécimen foi assim chamado porque foi recuperado da
pedreira de calcário de Taung, na África do Sul. Embora
nenhuma datação precisa dos sedimentos da pedreira fosse
possível, estimativas científicas sugeriram que a criança viveu
há cerca de 2 milhões de anos.
Embora a cabeça da criança Taung tivesse muitas
características semelhantes às do macaco, tais como um
cérebro pequeno e um maxiliar protuberante, Dart também
reconheceu nele características humanas: o maxilar era
protuberante mas menos do que nos macacos, os dentes
molares eram achatados e os caninos pequenos. Um indício
fundamental foi a posição do forâmen magno — a abertura na
base do crânio através da qual os nervos espinhais passam
para a coluna espinhal. Nos macacos, a abertura está
relativamente mais para trás na base do crânio, enquanto que
nos humanos ela está muito mais próxima do centro da base; a
diferença é um reflexo da postura bípede dos humanos, na
qual a cabeça equilibra-se em cima da espinha, em contraste
com a postura dos macacos, na qual a cabeça pende para a
frente. O forâmen magno da criança Taung era no centro,
indicando que a criança era um macaco bípede.

Embora Dart estivesse convencido do status de hominídeo da


criança Taung, passou-se quase um quarto de século antes
que os antropólogos profissionais aceitassem este fóssil
individual como um ancestral humano e não apenas como um
macaco antigo.
34

O preconceito contra a África como sítio da evolução humana e


um repúdio generalizado à idéia de que algo tão semelhante ao
macaco pudesse ser uma parte da ancestralidade humana
combinaram-se para lançar Dart e sua descoberta no
esquecimento antropológico por um longo tempo. Na época em
que os antropólogos reconheceram o seu erro — no final dos
anos 40 —, o escocês Robert Broom juntara-se a Dart, e os
dois homens haviam descoberto vintenas de fósseis humanos
primordiais em quatro lugares onde se encontram cavernas na
África do Sul: Sterkfontein, Swartkrans, Kromdraai e
Makapansgat. Seguindo o costume antropológico da época,
Dart e Broom deram o nome de uma espécie nova para pra-
ticamente todos os fósseis que descobriram; deste modo, em
breve parecia que um verdadeiro zoológico de espécies
humanas vivera na África do Sul entre 3 milhões e 1 milhão de
anos atrás.

Nos anos 50, os antropólogos decidiram racionalizar a grande


quantidade de espécies de hominídeos propostas e reconhece-
ram apenas duas. Ambas eram de macacos bipédes, é claro, e
ambas eram semelhantes aos macacos do mesmo modo pelo
qual a criança Taung o era. A principal diferença entre as duas
espécies estava nos seus maxilares e dentes: em ambas, estes
eram grandes, mas uma das criaturas era uma versão mais
corpulenta da outra. A espécie mais graciosa recebeu o nome
de Australopithecus africanus, que era o nome que Dart dera à
criança Taung em 1924; o termo significa “macaco do sul da
África”. A espécie mais robusta foi apropriadamente chamada
Australopithecus robustus (ver figura 2.1).

A partir da estrutura de seus dentes, era óbvio que ambos, o


africanus e o robustus, alimentavam-se principalmente de
vegetais. Seus molares não eram como os dos macacos — que
têm cúspides aguçadas, aptas a uma dieta de frutas de casca
relativamente macia e a outros vegetais — mas eram
achatados formando superfícies aptas para o trituramento. Se,
como suspeito, as primeiras espécies humanas viveram de
uma dieta semelhante à dos macacos, elas teriam dentes
semelhantes a estes. Claramente, há cerca de 2 ou 3 milhões
de anos a dieta humana mudou para uma dieta de alimentos
mais duros, tais como frutas de casca rígida e nozes. Quase
certamente isto indica que os australopitecíneos viveram em
um ambiente mais seco que o dos macacos. O grande
tamanho dos molares da espécie robusta sugere que os
alimentos que ela comia eram especialmente duros e
necessitavam de trituração extensiva; não é por acaso que são
chamados “molares tipo marco de estrada”.

35

(A página 36 do livro apresenta a Figura 2.1, colada nas


páginas finais desse e-livro)

36

O primeiro fóssil de humanos primitivos foi encontrado na África


Oriental por Mary Leakey, em agosto de 1959. Depois de
quase três décadas de procura nos sedimentos da garganta
Olduvai, ela foi recompensada com a descoberta de molares do
tipo marco de estrada, como aqueles da espécie
australopitecínea robusta da África do Sul. Louis Leakey, que,
com Mary, tomara parte da longa busca, chamou-o
Zinjanthropus boisei: o nome que refere-se ao gênero significa
“homem da África Oriental” e boisei refere-se a Charles Boise,
que apoiou meu pai e minha mãe em seu trabalho na garganta
Olduvai e alhures. Na primeira aplicação dos métodos
modernos de datação geológica, foi determinado que Zinj,
como o indivíduo tornou-se conhecido, vivera há 1,75 milhão
de anos. O nome Zinj foi finalmente trocado para
Australopithecus boisei, no pressuposto de que ele era uma
versão africana oriental, ou variante geográfica, do
Australopithecus robustus.

Os nomes não são particularmente importantes por si próprios.


O que é importante é que estamos vendo diversas espécies
humanas com a mesma adaptação fundamental, o bipedismo,
um cérebro pequeno e dentes molares relativamente grandes.
Isto foi o que vi no crânio que encontrei sobre um leito de rio
seco na minha primeira expedição à margem oriental do lago
Turkana, em 1969.

Sabemos a partir do tamanho variado dos ossos do esqueleto


que os machos da espécie australopitecínea eram muito maio-
res do que as fêmeas. Eles tinham 1,5 metro de altura
enquanto suas companheiras mal atingiam 1 metro. Os machos
devem ter pesado o dobro das fêmeas, uma diferença do tipo
que vemos hoje em algumas espécies de babuínos das
savanas. É, portanto, razoável supor que a organização social
dos australopitecíneos era similar à dos babuínos, com os
machos dominantes competindo pelo acesso às fêmeas
maduras, como foi observado no capítulo anterior.
A história da pré-história humana tornou-se um pouco mais
complicada um ano após a descoberta do Zinj, quando meu
irmão mais velho, Jonathan, descobriu um pedaço de crânio de
um outro tipo de hominídeo, novamente na garganta Olduvai. A
pouca espessura relativa do crânio indicava que este indivíduo
tinha uma constituição ligeiramente mais leve do que qualquer
uma das espécies conhecidas de australopitecíneos. Ele tinha
dentes molares menores e, o mais significativo de tudo, seu
cérebro era quase 50 por cento maior. Meu pai concluiu que,
embora os aus-

37

tralopitecíneos fizessem parte da ancestralidade humana, este


novo espécimen representava a linhagem que finalmente deu
origem aos humanos modernos. Em meio a um alarido de
objeções por parte de seus colegas de profissão, ele decidiu
batizá-lo Homo habilis, tornando-o o primeiro membro primitivo
do gênero a ser identificado. (O nome Homo habilis, que
significa “homem habilidoso”, lhe foi sugerido por Raymond
Dart, e refere-se à suposição de que a espécie era de
fabricantes de artefatos.)

De muitas maneiras, o alarido tinha base em considerações


esotéricas; ele surgiu em parte porque, para atribuir a
designação Homo ao novo fóssil, Louis teve que modificar as
definições aceitas de gênero. Até aquela época, a definição
padrão, proposta pelo antropólogo britânico Sir Arthur Keith,
afirmava que a capacidade cerebral do gênero Homo deveria
ser igual ou exceder os 750 centímetros cúbicos, um valor
intermediário entre o dos humanos modernos e o dos macacos;
isto tomou-se conhecido como o Rubicão cerebral. A despeito
do fato de que o fóssil recentemente descoberto na garganta
Olduvai tivesse uma capacidade cerebral de apenas 650
centímetros cúbicos, Louis julgou-o ser Homo por causa de seu
crânio mais humanóide (isto é, menos robusto). Ele portanto
propôs alterar o Rubicão cerebral para 600 centímetros
cúbicos, admitindo com isto o novo hominídeo olduvaiano ao
gênero Homo. Esta tática certamente elevou o nível emocional
do vigoroso debate que se seguiu. Ao final, porém, a nova
definição foi aceita. (Mais tarde, chegou-se à conclusão de que
650 centímetros cúbicos é muito pouco como média de
tamanho do cérebro adulto no Homo habilis: 850 centímetros
cúbicos é um valor mais próximo.)

Nomes científicos à parte, o ponto importante aqui é que o


padrão de evolução que começa a emergir destas descobertas
era o de dois tipos básicos de humanos primitivos. Um tipo
tinha um cérebro pequeno e dentes molares grandes (as várias
espécies de australopitecíneos); o segundo tipo tinha um
cérebro maior e dentes molares pequenos (Homo) (ver figura
2.2). Ambos os tipos eram de macacos bipédes, mas
claramente algo de extraordinário tinha acontecido na evolução
do Homo. Exploraremos este “algo” de maneira mais completa
no próximo capítulo. De qualquer modo, a compreensão dos
antropólogos da forma da árvore de família neste ponto da
história humana — isto é, por volta de 2 milhões de anos atrás
— era bastante simples. A árvore tinha dois ramos principais:
as espécies australopitecíneas, que se tornaram todas extintas
há cerca de 1 milhão de anos, e a Homo, que finalmente levou
a gente como nós.

38
Os biólogos que estudaram os registros de fósseis sabem que,
quando uma nova espécie desenvolve uma adaptação nova,
muitas vezes há um florescimento de espécies descendentes
durante os milhões de anos seguintes que expressam
variações temáticas daquela adaptação inicial — o
florescimento é conhecido como irradiação adaptativa. O
antropólogo da Universidade de Cambridge, Robert Foley,
calculou que, se a história evolutiva dos macacos bípedes
acompanhou o padrão usual de irradiação adaptativa, existiram
pelo menos 16 espécies entre a origem do grupo há 7 milhões
de anos e os dias de hoje. A forma da árvore de família começa
com um único tronco (a espécie fundadora), cresce à medida
que novos ramos desenvolvem-se com o tempo, e então reduz
suas ramificações quando as espécies tornam-se extintas,
deixando apenas um ramo sobrevivente — o Homo sapiens.
De que modo tudo isto se encaixa com o que sabemos dos
registros de fósseis?

Durante muitos anos após a aceitação do Homo habilis,


pensou-se que há 2 milhões de anos havia três espécies de
australopitecíneos e uma de Homo. Neste ponto da história,
esperaríamos que a árvore familiar fosse bem populosa, assim
quatro espécies coexistentes não parecem ser muito. E, de
fato, recentemente tornou-se aparente — por meio de novas
descobertas e novas reflexões — que pelo menos quatro
australopitecíneos viveram neste período, lado a lado com
duas ou mesmo três espécies de Homo. Este quadro não está
em absoluto acabado, mas, se as espécies humanas eram
como as espécies de outros grandes mamí-

39

feros (e neste ponto da nossa história não há razão para


pensar que elas não o fossem), então isto é o que os biólogos
esperariam. A questão é: o que aconteceu antes dos 2 milhões
de anos atrás? Quantos ramos haviam na árvore de família e
como eram eles?

Como já observado, os registros fósseis tornam-se rapida-


mente esparsos além dos 2 milhões de anos atrás e ficam mais
raros ainda para mais de 4 milhões de anos. Os fósseis
humanos mais antigos conhecidos são todos da África Oriental.
Na margem leste do lago Turkana, encontramos um osso de
braço, um osso do pulso, fragmentos de mandíbulas e dentes
de cerca de 4 milhões de anos atrás; o antropólogo americano
Donald Johanson e seus colegas recuperaram um osso de
perna de idade similar na região conhecida como Awash, na
Etiópia. Na verdade, estes são indícios escassos para se
recriar um quadro da pré-história humana mais antiga. Há,
contudo, uma exceção neste período de raros indícios, e esta
exceção é uma rica coleção de fósseis da região Hadar, na
Etiópia, que pertencem ao período entre 3 e 3,9 milhões de
anos atrás.

Nos meados da década de 1970, uma equipe franco-


americana, liderada por Maurice Taieb e Johanson, recuperou
centenas de ossos fossilizados fascinantes, inclusive um
esqueleto parcialmente completo de um indivíduo pequeno,
que tornou-se conhecido como Lucy (ver figura 2.3). Lucy, que
era uma adulta madura quando morreu, mal atingia 1 metro de
altura e era de constituição muito semelhante à de um macaco,
com braços longos e pernas curtas. Outros fósseis de
indivíduos provindos desta área indicavam que não apenas
havia muitos deles maiores do que Lucy, atingindo mais de 1,5
metro de altura, mas também que estes eram mais
semelhantes aos macacos em certos aspectos — no tamanho
e forma dos dentes, na projeção das mandíbulas — do que os
hominídeos que viveram mais tarde na África Oriental e do Sul
há mais ou menos 1 milhão de anos. Isto é o que esperaríamos
encontrar à medida que nos aproximamos cada vez mais da
época da origem da humanidade.

Quando vi pela primeira vez os fósseis de Hadar, pareceu-me


que eles representavam duas espécies, talvez mais. Considerei
provável que a diversidade de espécies que vemos surgir há 2
mi-
40

(A página 41 do livro apresenta a Figura 2.3, colada nas


páginas finais desse e-livro)

41
lhões de anos derivava de uma diversidade similar que surgira
1 milhão de anos antes, inclusive espécies de Australopithecus
e Homo. Na sua interpretação inicial dos fósseis, Taieb e
Johanson apoiaram este padrão de evolução. Entretanto,
Johanson e Tim White, da Universidade da Califórnia em
Berkeley, fizeram mais análises. Em um artigo publicado na
revista Science em janeiro de 1979, eles sugeriram que os
fósseis de Hadar não representavam diversas espécies de
humanos primitivos mas ao contrário eram ossos de apenas
uma única espécie, que Johanson chamou Australopithecus
afarensis. A grande variedade de tamanho corporal, que
anteriormente tinha sido considerada como indicação da
presença de diversas espécies, era agora explicada
simplesmente como dimorfismo sexual. Todas as espécies de
hominídeos que surgiram mais tarde eram descendentes desta
única espécie, disseram eles. Muitos de meus colegas ficaram
surpresos com esta afirmação audaciosa, e ela provocou um
vigoroso debate que durou muitos anos (ver figura 2.4).

Embora desde então muitos antropólogos tenham decidido que


o esquema de Johanson e White provavelmente está correto,
eu acredito que o esquema está errado, por duas razões.
Primeiro, as diferenças de tamanho e a variedade anatômica
dos fósseis de Hadar são simplesmente muito grandes para
representar uma única espécie. Muito mais razoável é a noção
de que os fósseis são de duas espécies, ou talvez mais. Yvens
Coppens, que era membro da equipe que coletou os fósseis de
Hadar, também é da mesma opinião. Segundo, o esquema não
faz sentido do ponto de vista biológico. Se os humanos
originaram-se há 7 milhões de anos, ou mesmo há 5 milhões
de anos, seria muito incomum que uma única espécie tivesse
sido a ancestral de todas as espécies que vieram mais tarde.
Esta não seria a forma típica de uma irradiação adaptativa, e a
menos que haja uma boa razão para suspeitar o contrário
devemos supor que a história humana seguiu o padrão normal.

A única maneira pela qual esta questão será satisfatoriamente


resolvida para todos é por meio da descoberta e análise de
mais fósseis de mais de 3 milhões de anos de idade, o que
parecia ser possível no começo de 1994. Desde 1990, depois
de uma década e meia de impossibilidade, por razões políticas,
de retornar aos lugares ricos em fósseis na região de Hadar,
Johanson e seus colegas fizeram três expedições. Seus
esforços tiveram grande sucesso, sendo recompensados com a
coleta de 53 espécimens de fósseis, inclusive o primeiro crânio
completo. O padrão deste período de tempo observado
anteriormente — o de uma grande varie-

42

dade de tamanho corporal — é confirmado e mesmo ampliado


pelas novas descobertas. Como devemos interpretar este fato?
Estará a questão de uma ou mais espécies às vésperas da
solução? Infelizmente este não é o caso. Aqueles que achavam
que a variedade de tamanho dos fósseis previamente
descobertos indicava uma diferença de estatura entre machos
e fêmeas consideraram os novos fósseis como indícios que
apoiavam esta posição. Aqueles de nós que suspeitavam que
uma variedade de tamanho tão ampla deve indicar uma
diferença entre espécies, e não uma diferença dentro de uma
mesma espécie, interpretaram os novos fósseis como
indicações que reforçavam este ponto de vista. A forma da
árvore de família anterior aos 2 milhões de
43

anos atrás deve portanto ser considerada uma questão não re-
solvida.

A descoberta do esqueleto parcialmente completo de Lucy em


1974 parecia dar um primeiro vislumbre do grau de adaptação
anatômica à locomoção bípede dos hominídeos mais antigos.
Por definição, a primeira espécie de hominídeo a desenvolver-
se teria sido um tipo de macaco bípede. Mas até que o
esqueleto de Lucy tivesse aparecido, os antropólogos não
tinham indícios tangíveis de bipedismo em uma espécie
humana anterior aos 2 milhões de anos atrás. Os ossos da
pélvis, pernas e pés do esqueleto de Lucy foram pistas vitais
para esta questão.

A partir da forma da pélvis e do ângulo entre o fémur e o joelho,


fica claro que Lucy e seus companheiros adaptavam-se a al-
guma forma de caminhar ereta. Estas características eram
muito mais semelhantes às dos humanos do que às dos
macacos. De fato, Owen Lovejoy, que realizou os estudos
anatômicos iniciais destes ossos, concluiu que a locomoção
bípede da espécie teria sido indistinguível da maneira pela qual
eu e você caminhamos. Entretanto, nem todos concordam. Por
exemplo, em 1983, em um importante trabalho científico, Jack
Stern e Randall Susman, dois anatomistas da State University
of New York, em Stony Brook, apresentaram uma interpretação
diferente da anatomia de Lucy: “Ela possui uma combinação de
características inteiramente adequada a um animal que tivesse
viajado bastante na estrada que leva ao bipedismo de tempo
total, mas que retém aspectos estruturais que lhe permitiam
utilizar-se das árvores de maneira eficiente para alimentar-se,
dormir ou fugir”.

Um dos indícios cruciais que Stern e Susman apresentaram em


favor de suas conclusões era a estrutura dos pés de Lucy: os
ossos eram algo encurvados, como se observa nos macacos
mas não nos humanos — um arranjo que facilitaria a subida
nas árvores. Lovejoy descarta este ponto de vista e sugere que
os ossos encurvados do pé são simplesmente um vestígio
evolutivo do passado simiesco de Lucy. Estes dois campos
opostos mantiveram entusiasticamente suas diferenças de
opinião por mais de uma década. Então, no começo de 1994,
novos indícios, inclusive alguns vindos de uma fonte das mais
inesperadas, aparentemente fizeram pender a balança para um
lado.

Primeiro, Johanson e seus colegas relataram a descoberta de


ossos de um braço de 3 milhões de anos de idade, um cúbito e
um úmero, que eles atribuíram ao Australopithecus afarensis. O
indivíduo obviamente tinha sido muito forte, e seus ossos do

44

braço tinham algumas características similares aquelas


observadas nos chimpanzés, enquanto outras eram diferentes.
Comentando esta descoberta, Leslie Aiello, um antropólogo do
University College, de Londres, escreveu na revista Nature: “A
morfologia variada do cúbito do A. afarensis, junto com seu
úmero robusto e bastante musculoso, estaria idealmente
adaptada a uma criatura que não só subisse em árvores mas
que também caminhasse sobre duas pernas no solo.” Esta
descrição, com a qual concordo, claramente favorece mais o
lado de Susman do que o de Lovejoy.

Um apoio ainda mais forte a este ponto de vista vem da utili-


zação inovadora da tomografia axial computadorizada (a
varredura CAT) para discernir os detalhes da anatomia do
ouvido interno destes humanos primitivos. Parte da anatomia
do ouvido interno é constituída por três tubos em forma de C,
os canais semicirculares. Dispostos de uma maneira que os
deixa mutuamente perpendiculares, com dois dos canais
orientados verticalmente, a estrutura desempenha um papel
chave na manutenção do equilíbrio do corpo. Em um encontro
de antropólogos em abril de 1994, Fred Spoor, da Universidade
de Liverpool, descreveu os canais semicirculares nos humanos
e nos macacos. Os dois canais verticais são significativamente
maiores nos humanos quando os comparamos com os dos
macacos. Uma diferença que Spoor interpreta como uma
adaptação às exigências adicionais do equilíbrio ereto nas es-
pécies bipédes. E o que dizer das espécies humanas
primitivas?

As observações de Spoor são verdadeiramente espantosas.


Em todas as espécies do gênero Homo, a estrutura do ouvido
interno é indistinguível da dos humanos modernos. Da mesma
forma, em todas as espécies de Australopithecus, os canais
semicirculares parecem-se com os dos macacos. Significará
isto que os australopitecíneos movimentavam-se como os
macacos o fazem — isto é, que seu modo de locomoção era
quadrúpede? A estrutura da pélvis e dos membros inferiores
falam contra esta conclusão. Do mesmo modo o faz a notável
descoberta que minha mãe fez em 1976: um rastro de pegadas
muito humanóides conservadas em um estrato de cinzas
vulcânicas há uns 3,75 milhões de anos. Não obstante, se a
estrutura do ouvido interno é indicadora da postura habitual e
do modo de locomoção, ela sugere que os australopitecíneos
não eram simplesmente como eu e você, como sugeriu e
continua a sugerir Lovejoy.

Ao promover sua interpretação, Lovejoy parece querer tornar


os hominídeos totalmente humanos desde o início, uma ten-
dência entre os antropólogos que discuti anteriormente neste
ca-

45

pítulo. Mas não vejo qualquer problema em imaginar que um


ancestral nosso exibisse um comportamento semelhante aos
dos macacos e que as árvores fossem importantes em suas
vidas. Somos macacos bipédes e não deveria ser surpresa ver
este fato refletido no modo pelo qual nossos ancestrais viviam.

Neste ponto, mudarei de ossos para pedras, o indício mais


tangível do comportamento de nossos ancestrais. Chimpanzés
são usuários eficientes de utensílios, e utilizam pauzinhos para
coletar cupins, folhas como esponjas e pedras para quebrar
castanhas. Mas, de qualquer modo, até agora, nenhum
chimpanzé selvagem foi visto manufaturando um utensílio de
pedra. Os humanos começaram a produzir ferramentas de
corte há uns 2,5 milhões de anos fazendo duas pedras baterem
uma contra a outra, dando início assim a uma trilha de
atividade tecnológica que realça a pré-história humana.

Os utensílios mais antigos são pequenas lascas, obtidas ba-


tendo uma pedra — usualmente um seixo de lava — contra
uma outra. As lascas mediam cerca de 2,2 centímetros de
comprimento e eram surpreendentemente aguçadas. Embora
simples na aparência, elas eram utilizadas em uma grande
variedade de tarefas. Sabemos isto porque Lawrence Keeley,
da Universidade de Illinois, e Nicholas Toth da Universidade de
Indiana, analisaram uma dúzia destas lascas provindas de um
sítio arqueológico de 1,5 milhão de anos de idade situado ao
leste do lago Turkana, procurando por sinais de uso. Eles
descobriram diferentes tipos de desgaste nas lascas — marcas
indicando que algumas haviam sido utilizadas para cortar
carne, algumas para cortar madeira, e outras para cortar
materiais macios originários de vegetais, como a grama.
Quando encontramos lascas de pedra dispersas em um sítio
arqueológico deste tipo, temos que ser inventivos para imaginar
a complexidade da vida levada ali, porque as relíquias são
raras: a carne, a madeira e a grama se foram. Podemos
imaginar um lugar de acampamento simples situado na
margem do rio, onde um grupo familiar humano cortava a carne
no abrigo de uma estrutura feita a partir de árvores novas e
coberta por juncos, mesmo que tudo o que possamos ver hoje
sejam lascas de pedra.

Os primeiros conjuntos de artefatos de pedra encontrados têm


2,5 milhões de anos de idade; eles incluem, além de lascas,
implementos maiores tais como cutelos, raspadores e várias
pedras poliédricas. Na maioria dos casos, estes itens eram
também produzidos pela remoção de diversas lascas de um
seixo de lava. Mary Leakey passou muitos anos na garganta
Olduvai estudando

46

esta tecnologia primitiva — que é conhecida como indústria


olduvaiana, por causa da garganta Olduvai — e ao fazê-lo
estabeleceu o começo da arqueologia africana.

Em conseqüência de seus experimentos com a fabricação de


artefatos de pedra, Nicholas Toth suspeita que os primeiros
fabricantes não tinham formas específicas de artefatos
individuais em mente — um molde mental, se preferirmos —
quando os estavam fabricando. Muito provavelmente, as várias
formas eram determinadas pela forma original da matéria-prima
A indústria olduvaiana — que era a única forma de tecnologia
empregada até cerca de 1,4 milhão de anos atrás — era de
natureza essencialmente oportunística.

Uma questão interessante surge com relação às habilidades


cognitivas implícitas na produção destes artefatos. Estariam
estes fabricantes primitivos de artefatos empregando
habilidades mentais comparáveis às dos macacos, mas de um
modo diferente? Ou isto exigia que tivessem uma inteligência
maior? O cérebro dos fabricantes de artefatos era mais ou
menos 50 por cento maior do que o dos macacos, assim a
última conclusão parece ser intuitivamente óbvia. Não obstante,
Thomas Wynn, arqueólogo da Universidade do Colorado, e
William McGrew, primatólogo da Universidade de Stirling, na
Escócia, não concordam com isto. Eles analisaram certas
habilidades manipulativas exibidas pelos macacos, e num
trabalho publicado em 1989, intitulado “An Ape's View of the
Olduvan”, concluíram: “Todos os conceitos espaciais aplicados
aos artefatos olduvaianos podem ser encontrados nas mentes
dos macacos. De fato, a competência espacial descrita acima é
provavelmente verdadeira para todos os grandes macacos e
não faz dos fabricantes de artefatos olduvaianos especiais.”

Acho esta afirmação surpreendente, isto porque tenho visto as


pessoas tentarem reproduzir artefatos da “idade da pedra”
fazendo duas pedras baterem uma contra a outra, com pouco
sucesso. Não era assim que era feito. Nicholas Toth passou
muitos anos aperfeiçoando técnicas de fabricação de artefatos
de pedra e tem um bom conhecimento da mecânica das lascas
de pedra. Para trabalhar eficientemente, o britador deve
escolher uma pedra que tenha a forma apropriada, que tenha o
canto correto para bater; e o movimento de bater exige grande
prática para obter-se a intensidade apropriada de força no lugar
certo. “Parece claro que os primeiros proto-humanos
fabricantes de artefatos tinham um bom senso intuitivo dos fun-
damentos do trabalho com pedras”, escreveu Toth em um
artigo de 1985. “Não há dúvida de que os primeiros
ferramenteiros possuíam uma capacidade mental superior à
dos macacos”, disse-me ele re-

47

centemente. “A fabricação de artefatos exige uma coordenação


significativa de habilidades cognitivas e motoras.”

Uma experiência em curso no Language Research Center, em


Atlanta, Georgia, está verificando esta questão. Por mais de
uma década, Sue Savage-Rumbaugh, uma psicóloga, vem
trabalhando com chimpanzés pigmeus no desenvolvimento das
habilidades de comunicação. Recentemente, Toth começou a
colaborar com ela, tentando ensinar a um chimpanzé de nome
Kanzi como produzir lascas de pedras. Kanzi indubitavelmente
mostrou um raciocínio inovador na produção de lascas
aguçadas, mas até agora não reproduziu a técnica sistemática
de produção de lascas utilizadas pelos fabricantes primitivos.
Suspeito que isto significa que Wynn e McGrew estão errados
e que os fabricantes mais primitivos utilizavam habilidades
cognitivas superiores àquelas presentes nos macacos.

Dito isto, permanece verdadeiro que os primeiros artefatos, os


da indústria olduvaiana, eram simples e oportunísticos. Há
cerca de 1,4 milhão de anos na África, apareceu um novo tipo
de coleção, que os arqueólogos chamam indústria acheulense,
em razão do sítio arqueológico de Saint Acheul, no norte da
França, onde estes artefatos, em versões posteriores, foram
descobertos pela primeira vez. Pela primeira vez na pré-história
humana, há indícios de que os fabricantes de artefatos tinham
um modelo mental do que desejavam produzir — que eles
estavam impondo intencionalmente uma forma à matéria-prima
que utilizavam. O implemento que sugere isto é o assim
chamado machado manual, um utensílio em forma de gota de
lágrima que exigia uma habilidade notável e paciência para ser
feito (ver figura 2.5). Toth e outros experimentalistas
precisaram de vários meses para adquirir a habilidade de
produzir machados manuais de qualidade igual aos en-
contrados nos registros arqueológicos desta época.

O aparecimento do machado manual nos registros arqueológi-


cos acompanha a emergência do Homo erectus, o suposto
descendente do Homo habilis e ancestral do Homo sapiens.
Como veremos no capítulo seguinte, é razoável deduzir que os
fabricantes do machado manual eram indivíduos da espécie
Homo erectus, dotados de um cérebro significativamente maior
que o do Homo habilis.

Quando nossos ancestrais descobriram o truque de produzir


consistentemente lascas de pedra afiadas, isto constituiu um
grande avanço na pré-história humana. Subitamente, os
humanos tiveram acesso a alimentos que lhes eram
previamente negados. A modesta lasca, como Toth muitas
vezes demonstrou, é um implemen-

48

to altamente eficiente para cortar tudo, exceto as peles mais


duras até expor a carne vermelha contida dentro. Se eram
caçadores ou carniceiros, os humanos que fizeram e utilizaram
estas simples lascas de pedra com isto tiveram acesso a uma
nova fonte de energia — a proteína animal. Assim eles teriam
sido capazes não apenas de estender o alcance de suas
incursões mas também de aumentar as chances de uma
produção bem-sucedida de uma prole. O processo reprodutivo
é um processo dispendioso, e a expansão da dieta com a
inclusão de carne o teria tornado mais seguro.

Uma pergunta antiga para os antropólogos tem sido, é claro:


quem fez os artefatos? Quando os artefatos apareceram nos
registros arqueológicos, existiam diversas espécies de
australopitecíneos, e provavelmente diversas espécies de
Homo também. Como podemos decidir quem era o fabricante
de artefatos? Isto é extremamente difícil. Se encontramos
artefatos somente em associa-
49

ção com fósseis do Homo e nunca com fósseis de


australopitecíneos, isto poderia implicar que o Homo era o
único fabricante. Entretanto, o registro pré-histórico não é tão
límpido assim. Randall Susman argumentou, a partir da
anatomia do que ele acredita ser ossos da mão de um A.
robustus oriundos de um sítio na África do Sul, que esta
espécie tinha habilidades manipulativas suficientes para fazer
ferramentas. Mas não há maneira de nos certificarmos se ela
realmente o fazia ou não.

Minha posição é a de que devemos procurar pela explicação


mais simples. Sabemos a partir dos registros pré-históricos que
depois de 1 milhão de anos atrás somente a espécie Homo
existia, e sabemos também que eles faziam ferramentas de
pedras. Até que haja uma boa razão para supor o contrário,
parece ser prudente concluir que apenas o Homo fabricava
ferramentas no começo da sua pré-história. As espécies
australopitecíneas e Homo tiveram claramente adaptações
específicas diferentes, e é provável que o ato de comer carne
pelo Homo era uma parte importante desta diferença. A
fabricação de instrumentos de pedra teria sido uma parte
importante das habilidades de um carnívoro; vegetarianos
poderiam safar-se sem estas ferramentas.

Em seus estudos de artefatos provindos dos sítios arqueoló-


gicos no Quênia e em seus exercícios práticos de fabricação de
artefatos, Toth fez uma importante e fascinante descoberta. Os
primeiros fabricantes eram predominantemente destros, exata-
mente como os humanos modernos o são. Embora os macacos
individualmente sejam destros ou canhotos, não há uma
tendência preferencial em sua população; os humanos
modernos são únicos a este respeito. A descoberta de Toth
nos dá um insight evolutivo importante: há uns 2 milhões de
anos, o cérebro do Homo já estava se tomando
verdadeiramente humano, de um modo que nós mesmos
sabemos o que significa.

50
3 - Um tipo diferente de humano
Pesquisas excitantes e imaginativas só recentemente
realizadas permitiram-nos utilizar os fósseis para obter
discernimento sobre aspectos da biologia de nossos ancestrais
extintos de um modo que ninguém poderia ter previsto há
poucos anos. Por exemplo, agora é possível fazer estimativas
razoáveis de quando indivíduos de uma espécie humana
particular eram desmamados, quando tornavam-se
sexualmente maduros, qual era sua expectativa de vida, e
assim por diante. Armados com meios de descobrir infor-
mações deste tipo, chegamos à conclusão de que o Homo era
um tipo diferente de humano desde o momento em que
apareceu pela primeira vez. A descoberta de uma
descontinuidade biológica entre o Australopithecus e o Homo
alterou fundamentalmente nossa compreensão da pré-história
humana.

Até o surgimento do Homo, todos os macacos bipédes tinham


cérebros pequenos, dentes molares grandes, maxilares pro-
tubérantes e aderiam a uma estratégia de subsistência
semelhante à dos macacos. Eles comiam principalmente
alimentos fornecidos por vegetais, e seu meio social
provavelmente assemelhava-se ao dos babuínos das savanas.
Estas espécies — as australopitecíneas — eram semelhantes
aos humanos apenas no modo de caminhar e nada mais. Em
alguma época anterior aos 2,5 milhões de anos atrás — não
podemos dizer exatamente quando — as primeiras espécies
humanas dotadas de cérebros grandes evoluíram. Os dentes
também mudaram — provavelmente uma mudança produzida
pela passagem de uma dieta constituída exclusivamente de
alimentos fornecidos pelos vegetais para uma dieta que incluía
carne.

Estes dois aspectos do Homo primordial — as alterações no


tamanho do cérebro e na estrutura dos dentes — têm se
mostrado aparentes desde que os primeiros fósseis do Homo
habilis foram descobertos, há três décadas. Talvez porque nós,
humanos modernos, sejamos obcecados pela importância do
poder da mente, os antropólogos focalizaram intensamente sua
atenção no salto em tamanho do cérebro — de uns 450
centímetros cúbicos

51

para mais de 600 centímetros cúbicos — que ocorreu com a


evolução do Homo habilis. Sem dúvida isto foi uma parte
importante da adaptação evolutiva que deu à pré-história
humana um outro rumo. Mas é apenas uma parte. As novas
pesquisas sobre a biologia de nossos ancestrais revela que
muitas outras coisas mudaram também, tornando-os mais
semelhantes aos humanos do que aos macacos.

Um dos aspectos mais significativos do desenvolvimento


humano é que os bebês nascem virtualmente desprotegidos e
passam por uma infância prolongada. Mais ainda, como todos
os pais sabem, as crianças sofrem um surto de crescimento na
adolescência, durante o qual elas adquirem centímetros a uma
taxa alarmante. Os humanos são singulares a esse respeito: a
maioria das espécies de mamíferos, inclusive os macacos,
progride quase que diretamente da infância para a idade
adulta. Um adolescente humano prestes a entrar no seu surto
de crescimento é propenso a aumentar de tamanho em cerca
de 25 por cento; em contraste, a taxa de crescimento constante
nos chimpanzés significa que o adolescente adiciona 14 por
cento a mais na sua estatura na época em que atinge a
maturidade.

Barry Bogin, biólogo da Universidade de Michigan, tem uma


interpretação inovadora da diferença das taxas de crescimento.
A taxa de crescimento corporal nas crianças humanas é baixa
quando comparada com a dos macacos, mesmo que a taxa de
crescimento do cérebro seja similar. Em conseqüência, as
crianças humanas são menores do que seriam se elas
tivessem acompanhado a taxa simiesca de crescimento. O
benefício, sugere Bogin, tem a ver com o alto grau de
conhecimento que os jovens humanos devem adquirir para que
possam absorver as regras da cultura. Crianças em
crescimento aprendem melhor com os adultos se houver uma
diferença significativa de tamanho corporal, porque uma
relação professor-aluno pode ser estabelecida. Se as crianças
tivessem o tamanho que deveriam ter caso acompanhassem a
trajetória de crescimento dos macacos, a rivalidade física e não
uma relação professor-aluno poderia desenvolver-se. Quando
o período de aprendizado termina, o corpo “põe-se em dia” por
meio do surto de crescimento adolescente.

Os humanos tornam-se humanos por meio de um aprendizado


intenso não apenas das habilidades de sobrevivência mas tam-
bém dos hábitos e costumes sociais, parentescos e leis sociais
— isto é, cultura. O meio social no qual as crianças
desprotegidas são cuidadas e as crianças mais velhas
educadas é muito mais ca-

52

racterístico dos humanos do que dos macacos. Pode-se dizer


que a cultura é a adaptação humana, e se torna possível pelo
padrão insólito de infância e maturação.

A fragilidade dos bebês humanos recém-nascidos é, porém,


menos uma adaptação cultural do que uma necessidade
biológica. Os bebês humanos vêm ao mundo muito cedo, uma
conseqüência do nosso cérebro grande e dos
constrangimentos do projeto da pélvis humana. Os biólogos
conseguiram entender, recentemente, que o tamanho do
cérebro influencia mais do que simplesmente a inteligência. Ele
se correlaciona a um grande número de fatores conhecidos
como fatores bionômicos, tais como a idade do desmame, a
idade em que a maturidade sexual é atingida, o período de
gestação e a longevidade. Em espécies com grandes cérebros,
estes fatores tendem a estar presentes por mais tempo: os
bebês são desmamados mais tarde do que os bebês das
espécies com cérebros pequenos, a maturidade sexual é
atingida mais tarde, o período de gestação é maior e os
indivíduos vivem mais. Um cálculo simples com base em
comparações com outros primatas revela que o período de
gestação no Homo sapiens, cuja capacidade cerebral média é
de 1.350 centímetros cúbicos, deveria ser de 21 meses e não
de nove meses como na verdade o é. Os bebês humanos
portanto têm um ano de crescimento para recuperar quando
nascem, daí a sua fragilidade.

Por que isto aconteceu? Por que a natureza expôs os humanos


recém-nascidos aos perigos de vir ao mundo tão cedo? A res-
posta é o cérebro. O cérebro de um macaco recém-nascido,
que tem em média cerca de 200 centímetros cúbicos, tem mais
ou menos a metade do tamanho do cérebro de um adulto. A
duplicação em tamanho exigida ocorre rapidamente e bem
cedo na vida do macaco. Em contraste, os cérebros dos
humanos recém-nascidos são um terço do tamanho do cérebro
de um adulto e triplicam de tamanho em um crescimento rápido
e precoce. Os humanos assemelham-se aos macacos no que
diz respeito ao crescimento precoce de seus cérebros até o
tamanho adulto: assim, se, como os macacos, os humanos
duplicassem o tamanho de seus cérebros, os cérebros dos
humanos recém-nascidos deveriam medir 675 centímetros
cúbicos. Como toda mulher sabe, dar à luz bebês que têm
tamanho normal de cérebro já é suficientemente difícil e,
algumas vezes, um risco de vida. De fato, a abertura pélvica
aumentou de tamanho no decorrer da evolução humana para
adaptar-se ao tamanho crescente do cérebro. Mas havia limites
sobre até onde esta expansão poderia ir — limites impostos
pela enge-

53

nharia da locomoção bípede eficiente. Este limite foi atingido


quando o tamanho do cérebro do recém-nascido atingiu seu
valor presente — 385 centímetros cúbicos.

De um ponto de vista evolutivo, podemos dizer que, em prin-


cípio, os humanos afastaram-se de um padrão de crescimento
semelhante ao dos macacos quando o tamanho do cérebro
adulto excedeu os 770 centímetros cúbicos. Além deste valor, o
tamanho do cérebro deveria mais do que duplicar-se a partir do
nascimento, dando início assim ao padrão de fragilidade para
os bebês que vêm ao mundo “muito cedo”. O Homo habilis,
com um tamanho de cérebro adulto de cerca de 800
centímetros cúbicos, parece estar no limiar entre o padrão de
crescimento do macaco e o do ser humano, enquanto o
cérebro do Homo erectus primitivo, de uns 900 centímetros
cúbicos, empurra a espécie de modo significativo na direção de
um padrão humano (ver figura 3.1). Este, lembre-se, é um
argumento do tipo “em princípio”; ele pressupõe que a via de
nascimento do Homo erectus tinha a mesma largura que a dos
humanos modernos. De fato, fomos capazes de obter uma
idéia mais clara de quão humano o Homo erectus tinha se tor-
nado a este respeito a partir de medidas da pélvis do garoto de
Turkana, o esqueleto do Homo erectus primitivo que meus
colegas e eu desenterramos em meados da década de 1980
não muito longe da margem oeste do lago Turkana.

Nos humanos, a abertura pélvica é similar em tamanho nos


machos e fêmeas. Assim, ao medir o tamanho da abertura
pélvica do garoto de Turkana, obtivemos uma boa estimativa
da via de nascimento da mãe. Meu amigo e colega Alan
Walker, um anatomista da Universidade Johns Hopkins,
reconstruiu a pélvis do menino a partir de ossos que estavam
separados quando os desenterramos (ver figura 3.2). Alan
mediu a abertura pélvica, descobriu que ela era menor do que
a do Homo sapiens, e calculou que os recém-nascidos do
Homo erectus tinham cérebros de cerca de 275 centímetros
cúbicos, que é consideravelmente menor do que o tamanho do
cérebro dos recém-nascidos humanos modernos.

As implicações são claras. Como os humanos modernos, os


bebês do Homo erectus nasciam com cérebros que tinham um
terço do tamanho de seus cérebros adultos e, como os
humanos modernos o fazem, devem ter vindo ao mundo em
estado de fragilidade. Podemos inferir que os intensos
cuidados por parte dos pais, que é parte do meio social dos
humanos modernos, já tivesse começado a desenvolver-se no
Homo erectus primitivo há 1,7 milhão de anos.

54
Não podemos fazer cálculos semelhantes para o Homo habilis,
o ancestral imediato do erectus, porque temos que descobrir
ainda uma pélvis de habilis. Mas se os bebês habilis nasciam
com o tamanho do cérebro dos neonatos erectus, então eles
também precisariam nascer “muito cedo”, mas não tanto; eles
também deveriam ser frágeis ao nascer, mas não por tanto
tempo quanto os erectus; e eles também teriam exigido um
meio social semelhante ao dos humanos, mas em grau menor.
Portanto, parece que o Homo moveu-se em direção aos
humanos desde o início. Da mesma forma, as espécies
australopitecíneas tinham cérebros do ta-

55

manho do cérebro dos macacos, e deste modo teriam seguido


um padrão de desenvolvimento inicial semelhante ao destes.

Um período extenso de fragilidade na infância — um período


durante o qual eram exigidos intensos cuidados por parte dos
pais — já era uma característica do Homo primitivo: isto
conseguimos estabelecer. Mas o que dizer do restante da
infância? Quando esta tornou-se prolongada, permitindo que
habilidades culturais e práticas pudessem ser absorvidas,
seguida por um surto de crescimento adolescente?

O prolongamento da infância nos humanos modernos é obtido


por meio de uma taxa de crescimento físico mais baixa se
comparada com a dos macacos. Como conseqüência, os
humanos passam pelas várias instâncias de crescimento, tais
como a erupção dos dentes, depois que os macacos o fazem.
Por exemplo, os primeiros molares permanentes aparecem nas
crianças humanas mais ou menos aos seis anos de idade,
comparado com os três anos dos macacos; a segunda dentição
molar surge entre as idades de 11 e 12 anos nos humanos e
na idade de sete anos nos macacos; a terceira erupção de
molares aparece entre os 18 e os vinte anos nos humanos e
aos nove nos macacos. Para responder à questão sobre
quando a infância tornou-se prolongada na pré-história
humana, precisamos de uma maneira de olhar os fósseis de
maxilares e determinar quando os molares irromperam.

Por exemplo, o garoto de Turkana morreu quando sua segunda


dentição molar estava começando a irromper. Se o Homo
erectus seguiu o padrão mais lento de desenvolvimento infantil
humano, isto significaria que o garoto morreu quando estava
com mais ou menos 11 anos. Se, porém, a espécie tivesse
uma trajetória de crescimento semelhante à dos macacos, ele
teria sete anos. No início da década de 1970, Alan Mann, da
Universidade da Pensilvânia, realizou uma extensa análise de
fósseis de dentes humanos e concluiu que todas as espécies
de Australopithecus e Homo seguiram o padrão humano de
crescimento lento na infância Seu trabalho tornou-se
extremamente influente, e deu um grande impulso ao conheci-
mento convencional de que todas as espécies de hominídeos,
inclusive as australopitecíneas, seguiram o padrão humano
moderno. De fato, quando encontramos o maxilar do garoto de
Turkana e vi a segunda erupção de dentes molares, presumi
que ele teria 11 anos quando morreu, porque esta teria sido
sua idade caso fosse como o Homo sapiens. Da mesma forma,
presumia-se que a criança Taung, um membro da espécie do
Australopithecus africanus, teria morrido aos 11 anos, pois sua
primeira dentição molar estava surgindo.

56
(A página 57 do livro apresenta a Figura 3.2, colada nas
páginas finais desse e-livro)

57

No final da década de 1980, estas suposições foram destruídas


pelo trabalho de vários pesquisadores. Holly Smith,
antropóloga da Universidade de Michigan, desenvolveu um
modo de deduzir os padrões de história de vida nos fósseis
humanos ao correlacionar o tamanho do cérebro com a idade
da erupção dos primeiros dentes molares. Como ponto de
partida, Smith reuniu dados sobre humanos e macacos; depois
ela observou uma grande quantidade de fósseis humanos para
determinar como estes se comparavam com os dados. Três
padrões bionômicos emergiram: um padrão humano moderno,
no qual a primeira erupção de dentes molares ocorre aos seis
anos de idade e a expectativa de vida é de 66 anos; um padrão
simiesco, com a primeira erupção molar surgindo um pouco
depois dos três anos e uma expectativa de vida de cerca de
quarenta anos; e um padrão intermediário. Os Homo erectus
posteriores — isto é, indivíduos que viveram depois de mais ou
menos 800 mil anos atrás — encaixavam-se no padrão
humano, como o fizeram os homens de Neanderthal. Todas as
espécies australopitecíneas, porém, encaixavam-se no padrão
dos macacos. O Homo erectus primordial, como o garoto de
Turkana, encaixava-se no padrão intermediário; a primeira
dentição molar teria irrompido quando ele estava com pouco
mais de quatro anos e meio de idade; não tivesse ele
encontrado uma morte prematura, poderia esperar viver cerca
de 52 anos.

O trabalho de Smith mostrou que o padrão de crescimento dos


australopitecíneos não era como o dos humanos modernos; ao
contrário, era semelhante ao dos macacos. Mais adiante ela
mostrou que o Homo erectus primitivo era intermediário em seu
crescimento entre os humanos modernos e os macacos; agora
chegamos à conclusão de que o garoto de Turkana tinha cerca
de nove anos de idade quando morreu e não 11, como eu
inicialmente havia suposto.

Em razão destas conclusões serem opostas às pressuposições


de uma geração de antropólogos, elas eram muito discutidas.
Havia uma possibilidade, é claro, de que Smith tivesse come-
tido algum tipo de erro. Nestas circunstâncias, trabalho
corroborativo é sempre bem-vindo, e neste caso ele veio
rapidamente. Os anatomistas Christopher Dean e Tim
Bromage, ambos então no University College, em Londres,
descobriram um modo de determinar diretamente a idade dos
dentes. Assim como os anéis do tronco das árvores são
utilizados para calcular quão velha ela é, linhas microscópicas
em um dente indicam a sua idade. Este método de cálculo não
é tão fácil quanto parece — principalmente

58

por causa da incerteza sobre o modo pelo qual as linhas se for-


mam. Não obstante, Dean e Bromage inicialmente aplicaram
sua técnica a um maxilar de australopitecíneo idêntico ao da
criança Taung em termos de desenvolvimento dental. Eles
descobriram que o indivíduo havia morrido um pouco depois de
haver completado três anos de idade, exatamente quando sua
primeira dentição molar estava irrompendo — de acordo com
uma trajetória de crescimento semelhante à dos macacos.

Quando Dean e Bromage examinaram um conjunto de dentes


humanos fossilizados, eles, do mesmo modo que Smith,
descobriram três padrões: humano moderno, macaco e alguma
coisa intermediária. Mais uma vez, os australopitecíneos
encaixavam-se no padrão dos macacos, o Homo erectus mais
recente e os neanderthais seguiam o padrão humano moderno,
e o Homo erectus primitivo, o padrão intermediário. E mais uma
vez os resultados animaram os debates, particularmente sobre
se os australopitecíneos teriam crescido como humanos ou
macacos.

Este debate terminou efetivamente quando o antropólogo


Glenn Conroy e o clínico Michael Vannier, da Universidade
Washington em Saint Louis, trouxeram a alta tecnologia do
mundo médico para dentro do laboratório de antropologia.
Utilizando a tomografia axial computadorizada — a varredura
tridimensional CAT —, eles espiaram o interior do maxilar
petrificado da criança Taung e, essencialmente, confirmaram
as conclusões de Dean e Bromage. A criança Taung havia
morrido quando estava perto dos três anos de idade, um jovem
seguindo uma trajetória de crescimento semelhante à dos
macacos.

A habilidade de inferir a biologia a partir dos fósseis por meio


de pesquisas sobre os fatores bionômicos e sobre o desen-
volvimento dental é extremamente importante para a antropolo-
gia, pois permite que reconstituamos, metaforicamente, carne e
músculos junto com os ossos. Por exemplo, podemos dizer que
o garoto de Türkana teria sido desmamado um pouco antes de
seu quarto aniversário e, tivesse ele sobrevivido, ter-se-ia
tornado sexualmente maduro mais ou menos aos 14 anos. Sua
mãe provavelmente teve seu primeiro bebê quando tinha 13
anos, após uma gestação de nove meses; e daí em diante teria
engravidado a cada três ou quatro anos. Estes padrões nos
dizem que, na época do Homo erectus primitivo, os ancestrais
humanos já se haviam movimentado em direção à biologia
humana moderna e se afastado da biologia dos macacos,
enquanto os australopitecíneos permaneceram no seu padrão
simiesco.

59

A mudança evolutiva do Homo erectus primitivo em direção aos


padrões humanos modernos de crescimento e
desenvolvimento ocorreu em um contexto social. Todos os
primatas são sociais, mas os humanos modernos
desenvolveram a sociabilidade até o seu grau mais alto. A
mudança biológica que inferimos a partir dos indícios dentários
encontrados no Homo primitivo nos dizem que a interação
social já havia começado a intensificar-se, criando um ambiente
que incentivava a cultura. Parece que a organização social
inteira também foi significativamente modificada. Como
podemos sabê-lo? Isto é evidente a partir de uma comparação
do tamanho do corpo dos machos e fêmeas, e do que sabemos
destas diferenças nas espécies primatas modernas, tais como
os babuínos e os chimpanzés.

Entre os babuínos das savanas, como observado anterior-


mente, os machos são duas vezes maiores em tamanho do
que as fêmeas. Os primatologistas sabem agora que esta
diferença ocorre quando há uma forte competição entre os
machos maduros por oportunidades de acasalamento. Como
na maioria das espécies de primatas, os babuínos machos,
quando atingem a maturidade, abandonam o grupo em que
nasceram. Eles juntam-se a um outro grupo, muitas vezes um
nas proximidades, e daí em diante estão em competição com
os outros machos já estabelecidos no grupo. Em razão deste
padrão de migração, os machos da maioria dos grupos
usualmente não se relacionam entre si. Portanto, eles não têm
um motivo darwiniano (isto é, genético) para cooperar uns com
os outros.

Entretanto, nos chimpanzés, por razões que ainda não são


completamente compreendidas, os machos permanecem em
seu grupo natal e as fêmeas transferem-se de grupo. Como
conseqüência, os machos em um grupo de chimpanzés têm
uma razão darwiniana para cooperar uns com os outros na
aquisição de fêmeas, pois como irmãos eles têm a metade de
seus genes em comum. Eles cooperam na defesa contra outros
grupos de chimpanzés, e em incursões ocasionais à caça,
quando usualmente tentam encurralar um infeliz macaco em
uma árvore. Esta relativa falta de competição e cooperação
reforçada reflete-se no tamanho dos machos quando os
comparamos com as fêmeas: eles são uns meros 15 a 20 por
cento maiores.

Com relação ao tamanho, os machos australopitecíneos se-


guem o padrão dos babuínos. É razoável supor, portanto, que
a vida social das espécies australopitecíneas era similar à que
vemos nos babuínos modernos. Quando somos capazes de
fazer

60

uma comparação entre o tamanho do corpo de um macho e o


de uma fêmea no Homo primitivo, fica imediatamente óbvio que
uma mudança significativa ocorreu: os machos não são mais
do que 20 por cento maiores do que as fêmeas, exatamente
como vemos nos chimpanzés. Como argumentaram os
antropólogos Robert Foley e Phyllis Lee, da Universidade de
Cambridge, esta mudança na diferença de tamanho corporal
na época das origens do gênero Homo certamente representa
também uma mudança na organização social. Muito
provavelmente, os machos Homo primitivos permaneciam nos
seus grupos natais com seus irmãos e meio-irmãos, enquanto
as fêmeas transferiam-se para outros grupos. O parentesco,
como já observamos, reforça a cooperação entre os machos.
Não podemos ter certeza sobre o que ocasionou esta mudança
na organização social: a cooperação reforçada entre os ma-
chos deve ter sido poderosamente benéfica por alguma razão.
Alguns antropólogos argumentam que a defesa contra grupos
vizinhos de Homo tornou-se extremamente importante. Tão
provável, ou talvez até mais, é uma mudança centrada em
necessidades ecológicas. Diversos tipos de indícios apontam
para uma mudança na dieta do Homo — uma mudança na qual
a carne tornou-se uma fonte importante de energia e proteínas.
A mudança na estrutura dos dentes do Homo primitivo indica
que este comia carne, assim como são indícios também a
elaboração de uma tecnologia com base em implementos de
pedra. Mais ainda, o aumento do tamanho do cérebro, parte do
pacote evolutivo do Homo, pode ter mesmo exigido que a
espécie complementasse a sua dieta com uma fonte rica em
energia

Como todo biólogo sabe, os cérebros são, do ponto de vista


metabólico, órgãos dispendiosos. Nos humanos modernos, por
exemplo, o cérebro constitui uns meros 2 por cento do peso
total do corpo, ainda assim consome 20 por cento do gasto de
energia. De todos os mamíferos, os primatas são o grupo que
tem os cérebros maiores, e os humanos estenderam
enormemente esta propriedade: o cérebro humano é três vezes
maior em tamanho do que o cérebro de um macaco que tem
um tamanho corporal equivalente. O antropólogo Robert Martin,
do Instituto de Antropologia de Zurique, chamou a atenção para
o fato de que este aumento no tamanho do cérebro poderia ter
ocorrido apenas com um suprimento de energia reforçado: a
dieta do Homo primitivo, observa ele, deve ter sido não apenas
segura mas também rica do ponto de vista nutricional. A carne
representa uma fonte concen-

61

trada de calorias, proteínas e gordura. Somente pela adição de


uma proporção significativa de carne à sua dieta poderia o
Homo primitivo ter “custeado” a construção de um cérebro
maior em tamanho do que o dos australopitecíneos.

Por todas estas razões, penso que a adaptação mais impor-


tante no pacote evolutivo do Homo primitivo tenha sido uma in-
gestão significativa de carne. Se o Homo primitivo caçava
presas vivas ou simplesmente aproveitava-se das carcaças, ou
ambos, é uma questão muito controversa na antropologia,
como veremos no próximo capítulo. Mas não tenho dúvida de
que a carne desempenhava um papel importante na vida diária
de nossos ancestrais. Mais ainda, a nova estratégia de
subsistência de obtenção, não apenas de alimentos de origem
vegetal mas também de carne vermelha, provavelmente exigiu
uma organização social e cooperação significativas.

Todo biólogo sabe que, quando ocorre uma mudança funda-


mental no padrão de subsistência de uma espécie, outras
mudanças usualmente se seguem. Muitas vezes tais mudanças
secundárias dizem respeito à anatomia da espécie, na medida
em que esta se adapta à nova dieta. Vimos que a estrutura dos
dentes e do maxilar do Homo primitivo é diferente da estrutura
dos australopitecíneos, presumivelmente como uma adaptação
a uma dieta que incluía carne.

Muito recentemente, os antropólogos passaram a acreditar


que, além das diferenças dentárias, o Homo primitivo diferia
dos australopitecíneos por ser uma criatura fisicamente muito
mais ativa. Duas Unhas de pesquisas independentes
convergiram para a mesma conclusão: a de que o Homo
primitivo era um corredor eficiente, a primeira espécie humana
a ser assim.

Poucos anos atrás, o antropólogo Peter Schmid, um dos co-


legas de Robert Martin em Zurique, teve a oportunidade de
estudar o famoso esqueleto de Lucy. Utilizando moldes de fibra
de vidro dos ossos fossilizados, Schmid começou a montar o
corpo de Lucy, com a expectativa total de que este seria
essencialmente humano na forma. Schmid ficou surpreendido
com o que viu: a caixa torácica de Lucy revelou-se cônica na
forma, como a de um macaco, e não em forma de um barril,
como seria de se esperar nos humanos. Os ombros, o tronco e
a cintura de Lucy também revelaram ter fortes aspectos
semelhantes aos dos macacos.

Em uma importante conferência internacional em Paris, em


1969, Schmid descreveu as implicações do que havia
encontrado e elas são altamente significativas. O
Australopithecus afarensis,

62

disse ele, “não teria sido capaz de elevar o seu tórax do modo
necessário ao tipo de inalação profunda que fazemos ao correr.
O abdome era pronunciado, e ele não tinha cintura, de maneira
que isto teria restringido a flexibilidade que é essencial ao
modo de correr humano”. O Homo era um corredor, o
Australopithecus não.
A segunda Unha de indício que se relaciona com esta questão
da agilidade originou-se do trabalho de Leslie Aiello sobre o
peso corporal e a estatura. Ela obteve medidas destas
características nos humanos e macacos modernos e as
comparou com dados similares obtidos de fósseis humanos. Os
macacos de hoje são fortemente constituídos para a sua
estatura, sendo duas vezes mais corpulentos do que um
humano da mesma altura. Os dados oriundos dos fósseis
também encaixaram-se em um padrão nítido — um que agora
estava se tornando familiar. Os australopitecíneos eram
semelhantes aos macacos em sua constituição corporal,
enquanto todas as espécies de Homo eram semelhantes aos
humanos. Ambos, as descobertas de Aiello e o trabalho de
Schmid, são coerentes com a descoberta de Fred Spoor da
diferença na estrutura anatômica do ouvido interno nos
australopitecíneos e no Homo: um compromisso maior com o
bipedismo acompanha a nova estrutura corporal.

Sugeri no capítulo anterior que outras mudanças importantes


além da relativa ao tamanho do cérebro ocorreram com a evo-
lução do gênero Homo. Podemos ver agora qual foi uma delas:
os australopitecíneos eram bipédes, mas eram limitados em
sua agilidade; as espécies de Homo eram de atletas.

Argumentei anteriormente que o bipedismo evoluiu inicialmente


como uma maneira mais eficiente de locomoção em um meio
físico alterado, permitindo ao macaco bípede sobreviver em um
habitat impróprio para os macacos convencionais. Os macacos
bipédes eram capazes de cobrir um território maior quando
faziam incursões em busca de fontes de alimentos amplamente
espalhadas pela savana aberta. Com a evolução do Homo,
surgiu uma nova forma de locomoção, ainda baseada no
bipedismo mas com maior agilidade e atividade. A estatura
flexível dos humanos modernos permite manter uma
locomoção de passadas largas e promove uma perda efetiva
de calor, que é importante para um animal que está em
atividade em ambientes quentes e abertos, como era o caso do
Homo primitivo. A passada bípede eficiente representou uma
mudança fundamental na adaptação hominídea. Como
veremos no próximo capítulo, esta mudança certamente
envolveu um certo grau de atividade de caça.

63

A capacidade que um animal ativo tem de dissipar calor é es-


pecialmente importante para a fisiologia do cérebro, um ponto
enfatizado pela antropóloga Dean Falk, da State University of
New York, em Albany. Em sua pesquisa anatômica na década
de 1980, ela demonstrou que a estrutura dos vasos que fazem
a drenagem de sangue no cérebro do Homo é conducente com
um resfriamento eficiente, enquanto que nos australopitecíneos
esta estrutura é muito menos assim. A chamada hipótese do
radiador de Falk é um argumento a mais em apoio à magnitude
da adaptação do Homo.

Que a adaptação do Homo foi bem-sucedida mal precisa ser


dito: estamos aqui hoje como indício. Mas por que não temos
outros macacos bipédes como companhia?

Há 2 milhões de anos, o Homo coexistia com diversas espécies


de Australopithecus na África Oriental e do Sul. Mas 1 milhão
de anos mais tarde, o Homo estava em isolamento esplêndido,
tendo as várias espécies australopitecíneas se tornado
extintas. (Somos inclinados a pensar na extinção como a marca
do fracasso — como algo que acontece a uma espécie que de
algum modo não correspondeu aos desafios que a natureza lhe
apresentou. Na verdade, a extinção parece ser o destino final
de todas as espécies: mais de 99,9 por cento de todas as
espécies que já existiram estão agora extintas —
provavelmente tanto em conseqüência de má sorte quanto de
genes ruins.) O que sabemos do destino dos
australopitecíneos?

Muitas vezes me perguntam se acho que o Homo, tendo se


tornado carnívoro, não poderia ter incluído seus primos
australopitecíneos na sua dieta, empurrando-os deste modo
para a extinção. Não tenho dúvidas de que de tempos em
tempos o Homo primitivo matava australopitecíneos
vulneráveis, do mesmo modo como matava um antílope e
outras presas animais quando podia Mas a causa da extinção
dos australopitecíneos é provável que tenha sido mais
prosaica.

Sabemos que o Homo erectus foi uma espécie extremamente


bem-sucedida, já que foram os primeiros humanos a expandir
seus domínios para além da África. Portanto, é provável que o
Homo primitivo tenha crescido rapidamente em número,
tornando-se assim um competidor importante por um recurso
essencial à sobrevivência dos australopitecíneos: a comida.
Mais ainda, entre 1 milhão e 2 milhões de anos atrás macacos
que viviam no solo — os babuínos — estavam se tornando
também bastante

64

bem-sucedidos e crescendo em número, e também teriam


competido com os australopitecíneos pela comida. Os
australopitecíneos podem muito bem ter sucumbido em razão
de uma dupla pressão competitiva — do Homo de um lado e
dos babuínos do outro.

65
4 - Homem, o nobre caçador?
Pelo menos algumas linhas de indícios apoiam a noção de que
a compleição física do Homo primitivo refletia uma procura
ativa de carne — isto é, como um caçador em busca de sua
presa. É salutar refletir sobre o fato de que, como meio de
subsistência, a caça e a coleta persistiram até recentemente na
pré-história humana; somente com a adoção da agricultura há
uns meros 10 mil anos nossos ancestrais realmente
começaram a abandonar uma existência simples à procura de
alimentos. Uma questão importante para os antropólogos tem
sido esta: quando este modo muito humano de subsistência
apareceu? Estava ele presente desde os começos do gênero
Homo, como sugeri? Ou foi uma adaptação recente, tendo
emergido apenas com a evolução dos humanos modernos, há
talvez 100 mil anos? Para responder a estas questões,
devemos nos debruçar sobre as pistas que os registros
arqueológicos e fósseis fornecem, procurando sinais do modo
de subsistência com base na caça e na coleta. Veremos neste
capítulo que nos anos recentes as teorias mudaram, refletindo
o modo pelo qual vemos a nós e a nossos ancestrais. Antes de
vermos como os indícios da pré-história têm sido esmiuçados,
seria útil ter em mente uma visão do modo de vida
caracterizado pela busca de alimentos, o qual podemos
aprender com os caçadores-coletores modernos.

A combinação entre a caça às fontes de carne e a coleta de


alimentos oriundos de vegetais como estratégia sistemática de
subsistência é singularmente humana. É também espetacular-
mente bem-sucedida, tendo permitido à humanidade florescer
em praticamente todos os cantos do mundo, com exceção da
Antártica. Ambientes muitíssimo diferentes foram ocupados,
desde as florestas tropicais vaporosas até os desertos, desde
faixas litorâneas fecundas até platôs virtualmente estéreis. As
dietas variam bastante de ambiente para ambiente. Por
exemplo, os nativos americanos do noroeste pescam salmões
em quantidades prodigiosas, enquanto os !Kung San do
Kalahari dependem das castanhas mongongo como fonte da
maior parte de sua proteína.

66

Ainda assim, a despeito de diferenças na dieta e do meio eco-


lógico, há muitas coisas em comum no modo de vida dos
caçadores-coletores. As pessoas vivem em bandos pequenos e
móveis de cerca de 25 indivíduos — um cerne formado pelos
machos e fêmeas adultos e sua prole. Estes bandos interagem
uns com os outros formando uma rede social e política
interligada pelos costumes e pela língua. Atingindo tipicamente
cerca de quinhentos indivíduos, esta rede formada pelos
bandos é conhecida como uma tribo dialetal. Os bandos
ocupam acampamentos temporários a partir de onde saem em
busca da sua alimentação diária.

Na maioria das sociedades de caçadores-coletores que os


antropólogos estudaram, há uma clara divisão de trabalho, com
os machos responsáveis pela caça e as fêmeas pela coleta de
alimentos de origem vegetal. O acampamento é um lugar de
intensa interação social, e o lugar onde a comida é partilhada;
quando há carne vermelha disponível, esta partilha muitas
vezes envolve um ritual elaborado, governado por regras
sociais estritas.

Para os ocidentais, manter uma existência a partir dos recursos


naturais do meio ambiente utilizando a mais simples das tec-
nologias parece ser um desafio amedrontador. Na realidade, é
um modo extremamente eficiente de subsistência, na medida
em que os que saem à procura de alimentos podem muitas
vezes coletar comida suficiente para o dia em três ou quatro
horas. Um importante projeto de pesquisas das décadas de
1960 e 1970 mostrou que isto é verdadeiro no caso dos !Kung
San, cuja terra natal no deserto de Kalahari, em Botswana, é
isolada ao extremo. Os caçadores-coletores estão sintonizados
com o seu meio ambiente físico de uma maneira difícil para a
mente ocidental urbana entender. Em conseqüência, eles
sabem como explorar o que para os olhos modernos parecem
ser recursos escassos. A força de seu modo de vida está nesta
exploração das fontes animal e vegetal de recursos dentro de
um sistema que promove a interdependência e a cooperação.

A noção de que a caça foi importante na evolução humana tem


uma longa história no pensamento antropológico, remontando
a Darwin. Em seu livro de 1871, A descendência do homem,
ele sugeriu que as armas de pedra eram utilizadas não apenas
como defesa contra os predadores mas também para abater a
presa. A adoção da caça com armas artificiais foi parte do que
fez dos humanos humanos, argumentou ele. A imagem de
Darwin de nossos ancestrais foi nitidamente influenciada pela
sua experiência no decorrer de sua viagem de cinco anos no
Beagle. Aqui está

67
como ele descreveu seu encontro com o povo da Terra do
Fogo, no extremo sul da América do Sul:

Dificilmente pode haver qualquer dúvida de que descende-


mos de bárbaros. O espanto que senti ao avistar um grupo de
fueguinos na costa selvagem e irregular nunca será
esquecido por mim, pois esta reflexão imediatamente brotou
em minha mente — assim eram os nossos ancestrais. Estes
homens estavam absolutamente nus e besuntados de tinta,
seus longos cabelos eram emaranhados, suas bocas
espumavam de excitação, e suas expressões eram
selvagens, assustadas e desconfiadas. Eles mal possuíam
quaisquer artes, e como os animais selvagens viviam do que
podiam pegar.

A convicção de que a caça foi fundamental para a nossa evo-


lução, e a combinação do modo de vida de nossos ancestrais
com o dos povos tecnologicamente primitivos sobreviventes
deixaram uma impressão duradoura no pensamento
antropológico. Em um ensaio reflexivo sobre esta questão, o
biólogo Timothy Perper e o antropólogo Carmel Schrire, ambos
da Universidade Rutgers, colocaram-na sucintamente: “O
modelo da caça (...) assume que a caça e o hábito de comer
carne vermelha deram o sinal de partida para a evolução
humana e levaram o homem à criatura que hoje ele é.” De
acordo com este modelo, esta atividade moldou nossos
ancestrais de três modos, explicam Perper e Schrire, “afetando
o comportamento psicológico, social e territorial do homem
primitivo”. Em um trabalho clássico sobre o assunto publicado
em 1963, o antropólogo sul-africano John Robinson expressou
a medida da importância que a ciência atribuiu à caça na pré-
história humana:

A incorporação do hábito de comer carne à dieta parece-me


ter sido uma mudança evolutiva de enorme importância que
abriu um novo e vasto campo evolutivo. A mudança, em
minha opinião, equipara-se em importância evolutiva à origem
dos mamíferos — talvez mais apropriadamente à origem dos
tetrápodos.* Junto com a expansão relativamente grande da
inteligência e da cultura, ela introduziu uma nova dimensão e
um novo mecanismo evolutivo no cenário da evolução, que
quando muito são apenas vislumbrados em outros animais.

Nossa suposta herança de caçadores assumiu também as-

68

*
Os vertebrados dividem-se em dois grandes grupos: os peixes e os tetrápodos.
Estes últimos incluem os anfíbios, répteis, aves e mamíferos. Os primeiros tetrápo-
dos eram anfíbios derivados diretamente de certos peixes. (N. do T.)
pectos místicos, tornando-se equivalente ao pecado original de
Adão e Eva, que tiveram que abandonar o Paraíso depois de
ter comido o fruto proibido. “No modelo da caça, o homem
comeu carne para sobreviver na savana hostil e, em virtude
desta estratégia, tornou-se o animal cuja história subseqüente
está gravada em um meio de violência, conquista e
derramamento de sangue”, observaram Perper e Schrire. Este
foi o tema considerado por Raymond Dart em alguns de seus
escritos da década de 1950 e, mais popularmente, por Robert
Ardrey. “Nem na inocência e nem na Ásia, nasceu a raça
humana”, é a frase inicial do livro de Ardrey, African Genesis,
publicado em 1971. A imagem provou ser poderosa nas
mentes do público e dos profissionais. E, como veremos,
imagens têm se mostrado importantes para o modo pelo qual o
registro arqueológico tem sido interpretado a esse respeito.

Uma conferência na Universidade de Chicago, em 1966, sobre


o tema “Homem, o Caçador” tornou-se um marco no desen-
volvimento do pensamento antropológico sobre o papel da
caça na nossa evolução. A conferência foi importante por
diversas razões, em particular por seu reconhecimento de que
a coleta de alimentos de origem vegetal fornecia o suprimento
principal de calorias para a maioria das sociedades de
caçadores-coletores. E, exatamente como Darwin fizera há
quase um século, a conferência equiparou o que sabemos do
modo de vida dos caçadores-coletores modernos aos padrões
de comportamento de nossos ancestrais primitivos.
Conseqüentemente, indícios aparentes do hábito de comer
carne encontrados no registro pré-histórico — na forma de
acúmulos de artefatos de pedra e ossos de animais —
passaram a ter uma implicação clara, como meu amigo e
colega Glynn Isaac, arqueólogo da Universidade Harvard,
observou: “Tendo, por assim dizer, seguido uma trilha
aparentemente ininterrupta de detritos de pedras e ossos que
remonta ao Pleistoceno, parece natural (...) tratar estes
acúmulos de restos de artefatos e fauna como 'acampamentos-
base fossilizados'.” Em outras palavras, nossos ancestrais
passaram a ser considerados como tendo vivido como os
caçadores-coletores o fazem, embora de uma forma mais
primitiva.

Isaac promoveu um avanço significativo no pensamento an-


tropológico com sua hipótese do partilhamento de alimentos,
que ele publicou em um importante artigo na Scientific
American em 1978. Nele, Isaac mudou a ênfase na caça per se
como a força que moldou o comportamento humano para o
impacto da aquisição e partilha colaborativa de alimentos. “A
adoção da partilha de ali-

69

mentos teria favorecido o desenvolvimento da linguagem, a


reciprocidade social e o intelecto”, disse ele em um encontro
em 1982, que marcou o centenário da morte de Darwin.

Cinco padrões de comportamento separam os humanos de


seus parentes macacos, escreveu ele em seu trabalho de
1978: (1) um modo de locomoção bípede, (2) uma linguagem
falada, (3) partilha regular e sistemática de alimentos em um
contexto social, (4) o viver em acampamentos-base, (5) a caça
às grandes presas. Isto descreve o comportamento humano, é
claro. Mas, sugeriu Isaac, há cerca de 2 milhões de anos
“várias mudanças fundamentais haviam começado a acontecer
nos arranjos social e ecológico hominídeos”. Eles já eram
caçadores-coletores embrionários, vivendo em pequenos
bandos móveis e ocupando acampamentos temporários a partir
dos quais os machos saíam para predar e as fêmeas para
coletar aumentos vegetais. O acampamento fornecia o foco
social no qual o alimento era dividido. “Embora a carne fosse
um componente importante da dieta, ela poderia ter sido obtida
pela caça ou das carcaças de animais já mortos”, Isaac disse-
me em 1984, um ano antes de sua morte tragicamente
prematura. “Você seria duramente pressionado a dizer qual,
dado o tipo de indício que obtemos da maioria dos sítios
arqueológicos.”

O ponto de vista de Isaac influenciou fortemente o modo pelo


qual o registro arqueológico foi interpretado. Sempre que
artefatos de pedra eram descobertos em associação com
ossos fossilizados de animais, isto era tomado como uma
indicação de um antigo “acampamento-base”, os escassos
detritos de talvez diversos dias de atividade de um bando de
caçadores-coletores. O argumento de Isaac era plausível e, em
meu livro de 1981 The Making of Mankind, escrevi que “a
hipótese da partilha de alimentos é uma forte candidata para
explicar o que colocou os humanos primitivos no caminho que
leva ao homem moderno”. A hipótese parecia consistente com
o modo pelo qual eu via os registros arqueológico e fóssil, e
obedecia a sólidos princípios biológicos. Richard Potts, da
Smithsonian Institution, concordou. Em seu livro de 1988
intitulado Early Hominid Activities at Olduvai, Potts observou
que a hipótese de Isaac “parecia ser uma interpretação muito
atraente”, escrevendo:

A hipótese do acampamento-base e partilha de comida


integra muitos aspectos do comportamento humano e da sua
vida social que são importantes para o antropólogo —
sistemas

70

de reciprocidade, trocas, parentesco, subsistência, divisão de


trabalho e linguagem.

Vendo nos registros, nos ossos e nas pedras o que parecem


ser elementos do modo de vida dos caçadores-coletores, os
arqueólogos inferiram que o resto era conseqüência. Era um
quadro muito completo.

No final da década de 1970 e começos da década de 1980,


porém, este pensamento começou a mudar, graças a Isaac e
ao arqueólogo Lewis Binford, então na Universidade do Novo
México. Ambos deram-se conta de que muito da interpretação
dominante dos registros pré-históricos tinha base em
suposições implícitas. De modo independente, eles começaram
a separar o que poderia ser realmente conhecido a partir dos
registros daquilo que simplesmente era suposto. O processo
começou no nível mais fundamental, questionando o
significado de se encontrar pedras e ossos de animais no
mesmo lugar. Implicaria esta coincidência espacial o
esquartejamento pré-histórico de animais, como havia sido
suposto? E se o esquartejamento pudesse ser provado, isto im-
plicaria que as pessoas que o faziam viviam como os
caçadores-coletores modernos vivem hoje?

Isaac e eu falamos muitas vezes sobre as várias hipóteses de


subsistência, e ele costumava criar cenários em que os ossos e
pedras acabavam no mesmo lugar mas sem ter nada a ver com
o modo de vida dos caçadores-coletores. Por exemplo, um
grupo de humanos primitivos poderia ter passado algum tempo
debaixo de uma árvore simplesmente para aproveitar a sua
sombra, reunindo pedras para outros propósitos que não o
esquartejamento de carcaças — por exemplo, eles poderiam
ter tentado obter lascas para desbastar paus que poderiam ser
utilizados para desenterrar tubérculos. Algum tempo mais
tarde, depois que o grupo tivesse partido, um leopardo poderia
ter subido na árvore, carregando consigo sua presa, como
muitas vezes os leopardos o fazem. Gradualmente, a carcaça
teria apodrecido e os ossos teriam caído ao chão, ficando entre
as pedras deixadas ali pelos fabricantes de artefatos. De que
maneira um arqueólogo escavando este sítio 1,5 milhão de
anos depois poderia distinguir entre este cenário e a
interpretação previamente favorecida do esquartejamento por
um grupo de caçadores e coletores nômades? Meu instinto me
diz que os humanos primitivos de fato dedicaram-se a algum
tipo de caça e coleta, mas eu podia ver a preocupação de
Isaac com uma leitura segura dos indícios.

O ataque de Lewis Binford ao conhecimento convencional

71

foi bem mais áspero do que o de Isaac. Em seu livro de 1981


Bones: Ancient Man and Modem Myth, ele sugeriu que os
arqueólogos que viam os arranjos de instrumentos de pedra e
ossos como restos de acampamentos antigos estavam “criando
'histórias certinhas' sobre o nosso passado hominídeo”. Binford,
que realizou pouco de seu trabalho em sítios arqueológicos
primitivos, deduziu seus pontos de vista inicialmente do estudo
dos ossos de neanderthals, que viveram na Eurásia entre 135
mil e 34 mil anos atrás.

“Fiquei convencido de que a organização do modo de vida dos


caçadores e coletores entre estes ancestrais relativamente
recentes era bem diferente daquela dos Homo sapiens
totalmente modernos”, escreveu ele em um importante artigo
de revisão em 1985. “Se isto é verdade, então os modos de
vida quase 'humanos' apresentados na visão 'consensual' dos
hominídeos muito primitivos apresentam-se como uma
condição extremamente improvável.” Binford sugeriu que a
caça sistemática de qualquer tipo começou a aparecer somente
depois que os humanos modernos evoluíram, época que ele
calcula entre 45 mil e 35 mil anos atrás.

Nenhum dos sítios arqueológicos primitivos poderia ser


considerado sobras da sala de jantar de antigos
acampamentos, argumentou Binford. Ele chegou a esta
conclusão pela análise de dados de outras pessoas sobre
ossos encontrados em outros sítios arqueológicos famosos na
garganta Olduvai. Havia os lugares de abate de predadores
não-humanos, disse ele. Uma vez que os predadores, tais
como o leão e a hiena, tivessem ido embora, os hominídeos
chegavam no lugar para pegar quaisquer restos de carniça que
pudessem obter. “As partes principais, ou em muitos casos as
únicas partes utilizáveis ou comestíveis, consistiam no tutano
dos ossos”, escreveu ele. “Não há indício de apoio à idéia de
que os hominídeos estavam retirando alimentos de pontos de
abastecimento e os transportando para acampamentos-base
para consumo (...) Da mesma forma, o argumento de que o
alimento era dividido é totalmente destituído de fundamento.”
Esta idéia apresenta um quadro muito diferente de nossos
ancestrais de 2 milhões de anos atrás. “Eles não eram
ancestrais românticos”, escreveu Binford, “mas comilões
ecléticos comumente escarafunchando as carcaças de
ungulados mortos em busca de pequenos bocados de
alimento.”

Nesta visão da pré-história humana primitiva, nossos ancestrais


tornam-se muito menos semelhantes aos humanos, não ape-

72

nas no seu modo de subsistência mas também em outros


elementos do comportamento; por exemplo, a linguagem, a
moralidade e a consciência estariam ausentes. Binford conclui:
“Nossa espécie surgiu — não como resultado de processos
graduais e progressivos, mas de modo explosivo e num
período de tempo relativamente curto.” Este era o âmago
filosófico do debate. Se o Homo primitivo exibia aspectos de
um modo de vida semelhante ao dos humanos, então temos de
aceitar a emergência da essência de humanidade como um
processo gradual — um processo que nos leva a um passado
muito distante. Se, entretanto, o comportamento realmente
semelhante ao humano emergiu rápida e recentemente, então
nos encontramos em isolamento esplêndido, desligados do
passado distante e do resto da natureza.

Embora Isaac compartilhasse as preocupações de Binford


sobre os excessos da interpretação passada dos registros pré-
históricos, ele considerou uma abordagem diferente para
retificá-las. Enquanto Binford trabalhou principalmente com
dados de outras pessoas, Isaac decidiu que escavaria um sítio
arqueológico, olhando para os indícios com novos olhos.
Embora a distinção entre caçar e aproveitar-se de restos de
carcaças não fosse crucial para a hipótese de Isaac de partilha
de alimento, ela tornou-se importante no reexame dos registros
arqueológicos. Caçador ou carniceiro? Este era o ponto
principal do debate.

Em princípio, a caça deveria ficar impressa nos registros


arqueológicos de um modo diferente do de aproveitamento de
carcaças. O registro da diferença deveria ser evidente nas
partes do corpo deixadas pelo caçador e pelo carniceiro. Por
exemplo, quando um caçador abate uma presa, ele tem a
opção de levar a carcaça inteira ou partes dela de volta para o
acampamento. Um carniceiro, em contraste, tem ao seu dispor
apenas aquilo que pode encontrar num lugar de abate
abandonado: a escolha das partes do corpo que pode levar
para o acampamento será mais limitada. A variedade de ossos
encontrada em um acampamento de um caçador hominídeo
deveria ser portanto maior do que a encontrada no de um
carniceiro — incluindo, algumas vezes, um esqueleto inteiro.

Entretanto, há muitos fatores que podem estragar este belo


quadro. Como observou Potts: “Se um carniceiro encontra a
carcaça de um animal que acabou de morrer em razão de
causas naturais, então todas as partes do corpo lhe são
disponíveis, e o padrão de ossos que resulta disto parecerá
exatamente com o da caça. E se o carnicei'^ consegue afastar
o predador de sua presa lo-

73

go após este tê-la abatido, novamente o padrão parecerá com


o da caça. O que você deve fazer?” O antropólogo de Chicago,
Richard Klein, que analisou muitos conjuntos de ossos no sul
da África e na Europa, acredita que a tarefa de distinguir entre
os dois modos de subsistência pode ser impossível: “Há tantas
maneiras pelas quais os ossos podem chegar a um lugar, e
tantas coisas podem acontecer com eles, que para os
hominídeos a questão do caçador versus carniceiro pode não
ser jamais resolvida.”

A escavação na qual Isaac embarcou para testar a nova hipó-


tese era conhecida como sítio 50, que é localizado perto da
escarpa Karari, cerca de 25 quilômetros ao leste do lago
Turkana, no norte do Quênia. Durante um período de três anos
que começou em 1977, ele e uma equipe de arqueólogos e
geólogos expuseram a céu aberto uma área de terreno antigo,
a margem arenosa de uma pequena corrente de água.
Cuidadosamente, eles desenterraram 1.405 peças de artefatos
de pedra e 2.100 fragmentos de ossos, alguns grandes, a
maioria pequenos, que tinham sido enterrados cerca de 1,5
milhão de anos atrás, quando uma corrente sazonal provocou
uma enchente no começo de uma estação chuvosa. Hoje, a
região é árida, com arbustos e vegetação rasteira dispersos
entre sulcos e crateras esculpidos por eras de erosão. O obje-
tivo que Isaac e sua equipe delimitaram para si mesmos era
descobrir o que havia ocorrido há 1,5 milhão de anos, quando
artefatos de pedra e muitos ossos de animais vieram repousar
no mesmo lugar.

Em suas críticas anteriores, Binford sugerira que as muitas co-


ocorrências de ossos e pedras eram o resultado da ação da
água. Isto é, uma corrente de águas velozes pode levar
consigo pedaços de ossos e pedras e então acumulá-los em
um ponto de baixa energia, tais como aqueles em que a
corrente alarga-se ou na margem de dentro de uma curva.
Neste caso, o acúmulo de ossos e pedras no mesmo lugar
seria o resultado do acaso e não da atividade hominídea. O
“sítio arqueológico” não seria mais do que uma confusão
hidráulica. Tal explicação parecia improvável no caso do sítio
50, pois a área de terreno antigo localizava-se na margem da
corrente e não dentro dela, e porque as pistas geológicas
indicavam que o sítio havia sido enterrado lentamente. Não
obstante, uma associação direta entre ossos e pedras tinha
que ser demonstrada, não suposta. Esta demonstração
apareceu de um modo absolutamente inesperado e constituiu-
se em uma das descobertas marcantes da arqueologia nos
últimos tempos.
Quando um animal é desmembrado ou um osso é limpo com

74

uma faca, de metal ou pedra, o esquartejador inevitavelmente


corta o osso de vez em quando, deixando longos sulcos ou
marcas de corte. Durante o desmembramento, as marcas de
corte concentram-se em torno das juntas, enquanto que ao
limpar o osso elas são inflingidas também em outras partes.
Quando o arqueólogo da Universidade de Wisconsin, Henry
Bunn, estava examinando alguns fragmentos de ossos
oriundos do sítio 50, ele observou estes sulcos. No
microscópio, eles podiam ser vistos com uma secção
transversal em forma de V. Seria isto uma marca de corte, feita
há 1,5 milhão de anos por um hominídeo? Experiências com
ossos modernos e lascas de pedra confirmaram isso, provando
conclusivamente uma relação causai entre os ossos e as
pedras no sítio: os hominídeos os haviam levado para lá e os
haviam processado para obter comida. Esta descoberta foi a
primeira demonstração direta de uma ligação comportamental
entre ossos e pedras em um sítio arqueológico primitivo. Foi o
ponto final no mistério dos sítios antigos.

Na ciência, muitas vezes acontece que descobertas impor-


tantes são feitas de modo independente, mais ou menos na
mesma época. Assim aconteceu com as marcas de corte.
Trabalhando com ossos oriundos dos sítios arqueológicos em
torno do lago Turkana e da garganta Olduvai, Richard Potts e o
arqueólogo da Universidade Johns Hopkins, Pat Shipman,
também encontraram marcas de corte. Seus métodos de
estudos eram ligeiramente diferentes dos de Bunn, mas a
resposta foi a mesma: há cerca de 2 milhões de anos os
hominídeos estavam utilizando lascas de pedra para
desmembrar carcaças e limpar ossos (ver figura 4.1). Em
retrospecto, é surpreendente que as marcas de corte não
tenham sido descobertas mais cedo, pois os ossos examinados
por Potts e Shipman tinham sido estudados muitas vezes por
muitas pessoas. Um momento de reflexão teria convencido a
mente alerta de que, se a teoria arqueológica predominante
fosse correta, sinais de esquartejamento deveriam estar
presentes em alguns ossos fossilizados. Mas ninguém havia
olhado assiduamente, porque a resposta era suposta.
Entretanto, uma vez questionadas as suposições implícitas da
teoria predominante, a época era certa para procurar e
encontrá-las.
O sítio 50 forneceu mais indícios de hominídeos utilizando
pedra em ossos como parte de suas vidas diárias. Alguns dos
ossos compridos encontrados no sítio estavam despedaçados
em pequenos fragmentos, resultado, como revelou-se, da ação
feita por alguém de colocar o osso sobre uma pedra, como em

75

uma bigorna, e então ter ministrado uma série de golpes ao


longo do mesmo para ter acesso ao tutano no seu interior. Este
cenário foi reconstruído a partir de um quebra-cabeça
paleolítico, em que os fragmentos foram reunidos de modo a
formar o osso completo e feita uma análise do padrão de
fragmentação, que incluía sinais característicos de percussão.
“Descobrir as peças de osso quebradas com um martelo que
se encaixam convida-nos a visualizar os proto-humanos
primitivos no próprio ato de extrair e comer o tutano”,
escreveram Isaac e seus colegas em um trabalho que
descrevia suas descobertas. Das marcas de corte eles
disseram: “Descobrir a extremidade de articulação de um osso
com marcas aparentemente formadas quando uma pedra
afiada foi utilizada para desmembrar uma perna de antílope só
pode conjurar imagens muito específicas de esquartejamento
em andamento.”

Somando-se a estas imagens de atividade hominídea de 1,5


milhão de anos atrás temos uma mensagem das próprias
pedras. Quando um britador obtém uma lasca de um seixo, os
pedaços tendem a cair em uma pequena área em torno dele ou
dela. Isto é exatamente o que a arqueóloga da Universidade de
Wisconsin, Ellen Kroll, encontrou no sítio 50: a britagem de
pedras estava concentrada em uma extremidade do sítio. Da
mesma forma, pedaços de ossos — havia partes de girafa, de
hipopótamo, de um antílope do tamanho de um eland* e de um
animal semelhante a uma zebra, assim como espinhas de
peixes da família dos silúridas — estavam concentrados no
mesmo lugar. “Podemos apenas especular sobre o que fez da
extremidade norte do sítio um lugar favorito para fazer coisas,
mas o padrão observado poderia, por exemplo, implicar a
existência ali de uma árvore capaz de fornecer sombra”,
escreveram Isaac e seus colegas. Um aspecto ainda mais
notável das lascas de pedra era que, como o osso comprido
fragmentado, algumas delas podiam também ser reconstruídas
para formar o original completo, um seixo de lava.

*
Um dos tipos de grandes antílopes do gênero Taurotragus. (N. do T.)
Mencionei no capítulo 2 que Nicholas Toth e Lawrence Keeley
realizaram análises microscópicas de diversas lascas de pedra
e encontraram indicações de esquartejamento, aparamento de
madeira e corte de tecidos vegetais macios. Aquelas lascas
eram do sítio 50, e os resultados da análise enriqueceram a
imagem de uma cena de atividades diversas há 1,5 milhão de
anos. Longe da imagem de confusão hidráulica, a atividade no
sítio 50

76
deve ter envolvido hominídeos que traziam partes de carcaça
até ali, as quais então eram processadas com ferramentas de
pedras feitas no local. Após o turbilhão teórico do final da
década de 1970, a demonstração do transporte deliberado de
ossos e pedras para um lugar central de atividade de
processamento de alimentos foi um passo importante no
realinhamento da teoria arqueológica. Mas este indício implica
que os hominídeos do sítio 50, Homo erectus, eram caçadores
ou carniceiros?

Isaac e seus colegas colocam isto desta forma: “As caracte-


rísticas do arranjo dos ossos convida a considerar seriamente a
busca por carniça e não a caça ativa como o modo
predominante de aquisição de carne vermelha.” Tivéssemos
encontrado no sítio carcaças inteiras, a conclusão sobre a caça
poderia ser obtida. Mas, como indiquei anteriormente, a
interpretação dos conjuntos de ossos é cheia de erros em
potencial. Entretanto, outras Unhas de indício têm sido
aduzidas para implicar a busca de carniça como o modo de
aquisição de carne vermelha pelo Homo primiti-

77

vo. Por exemplo, Shipman examinou a distribuição de marcas


de corte em ossos antigos e fez duas observações. Primeiro,
cerca da metade deles somente eram indicativos de
desmembramento; segundo, muitos foram feitos em ossos que
tinham pouca carne. Mais ainda, uma proporção grande de
marcas de corte sobrepunha-se às marcas deixadas por dentes
de carnívoros, implicando que os carnívoros chegaram aos
ossos antes que os hominideos o fizessem. Isto, concluiu
Shipman, é “indício irresistível de busca por carniça”, uma
imagem de nosso ancestral, observa ela, que é “não familiar e
pouco lisonjeira”. Certamente ela está longe da imagem do
Homem, o Nobre Caçador, da teoria tradicional.

Eu suporia que a busca de carne vermelha pelo Homo primitivo


tivesse envolvido a busca por carniça. Como observou
Shipman, “os carnívoros procuram carniça quando podem e ca-
çam quando devem”. Mas suspeito que a recente revolução
intelectual na arqueologia tenha ido muito longe, como muitas
vezes acontece na ciência. A rejeição da caça no Homo
primitivo tem sido muito freqüente. Acho significativo que a
análise de Shipman da distribuição das marcas de corte mostre
tantas destas em ossos com pouca carne. O que pode ser
obtido aqui? Pele e tendões. Com estes materiais é muito fácil
fazer armadilhas para apanhar presas bastante grandes. Eu
ficaria muito surpreso se o Homo erectus primitivo não se
engajasse nesta forma de caça. A compleição semelhante à
humana que emergiu com a evolução do gênero Homo é
consistente com a adaptação à caça.

Para Isaac o trabalho no sítio 50 foi salutar. Embora este


confirmasse que os hominideos estavam transportando ossos e
pedras para um lugar central, não demonstrava
necessariamente que os hominideos usavam-no como
acampamento-base. “Reconheço agora que a hipótese sobre o
comportamento dos hominideos primitivos que apresentei em
trabalhos anteriores os faz parecer demasiadamente
humanos”, escreveu ele em 1983. Isaac sugeriu portanto
modificar sua hipótese da “partilha de alimentos”,
transformando-a na hipótese do “lugar central da busca por
alimentos”. Suspeito de que ele estava sendo muito cauteloso.

Não posso dizer que os resultados do projeto do sítio 50 con-


firmem a hipótese de que o Homo erectus vivia como os
caçadores-coletores, deslocando-se em intervalos de poucos
dias de um acampamento-base temporário para outro — bases
para as quais eles levavam a comida e onde a dividiam.
Quanto do meio social e econômico da hipótese original de
Isaac pode ter estado presente no sítio 50 permanece obscuro.
Mas em minha opinião há indí-

78

cio suficiente a partir deste trabalho para dispensar a noção de


que o Homo primitivo estava um pouco mais além do grau de
competência social, cognitiva e tecnológica dos chimpanzés.
Não estou sugerindo que estas criaturas eram caçadores-
coletores em miniatura, mas estou certo de que nesta época a
qualidade de humanóide do caçador-coletor primitivo estava
começando a ser estabelecida.

Embora nunca possamos ter certeza de como era a vida diária


nos primeiros tempos do Homo erectus, podemos utilizar o rico
indício arqueológico do sítio 50, e nossa imaginação, para re-
criar tal cenário, há 1,5 milhão de anos:

Uma corrente sazonal segue seu leito gentilmente através da


planície aluvial no lado leste do gigantesco lago. Acácias altas
alinham-se ao longo das margens da corrente sinuosa,
projetando sombras bem-vindas que protegem do sol tropical.
Na maior parte do ano o leito da corrente permanece seco,
mas chuvas recentes nas colinas ao norte estão abrindo seu
caminho em direção ao lago, fazendo a corrente aumentar de
volume lentamente. Por umas poucas semanas, a planície
aluvial tem estado flame)ante por causa das cores, com ervas
florescentes formando manchas amarelas e roxas contra a
terra alaranjada e baixos arbustos de acácia parecendo
nuvens revoltas. A estação chuvosa é iminente.

Aqui, em uma curva da corrente, vemos um pequeno agrupa-


mento humano, cinco fêmeas adultas e um aglomerado de
crianças e jovens. Eles são de estatura atlética e fortes. Estão
conversando alto, alguns deles trocam observações sociais
óbvias, alguns discutem os planos para o dia. Mais cedo,
antes do nascer do Sol, quatro machos adultos do grupo
haviam partido em busca de carne. O papel das fêmeas é
coletar alimentos vegetais, que todos percebem ser o
principal produto econômico em suas vidas. Os machos
caçam, as fêmeas coletam; é um sistema que funciona
espetacularmente bem para o nosso grupo e por tanto tempo
quanto qualquer um é capaz de lembrar-se.
Três das fêmeas agora estão prontas para partir, nuas exceto
por uma pele de animal jogada sobre os ombros que tem o
papel dual de servir para transportar o bebê, e mais tarde
para transportar o alimento. Elas levam consigo bastões
curtos e pontiagudos, que uma das fêmeas preparara antes
usando lascas de pedra afiadas para aparar galhos fortes.
Estes bastões servem para cavar, o que permite às fêmeas
desenterrar tubérculos suculentos, profundamente
enterrados, alimentos negados à maioria dos outros grandes
primatas. As fêmeas finalmente partem, caminhando em fila
única como

79

usualmente o fazem, em direção às colinas distantes da bacia


do lago, seguindo um caminho que elas sabem que conduz a
uma fonte rica em castanhas e tubérculos. Para colher frutas
maduras elas terão que esperar até mais para o fim do ano,
quando as chuvas tiverem feito o trabalho da natureza.

Para trás junto à corrente, as duas fêmeas restantes


repousam tranqüilamente sobre a areia macia sob uma
acácia alta, observando os trejeitos de três jovens. Muito
velhos para serem carregados na pele de animal, muito
jovens para caçar ou coletar, estes fazem o que todos os
jovens fazem: eles fazem brincadeiras que prenunciam sua
vida adulta. Esta manhã, um deles é um antílope e usa ramos
à guisa de galhada, os outros dois são os caçadores
tocaiando sua presa. Mais tarde, o mais velho dos três, uma
garota, convence uma das fêmeas a mostrar-lhe, novamente,
como fazer artefatos de pedra. Pacientemente, a mulher faz
dois seixos de lava baterem um contra o outro, com um golpe
rápido e preciso. Uma lasca perfeita desprende-se. Com uma
determinação estudada, a garota tenta fazer o mesmo, mas
sem sucesso. A mulher segura as mãos da garota e,
conduzindo-as, repete a ação necessária em câmara lenta.

Obter lascas afiadas é mais difícil do que parece, e a habilida-


de é ensinada principalmente por meio do exemplo, e não
pela instrução verbal. A garota tenta novamente, desta vez
sua ação é sutilmente diferente. Uma lasca afiada destaca-se
do seixo, e a garota deixa escapar um grito de triunfo. Ela
apodera-se da lasca, mostra-apara a mulher sorridente e
então corre para exibi-la aos seus colegas de folguedos. Eles
prosseguem juntos com a brincadeira, armados agora de um
implemento da maturidade. Eles encontram um pau, que a
aprendiz de britadeira desbasta até obter uma ponta aguçada,
e então eles formam um grupo de caça, em busca de um
peixe para matá-lo com a lança.

Ao entardecer, o acampamento na margem da corrente


fervilha novamente, as três mulheres retornaram com suas
peles de animal carregadas de bebês e comida, inclusive
alguns ovos de pássaros, três pequenos lagartos e —um
deleite inesperado —mel. Felizes com seus próprios ganhos,
as mulheres especulam sobre o que os homens trarão.
Muitas vezes, os caçadores retornam de mãos vazias. Isto faz
parte da natureza da busca à carne. Mas quando o acaso
favorece seus esforços, a recompensa pode ser grande, e
certamente é louvada.

Em breve, o som distante de vozes que se aproximam avisa


às mulheres que os homens estão retornando. E, a julgar pelo
tom de excitação na conversação destes, eles estão
retornando após terem sido bem-sucedidos. Na maior parte
do dia os homens estiveram silenciosamente tocaiando um
pequeno rebanho de antílopes, observando que um dos
animais parecia coxear ligeiramente. Repetidamente, este
indivíduo era deixado para trás pelo rebanho e tinha que

80

fazer tremendos esforços para juntar-se a ele. Os homens


perceberam a chance de abater um animal grande.
Caçadores providos de armas naturais ou artificiais, como os
do nosso grupo estão, necessitam apenas de confiar na
astúcia. A habilidade de mover-se silenciosamente, misturar-
se com o meio ambiente e o conhecimento de quando atacar
são as armas mais poderosas destes caçadores.

Finalmente, uma oportunidade apresentou-se e, sem dizer


uma palavra, de comum acordo, os três homens moveram-se
para posições estratégicas. Um deles atirou uma pedra com
força e precisão, obtendo um impacto estonteante; os outros
dois correram para imobilizar a presa. Uma estocada rápida
com um pau curto e pontiagudo fez correr uma torrente de
sangue da jugular do animal. O animal lutou mas em pouco
tempo estava morto.

Cansados e cobertos com o suor e o sangue de seus


esforços, os três homens estavam exultantes. Um depósito
secreto de seixos de lava nas proximidades fornecia a
matéria-prima para a fabricação de ferramentas que seriam
necessárias para o esquartejamento do bicho. Uns poucos
golpes precisos de um seixo contra o outro produzia lascas
suficientes com que cortar através do couro duro do animal e
expor as juntas, carne vermelha contra o osso branco. Rapi-
damente, músculos e tendões renderam-se ao
esquartejamento hábil, e os homens partiram para o
acampamento, carregando doispernis de carne, rindo e
brincando um com outro a respeito dos eventos do dia e de
seus diferentes papéis desempenhados neles. Eles sabem
que uma recepção alegre os aguarda.

Mais tarde, naquela noite, há quase um sentido de ritual no


consumo da carne. O homem que conduziu o grupo de caça
corta os pedaços e os entrega para as mulheres que sentam
em torno dele e para os outros homens. As mulheres dão
pedaços para as suas crianças, que os trocam alegremente
entre si. Os homens oferecem pedaços para seus colegas,
que oferecem outros pedaços em troca. O ato de comer carne
é mais do que o sustento; é uma atividade de comunhão
social.

A excitação do triunfo na caça agora evanesce, os homens e


mulheres trocam relatos de seus dias separados. Há uma
compreensão de que eles em breve terão que deixar este
acampamento agradável, pois as chuvas crescentes nas
montanhas distantes em breve farão com que a corrente
inunde suas margens. Por agora, eles estão contentes.

Três dias mais tarde o grupo deixa o acampamento pela


última vez em busca da segurança de terrenos mais
elevados. Os indícios de sua presença evanescente estão
espalhados por todas as partes. Montículos de lascas feitas
com seixos de lava, paus aguçados e couro trabalhado falam
de suas proezas tecnológicas. Ossos de animais quebrados,
uma cabeça de peixe, cascas de ovos e restos de tur-
81

bérculos falam da variedade de sua dieta. Entretanto, a


socialização intensa que é o foco do acampamento se foi,
assim como o ritual de comer carne e as histórias dos
eventos diários. Breve, o acampamento vazio e silencioso é
inundado suavemente, à medida que a corrente transborda
sobre suas margens. Uma camada fina de depósitos cobre os
detritos de cinco dias na vida de nosso pequeno grupo, en-
cerrando uma história curta. Finalmente tudo, exceto os ossos
e as pedras, decompõe-se, deixando magros indícios a partir
dos quais reconstruímos esta história.

Muitos acreditarão que minha reconstrução torna o Homo


erectus demasiado humano. Eu não penso assim. Crio um
quadro do modo de vida dos caçadores-coletores, e atribuo
uma linguagem a estas pessoas. Ambos, acredito, são
justificados, embora cada um seja necessariamente uma
versão primitiva do que sabemos dos humanos modernos. De
qualquer modo, a partir dos indícios arqueológicos fica muito
claro que estas criaturas estavam vivenciando vidas além do
alcance dos outros primatas, principalmente ao usar tecnologia
para ganhar acesso a alimentos tais como a carne vermelha e
tubérculos enterrados. Neste estágio de nossa pré-história,
nossos ancestrais estavam se humanizando de uma maneira
que reconheceríamos instantaneamente.

82
5 - A origem dos humanos modernos
Dos quatro principais eventos ocorridos no decurso da
evolução humana que esbocei no prefácio — a origem da
família humana propriamente dita, há cerca de 7 milhões de
anos; a “irradiação adaptativa” subseqüente de espécies de
macacos bipédes; a origem de um cérebro maior (efetivamente,
o começo do gênero Homo), há talvez 2,5 milhões de anos; e a
origem dos humanos modernos — é o quarto, a origem de
gente como nós, que é atualmente a questão mais quente na
antropologia. Muitas hipóteses diferentes são vigorosamente
debatidas, e dificilmente passa-se um mês sem que uma
conferência seja realizada ou uma chuva de livros e artigos
científicos seja publicada, cada um apresentando visões muitas
vezes diametralmente opostas. Por “gente como nós” quero
dizer o Homo sapiens moderno — isto é, humanos com uma
queda para a tecnologia e para a inovação, uma capacidade de
expressão artística, uma consciência introspectiva e um senso
de moralidade.

Quando olhamos uns poucos milhares de anos para trás na


história, vemos a emergência inicial da civilização: numa
organização social de complexidade cada vez maior, aldeias
dão lugar a chiefdoms, estes dão lugar a cidades-Estados,
cidades-Estados dão lugar a nações-Estados. Este crescimento
aparentemente inexorável no nível de complexidade é
conduzido pela evolução cultural e não pela mudança
biológica. Assim como as pessoas há um século eram
biologicamente iguais a nós mas viviam em um mundo sem
tecnologia eletrônica, da mesma forma os aldeões de 7.000
anos atrás eram exatamente como nós mas eram carentes da
infra-estrutura da civilização.

Se olharmos para trás na história além da origem da escrita há


uns 6.000 anos, ainda podemos ver indícios da mente humana
moderna em funcionamento. Começando há cerca de 10.000
anos, bandos nômades de caçadores-coletores em todo o
mundo inventaram de forma independente várias técnicas de
agricultura. Isto também foi conseqüência da evolução cultural
ou tecnológica, e não de evolução biológica. Volte para além
daquele tempo de

83

transformações sociais e econômicas e você encontrará


pinturas, gravações em pedra e esculturas da Europa da Idade
do Gelo e da África, que evocam mundos mentais de gente
como nós. Entretanto, volte para mais além — para além dos
35 mil anos atrás — e estes sinais da mente humana moderna
desaparecem. Não mais podemos ver no registro arqueológico
indícios convincentes de trabalho de gente com capacidades
mentais iguais às nossas.

Durante muito tempo, os antropólogos acreditaram que a


aparição súbita no registro arqueológico da expressão artística
e da tecnologia finamente trabalhada era um sinal claro da
evolução dos humanos modernos. O antropólogo britânico
Kenneth Oakley estava entre os primeiros a sugerir, em 1951,
que esta florescência de comportamento humano moderno
estava associada com o surgimento, pela primeira vez, de uma
linguagem totalmente moderna. De fato, parece inconcebível
que uma espécie humana pudesse possuir uma linguagem
totalmente moderna e não ser totalmente moderna em todos os
outros aspectos também. Por esta razão, a evolução da
linguagem é considerada de forma ampla o evento culminante
na emergência da humanidade como a conhecemos hoje.

Quando ocorreu a origem dos humanos modernos? E de que


maneira isto aconteceu: gradualmente e começando há muito
tempo, ou rápida e recentemente? Estas questões estão no
centro da corrente de debates.

De todos os períodos da evolução humana, ironicamente,


aquele que corresponde às centenas de milhares de anos
passados é de longe o mais ricamente dotado de indícios
fósseis. Além de coleção extensa de crânios intactos e ossos
cranianos posteriores, uns vinte esqueletos relativamente
completos foram recuperados. Para alguém como eu, cuja
preocupação é com um período mais antigo da pré-história
humana, no qual os indícios fósseis são raros, estas riquezas
paleontológicas são o máximo. Ainda assim, um consenso
sobre a seqüência dos eventos evolutivos continua a escapar
aos meus colegas de antropologia

Mais ainda, os primeiros fósseis de humanos primitivos inva-


riavelmente descobertos eram de neanderthais (a caricatura
favorita de todos do homem das cavernas), que desempenham
um papel importante no debate. Desde 1856, quando os
primeiros ossos de neanderthais foram descobertos, o destino
dessa gente tem sido interminavelmente discutido: seriam eles
nossos ancestrais imediatos ou um beco evolutivo sem saída
que chegou à
84

extinção há uns trinta milênios? Esta questão foi colocada há


quase um século e meio, e continua sem resposta, pelo menos
com uma resposta que satisfaça a todos.

Antes de considerar alguns dos pontos mais sutis da discussão


sobre a origem dos humanos modernos, deveríamos esboçar
as questões maiores. A história começa com a evolução do
genêro Homo, anterior aos 2 milhões de anos atrás, e termina
com o surgimento do Homo sapiens. Duas linhas de indícios
existem há muito tempo: uma que diz respeito as mudanças
anatômicas e outra que diz respeito às mudanças na tecnologia
e outras manifestações do cérebro e mãos humanos.
Apresentadas corretamente, estas duas linhas de indícios
deveriam ilustrar o mesmo relato da história evolutiva humana.
Deveriam indicar o mesmo padrão de mudança através do
tempo. Estas linhas tradicionais de indícios, o estofo da
erudição antropológica durante décadas, foram recentemente
acrescidas de uma terceira, a da genética molecular. Em
princípio, as seqüências de genes têm codificado em seu
interior um relato da nossa história evolutiva. Novamente, a his-
tória relatada deveria concordar com o que sabemos a partir da
anatomia e dos artefatos de pedra.

Infelizmente, não há um estado de harmonia entre estas três


linhas de indícios. Há pontos em comum mas não há consenso.
A dificuldade com que os antropólogos defrontam mesmo com
tal abundância de indícios é um lembrete salutar de como
muitas vezes é extremamente difícil reconstruir a história
evolutiva.

A descoberta do esqueleto do garoto de Turkana nos dá uma


excelente idéia da anatomia do homem primitivo de cerca de
1,6 milhão de anos atrás. Podemos ver que os Homo erectus
primitivos individualmente eram altos (o garoto de Turkana
atingia quase 1,98 metro de altura), atléticos, e dotados de
músculos fortes. Mesmo o lutador profissional mais forte não
seria páreo para o Homo erectus médio. Embora o cérebro do
Homo erectus primitivo fosse maior que o de seus ancestrais
australopitecíneos, ainda era menor do que o dos humanos
modernos — uns 900 centímetros cúbicos comparado com a
média de 1.350 centímetros cúbicos do Homo de hoje. O crânio
do Homo erectus era comprido e baixo, com uma testa
pequena e a caixa craniana de paredes grossas; os maxilares
eram um pouco protubérantes, e acima dos olhos ele tinha as
arcadas supraciliares salientes. Este padrão anatômico básico
persistiu até cerca de meio milhão de anos atrás, embora
durante esse período houvesse uma expansão do cérebro para
mais de 1.100 centímetros cúbicos. Por volta desta época, as

85

populações de Homo erectus se haviam espalhado a partir da


África e estavam ocupando grandes regiões da Ásia e da
Europa. (Embora não tenham sido encontrados na Europa
fósseis inequivocamente identificados como de Homo erectus,
indícios da tecnologia associada com a espécie revelam sua
presença lá.)

A menos do que cerca de 34 mil anos atrás, os restos humanos


fossilizados que encontramos são todos de Homo sapiens
totalmente modernos. 0 corpo é menos ryo e musculoso, a face
é mais achatada, o crânio mais alto e as paredes da caixa
craniana mais finas. As arcadas supraciliares não são salientes
e o cérebro (na maior parte das vezes) é maior. Podemos ver,
portanto, que a atividade evolutiva que dá origem aos humanos
modernos aconteceu entre meio milhão e 34 mil anos atrás. A
partir do que encontramos na África e na Eurásia nos registros
fóssil e arqueológico deste período, podemos concluir que a
evolução foi deveras ativa mas de modo confuso.

Os neanderthais viveram desde cerca de 135 mil até 34 mil


anos atrás e ocuparam uma região que se estende da Europa
Ocidental, alcança o Oriente Próximo e vai até a Ásia. Eles
constituem de longe o componente mais abundante do registro
fóssil do período pelo qual estamos interessados aqui. Não há
dúvidas de que ondas de evolução estavam em progresso em
muitas populações diferentes por todo o Velho Mundo durante
este período que vai de 500 mil até 34 mil anos atrás. À parte
os neanderthais, há fósseis individuais — usualmente crânios
ou partes de crânio, mas algumas vezes outras partes do
esqueleto — com nomes que soam romanticamente: Homem
de Petralona, da Grécia; Homem de Arago, do sudoeste da
França; Homem de Steinheim, da Alemanha; Homem de
Broken Hill, da Zâmbia; e assim por diante. A despeito das
muitas diferenças entre estes espécimens individuais, todos
têm duas coisas em comum: são mais avançados do que o
Homo erectus — possuindo, por exemplo, cérebros maiores —
e mais primitivos do que o Homo sapiens, sendo robustamente
constituídos e tendo as paredes da caixa craniana grossas (ver
figura 5.1). Em razão da anatomia variada dos espécimens
deste período, os antropólogos passaram a chamar estes
fósseis coletivamente de “sapiens arcaicos”.

O desafio com que deparamos, dado este potpourri de formas


anatômicas, é construir um padrão evolutivo que descreva a
emergência da anatomia humana e do comportamento humano
modernos. Nos últimos anos, dois modelos muito diferentes
vêm sendo propostos.

86
(A página 87 do livro apresenta a Figura 5.1, colada nas
páginas finais desse e-livro)

87

O primeiro deles, conhecido como a hipótese da evolução


multirregional, vê a origem dos humanos modernos como um
fenômeno que abrange todo o Velho Mundo, com o Homo
sapiens emergindo sempre que populações de Homo erectus
estabeleceram-se. Nesta visão, os neanderthais são parte da
tendência que abarca os três continentes, intermediários na
anatomia entre o Homo erectus e o Homo sapiens na Europa,
Oriente Médio e Ásia Ocidental, e as populações de hoje em
dia destas partes do Velho Mundo que têm os neanderthais
como ancestrais diretos. Milford Wolpoff, antropólogo da
Universidade de Michigan, argumenta que a tendência
evolutiva ubíqua em direção ao status biológico de Homo
sapiens foi conduzida pelo novo meio cultural de nossos
ancestrais.

A cultura representa uma novidade no mundo da natureza, e


poderia ter adicionado um impulso efetivo e unificador às forças
da seleção natural. Mais ainda, Christopher Willis, biólogo da
Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, identifica aqui a
possibilidade de um ritmo acelerado de evolução. Em seu livro
de 1993, The Runaway Brain, ele observa: “A força que parece
ter acelerado o crescimento de nosso cérebro é um novo tipo
de estimulante: linguagem, sinais, memória coletiva — todos
elementos de cultura. À medida que nossas culturas evoluíram
em complexidade, assim o fizeram os nossos cérebros, o que
por sua vez conduziu nossas culturas a complexidades ainda
maiores. Cérebros maiores e mais inteligentes levaram a
culturas mais complexas, o que por sua vez levou a cérebros
ainda maiores e mais inteligentes.” Se tal processo
autocatalisador, ou de retroalimentação positiva, realmente
ocorreu, ele poderia ter promovido a mudança genética no seio
de grandes populações de maneira mais rápida.
Tenho alguma simpatia pela visão de evolução multirregional, e
uma vez apresentei a seguinte analogia: se você pegar um
punhado de seixos e os arremessar sobre uma poça de água,
cada seixo gerará uma série de ondículas que se propagarão a
partir do ponto de impacto, e que mais cedo ou mais tarde
encontrarão outras ondículas postas em movimento pelos
outros seixos. A poça representa o Velho Mundo, com sua
população de sapiens básica. Aqueles pontos na superfície da
poça onde os seixos atingem são os pontos de transição do
Homo sapiens e as ondículas são as migrações do Homo
sapiens. Esta ilustração tem sido utilizada por diversos
participantes do atual debate; entretanto, penso agora que ela
pode não ser correta. Uma das razões de minha cau-

88

tela é a existência de alguns espécimens de fósseis


importantes oriundos de uma série de cavernas em Israel.

As escavações nestes sítios têm se dado esporadicamente por


mais de seis décadas, com fósseis de neanderthals sendo
descobertos em algumas das cavernas e fósseis de humanos
modernos em outras. Até recentemente, o quadro parecia claro
e apoiava a hipótese da evolução multirregional. Todos os
espécimens de neanderthais — que vieram das cavernas de
Kebarra, Tabun e Amud — eram relativamente velhos, com
talvez uns 60 mil anos de idade. Todos os humanos modernos
— que vieram de Skhul e Qafzeh — eram mais jovens, com
talvez 40 mil a 50 mil anos de idade. Dadas estas datas, uma
transformação evolutiva de populações de neanderthais para
populações de humanos modernos nesta região parecia
plausível. De fato, esta seqüência de fósseis era um dos pilares
de apoio mais fortes da hipótese da evolução multirregional.

Ao final da década de 1980, entretanto, esta seqüência orde-


nada foi destruída. Pesquisadores da Grã-Bretanha e da
França empregaram novos métodos de datação, conhecidos
como ressonância do spin eletrônico e termoluminescência, em
alguns destes fósseis; ambas as técnicas dependem do
decaimento de certos radioisótopos comuns em muitas rochas
— um processo que atua como um relógio atômico para os
minerais encontrados nas rochas. Os pesquisadores
descobriram que os fósseis humanos modernos provenientes
de Skhul e Qafzeh eram mais velhos do que a maioria dos
fósseis de neanderthais em mais de 40 mil anos. Se estes
resultados estiverem corretos, os neanderthais não podem ser
os ancestrais dos humanos modernos, como o modelo de
evolução multirregional exige. Qual é, então, a alternativa?

Em vez de serem o produto de uma tendência evolutiva por


todo o Velho Mundo, no modelo alternativo os humanos moder-
nos surgiram a partir de um único ponto geográfico (ver figura
5.2). Bandos de Homo sapiens modernos teriam migrado a
partir deste ponto e se espalhado para o resto do Velho Mundo,
substituindo populações pré-modemas já existentes. Este
modelo tem recebido diversos nomes, tais como hipótese da
“Arca de Noé” e hipótese do “Jardim do Éden”. Mais
recentemente, tem sido chamado de hipótese “A partir da
África”, porque a África abaixo do Saara tem sido identificada
como o lugar mais provável para a evolução dos primeiros
humanos modernos. Diversos antropólogos contribuíram para a
formação deste ponto de vista, e Christopher Stringer, do
Museu de História Natural, de Londres, é o seu proponente
mais vigoroso.

89
Os dois modelos não poderiam ser mais diferentes: o modelo
da evolução multirregional descreve uma tendência evolutiva
por todo o Velho Mundo em direção ao Homo sapiens, com
uma pequena migração mas sem substituição de populações,
enquanto que a hipótese “A partir da África” exige a evolução
do Homo sapiens em apenas um lugar, acompanhada de uma
migração extensiva de população através do Velho Mundo,
resultando na substituição das populações pré-modernas
existentes. Mais ainda, no primeiro modelo, a distribuição das
populações geográficas modernas (o que é conhecido como
“raças”) teria profundas raízes genéticas, tendo elas sido
essencialmente separadas há mais de 2 milhões de anos; no
segundo modelo, estas populações teriam raízes genéticas
menos profundas, tendo todas derivado de uma única
população que evoluiu recentemente na África

Os dois modelos são também bastante diferentes em suas


predições sobre o que deveríamos ver no registro arqueológico.

90

De acordo com o modelo de evolução multirregional, as


características anatômicas que vemos na distribuição
geográfica das populações modernas deveriam ser visíveis em
fósseis da mesma região, remontando até quase 2 milhões de
anos atrás, quando o Homo erectus começou a expandir seus
domínios para além da África. No modelo “A partir da África”,
uma continuidade regional no tempo deste tipo não é esperada;
de fato, as populações modernas deveriam compartilhar
características africanas.

Milford Wolpoff, o proponente mais vigoroso da hipótese


multirregional, relatou para uma audiência reunida no encontro
de 1990 da American Association for the Advancement of
Science (Sociedade Americana para o Progresso da Ciência)
que “o caso da continuidade anatômica está claramente
esclarecido”. No norte da Ásia, por exemplo, certas
características, tais como o formato da face, a configuração dos
ossos faciais e a forma de pá dos dentes incisivos, podem ser
vistas em fósseis de 750 mil anos de idade; nos fósseis do
Homem de Pequim, que têm 250 mil anos de idade, e nas
populações chinesas modernas. Stringer reconhece isto, mas
observa que estas características não se limitam ao norte da
Ásia e portanto não podem ser tomadas como indício de
continuidade regional.

Wolpoff e seus colegas têm um argumento similar para o su-


deste da Ásia e Austrália. Mas, como observa Stringer, a
suposta seqüência de continuidade é construída sobre fósseis
datados em apenas três instantes de tempo: 1,8 milhão, 100
mil e 30 mil anos atrás. Esta penúria de pontos de referência,
diz Stringer, enfraquece muitíssimo a defesa do modelo
multirregional.

Estes exemplos ilustram os problemas com que os antropó-


logos deparam. Existem não apenas diferenças de opinião
sobre o significado de características anatômicas importantes,
mas, deixando de lado os neanderthais, o registro fóssil é muito
mais exíguo do que a maioria dos antropólogos gostaria que
fosse (e do que a maioria dos não antropólogos acredita ser).
Até que estes impedimentos sejam superados, um consenso
sobre a questão maior pode permanecer fora do alcance.

Entretanto, podemos avaliar a anatomia de um fóssil de uma


perspectiva diferente. Os neanderthais parecem ter sido
indivíduos atarracados com membros curtos. Esta compleição
é uma adaptação física apropriada às frias condições climáticas
que prevaleciam em boa parte das regiões em que viveram.
Entretanto, a anatomia dos primeiros humanos modernos desta
mesma parte do

91

mundo é muito diferente. Estas pessoas são altas, de


constituição leve, e com membros longos. Uma compleição
corporal flexível é muito mais adequada a um clima tropical ou
temperado, e não às estepes geladas da Europa da Idade do
Gelo. Este quebra-cabeça seria explicável se os primeiros
europeus modernos, em vez de terem evoluído na Europa,
fossem descendentes de migrantes oriundos da África, e o
modelo “A partir da África”, portanto, teria algum apoio a partir
desta observação.

O modelo “A partir da África” recebe apoio adicional de uma


outra observação direta do registro fóssil. Se a hipótese da
evolução multirregional está correta, então esperaríamos
encontrar exemplos primordiais de humanos modernos
aparecendo mais ou menos simultaneamente por todo o Velho
Mundo. Isto não é o que vemos. Os fósseis de humanos
modernos mais antigos de que temos conhecimento vêm
provavelmente do sul da África. Digo “provavelmente” porque
estes fósseis são não apenas partes fragmentadas de
maxilares mas há também um certo grau de incerteza sobre
suas idades verdadeiras. Por exemplo, supõe-se que os fósseis
da caverna Border e da caverna Klasies River Mouth, ambas
na África do Sul, tenham um pouco mais de 100 nül anos de
idade, e são citados como indícios favoráveis pelos pro-
ponentes da hipótese “A partir da África”. Entretanto, os fósseis
de humanos modernos oriundos das cavernas de Qafzeh e
Skhul têm também mais ou menos 100 mil anos de idade. É
possível, portanto, que os primeiros humanos modernos
tenham surgido no norte da África ou no Oriente Médio, e então
migrado a partir de lá. Porém, com base no peso total dos
indícios (ver figura 5.3), a maioria dos antropólogos é a favor de
um origem subsaariana.

Nenhum fóssil de humano moderno desta época foi encontrado


em qualquer outra parte do resto da Ásia ou da Europa. Se isto
reflete uma realidade evolutiva e não é simplesmente o pro-
blema perene de um registro fóssil lamentavelmente
incompleto, então a hipótese “A partir da África” realmente
parece razoável.

A maioria dos geneticistas de populações apoia esta hipótese


como a mais plausível do ponto de vista biológico. Estes cien-
tistas estudam o perfil genético dentro de uma espécie e como
este pode mudar com o decorrer do tempo. Se as populações
de uma espécie permanecem em contato geográfico umas com
as outras, mudanças genéticas que surgem por meio de
mutações podem difundir-se por toda a região, por meio do
hibridismo. Em conseqüência, o perfil genético da espécie será
alterado, mas no todo a espécie permanecerá geneticamente
unificada, Haverá um

92

resultado diferente se as populações de uma espécie ficaram


geograficamente isoladas umas das outras, talvez por causa de
uma mudança no curso de um rio ou o aparecimento de um
deserto. Neste caso, uma mudança genética que possa surgir
em uma população não será transferida para as outras
populações. As populações isoladas podem portanto tornar-se
geneticamente diferentes umas das outras de modo constante,
talvez, finalmente, transformando-se em subespécies
diferentes, ou mesmo espécies completamente diferentes. Os
geneticistas de populações fazem uso de modelos matemáticos
para calcular a taxa pela qual a mudança genética pode ocorrer
em populações de vários tamanhos, e podem portanto oferecer
sugestões sobre o que pode ter acontecido em tempos
remotos. A maioria dos geneticistas de populações, inclusive
Luigi Luca Cavalli-Sforza, de Stanford, e Shahin Rouhani, do
University College, em Londres, que teceram extensivamente
comentários no decorrer do debate, mostram-se céti-

93

cos em relação ao modelo da evolução multirregional. Eles


observam que o modelo multirregional exige um fluxo extenso
de genes através de grandes populações, unindo-as
geneticamente, permitindo ao mesmo tempo que a mudança
evolutiva as transforme em humanos modernos. E, se as novas
datações dos fósseis do Homem de Java, anunciadas no início
de 1994, estiverem corretas, o Homo erectus expandiu seus
domínios para além da África há quase 2 milhões de anos.
Portanto, de acordo com o modelo de evolução multirregional,
não apenas o fluxo de genes teria que ser mantido através de
uma grande área geográfica como teria também de ser mantido
por um período muito grande. Isto, conclui a maioria dos
geneticistas de populações, é simplesmente irreal. Com a
difusão de populações pré-modernas através da Europa, Ásia e
África, há uma probabilidade maior de produzir-se variantes
geográficas (tais como de fato vemos entre sapiens muito
antigos) do que termos um todo coeso.

Deixaremos os fósseis de lado por enquanto, e nos voltaremos


para o comportamento, com o que quero dizer seus produtos
tangíveis, instrumentos e objetos de arte. Temos que lembrar
que a grande preponderância de comportamento humano em
grupos humanos tecnologicamente primitivos é do ponto de
vista arqueológico invisível. Por exemplo, um ritual de iniciação
conduzido por um xamã envolveria o relato de mitos, cânticos e
adorno do corpo — e nenhuma destas atividades entraria no
registro arqueológico. Portanto, precisamos lembrar
constantemente que, quando encontramos artefatos de pedra e
objetos pintados ou gravados, estes apenas nos abrem a mais
estreita das janelas para o mundo primitivo.

O que gostaríamos de identificar no registro arqueológico é


algum tipo de sinal da mente humana moderna em
funcionamento. E gostaríamos que este sinal esclarecesse
hipóteses que competem entre si. Por exemplo, se o sinal
apareceu em todas as regiões do Velho Mundo mais ou menos
simultaneamente, poderíamos dizer que o modelo de evolução
multirregional descreve a maneira mais provável pela qual os
humanos modernos evoluíram. Se, em vez disto, o sinal
apareceu primeiro em um lugar isolado e então gradualmente
espalhou-se pelo resto do mundo, isto daria um peso maior ao
modelo alternativo. Esperaríamos, é claro, que o sinal
arqueológico coincidisse com o padrão originado pelo registro
fóssil.

Vimos no capítulo 2 que o surgimento do gênero Homo coin-

94

cide grosseiramente com o início do registro arqueológico, há


uns 2,5 milhões de anos. Vimos, também, que a maior
complexidade de conjuntos de instrumentos de pedra de 1,4
milhão de anos atrás, passando da indústria olduvaiana para a
acheulense, seguiu-se imediatamente à evolução do Homo
erectus. O elo de ligação entre a biologia e o comportamento é
portanto muito estreito: artefatos simples foram feitos pelo
Homo mais primitivo; um salto de complexidade ocorreu com a
evolução do Homo erectus. Este elo de ligação é novamente
observado com o surgimento do sapiens mais antigo, pouco
tempo após meio milhão de anos atrás.

Depois de mais de 1 milhão de anos de estagnação relativa, a


indústria simples de machados manuais do Homo erectus deu
lugar a uma tecnologia mais complexa com base em lascas
grandes. E, onde a indústria acheulense tinha talvez uma dúzia
de implementos identificáveis, as novas tecnologias
compreendiam mais ou menos sessenta. A novidade biológica
que vemos na anatomia dos primeiros sapiens, inclusive os
neanderthals, é claramente acompanhada por um novo nível
de competência tecnológica. Entretanto, uma vez estabelecida
a nova tecnologia, esta mudou pouco. A estagnação, e não a
inovação, caracterizou a nova era.

Entretanto, quando a mudança realmente chegou, foi des-


lumbrante — tão deslumbrante que deveríamos nos precaver
para não ficar cegos para a realidade por trás dela. Há cerca
de 35 mil anos na Europa, as pessoas começaram a fabricar
instrumentos da maior qualidade, obtidos de lâminas de pedra
delicadamente trabalhadas. Pela primeira vez ossos e chifres
foram utilizados como matéria-prima para a fabricação de
artefatos. Os kits de ferramentas agora abrangiam mais de uma
centena de itens, e incluíam implementos para modelar
vestimentas grosseiras, para gravar e esculpir. Pela primeira
vez, os artefatos tornaram-se obras de arte: por exemplo,
lanças feitas com chifres eram enfeitadas com gravações
representando animais vivos. Contas e pingentes aparecem no
registro fóssil, anunciando novas práticas de adorno do corpo.
E — o mais evocativo de tudo — pinturas nas paredes de
cavernas profundas revelam um mundo mental que
prontamente reconheceríamos como nosso. Ao contrário das
eras anteriores quando a estagnação dominava, a inovação é
agora a essência da cultura, com a mudança sendo medida em
milênios e não mais em centenas de milênios. Conhecida como
a Revolução do Paleolítico Superior, este sinal arqueológico
coletivo é um indício inconfundível da mente humana moderna
em funcionamento.

95

Agora mesmo afirmei que o sinal arqueológico da Revolução


do Paleolítico Superior poderia estar nos tornando cegos para
a realidade. Com isto quero dizer que por razões históricas o
registro arqueológico na Europa Ocidental é bem mais rico do
que na África. Para cada sítio arqueológico desta era
encontrado na África, há cerca de duas centenas de sítios
similares na Europa Ocidental. A disparidade reflete a diferença
na intensidade da exploração científica nos dois continentes,
não a realidade da pré-história humana. Durante muito tempo,
a Revolução do Paleolítico Superior foi considerada uma
indicação de que a emergência final dos humanos modernos
ocorreu na Europa Ocidental. Afinal de contas, o sinal
arqueológico e o registro fóssil lá coincidiam precisamente;
ambos indicam um evento dramático há cerca de 35 mil anos:
os humanos modernos apareceram na Europa Ocidental há 35
mil anos e seu comportamento moderno torna-se
imediatamente parte do registro arqueológico. Ou assim se
presumia.

Recentemente, esta visão mudou. A Europa Ocidental é agora


reconhecida como um lugar atrasado, e podemos discernir uma
transformação varrendo a Europa, do leste para o oeste. Co-
meçando há cerca de 50 mil anos, na Europa Oriental, as
populações de neanderthals desapareceram e foram
substituídas por humanos modernos, tendo a substituição
acontecido no oeste longínquo há cerca de 33 mil anos. O
surgimento coincidente de humanos modernos e
comportamento moderno na Europa Ocidental reflete o influxo
de um novo tipo de população, o Homo sapiens moderno. A
Revolução do Paleolítico Superior foi um sinal demográfico e
não um sinal evolutivo.

Se há 50 mil anos os humanos modernos estavam começando


a migrar para a Europa Ocidental, de onde vieram eles? Com
base no indício provido pelos fósseis, nós diríamos da África,
com toda a probabilidade — ou talvez do Oriente Médio. A
despeito da exigüidade do registro arqueológico, este apoia a
origem africana do comportamento humano moderno.
Tecnologias baseadas em lâminas estreitas começaram a
aparecer naquele continente por volta de 100 mil anos atrás.
Isto, lembre-se, coincidiria com a primeira aparição conhecida
da anatomia humana moderna, e poderia ser considerado um
terceiro exemplo do elo de ligação entre a biologia e o
comportamento.

O elo aqui pode ser, porém, uma ilusão, o resultado do acaso.


Digo isto pois no Oriente Médio, onde ambos os registros, o
fóssil e o arqueológico, são bons, vemos algo que é claro mas
mesmo

96

assim paradoxal. A aplicação de novas técnicas de datação


mostra que neanderthals e humanos modernos essencialmente
coexistiram na região por um período de cerca de 60 mil anos.
(Em 1989, foi demonstrado que o neanderthal de Tabun tinha
pelo menos 100 mil anos de idade, o que o toma
contemporâneo dos humanos modernos de Qafzeh e Skhul.)
Durante todo aquele tempo, a única forma de tecnologia de
artefatos que vemos é aquela associada com os neanderthals.
O nome dado a sua tecnologia é mousteriana, em razão da
caverna de Le Moustier, na França, onde foi descoberta pela
primeira vez. O fato de que as populações de humanos
anatomicamente modernos pareçam ter produzido tecnologia
semelhante à mousteriana em vez de conjuntos de artefatos
ricos em inovações tão característicos do Paleolítico Superior
significa que eles eram modernos na forma apenas, e não em
seu comportamento. O elo de ligação entre anatomia e
comportamento parece portanto romper-se. O sinal
arqueológico de comportamento humano moderno mais antigo
é fraco e esporádico, e pode ser a vítima de um registro muito
pouco conhecido. Embora a tecnologia com base em lâminas
tenha sido vista pela primeira vez na África, não é possível
apontar com toda a confiança para o continente africano e
dizer. “Este é o lugar onde o comportamento humano moderno
começou”, e então traçar sua expansão até a Eurásia.

A terceira linha de indício que se relaciona com a origem dos


humanos modernos, a da genética molecular, é a menos
ambígua. É também a mais controvertida. Durante os anos 80,
surgiu um novo modelo para as origens dos humanos
modernos. Conhecida como a hipótese da Eva mitocondrial, ela
essencialmente deu apoio ao modelo “A partir da África”, de
modo convincente. A maioria dos proponentes da hipótese “A
partir da África” estão preparados para considerar a
possibilidade de que, à medida que os humanos modernos
expandiram-se da África para o resto do Velho Mundo, eles
misturaram-se até um certo grau com as populações pré-
modernas já estabelecidas. Isto permitiria que alguns traços de
continuidade genética de populações antigas pudessem ser
transmitidos para as populações modernas. Entretanto, o
modelo da Eva mitocondrial refuta isto. De acordo com este
modelo, à medida que as populações modernas migraram da
África e cresceram em número, elas substituíram
completamente as populações já existentes. O intercruzamento
entre os migrantes e as populações já existentes, se de fato
ocorreu, foi em grau ínfimo.

O modelo da Eva mitocondrial fluiu do trabalho de dois labo-

97

ratórios — o de Douglas Wallace e seus colegas na


Universidade Emory, e o de Alan Wilson e seus colegas na
Universidade da Califórnia, em Berkeley. Eles examinaram
cuidadosamente o material genético, ou ADN, que aparece em
organelas diminutas que existem dentro da célula chamada
mitocôndria. Quando o óvulo de uma mãe e um
espermatozóide do pai unem-se, as únicas mitocôndrias que
tornam-se parte das células do embrião recém-formado são as
do óvulo. Portanto, o ADN mitocondrial é herdado somente
pelo lado materno.

Por diversas razões técnicas, o ADN mitocondrial é particu-


larmente apto em permitir uma olhada para trás através das
gerações para visualizar o curso da evolução. E como o ADN é
herdado pelo lado materno, ele finalmente conduz a uma única
ancestral fêmea. De acordo com as análises, os humanos
modernos podem traçar sua ancestralidade genética até uma
fêmea que viveu na África há talvez 150 mil anos. (Devemos
nos lembrar, entretanto, que esta única fêmea era parte de
uma única população de mais ou menos 10 mil indivíduos; ela
não era uma Eva solitária com seu Adão.)

As análises não apenas indicaram uma origem africana para os


humanos modernos, como também revelaram a ausência de
indício de intercruzamento com a população pré-modema.
Todas as amostras de ADN mitocondrial originárias de
populações humanas existentes analisadas até agora são
notavelmente similares umas às outras, indicando uma origem
recente e comum. Se a mistura genética entre sapiens
modernos e antigos tivesse ocorrido, algumas pessoas teriam
ADN mitocondrial muito diferente da média, indicando sua
origem antiga. Até agora, com mais de 4.000 pessoas de todo
o mundo testadas, nenhum ADN mitocondrial antigo foi
encontrado. Todos os tipos de ADN mitocondrial oriundos de
populações modernas que têm sido examinados parecem ter
uma origem recente. Isto implica que os recém-chegados
modernos substituíram completamente as populações antigas
— tendo o processo começado na África há 150 mil anos e
então se disseminado através da Eurásia nos 100 mil anos
seguintes.

Quando Allan Wilson e sua equipe publicaram pela primeira


vez seus resultados, em um número da revista Nature de
janeiro de 1987, as conclusões foram apresentadas
audaciosamente, provocando consternação entre os
antropólogos e um grande interesse entre o público. Wilson e
seus colegas escreveram que seus dados indicavam que “a
transformação de formas arcaicas de Homo sapiens em formas
modernas ocorreu primeiramente na

98

África, há cerca de 100 mil ou 140 mil anos, e (...) todos os


humanos de hoje são descendentes daquelas populações.”
(Análises posteriores revelaram datas ligeiramente anteriores.)
Douglas Wallace e seus colegas apoiaram de modo geral as
conclusões do grupo de Berkeley.

Milford Wolpoff aferrou-se ao seu modelo de evolução


multirregional e denunciou os dados e as análises como
impróprios, mas Wilson e seus colegas continuaram a produzir
mais dados e finalmente afirmaram que as conclusões eram
estatisticamente inatacáveis. Recentemente, porém, alguns
problemas estatísticos nas análises foram descobertos e
reconheceu-se que as conclusões eram menos concretas do
que se afirmara. Não obstante, muitos biólogos moleculares
ainda acreditam que o ADN mitocondrial dá apoio suficiente à
hipótese “A partir da África”. E deve ser observado que indícios
genéticos mais convencionais, com base no ADN do núcleo,
estão começando a revelar o mesmo tipo de padrão mostrado
pelo ADN mitocondrial.

Aqueles que promovem a noção de uma substituição completa


ou mesmo parcial de populações pré-modernas por modernas
têm que enfrentar uma questão desconfortável: como esta
substituição ocorreu? De acordo com Milford Wolpoff, este
cenário exige que aceitemos um violento genocídio. Estamos
familiarizados com matanças desta natureza, por exemplo, na
extinção de nativos americanos e populações aborigines da
Austrália no século XIX. E isto pode ter sido verdadeiro em
tempos remotos também, embora até o momento não haja
qualquer vestígio de que tenha ocorrido.

Dada a ausência de indícios, somos forçados a examinar pos-


síveis alternativas àquela da substituição pela violência. Se não
existe nenhuma, então aquela hipótese, embora não
demonstrada, torna-se mais forte. Ezra Zubrow, antropólogo da
State University of New York, em Buffalo, examinou tal modelo
alternativo. Ele desenvolveu modelos no computador de
populações que interagem entre si, nos quais uma tem uma
leve vantagem competitiva sobre a outra. Fazendo rodar no
computador estas simulações, ele é capaz de determinar que
tipo de vantagem pode ser exigida pela população superior
para substituir a segunda rapidamente. A resposta não é
intuitiva: uma vantagem de 2 por cento pode levar à eliminação
da segunda população em um milênio.

Podemos entender imediatamente como uma população pode


destruir outra por meio da superioridade militar. Mas é muito
menos fácil para nós compreender como uma pequena
vantagem,

99

por exemplo na exploração de recursos tais como os alimentos,


pode destacar-se em um período relativamente curto de tempo
e conduzir a conseqüências cataclísmicas. Se os humanos
modernos tinham uma pequena vantagem sobre os
neanderthais, como podemos explicar a coexistência aparente
entre estas duas populações durante um período de mais ou
menos 60 mil anos no Oriente Médio? Uma explicação é que,
embora os humanos modernos tivessem evoluído em termos
anatômicos, o comportamento humano moderno veio mais
tarde. Uma segunda explicação, apoiada por muitos, é que a
coexistência é mais aparente do que real. É possível que as
diferentes populações tivessem ocupado a região em turnos,
acompanhando mudanças climáticas. Em épocas mais frias, os
humanos modernos dirigiam-se para o sul e os neanderthais
ocupavam o Oriente Médio; em épocas mais quentes acontecia
o contrário. Em razão do fato de a resolução temporal dos
depósitos encontrados nas cavernas ser pobre, este tipo de
“compartilhamento” de um local pode parecer coexistência.

Vale a pena notar, porém, que onde nós realmente sabemos


que os neanderthais e os humanos modernos coexistiram — na
Europa Ocidental, há 35 mil anos — eles assim o fizeram por
um milênio ou dois no máximo, de acordo com o modelo de
Zubrow. O trabalho de Zubrow não demonstra de modo
inequívoco que a competição demográfica foi o meio pelo qual
os humanos modernos substituíram as populações pré-
modernas quando eles as encontraram. Mas demonstra que a
violência não é a única candidata a mecanismo de substituição.

Onde isto tudo nos deixa? A importante questão da origem dos


humanos modernos, a despeito da riqueza de informações que
é possível obter-se, permanece sem solução. Entretanto, sinto
que é pouco provável que a hipótese da evolução
multirregional esteja correta. Suspeito que o Homo sapiens
moderno surgiu como um evento evolutivo discreto, em algum
lugar da África; mas suspeito também que, quando os
descendentes destes primeiros humanos modernos
expandiram-se para a Eurásia, eles misturaram-se às
populações de lá. Por que o indício genético, como é
atualmente interpretado, não reflete isto, eu não sei. Talvez a
leitura atual dos indícios esteja incorreta. Ou talvez, afinal de
contas, a hipótese da Eva mitocondrial revele-se correta. É
muito mais provável que esta incerteza seja resolvida quando o
clamor do debate diminuir e novos indícios forem encontrados
em apoio a nma nu nutra Has hinnteses competidoras.

100
6 - A linguagem da arte
Não há dúvida de que algumas das relíquias mais
impressionantes da pré-história humana são as representações
de animais — gravadas, pintadas e esculpidas — produzidas
há 30 mil anos. Nesta época, os humanos modernos tinham
evoluído e ocupado muito do Velho Mundo, mas não ainda,
provavelmente, o Novo Mundo. Onde quer que pessoas
vivessem — na África, na Ásia, na Europa e na Austrália —,
elas produziam imagens de seu mundo. A vontade de produzir
representações era aparentemente irresistível, e as imagens
elas próprias são irresistivelmente evocativas. São também
misteriosas.

Uma das minhas experiências mais memoráveis como an-


tropólogo foi visitar em 1980 algumas das cavernas decoradas
no sudoeste da França Eu estava realizando uma série de
fumes para a rede de televisão BBC e deste modo tive a
oportunidade de ver o que poucos viram, inclusive a famosa
caverna de Lascaux, perto da cidade de Les Eyzies, na
Dordonha. A mais extensivamente decorada de todas as
cavernas da Europa da Idade do Gelo, Lascaux tem estado
fechada ao público desde 1963, para proteger a integridade
das pinturas; atualmente há uma restrição rígida que permite
apenas cinco visitantes por dia Felizmente, uma duplicata
brilhantemente reproduzida das paredes decoradas da caverna
foi recentemente completada, de modo que as imagens ainda
podem ser vistas. Minha visita à caverna de Lascaux
verdadeira em 1980 me fez recordar uma época, há três
décadas e meia, quando a visitei com meus pais e Henri Breuil,
o mais famoso pré-historiador da França. As imagens de
touros, cavalos e veados eram agora tão impressionantes
quanto o eram quando eu era jovem, e elas pareciam mover-se
ante nossos olhos.

Tão espetacular quanto Lascaux, a caverna de Tue


d'Audoubert, na região Ariège da França, é única e de tirar o
fôlego. A caverna é uma das três cavernas decoradas situadas
em terras cujo proprietário é o conde Robert Bégouèn. Uma
passagem estreita e sinuosa conduz da luz brilhante do Sol por
vários quilômetros até a escuridão mais profunda. A luz da
lanterna do conde ilumina as

101

paredes e projeta sombras em movimento, e o chão de argila


brilha com uma cor alaranjada. Finalmente, chegamos a uma
pequena rotunda no final da passagem; o conde ilumina com
sua lanterna e com dramatismo apropriado um ponto no centro
da câmara, mais adiante o teto da caverna une-se ao chão. Lá,
vemos as figuras de dois bisões, soberbamente esculpidas em
argila, repousando contra as rochas.

Eu tinha visto reproduções destas figuras famosas, é claro,


mas nada havia me preparado para a realidade. Medindo cerca
de um sexto do tamanho real, elas são perfeitas na forma,
cheias de movimento em sua imobilidade; elas encapsulam a
vida. A habilidade dos artistas que esculpiram estas figuras há
cerca de 15 mil anos é de tirar o fôlego, especialmente quando
nos lembramos das condições sob as quais eles devem ter
trabalhado. Usando tochas simples feitas de gordura animal,
eles transportaram a argila de uma câmara vizinha e criaram as
formas dos animais com seus dedos e algum tipo de
implemento achatado; os olhos, as narinas, a boca e a juba
foram criados com um bastão pontiagudo ou osso. Depois que
terminaram, eles cuidadosamente varreram o entulho de seu
trabalho, deixando apenas pedaços de argila em forma de
salsicha. Antes interpretados como falos ou chifres, estes
pedaços são agora considerados amostras com as quais os
escultores testavam a plasticidade da argila.

As razões para criar os bisões e as condições sob as quais


estes foram esculpidos perderam-se no tempo. Uma terceira
figura foi grosseiramente gravada no chão da caverna perto
das outras duas, e há uma outra, uma estatueta, pequena e
feita de argila. O mais intrigante, porém, são as marcas de
calcanhares, provavelmente de crianças, em torno das figuras.
Estariam as crianças brincando enquanto os artistas
trabalhavam? Sendo assim, por que não vemos pegadas dos
artistas? Teriam as marcas de calcanhares sido feitas durante
um ritual que continha alguma parte da mitologia do Paleolítico
Superior em que as figuras dos bisões seriam aparte central?
Nós não o sabemos, e talvez não possamos sabê-lo. Como o
arqueólogo sul-africano David Lewis-Williams diz da arte pré-
histórica: “O significado é sempre culturalmente vinculado.”

Lewis-Williams, que trabalha na Universidade do Witwaters-


rand, tem estudado a arte do povo !Kung San do Kalahari, com
um olho voltado para o esclarecimento do significado da arte
pré-histórica, inclusive a arte da Europa da Idade do Gelo. Ele
reconhe que a expressão artística pode formar uma trama
enigmática

102

na tessitura intrincada do tecido cultural de uma sociedade. A


mitologia, a música e a dança são também parte desse tecido:
cada trama contribui para o significado do todo, mas elas por si
mesmas são necessariamente incompletas.

Mesmo que tivéssemos testemunhado esta parte da vida do


Paleolítico Superior na qual as pinturas das cavernas desempe-
nharam seu papel, poderíamos compreender o significado do
todo? Duvido. Precisamos apenas pensar nas histórias
narradas nas religiões modernas para apreciar a importância
de símbolos crípticos que podem ser destituídos de significado
fora da cultura a que pertencem. Pense no significado para um
cristão de uma imagem de um homem segurando um cajado
com um cordeiro aos seus pés. E pense na ausência de
qualquer significado para alguém que nunca ouviu a história
cristã.

Minha mensagem não é de desesperança mas sim de cautela.


As imagens antigas que temos hoje são fragmentos de uma ve-
lha história, e, embora a vontade de saber o que elas
significam seja grande, é mais prudente aceitar os limites
prováveis de nossa compreensão. Mais ainda, tem havido um
forte, e provavelmente inevitável, preconceito ocidental na
percepção da arte pré-histórica. Uma conseqüência tem sido
uma falta de atenção à arte pré-histórica de antigüidade igual e
algumas vezes maior da África Oriental e Meridional. Uma
outra conseqüência tem sido a visualização da arte da maneira
ocidental, como se esta consistisse de quadros pendurados
nas paredes de um museu, como objetos para serem
simplesmente vistos. De fato, o grande pré-historiador francês
André Leroi-Gourhan uma vez descreveu as imagens da Idade
do Gelo como “as origens da arte ocidental”. Isto, claramente,
não é o caso, pois ao final da Idade do Gelo, há 10 mil anos, a
pintura representativa e a gravação desapareceram totalmente,
sendo substituídas pelas imagens esquemáticas e padrões
geométricos. Muitas das técnicas empregadas em Lascaux,
tais como a perspectiva e a que transmite uma sensação de
movimento, tiveram que ser reinventadas na arte ocidental com
o Renascimento.

Antes de examinarmos algumas das tentativas de se obter um


vislumbre da vida no Paleolítico Superior por meio de imagens
antigas, devemos esboçar uma vista geral da arte da Idade do
Gelo. O período em questão começa há 35 mil anos e termina
há 10 mil com o fim da própria Idade do Gelo. Este período,
lembre-se, testemunhou a primeira aparição de tecnologia
sofisticada na Euro-

103

pa Ocidental, a qual evoluiu rapidamente, como se estivesse


seguindo a moda. A seqüência de mudanças é marcada pelos
nomes dados a cada nova variação da tecnologia do Paleolitico
Superior; podemos olhar para as mudanças na arte da Idade
do Gelo utilizando o mesmo referencial.

O Paleolitico Superior começa essencialmente com o período


aurignaciano, que vai de 34 mil a 30 mil anos atrás. Embora
não existam cavernas pintadas conhecidas deste período, as
pessoas devotaram esforços consideráveis para fazer
pequenas contas de marfim, destinadas presumivelmente a
enfeitar vestimentas. Elas também produziram figuras humanas
e de animais primorosas, usualmente esculpidas em marfim.
Por exemplo, no sítio arqueológico de Vogelherd, na
Alemanha, foram recuperadas meia dúzia de diminutas figuras
de mamutes e de cavalos esculpidas em marfim. Uma das
figuras representando um cavalo é uma das peças mais
habilmente produzidas encontradas de todo o Paleolitico
Superior. Como já disse antes, a música certamente desempe-
nhou um papel importante na vida destas pessoas, e uma
pequena flauta feita de osso encontrada em Abri Blanchard, no
sudoeste da França, é uma testemunha disso.

As pessoas do período gravettiano, que vai de 30 mil a 22 mil


anos atrás, foram as primeiras a manufaturar figuras em argila,
algumas das quais eram animais, outras humanas. As pinturas
de cavernas deste período do Paleolitico Superior são raras,
mas marcas que representam o contorno das mãos podem ser
encontradas em algumas cavernas, feitas talvez apoiando a
mão sobre a parede da caverna, espalhando tinta e ao mesmo
tempo acompanhando o seu contorno. (Um exemplo um pouco
macabro desta prática foi descoberto no sítio arqueológico de
Gargas, na parte francesa dos Pireneus, onde foram contadas
mais de duas centenas de impressões, quase todas sem uma
ou mais partes dos dedos.) A mais famosa das inovações
gravettianas, porém, são as figuras femininas, muitas vezes
sem características faciais ou os membros inferiores. Feitas
com argila, marfim ou calcita, elas têm sido tipicamente
chamadas de Venus, e se supõe que representem um culto de
fertilidade disseminado por todo o continente. Entretanto,
exames apurados mais críticos e recentes mostram uma
grande diversidade na forma destas figuras, e poucos
estudiosos defenderiam atualmente a idéia de um culto de
fertilidade.

A pintura de cavernas, que geralmente chama mais a atenção,


começou no período solutriano do Paleolitico Superior, que se
estende de 22 mil a 18 mil anos atrás. Entretanto, outras
formas

104

de expressão artística eram mais proeminentes. Por exemplo, a


gravação de baixos-relevos grandes e impressionantes, muitas
vezes em sítios de moradia, foi evidentemente importante para
os solutrianos. Um exemplo maravilhoso é o sítio em Roc de
Sers, na região da Charente, na França, onde grandes figuras
de cavalos, bisões, renas, bodes das montanhas e uma figura
humana foram gravadas na rocha, nos fundos de um abrigo;
algumas das figuras em relevo têm mais ou menos 15
centímetros.

O período final do Paleolítico Superior — o magdaleniano, que


se estende de 18 mil ali mil anos atrás — foi a era das pinturas
nas profundezas das cavernas: 80 por cento de todas as caver-
nas em que se encontram as pinturas datam deste período.
Lascaux foi pintada nesta época, assim como Altamira, uma ca-
verna tão espetacular quanto Lascaux na região da Cantábria,
no norte da Espanha. Os magdalenianos eram também
escultores e gravadores talentosos de objetos em pedra, osso
e marfim — alguns utilitários, tais como as lanças, outros não
tão obviamente utilitários como, por exemplo, os “bastões”.
Embora seja muitas vezes dito que a forma humana é uma
raridade na arte da Idade do Gelo, este não foi o caso do
período magdaleniano. As pessoas do magdaleniano da
caverna de La Marche, no sudoeste da França, gravaram mais
de uma centena de perfis da cabeça humana, cada uma delas
tão individualizada que dá a impressão de um retrato.

A espetacular pintura no teto da caverna de Altamira poderia


ter permanecido para sempre sem ser descoberta não fosse
por Maria, a jovem filha de Don Marcellion de Sautola, que era
o proprietário da fazenda onde a caverna está situada. Um dia,
em 1879, pai e filha exploraram a caverna que havia sido
descoberta uma década antes. Maria entrou em uma câmara
baixa que De Sautola havia explorado previamente. Ela estava
“correndo pela caverna, brincando aqui e ali”, lembrou mais
tarde Maria. “De repente percebi as formas e as figuras no
teto... 'Olhe, papai, bois'“, gritou ela. Na luz bruxuleante de uma
lâmpada a óleo, Maria viu o que ninguém havia visto em 17 mil
anos: imagens de duas dúzias de bisões agrupados em um
círculo, com dois cavalos, um lobo, três javalis e três fêmeas de
cervo em torno da periferia. Eles tinham as cores vermelha,
amarela e preta, e pareciam tão frescos como se tivessem sido
recém-pintados.

O pai de Maria, um arqueólogo amador apaixonado, ficou es-


pantado ao ver o que perdera e sua filha havia encontrado, e
reco-

105

nheceu o fato como uma grande descoberta. Infelizmente, os


pré-historiadores profissionais daquela época não fizeram o
mesmo: as pinturas eram tão brilhantes e vitais que foram
consideradas obra de um artista recente. Elas pareciam boas
demais, realistas demais, artísticas demais para ser fruto de
mentes primitivas. Ao contrário, elas deveriam ser
consideradas fruto do trabalho de um artista itinérante recente.

Nesta época, diversas peças de arte “portátil” — isto é, ossos e


chifres gravados e esculpidos — haviam sido descobertas. A
arte pré-histórica portanto havia sido reconhecida como real.
Mas pintura alguma havia sido aceita como antiga.
Ironicamente, um pouco antes de as imagens de Altamira
serem descobertas, Leopold Chiron, um mestre-escola,
descobrira gravações nas paredes da caverna de Chabot, no
sudoeste da França. Entretanto, as gravações eram difíceis de
ser decifradas. Os pré-historiadores relutavam em aceitá-las
como indício da arte mural do Paleolítico Superior. Como o
arqueólogo britânico Paul Bahn observou: “Enquanto as
pinturas de Chabot eram muito modestas para causar impacto,
as de Altamira eram demasiado esplêndidas para ser
verdadeiras.”

Em 1888, quando De Sautola morreu, Altamira era ainda posta


de lado como uma tentativa cristalina de fraude. A aceitação
final de Altamira como genuinamente pré-histórica foi conse-
guida pela acumulação constante, embora de menor impacto,
de descobertas similares — principalmente na França. Da
maior importância entre estas descobertas foi a da caverna de
La Mouthe, na região da Dordonha. Escavações que
começaram em 1895 e continuaram pela virada do século
revelaram uma arte mural, tais como um bisão gravado e
diversas imagens pintadas. Depósitos da era paleolítica
superior cobriam algumas destas imagens, provando sua
antigüidade. Mais ainda, o primeiro exemplo de uma lâmpada
paleolítica, esculpida em arenito, que permitia que os artistas
das cavernas pudessem trabalhar, foi descoberta nesta
caverna. A opinião profissional começou a mudar e muito em
breve a pintura do Paleolítico Superior foi aceita como uma
realidade. 0 marco mais famoso desta aceitação foi um
trabalho de Émile Carthaüac, um adversário de destaque da
autenticidade das pinturas, intitulado “Mea Culpa d'un
Sceptique” publicado em 1902. “Nós não temos mais qualquer
motivo para duvidar de Altamira”, escreveu ele. Embora o
trabalho de Carthailac tenha se tornado um exemplo clássico
de um cientista que admite o seu erro, seu tom é bastante
rancoroso, e ele defende o seu ceticismo anterior.

106

Inicialmente, como coloca Bahn, as pinturas da Idade do Gelo


eram vistas como “simplesmente garatujas, grafites, atividade
de recreação: adornos descuidados/irracionais de caçadores
com tempo a seu dispor”. Esta interpretação, diz ele, origina-se
da concepção de arte da França contemporânea: “A arte ainda
é vista em termos dos séculos recentes, com seus retratos,
paisagens e quadros narrativos. Ela era simplesmente 'arte' e
sua única função era agradar e decorar.” Mais ainda, alguns
pré-historiadores franceses influentes eram marcadamente
anticlericais e não lhes agradava imputar expressão religiosa
às pessoas do Paleolítico Superior. Esta interpretação inicial
pode ser vista como razoável, especialmente porque os
primeiros exemplos de arte — objetos “portáteis” — de fato
pareciam simples. Com a descoberta posterior da arte nas
paredes, porém, esta visão mudou. Pelos números relativos de
animais pintados nos tetos e nas paredes, as pinturas não
refletiam a vida real; e havia também figuras enigmáticas,
sinais geométricos sem interpretação óbvia.

John Halverson, da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz,


propôs recentemente que os pré-historiadores retornassem à
interpretação do tipo “arte pelo amor à arte”. Não deveríamos
esperar que a consciência humana emergisse completamente
amadurecida no decorrer de nossa evolução, raciocina ele, de
modo que os primeiros exemplos de arte na pré-história têm
tendência a ser simples porque as mentes das pessoas eram
do ponto de vista cognitivo simples. As pinturas de Altamira
realmente parecem simples: representações de cavalos, bisões
e outros animais aparecem isoladamente ou algumas vezes em
grupos, mas apenas raramente num contexto que se
assemelhe a um cenário natural. As imagens são precisas mas
destituídas de contexto. Isto, diz Halverson, indica que os
artistas da Idade do Gelo estavam simplesmente pintando ou
gravando fragmentos de seu meio ambiente, com ausência
total de qualquer significado mitológico.

Acho que este argumento não convence. Uns poucos exem-


plos das imagens da Idade do Gelo são suficientes para indicar
que há mais nesta arte do que as primeiras elucubrações
hesitantes da mente humana moderna. Por exemplo, em uma
das outras cavernas de propriedade do conde Bégouën, a
caverna de Trois Frères, encontramos uma imagem de uma
quimera humano/animal conhecida como O Feiticeiro. A
criatura está ereta apoiada sobre suas patas traseiras, sua face
voltada para quem a contempla. Exibindo um par de chifres
enorme, ela parece ser constituída de partes corporais
pertencentes-a muitos animais diferentes, inclu-

107

sive humanos. Isto não é uma simples imagem, “sem mediação


de cognição refletiva”, como Halverson teria nos feito crer. E
também não o é a primeira criatura do Salão dos Touros em
Lascaux. Conhecida como O Unicórnio, a criatura pode
representar um humano disfarçado de animal ou pode ser uma
quimera. Muitos destes desenhos são suficientes para
convencer-nos de que estamos vendo imagens bastante
mediadas pela cognição refletiva.

Entretanto, o mais significativo de tudo é que as imagens são


mais complexas do que sugerem as afirmações de Halverson.
Como já indiquei, as pinturas e gravações não são cenas
naturalistas do mundo da Idade do Gelo. Não há nada que se
assemelhe a uma pintura paisagística verdadeira. E, a julgar
pelos restos de animais encontrados nos lugares habitados por
estas pessoas, as imagens não são também um simples
reflexo da alimentação diária. Os pintores do Paleolítico
Superior tinham cavalos e bisões em suas mentes, mas renas
e ptármigas em seus estômagos. O fato de que alguns animais
são bem mais proeminentes como imagens nas pinturas das
cavernas do que eram na paisagem natural é certamente
significativo: eles parecem ter tido uma importância especial
para as pessoas do Paleolítico que os pintaram.

A primeira hipótese importante para explicar por que as


pessoas do Paleolítico Superior pintaram estas imagens
mencionava a magia relacionada com a caça. Na virada do
século, os antropólogos estavam tomando conhecimento de
que as pinturas dos aborigines australianos eram parte de
rituais mágicos e totêmicos destinados a melhorar os
resultados de uma caçada a ser realizada. Em 1903, o
historiador de religiões Salomon Reinach argumentou que o
mesmo poderia ser verdade para a arte do Paleolítico Superior:
em ambas as sociedades, a pintura representava muito mais
umas poucas espécies em relação ao meio ambiente natural.
Os povos do Paleolítico Superior podem ter feito pinturas para
assegurar o aumento dos animais totêmicos e de presas,
exatamente como se sabia que os australianos faziam.

Henry Breuil gostou das idéias de Reinach e as desenvolveu e


promoveu vigorosamente durante a sua longa carreira. Por
quase sessenta anos, ele registrou, mapeou, copiou e contou
imagens nas cavernas por toda a Europa. Ele também
desenvolveu uma cronologia para a evolução da arte durante o
Paleolítico Superior. No decorrer deste tempo, Breuil continuou
a interpretar a arte como magia relacionada com a caça, como
o fez a maior parte do establishment arqueológico.

108

Um problema óbvio com a hipótese que relacionava a caça


com a magia era que muitas vezes as imagens representadas,
como já observado, não refletiam a dieta dos pintores do
Paleolítico Superior. O antropólogo francês Claude Lévi-
Strauss uma vez comentou que, na arte do povo San do
Kalahari e dos aborigines australianos, certos animais eram
representados mais freqüentemente não porque eram “bons
para comer”, mas sim porque eram bons “para se pensar”.
Quando Breuil morreu em 1961, era época do aparecimento de
uma perspectiva nova, que veio com André Leroi-Gourhan, que
se tomaria tão proeminente na pré-história francesa quanto
Breuil tinha sido.

Leroi-Gourhan procurava uma estrutura na arte, buscando


sentido em padrões de muitas imagens, não em imagens
individuais como Breuil havia feito. Ele realizou longos
levantamentos das cavernas pintadas e percebeu padrões
repetidos, com certos animais “ocupando” certas partes das
cavernas. O cervo, por exemplo, muitas vezes aparecia nos
caminhos de entrada mas eram incomuns nas câmaras
principais. O cavalo, o bisão e o boi eram as criaturas
predominantes nas câmaras principais. Os carnívoros apare-
ciam na maioria das vezes bem no fundo do sistema de
cavernas. Mais ainda, alguns animais representavam a
masculinidade, outros a feminilidade, disse ele. A imagem do
cavalo representava a masculinidade, e a do bisão a
feminilidade; o cervo macho e o cabrito montes também
representavam a masculinidade; o mamute e o boi, a
feminilidade. Para Leroi-Gourhan, a ordem nas pinturas refletia
uma ordem na sociedade do Paleolítico Superior: a saber, a
divisão entre masculinidade e feminilidade. Uma outra
arqueóloga francesa, Annette Laming-Emperaire, desenvolveu
um conceito similar de dualidade masculino/feminino.
Entretanto, os dois estudiosos muitas vezes divergiram sobre
quais imagens representavam a masculinidade e quais
representavam a feminilidade. A diferença de opinião contribuiu
para a derrocada final do esquema,
A noção de que as próprias cavernas poderiam impor uma
estrutura à expressão artística foi recentemente revivida, mas
de modo incomum. Os arqueólogos franceses Iégor Reznikoff e
Michel Dauvois realizaram levantamentos detalhados de três
cavernas decoradas na região Ariège no sudoeste da França.
De modo não convencional, eles não estavam procurando
artefatos de pedra, objetos gravados ou novas pinturas. Eles
estavam cantando. Mais especificamente, moviam-se
lentamente através das cavernas, parando seguidamente para
testar a ressonância de cada seção. Utilizando-se de notas
musicais que variavam de três oita-

109

vas, eles levantaram um mapa de ressonância de cada caverna


e descobriram que aquelas áreas com maior ressonância eram
também as mais prováveis de abrigar uma pintura ou gravação.
Em seu relatório, que publicaram no fim de 1988, Reznikoff e
Dauvois comentaram sobre o impacto atordoante dentro das
cavernas da ressonância, uma experiência que certamente
teria sido realçada sob a luz bruxuleante das lâmpadas simples
da Idade do Gelo.

Exige pouca imaginação visualizar os povos do Paleolítico


Superior entoando encantamentos em frente às pinturas das
cavernas. A natureza incomum das imagens e o fato de elas
muitas vezes encontrarem-se nas partes mais inacessíveis das
cavernas sugerem um ritual. Hoje, quando se fica parado em
frente a uma criação da Idade do Gelo, como fiz com o bisão
de Le Tue d'Audoubert, vozes antigas abrem caminho à força
em nossa mente, com um acompanhamento, talvez, de
tambores, flautas e apitos. A descoberta de Reznikoff e
Dauvois é tão fascinante que, como o arqueólogo da
Universidade de Cambridge Chris Scarre comentou na época,
atrai “uma nova atenção para a importância provável da música
e do canto nos rituais de nossos antigos ancestrais”.

Quando Leroi-Gourhan morreu em 1986, os pré-historiadores


estavam novamente prontos para uma reavaliação importante
de suas interpretações, exatamente como havia acontecido
quando Breuil morreu. Hoje em dia, os pesquisadores estão
preparados para considerar uma variedade de explicações,
mas em todos os casos o contexto cultural é enfatizado e há
uma maior percepção do perigo de se impor idéias originárias
de uma sociedade moderna à sociedade do Paleolítico
Superior.
Quase certamente, pelo menos alguns dos elementos da arte
da Idade do Gelo relacionavam-se com o modo pelo qual os
povos do Paleolítico Superior organizavam suas idéias sobre o
seu mundo — uma expressão de seu cosmos espiritual.
Voltaremos a este assunto um pouco mais tarde. Mas pode ter
havido aspectos mais práticos no modo pelo qual eles
organizavam seu mundo social e econômico. Margaret Conkey,
antropóloga da Universidade da Califórnia, em Berkeley,
sugeriu, por exemplo, que Altamira pode ter sido no outono um
lugar de reunião para as muitas centenas de povos da região.
O cervo vermelho e o lapa deveriam ser abundantes então. E
isto daria uma ampla justificação econômica para tal
congregação de bandos. Mas, como aprendemos com os
caçadores-coletores modernos, tais congregações, qualquer
que seja a razão econômica ostensiva, servem mais para
estabelecer alianças políticas e sociais do que para os
assuntos mundanos.

110

O antropólogo britânico Robert Laden acredita que pode


perceber alguma coisa da estrutura de tais alianças nos sítios
arqueológicos em que se encontram as cavernas no norte da
Espanha. Os sítios principais, tais como Altamira, são muitas
vezes cercados por sítios menores dentro de um raio de
aproximadamente 16 quilômetros, como se eles fossem centros
de uma aliança política ou social. Os 32 quilômetros de
diâmetro desta esfera podem representar a distância otimizada
para a qual tais alianças podiam ser prontamente mantidas.
Nenhum padrão deste tipo foi discernido ainda entre os sítios
arqueológicos em que se encontram as cavernas da França.

Talvez o arranjo do bisão e de outras imagens de animais pin-


tadas no teto da caverna de Altamira representem de algum
modo o centro desta esfera de influência. A estrutura principal
dos tetos pintados consiste de quase duas dúzias de imagens
policrômicas de bisões, dispostas principalmente em torno da
periferia. Estas imagens, sugere Margaret Conkey, podem
representar grupos diferentes que se reuniam neste sítio. De
modo significativo, a gama de objetos gravados que os
arqueólogos encontraram em Altamira parece ser uma amostra
das muitas formas decorativas locais. Por todo o norte da
Espanha nesta época, os povos decoravam os objetos
utilitários com vários desenhos, inclusive asnas, estruturas em
forma de lúnulas, curvas similares que se encaixam uma dentro
da outra, e assim por diante. Cerca de 15 destes desenhos
foram identificados, cada um dos quais tende a ser geografica-
mente restrito, sugerindo estilos locais ou identidade de
bandos. Em Altamira, muitos destes estilos locais são
encontrados juntos, daí o argumento de que Altamira poderia
ser um sítio de reunião de alguma importância política e social.
Até agora, este tipo de indício ainda não foi descoberto em
Lascaux. Entretanto, é razoável pensar sobre este sítio como
de importância considerável para os povos dentro de uma
grande área, em vez de um produto local de pintores
entusiásticos. Talvez Lascaux derivasse seu poder do fato de
ser lugar de um importante evento espiritual, tal como o
aparecimento de uma divindade no cosmos do Paleolítico
Superior. Tal é o caso, por exemplo, com muitas das partes do
meio ambiente do aborigine australiano, partes que de outras
maneiras são estéreis.

Já disse que as imagens da arte da Idade do Gelo são de


animais fora de seu contexto ecológico, e em proporções que
não representam sua freqüência no mundo real. Isto por si
mesmo nos diz
111

algo da natureza enigmática da arte. Entretanto, além das ima-


gens representativas, há outras marcas que são mesmo mais
enigmáticas: uma disseminação de padrões geométricos — ou
sinais, como têm sido chamados. Estes incluem pontos,
grades, asnas, curvas, ziguezagues, curvas similares que se
encaixam uma dentro da outra e retângulos, e estão entre os
elementos mais intrigantes da arte do Paleolítico Superior. Em
sua maior parte, tiveram uma explicação como componentes
de qualquer hipótese que prevalecesse, na hipótese da magia
associada à caça por exemplo, ou na hipótese da dicotomia
masculino/feminino. David Lewis-Williams apresentou
recentemente uma interpretação nova e interessante: elas são
sinais reveladores de uma arte relacionada com o xamanismo,
diz ele — imagens de uma mente em estado de alucinação.

Lewis-Williams estudou a arte do povo San do sul da África


durante quatro décadas. Muito de sua arte data talvez de 10 mil
anos atrás, mas um pouco dela foi criada dentro de uma
memória histórica recente. Gradualmente, ele percebeu que as
imagens da arte San não eram representações simplórias da
vida do povo San, como os antropólogos ocidentais tinham
assumido por um longo tempo. Ao contrário, elas eram o
produto de xamãs em estado de transe: as imagens eram uma
conexão com o espírito de um mundo xamanístico e eram
representações do que o xamã via durante sua alucinação. Em
determinado ponto de seus estudos, Lewis-Williams e seu
colega Thomas Dowson entrevistaram uma velha mulher que
vivia no distrito de Tsolo em Transkei. Filha de um xamã, ela
descreveu alguns dos agora desaparecidos rituais
xamanísticos.

Os xamãs podiam induzir a si próprios o transe por meio de


várias técnicas, inclusive drogas e hiperventilação, disse ela.
Não importa o modo pelo qual era atingido, o estado de transe
era quase sempre acompanhado de canções rítmicas, danças
e bater de palmas de grupos de mulheres. À medida que o
transe tornava-se mais profundo, os xamãs começavam a
tremer, com seus braços e corpos vibrando vigorosamente.
Durante sua visita ao mundo dos espíritos, o xamã muitas
vezes “morre”, curvando-se como se sentisse dores. O eland é
uma força poderosa na mitologia San, e o xamã pode utilizar o
sangue de cortes no pescoço e na garganta do animal para
infundir potência em alguém, esfregando-o nos cortes no
pescoço e na garganta da pessoa. Posteriormente, o xamã
muitas vezes vale-se de um pouco do mesmo sangue enquan-
to pinta um registro de seu contato alucinatório com o mundo
dos

112

espíritos. As imagens têm poder por si mesmas, derivado do


contexto nas quais foram pintadas, e a velha mulher contou
para Lewis-Williams que um pouco deste poder poderia ser
adquirido colocando-se as mãos sobre elas.

O eland é o animal representado com mais freqüência nas


pinturas San, e seu poder vem de muitas formas. Lewis-
Williams perguntou-se se o cavalo e o bisão eram fontes
similares de poder para os povos do Paleolítico Superior —
imagens que eram invocadas e tocadas quando se necessitava
de energia espiritual. Como maneira de abordar esta questão,
ele precisava de indícios de que também a arte do Paleolítico
Superior era xamanística. Uma pista que foi fornecida pelos
sinais geométricos.

De acordo com a literatura psicológica que Lewis-Williams


pesquisou, há três estágios de alucinação, cada um mais
profundo e complexo. No primeiro estágio, o indivíduo vê
formas geométricas tais como grades, ziguezagues, pontos,
espirais e curvas. Estas imagens, seis formas ao todo, são
brilhantes, incandescentes e inconstantes — e poderosas. Elas
são chamadas imagens entópticas (“dentro da visão”), pois são
produzidas pela arquitetura neural básica do cérebro. “Porque
elas derivam do sistema nervoso humano, todas as pessoas
que entram em certos estados alterados da consciência, não
importa quais suas origens culturais, podem vir a percebê-las”,
observou Lewis-Williams em um artigo de 1986 publicado na
revista Current Anthropology. No segundo estágio do transe, as
pessoas começam a ver estas imagens como objetos reais.
Curvas podem ser interpretadas como colinas em uma
paisagem, asnas como armas, e assim por diante. A natureza
do que a pessoa vê depende da experiência cultural individual
e de suas preocupações. Os xamãs do povo San
freqüentemente manipulam conjuntos de curvas
transformando-os em colmeias, já que as abelhas são um
símbolo do poder sobrenatural que estas pessoas controlam
quando entram em transe.

A passagem do segundo para o terceiro estágio de alucinação


é muitas vezes acompanhada da sensação de atravessar um
vórtice ou um túnel rotatório, imagens completas — algumas
banais, outras extraordinárias — podem ser vistas. Um tipo
importante de imagem neste estágio é a quimera humano-
animal, ou teriântropos, como são chamadas (ver figura 6.1).
Estas criaturas são comuns na arte xamanística do povo San.
Elas também são uma componente intrigante da arte do
Paleolítico Superior.

As imagens entópticas das alucinações do primeiro estágio


estão presentes na arte San, o que pode ser considerado um
indí-

113

cio objetivo de que esta arte é xamanística. E estas mesmas


imagens são vistas na arte do Paleolítico Superior, algumas
vezes sobrepostas a imagens de animais, algumas vezes de
forma isolada Em combinação com a presença de teriântropos
enigmáticos, elas constituem um forte indício de que pelo
menos algo da arte do Paleolítico Superior é deveras
xamanístico. Estes teriântropos foram uma vez descartados
como produto de “uma mentalidade primitiva [que] falhou em
estabelecer fronteiras definitivas entre humanos e animais”,
como John Halverson coloca. Se, em vez disto, elas são
imagens percebidas em um transe, elas eram tão reais para o
pintor do Paleolítico Superior como os cavalos e os bisões.
Quando pensamos na arte, temos a tendência a pensar em
uma pintura sendo feita sobre uma superfície, seja ela uma tela
ou

114
uma parede. A arte xamanística não é assim. Os xamãs muitas
vezes percebem suas alucinações surgindo de superfícies
rochosas: “Eles vêm as imagens como tendo sido colocadas ali
pelos espíritos, e, ao pintá-las, os xamãs dizem que eles
simplesmente estão tocando e marcando o que já existe”,
explica Lewis-Williams. “As primeiras representações não eram
portanto imagens representativas do modo como eu e você
pensamos sobre elas, mas sim imagens mentais fixas de outro
mundo.” A superfície rochosa em si mesma, observa ele, é uma
interface entre o mundo real e o espiritual — uma passagem
entre os dois. É mais do que um meio para as imagens; é uma
parte essencial destas e do ritual que as acompanhava. A
hipótese de Lewis-Williams atraiu uma grande dose de atenção
e, inevitavelmente, algum ceticismo. Seu valor está em permitir
que vejamos a arte com olhos diferentes. A arte xamanística é
tão diferente da arte ocidental em sua motivação e execução
que por meio dela podemos olhar a arte do Paleolítico Superior
de novas maneiras.

O arqueólogo francês Michel Lorblanchet está também nos


fazendo olhar para a arte do Paleolítico Superior de novas
maneiras. Há vários anos ele vem realizando arqueologia
experimental, fazendo réplicas das imagens das cavernas em
uma tentativa de obter uma percepção das tarefas e
experiência dos artistas da Idade do Gelo. Seu projeto mais
ambicioso foi recriar os cavalos de Pêche Merle, uma caverna
da região Lot, na França. Os dois cavalos olham para direções
opostas, com as ancas ligeiramente sobrepostas, e têm mais
ou menos 1,2 metro de altura. Eles têm manchas pretas e
vermelhas e reproduções de mãos por meio de um estêncil ao
seu redor. Em razão de a superfície da rocha sobre a qual as
imagens foram pintadas ser áspera, os artistas aparentemente
fizeram a tinta passar por um tubo em vez de utilizar um pincel.

Lorblanchet descobriu uma superfície rochosa similar em uma


caverna próxima e resolveu pintar os cavalos novamente,
usando a técnica do tubo. “Gastei sete horas por dia durante
uma semana, puff...puff...puff, contou ele para um redator da
revista Discover. “Foi cansativo, particularmente porque havia
monóxido de carbono na caverna. Mas você sente algo
especial pintando desse jeito. Você sente como se estivesse
soprando a imagem sobre a rocha — projetando seu espírito
das partes mais profundas de seu corpo sobre a superfície da
rocha.” Isto não parece uma abordagem muito científica, mas
talvez um objetivo intelectual tão esquivo exija métodos
heterodoxos. No passado, Lorblan-

115

chet mostrou ser inovador em aventuras na feitura de réplicas.


Esta certamente merece também consideração. Se as pinturas
da Idade do Gelo eram partes da mitologia do Paleolítico
Superior, então os pintores realmente colocaram seu espírito
sobre a parede, não importa qual o método que eles utilizaram
para aplicar a tinta.

Poderemos nunca saber o que tinham em mente os escultores


de Tue d'Audoubert quando fizeram o bisão, nem os pintores
de Lascaux quando pintaram o unicórnio, ou qualquer dos artis-
tas da Idade do Gelo no que fizeram. Mas podemos ter certeza
de que o que fizeram era importante em um sentido muito
profundo para os artistas e para as pessoas das gerações
posteriores que viram as imagens. A linguagem da arte é
poderosa para as pessoas que a compreendem, e intrigante
para quem não a comprende. O que sabemos é que aqui
estava a mente moderna em funcionamento, gerando
simbolismos e abstrações de um modo que somente o Homo
sapiens é capaz de fazê-lo. Embora não possamos ter certeza
sobre o processo pelo qual os seres humanos evoluíram, com
certeza sabemos que ele envolveu a emergência do tipo de
mundo mental que experimentamos hoje.

116
7 - A arte da linguagem
Não há dúvida de que a evolução da linguagem falada como a
conhecemos foi um ponto de definição na pré-história humana.
Foi talvez o momento de definição. Equipados com uma lingua-
gem, os humanos foram capazes de criar novos tipos de
mundo na natureza: o mundo da consciência introspectiva e o
mundo que construímos e dividimos com os outros, o qual
chamamos “cultura”. A linguagem tornou-se nosso meio e a
cultura nosso nicho. Em seu livro publicado em 1990 Language
and Species, o lingüista da Universidade do Havaí Derrick
Bickerton exprime isto de modo convincente: “Somente a
linguagem poderia ter rompido os grilhões da experiência
imediata a que toda criatura está presa, libertando-nos para as
liberdades infinitas do espaço e do tempo.”

Os antropólogos podem ter certeza somente sobre dois pontos


que se relacionam com a linguagem, um direto, o outro indireto.
Primeiro, a linguagem falada diferencia nitidamente o Homo
sapiens de todas as outras criaturas. Nenhuma exceto o
homem tem uma linguagem falada complexa, um meio de
comunicação e um meio de reflexão introspectiva. Segundo, o
cérebro do Homo sapiens tem três vezes o tamanho do cérebro
de nossos parentes evolutivos mais próximos, os grandes
macacos africanos. Há certamente uma relação entre estas
duas observações, mas sua natureza é ferozmente debatida

Ironicamente, embora os filósofos tenham refletido durante


muito tempo sobre o mundo da linguagem, a maior parte do
que é conhecido sobre esta emergiu nas três décadas
passadas. Grosseiramente falando, surgiram dois pontos de
vista que dizem respeito à fonte evolutiva da linguagem. O
primeiro a vê como uma característica singular dos humanos,
uma habilidade que surgiu como uma conseqüência colateral
do aumento do nosso cérebro. Neste caso, a linguagem teria
surgido rápida e recentemente, na medida em que um limiar
cognitivo foi ultrapassado. A segunda posição argumenta que a
linguagem falada evoluiu por meio da seleção natural atuando
sobre várias faculdades cognitivas — inclusive, mas não
limitada por ela, a comunicação — dos ances-

117

trais inumanos. Neste assim chamado modelo de continuidade,


a linguagem evoluiu gradualmente na pré-história humana,
começando com a evolução do gênero Homo.
O lingüista do MIT Noam Chomsky tem estado associado
principalmente com o primeiro modelo, e sua influência tem
sido imensa. Para os chomskianos, que representam a maioria
dos lingüistas, há pouca utilidade em se procurar por indícios
de capacidade lingüística nos primórdios dos registros
humanos, e ainda menos em procurá-los nos nossos primos
simiescos. Em conseqüência, um antagonismo tremendo tem
sido demonstrado em relação àqueles que tentam ensinar aos
macacos alguma forma de comunicação simbólica, usualmente
por meio de um computador e lexigramas arbitrários. Um dos
temas deste livro é a separação filosófica entre aqueles que
vêem os humanos como especiais e separados do resto da
natureza e aqueles que aceitam uma ligação íntima. Em
nenhum lugar isto aparece mais apaixonadamente do que no
debate sobre a natureza e a origem da linguagem. O vitríolo
lançado pelos lingüistas sobre aqueles que pesquisam a
linguagem nos macacos reflete indubitavelmente esta
separação.

Ao tecer comentários sobre aqueles que defendem a singu-


laridade da linguagem humana, a psicóloga da Universidade do
Texas Kathleen Gibson escreveu recentemente: “Embora
científica em seus postulados e discussão [esta perspectiva]
encaixa-se firmemente na longa tradição filosófica ocidental,
que remonta pelo menos aos autores do Gênesis e aos escritos
de Platão e Aristóteles, que sustentam que a mentalidade e o
comportamento humanos [são] qualitativamente diferentes
daqueles dos animais.” Como resultado deste raciocínio, a
literatura antropológica há muito tem sido entulhada com
comportamentos que eram considerados exclusivamente
humanos. Estes incluem a fabricação de artefatos, a habilidade
de utilizar símbolos, reconhecimento em frente a um espelho,
e, é claro, a linguagem. Desde 1960, esta parede de
exclusividade vem desmoronando de modo constante, com a
descoberta de que os macacos podem fazer e utilizar
ferramentas, usar símbolos e reconhecer-se como indivíduos
na frente de um espelho. Somente a linguagem falada
permanece intacta, de modo que os lingüistas são efetivamente
os últimos defensores da exclusividade humana. Eles parecem
levar sua tarefa a sério.

A linguagem surgiu na pré-história humana — de algum modo


e ao longo de alguma trajetória temporal — e ao fazê-lo
transformou-nos como indivíduos e como espécie. “De todas as
118

nossas faculdades mentais, a linguagem é a que está mais


profundamente abaixo do limiar de nossa percepção, a menos
acessível à mente racionalizadora”, observou Bickerton. “Nós
mal podemos lembrar-nos de uma época em que não
dispúnhamos dela, muito menos como a adquirimos. No
momento em que pudemos enquadrar pela primeira vez um
pensamento, lá estava ela.” Como indivíduos, dependemos da
linguagem para estar no mundo e simplesmente não podemos
imaginar um mundo sem ela. Como espécie, a linguagem, por
meio da elaboração da cultura, transforma o modo pelo qual
interagimos uns com os outros. Tanto a linguagem como a
cultura nos unem e nos separam. As 5.000 línguas existentes
no mundo são produto de nossa habilidade comum, mas as
5.000 culturas que elas criam são separadas umas das outras.
Somos de tal modo produto da cultura que nos molda que
muitas vezes falhamos em reconhecê-la como um artefato de
nossa própria fabricação, até que deparamos com uma cultura
muito diferente.

A linguagem realmente cria um abismo entre o Homo sapiens e


o resto do mundo natural. A habilidade humana de gerar sons
discretos, ou fonemas, é apenas modestamente realçada
quando a comparamos com a mesma habilidade nos macacos:
nós temos cinqüenta fonemas; o macaco cerca de 12. Não
obstante, nossa utilização desses sons é virtualmente ilimitada.
Eles podem ser arranjados e rearranjados para dotar o ser
humano médio de um vocabulário de uma centena de milhar de
palavras, e estas palavras podem ser combinadas em uma
infinidade de sentenças. Como conseqüência, a capacidade de
comunicação rápida, detalhada, e a riqueza de pensamento do
Homo sapiens não têm rival no mundo da natureza

Nossa tarefa, em primeiro lugar, é explicar como a linguagem


surgiu. Do ponto de vista chomskiano, não temos necessidade
de olhar para a seleção natural como sua fonte pois ela é um
acidente da história, uma faculdade que emergiu uma vez ultra-
passado algum limiar cognitivo. Chomsky argumenta como se
segue: “Atualmente, não temos nenhuma idéia de como as leis
físicas devem ser aplicadas quando 1010 neurônios são
colocados em um objeto do tamanho de uma bola de basquete,
sob as condições especiais que surgiram durante a evolução
humana.” Assim como Steven Pinker, um lingüista do MIT,
rejeito este ponto de vista. Sucintamente, ele afirma que
Chomsky “pegou a idéia ao contrário”. Provavelmente o
cérebro aumentou de tamanho como resultado da evolução da
linguagem e não do modo oposto. Ele argu-

119

menta que “é a fiação precisa dos microcircuitos do cérebro


que faz a linguagem acontecer, e não o tamanho, a forma ou o
modo de empacotamento dos neurônios”. Em um livro de 1994,
The Language Instinct, Pinker reúne indícios em favor de um
fundamento genético para a linguagem falada, os quais apoiam
sua evolução por meio da seleção natural. Muito volumosos
para ser discutidos agora, os indícios são impressionantes.

A questão é: quais eram as pressões da seleção natural que


favoreceram a evolução da linguagem falada?
Presumivelmente, esta habilidade não surgiu de um momento
para o outro já plenamente desenvolvida, assim temos que nos
perguntar que vantagens uma linguagem menos desenvolvida
conferia aos nossos ancestrais. A resposta mais óbvia é que
ela oferecia um modo eficiente de comunicação. Esta
habilidade, certamente, teria sido benéfica para os nossos
ancestrais quando estes adotaram pela primeira vez a caça
rudimentar e a coleta de aumentos, que é um modo de
subsistência mais desafiador que o dos macacos. À medida
que seu modo de vida tornava-se mais complexo, a necessi-
dade de coordenação social e econômica também crescia.
Nessas circunstâncias, a comunicação efetiva tornava-se cada
vez mais valiosa. A seleção natural portanto teria reforçado
firmemente a capacidade de linguagem. Em conseqüência, o
repertório básico de sons dos símios primitivos —
presumivelmente similares às arfadas, apupos e grunhidos dos
macacos modernos — teria se expandido e sua expressão se
tornado mais estruturada. A linguagem, como a conhecemos
hoje, emergiu como um produto das exigências da caça e da
coleta. Ou pelo menos assim parece. Há outras hipóteses para
a evolução da linguagem.

À medida que o modo de vida com base na caça e na coleta


desenvolveu-se, os humanos tornaram-se tecnologicamente
mais competentes, fabricando artefatos de modo mais refinado
e de formas mais complicadas. Esta transformação evolutiva,
que começou com a primeira espécie do gênero Homo, há
mais de 2 milhões de anos, e culminou com o aparecimento
dos humanos modernos, em alguma época nos últimos 200 mil
anos, foi acompanhada por um triplicamento do tamanho do
cérebro. O cérebro aumentou de 400 centímetros cúbicos nos
australopitecíneos primordiais para uma média que hoje é de
1.350 centímetros cúbicos. Durante muito tempo os
antropólogos estabeleceram uma relação causai entre a
crescente sofisticação tecnológica e o aumento do tamanho do
cérebro: este último implicava o primeiro. Isto, lembre-se, era
parte do pacote evolutivo darwiniano que des-

120

crevi no capítulo 1. Mais recentemente, esta visão da pré-


história humana foi encapsulada em um ensaio clássico de
Kenneth Oakley publicado em 1949 intitulado “Homem, o
fabricante de artefatos”. Como foi observado em um capítulo
anterior, Oakley estava entre os primeiros a propor que a
emergência dos humanos modernos foi iniciada com o
“aperfeiçoamento” da linguagem até o nível que conhecemos
hoje: em outras palavras, a linguagem moderna fez o homem
moderno.

Entretanto, nos dias de hoje, uma explicação evolutiva dife-


rente tornou-se popular como explicação para o surgimento da
mente moderna — uma explicação mais orientada para o
homem como animal social do que para o homem como
fabricante de artefatos. Se a linguagem evoluiu como
instrumento de interação social, então seu realce da
comunicação no contexto da caça e coleta pode ser visto como
um benefício secundário e não como uma causa evolutiva
primária.

O neurologista da Universidade de Columbia Ralph Holloway


foi um pioneiro importante deste novo ponto de vista, intro-
duzido na década de 1960. “É minha opinião que a linguagem
cresceu a partir de uma matriz social-comportamental-cognitiva
que era fundamentalmente cooperativa e não agressiva, e
repousava sobre uma divisão social estrutural complementar do
comportamento em relação ao trabalho entre os sexos”,
escreveu ele há uma década. “Isto era uma estratégia evolutiva
e adaptativa necessária para permitir um período de
dependência infantil prolongado, períodos prolongados até
atingir a maturidade sexual, uma maturação retardada que
permite um maior crescimento do cérebro e aprendizado
comportamental.” Observe como isto está de acordo com as
descobertas nos padrões de história de vida dos hominídeos
que descrevi no capítulo 3.

As idéias pioneiras de Holloway adotaram diversos disfarces e


tornaram-se conhecidas como a hipótese da inteligência social.
Mais recentemente, Robin Dunbar, primatologistado University
College, em Londres, desenvolveu-a como se segue: “A teoria
mais convencional é que os primatas necessitam cérebros
grandes para ajudá-los a encontrar seu rumo no mundo e
resolver seu problema diário de procurar comida. A teoria do
tipo alternativo é que o complexo mundo social no qual os
primatas se encontram fornece o ímpeto necessário à evolução
de cérebros grandes.” Uma parte vital na modulação das
interações sociais entre os primatas é o ato de alisar o pêlo,
que permite um contato íntimo e monitoração entre indivíduos.
Ele é eficiente em grupos de até

121

um certo tamanho, afirma Dunbar, mas, quando este tamanho


é ultrapassado, outros modos de lubrificação social são
exigidos.

Durante a pré-história humana, o tamanho do grupo aumentou,


argumenta Dunbar, produzindo pressões seletivas por um
“alisamento de pêlos” social mais eficiente. “A linguagem tem
duas propriedades interessantes quando comparada ao ato de
alisar o pêlo”, explica ele. “Você pode falar com diversas
pessoas ao mesmo tempo e você pode falar enquanto
caminha, come ou trabalha nos campos.” Em conseqüência,
sugere ele, “a linguagem evolui para integrar um número maior
de indivíduos nos seus respectivos grupos sociais”. Neste
cenário, então, a linguagem é o “alisamento de pêlos vocal”, e
Dunbar a vê emergindo somente “com o aparecimento do
Homo sapiens”. Tenho muita simpatia para com as hipóteses
de inteligência social, mas, como mostrarei, não acredito que a
linguagem tenha evoluído tardiamente na pré-história humana.

A época em que a linguagem evoluiu é um dos pontos


fundamentais neste debate. Teria ela surgido cedo,
acompanhada de um reforço gradual? Ou teria surgido súbita e
recentemente? Lembre-se, a questão tem implicações
filosóficas que dizem respeito ao quão especiais consideramos
nós mesmos.

Nos dias de hoje, muitos antropólogos favorecem a idéia de


uma origem rápida e recente da linguagem — principalmente
em razão da mudança abrupta de comportamento observada
na revolução do Paleolítico Superior. Randall White,
arqueólogo da New York University, argumenta em um trabalho
científico provocativo de quase uma década atrás que os
indícios de várias formas de atividades humanas anteriores a
100 mil anos atrás implicam “uma ausência total de qualquer
coisa que os humanos modernos possam reconhecer como
linguagem”. Nesta época, anatomicamente, os humanos
modernos haviam evoluído, admite ele, mas não haviam ainda
“inventado” a linguagem em um contexto cultural. Isto
aconteceria muito mais tarde: “Há cerca de 30 mil anos, estas
populações (...) haviam dominado a linguagem e a cultura
como presentemente as conhecemos.”

White lista sete áreas de indícios arqueológicos que, sob seu


ponto de vista, apontam para um realce dramático das
habilidades lingüísticas que coincidem com o Paleolítico
Superior. Primeiro, o sepultamento deliberado dos mortos, que
quase certamente começou na época dos neanderthals mas
tornou-se refinado, com a inclusão de bens e objetos nas
sepulturas, somente no Paleo-

122

lítico Superior. Segundo, a expressão artística, que incluiu a


feitura de imagens e de adornos para o corpo, começa
somente com o Paleolitico Superior. Terceiro, no Paleolitico
Superior há uma aceleração súbita no ritmo da inovação
tecnológica e na mudança cultural. Quarto, pela primeira vez
surgem diferenças regionais na cultura — expressão e produto
de fronteiras sociais. Quinto, o indício de contatos de longa
distância, na forma de comércio de objetos exóticos, torna-se
forte nesta época. Sexto, os lugares de moradia aumentam
significativamente de tamanho, e a linguagem teria sido
necessária com tal grau de planejamento e coordenação.
Sétimo, a tecnologia move-se do uso predominante de pedras
para a inclusão de outras matérias-primas tais como ossos,
chifres e argila, indicando uma complexidade de manipulação
do meio ambiente físico impensável na ausência de uma
linguagem.

White e outros antropólogos, inclusive Lewis Binford e Richard


Klein, estão convencidos de que este acúmulo de “pela
primeira vez” na atividade humana é sublinhado pelo
surgimento de uma linguagem falada complexa e totalmente
moderna. Binford, como observei em um capítulo anterior, não
vê indícios de planejamento e poucas facilidades de predizer e
organizar eventos futuros e atividades entre os humanos pré-
modernos. O grande passo à frente foi a linguagem — “a
linguagem e, especificamente, a criação de símbolos, que torna
a abstração possível”, argumenta ele. “Não vejo qualquer meio
pelo qual tal mudança rápida poderia ocorrer além de um
sistema de comunicação fundamentalmente bom e com base
na biologia.” Klein, concordando essencialmente com esta
proposição, vê indícios, nos sítios arqueológicos do sul da
África, de um aumento relativamente recente e abrupto das
habilidades de caça. Isto é uma conseqüência, diz ele, da
origem da mente humana moderna, inclusive da capacidade de
possuir uma linguagem.

Embora o ponto de vista de que a linguagem teve um desen-


volvimento relativamente rápido coincidente com a emergência
dos humanos modernos tenha amplo apoio, ele não domina
completamente o pensamento antropológico. Dean Falk, a
cujos estudos da evolução do cérebro humano me referi no
capítulo 3, defende a proposição de que a linguagem
desenvolveu-se mais cedo. “Se os hominídeos não estivessem
usando e refinando a linguagem, eu gostaria de saber o que
eles estavam fazendo com seus cérebros autocatalicamente
em expansão”, escreveu ela recentemente. Terrence Deacon,
neurologista do Belmont Hospital, em Belmont, Massachusetts,
adota um ponto de vista similar, mas

123

com base em estudos de cérebros modernos e não fósseis: “A


competência lingüística evoluiu durante um longo período (de
pelo menos 2 milhões de anos) de seleção contínua
determinada pela interação cérebro-linguagem”, observa ele
em um artigo publicado em 1969 na revista Human Evolution.
Deacon comparou as diferenças nas conectividades neurais
entre o cérebro do macaco e o cérebro humano. Ele observa
que as estruturas do cérebro e os circuitos que mais foram
alterados no decorrer da evolução do cérebro humano refletem
as exigências computacionais incomuns da linguagem falada.

As palavras não se fossilizam, assim, como poderão os an-


tropólogos resolver esta discussão? Os indícios indiretos — os
artefatos que nossos ancestrais fabricaram e as mudanças em
sua anatomia — parecem fornecer relatos diferentes de nossa
história evolutiva. Começaremos pelo exame dos indícios
anatômicos, inclusive a arquitetura do cérebro e a estrutura do
aparelho vocal. Depois examinaremos a sofisticação
tecnológica e a expressão artística — aspectos do
comportamento que constituem o registro arqueológico.
Vimos anteriormente que a expansão do cérebro humano
começou há mais de 2 milhões de anos com a origem do
gênero Homo e continuou de modo firme. Há cerca de meio
milhão de anos, o tamanho médio do cérebro do Homo erectus
era 1.100 centímetros cúbicos, o que é muito próximo da média
moderna. Depois do salto inicial de 50 por cento do
australopitecíneo para o Homo, não há grandes aumentos
súbitos adicionais no tamanho do cérebro do homem pré-
histórico. Embora o significado do tamanho absoluto do cérebro
seja assunto de controvérsia entre os psicólogos, o
triplicamento que ocorreu na pré-história humana certamente
reflete capacidades cognitivas reforçadas. Se o tamanho do
cérebro está também relacionado com capacidades lingüísti-
cas, então a história da expansão do tamanho do cérebro
durante os mais ou menos 2 milhões de anos passados sugere
um desenvolvimento gradual das habilidades lingüísticas de
nossos ancestrais. A comparação de Terrence Deacon da
anatomia do cérebro do macaco com a anatomia do cérebro
humano sugere que esta é uma proposição razoável.

O eminente neurobiólogo Harry Jerison, da Universidade da


Califórnia, em Los Angeles, considera a linguagem o motor do
crescimento do cérebro humano, descartando a noção de que
hahilidades maniDulativas teriam fornecido a pressão evolutiva

124

em favor de cérebros maiores, corporificadas na hipótese “Ho-


mem, o Fabricante de Artefatos”. “Parece-me uma explicação
inadequada, principalmente porque a fabricação de artefatos
pode ser realizada com pouco tecido cerebral”, afirmou ele em
uma importante conferência no Museu Americano de História
Natural em 1991. “A produção de uma fala simples e útil, por
outro lado, exige uma quantidade substancial de tecido
cerebral.”

A arquitetura cerebral subjacente à linguagem é muito mais


complexa do que se pensava Parece haver muitas áreas
relacionadas com a linguagem, espalhadas por diversas
regiões do cérebro humano. Se estes centros pudessem ser
identificados em nossos ancestrais, estaríamos em uma boa
posição para decidir a questão da linguagem. Entretanto, os
indícios anatômicos dos cérebros dos humanos extintos são
restritos aos contornos da superfície; os cérebros fossilizados
não dão pistas de sua estrutura interna Felizmente, um aspecto
do cérebro relacionado de algum modo com a linguagem e com
a utilização de artefatos é visível sobre a superfície do cérebro.
Este aspecto é a área de Broca, uma saliência localizada perto
da têmpora esquerda (na maioria das pessoas). Se
pudéssemos encontrar indícios da existência da área de Broca
nos cérebros humanos fossilizados, isto seria o sinal, embora
incerto, de uma habilidade lingüística emergente.

Um segundo sinal possível é a diferença em tamanho entre o


lado esquerdo e o lado direito do cérebro nos humanos moder-
nos. Na maioria das pessoas, o hemisfério esquerdo é maior do
que o hemisfério direito — uma conseqüência, em parte, da
concentração, lá, da maquinaria associada com a linguagem.
Também associado com esta assimetria é o fenômeno da
destreza nos humanos. Noventa por cento da população
humana é destra; a destreza e a capacidade de linguagem
podem portanto estar relacionadas com um cérebro esquerdo
maior.

Ralph Holloway examinou a forma do cérebro do crânio do


1.470, um belo exemplo de Homo habilis encontrado a leste do
lago Turkana em 1972 e cuja idade foi determinada em quase
2 milhões de anos (ver figura 2.2). Holloway detectou não
apenas a presença da área de Broca, impressa sobre a
superfície interna do crânio, mas também uma leve assimetria
na configuração esquerda-direita do cérebro, uma indicação de
que o Homo habilis comunicava-se utilizando mais do que o
repertório arfada-apupo-grunhido dos chimpanzés modernos.
Em um trabalho publicado na revista Human Neurobiology, ele
observou que, embora fosse impossível provar quando ou
como a linguagem começou, era

125

provável que suas origens remontassem “ao passado


paleontológico remoto”. Embora Holloway tivesse sugerido que
esta trajetória evolutiva poderia ter começado com os
australopitecíneos, eu discordo. Até agora, toda a discussão da
evolução dos hominídeos neste livro aponta para uma
importante mudança na adaptação hominídea quando o gênero
Homo apareceu. Portanto, suspeito que apenas com a
evolução do Homo habilis alguma forma de linguagem falada
começou. Como Bickerton, suspeito que isto era um tipo de
protolinguagem, simples em conteúdo e estrutura, mas um
meio de comunicação mais avançado do que o meio de
comunicação dos macacos e australopitecíneos.
A fabricação experimental cuidadosa e inovativa de artefatos
de Nicholas Toth, discutida no capítulo 2, reforça o ponto de
vista de que a assimetria cerebral estava presente nos
humanos primitivos. Sua reprodução de lascas de pedra
demonstrou que os praticantes da indústria olduvaiana eram
predominantemente destros, e portanto teriam uma metade
esquerda do cérebro ligeiramente maior. “A lateralização do
cérebro ocorreu com os fabricantes de artefatos mais
primitivos, como é evidenciado pelo seu comportamento como
fabricantes”, observou Toth. “Isto é provavelmente uma boa
indicação de que uma capacidade lingüística já estava também
emergindo.”

Estou convencido pelos indícios oriundos dos cérebros fos-


silizados de que a linguagem começou a evoluir com o primeiro
aparecimento do gênero Homo. Pelo menos não há nada que
possa ser utilizado como argumento contra um aparecimento
bem no início da linguagem. Mas o que dizer do aparelho
vocal: a laringe, a faringe, a língua e os lábios? Isto representa
a segunda maior fonte de informação anatômica (ver figura
7.1).

Os humanos são capazes de emitir uma ampla variedade de


sons porque a laringe fica situada na parte inferior da garganta,
criando assim uma grande câmara de som, a faringe, acima
das cordas vocais. De acordo com o trabalho inovador de
Jeffrey Laitman, do Mount Sinai Hospital Medical School de
Nova York, Philip Lieberman, da Universidade Brown, e
Edmund Crelin, de Yale, uma faringe maior é a chave para
produzir uma fala completamente articulada. Estes
pesquisadores realizaram uma quantidade de pesquisas
considerável sobre a anatomia do trato vocal em criaturas vivas
e em fósseis humanos. O trato vocal é muito diferente. Em
todos os mamíferos, exceto nos humanos, a laringe fica na
parte mais ao alto na garganta, o que permite ao animal
respirar e beber ao mesmo tempo. Como corolário, a pequena
cavidade que

126

forma a faringe limita a gama de sons que podem ser


produzidos. A maioria dos mamíferos portanto depende da
forma da cavidade oral e dos lábios para modificar os sons
produzidos na laringe. Embora a posição mais abaixo na
laringe permita aos humanos produzir uma gama maior de
sons, isto também significa que nós não podemos beber e
respirar simultaneamente. Nós humanos exibimos uma vaga
tendência a engasgar.

Os bebês humanos nascem com a laringe na parte mais ao alto


na garganta, como típicos mamíferos, e podem respirar e beber
simultaneamente, como devem fazê-lo durante a amamenta-
ção. Depois de cerca de 18 meses, a laringe começa a migrar
para a parte mais abaixo na garganta, atingindo a posição que
corresponde à de um adulto quando a criança tem cerca de 14
anos. Os pesquisadores se deram conta de que, se pudessem
determinar a posição da laringe nas gargantas de espécies
humanas ancestrais, poderiam deduzir alguma coisa sobre a
capacidade de vocalização e linguagem da espécie. Isto
representava um desafio, pois o aparelho vocal é constituído
por tecidos macios — cartilagem, músculos e carne — que não
fossilizam. Não obstante, os crânios antigos contêm uma pista
vital. Ela está na forma da base do crânio, ou basicrânio. No
padrão mamífero básico, a base do crânio é essencialmente
chata. Nos humanos, porém, ela é distintamente arqueada. A
forma do basicrânio em um fóssil da espécie humana deveria
portanto indicar quão bem este era capaz de articular os sons.

Em uma pesquisa com fósseis humanos, Laitman descobriu


que os basicrânios dos australopitecíneos eram
essencialmente chatos. Nisto, como em tantas outras
características biológicas, eles eram semelhantes aos
macacos, e como os macacos sua comunicação vocal deve ter
sido limitada. Os australopitecíneos devem ter sido incapazes
de produzir alguns dos sons vocais universais que caracterizam
os padrões de fala humanos. “A época mais remota do registro
fóssil em que você encontra um basicrânio completamente
articulado localiza-se entre cerca de 300 mil e 400 mil anos
atrás, no que as pessoas chamam Homo sapiens arcaico”,
conclui Laitman. Significa isto que espécies sapiens arcaicas,
que apareceram antes da evolução dos humanos
anatomicamente modernos, tinham uma linguagem moderna
completamente desenvolvida? Isto parece improvável.

A mudança na forma do basicrânio é observada no primeiro


espécime de Homo erectus conhecido, o crânio 3.733,
encontrado no norte do Quênia, e que data de quase 2 milhões
de anos atrás.

127
De acordo com esta análise, este indivíduo Homo erectus teria
tido a habilidade de produzir certas vogais, como u, a, e, i.
Laitman calcula que a posição da laringe no Homo erectus
primitivo teria sido equivalente à de um humano moderno de
seis anos de idade. Infelizmente, nada pode ser dito a respeito
do Homo habilis, pois nenhum dos crânios de habilis
descobertos até agora tem um basicrânio intacto. Minha
estimativa é que, quando realmente descobrirmos um crânio
intacto do Homo mais primitivo, veremos os começos da flexão
basicranial. Uma capacidade rudimentar de linguagem falada
certamente começou com a origem do Homo.

Dentro desta seqüência evolutiva vemos um paradoxo apa-


rente. A julgar pelos seus basicrânios, os neanderthals tinham
habilidades verbais mais rudimentares do que outros sapiens
primitivos que viveram várias centenas de milhares de anos
antes. A flexão basicranial nos neanderthals era menos
avançada mesmo do que no Homo erectus. Teriam os
neanderthais regredido, tornando-se menos articulados do que
seus ancestrais? (De fato, alguns antropólogos sugeriram que
a extinção dos neanderthais pode ter estado relacionada com
habilidades lingüísticas inferiores.)

128

Uma regressão evolutiva deste tipo parece improvável; não há,


virtualmente, exemplos disto na natureza. Mais provavelmente,
a resposta está na anatomia da face e do crânio do
neanderthal. Como uma aparente adaptação aos climas frios, a
parte do meio da face do neanderthal projeta-se para fora em
um grau extraordinário, resultando em grandes orifícios nasais,
nos quais o ar frio pode ser aquecido e a umidade exalada na
respiração pode condensar. Esta configuração pode ter afetado
a forma do basicrânio sem diminuir a capacidade lingüística da
espécie de modo significativo. Os antropólogos continuam a
debater este ponto.

Em resumo, então, os indícios anatômicos indicam uma evo-


lução primitiva da linguagem, seguida de uma melhora gradual
das habilidades lingüísticas. Entretanto, os indícios arqueológi-
cos relacionados com a tecnologia de artefatos e com a expres-
são artística em sua maior parte contam uma história diferente.

Embora, como já disse, a linguagem não fossilize, os produtos


das mãos humanas podem, em princípio, dar alguma percep-
ção sobre a linguagem. Quando falamos sobre expressão
artística, como o fizemos no capítulo anterior, estamos
conscientes de mentes humanas modernas em funcionamento,
e isto implica um nível de linguagem moderna. Poderão os
artefatos de pedra fornecer uma compreensão das
capacidades lingüísticas dos seus fabricantes?

Esta era a tarefa com que Glynn Isaac deparou quando lhe foi
pedido que apresentasse um trabalho sobre a origem e a
natureza da linguagem na Academia de Ciências de Nova York
em 1976. Glynn examinou a complexidade das indústrias de
artefatos de pedra desde seus primórdios, há mais de 2
milhões de anos, até a Revolução do Paleolítico Superior, há
35 mil anos. Ele estava mais interessado na ordem que os
fabricantes de artefatos impunham aos seus implementos do
que nas tarefas que as pessoas realizavam com estes
artefatos. A imposição da ordem é uma obsessão humana; é
uma forma de comportamento que exige uma linguagem falada
sofisticada para a sua mais completa elaboração. Sem
linguagem, a arbitrariedade de uma ordem humana imposta
seria impossível.

O registro arqueológico mostra que a imposição da ordem


emerge lentamente na pré-história humana. Vimos no capítulo
2 que os artefatos olduvaianos, que datam de 2,5 milhões até
cerca de 1,4 milhão de anos atrás, são de natureza
oportunística. Aparentemente os fabricantes de artefatos
estavam preocupados principalmente em produzir lascas
afiadas sem levar em conta a

129

forma. As assim chamadas ferramentas básicas, tais como


raspadores, cortadores e discóides, eram subprodutos deste
processo. Mesmo os implementos nos conjuntos acheulenses
de artefatos, que se seguiram aos olduvaianos e duraram até
cerca de 250 mil anos atrás, mostram minimamente a
imposição de forma. O machado manual em forma de lágrima
foi produzido provavelmente de acordo com algum tipo de
plano mental, mas a maioria dos outros itens eram de muitas
maneiras semelhantes aos olduvaianos; mais ainda, apenas
cerca de uma dúzia de formas de artefatos foram encontrados
no kit acheulense. A partir de mais ou menos 250 mil anos
atrás, indivíduos sapiens arcaicos, inclusive os neanderthais,
fabricaram artefatos a partir de lascas preparadas, e estes
conjuntos, inclusive o mousteriano, compreendiam talvez
sessenta tipos de artefatos identificáveis. Mas estes tipos
permaneceram imutáveis por mais de 200 mil anos — uma
paralisia tecnológica que parece negar o funcionamento de
uma mente completamente humana.

Apenas quando as culturas do Paleolítico Superior surgiram em


cena, há 35 mil anos, a inovação e a ordem arbitrária tornaram-
se difundidas. Não apenas foram produzidos novos e mais re-
finados tipos de artefatos, mas os tipos que caracterizaram os
conjuntos de artefatos do Paleolítico Superior mudaram em
uma escala de tempo de milênios e não de centenas de
milênios. Isaac interpretou este padrão de diversidade
tecnológica e mudança como implicando a emergência gradual
de alguma forma de linguagem falada. A revolução do
Paleolítico Superior assinalou uma pontuação maior naquela
trajetória evolutiva, sugeriu ele. A maioria dos arqueólogos
concorda de modo geral com esta interpretação, embora haja
diferenças de opinião sobre que grau de linguagem falada os
fabricantes de artefatos tinham — se é que a tinham.

Ao contrário de Nicholas Toth, Thomas Wynn, da Universidade


do Colorado, acredita que a cultura olduvaiana em suas ca-
racterísticas gerais era semelhante à dos macacos, e não
humana. “Neste quadro, em nenhum lugar precisamos
adicionar elementos tais como a linguagem”, observa ele em
um artigo escrito em conjunto na revista Man e publicado em
1989. A fabricação destes artefatos simples exige pouca
capacidade cognitiva, argumenta ele, e portanto não era
humana em nenhum aspecto. Entretanto, Wynn admite que há
“alguma coisa de humanóide” na fabricação dos machados
manuais acheulenses: “Artefatos como estes indicam que a
forma do produto final era uma preocupação do brita-

130

dor e que podemos usar esta intenção como uma pequena


janela aberta para a mente do Homo erectus.” Wynn descreve
a capacidade cognitiva do Homo erectus, com base nas
exigências intelectuais da produção dos artefatos acheulenses,
como equivalente àquela de uma criança humana moderna de
sete anos. Crianças de sete anos têm habilidades lingüísticas
consideráveis, inclusive referência e gramática, e estão perto
do ponto em que podem conversar sem recorrer à
gesticulação. Com relação a isto é interessante lembrar que
Jeffrey Laitman julgava, com base na forma do basicrânio, que
a capacidade lingüística do Homo erectus era equivalente à de
uma criança humana moderna de seis anos.

Aonde este conjunto de indícios, representado na figura 7.2,


nos conduz? Se fôssemos conduzidos apenas pela
componente tecnológica do registro arqueológico, veríamos a
linguagem como tendo começado cedo, progredido lentamente
durante a maior parte da pré-história humana e tido um reforço
explosivo em tempos relativamente recentes. Isto é um
compromisso baseado nas hipóteses derivadas a partir dos
indícios anatômicos. Entretanto, o registro arqueológico que
corresponde à expressão artística não permite tal
compromisso. A pintura e a gravação em abrigos rochosos e
cavernas entram no registro abruptamente, há mais ou menos
35 mil anos.

Se a expressão artística é considerada a única indicação


confiável de uma linguagem falada — como o arqueólogo
australiano Iain Davidson, por exemplo, insiste —, então a
linguagem não apenas tomou-se completamente moderna em
tempos recentes como também começou recentemente. “A
feitura de imagens que lembram coisas pode somente ter
emergido em comunidades pré-históricas com um sistema de
significados compartilhados”, afirma Davidson em um trabalho
recente em co-autoria com Willian Noble, seu colega na
Universidade da Nova Inglaterra. “Sistemas compartilhados de
significados” são mediados, é claro, por meio de uma
linguagem. Davidson e Noble argumentam que a expressão
artística foi um meio pelo qual uma linguagem referencial
desenvolveu-se, e não que a arte tornou-se possível pela
linguagem. A arte teve que fazer uso da linguagem, ou pelo
menos emergir em paralelo com ela. O aparecimento dos
primeiros trabalhos de arte do registro arqueológico sinaliza
portanto a primeira aparição de uma linguagem referencial
falada.
Claramente, as hipóteses sobre a natureza e a época da
evolução da linguagem humana são tão divergentes quanto
poderiam ser —

131
(A página 132 do livro apresenta a Figura 7.2, colada nas
páginas finais desse e-livro)

o que significa que os indícios, ou uma parte deles, estão


sendo interpretados incorretamente. Quaisquer que sejam as
complexidades desta interpretação incorreta, há surgimento de
uma nova apreciação da complexidade das origens da
linguagem. Uma conferência importante realizada em março de
1990, organizada pela

132

Wenner-Gren Foundation for Antrophological Research (Fun-


dação Wenner-Gren para a Pesquisa Antropológica),
determinou o rumo da discussão nos anos vindouros. Intitulada
“Artefatos, linguagem e cognição na evolução humana”, a
conferência estabeleceu elos de ligação entre estas
importantes questões da pré-história humana Kathleen Gibson,
uma das organizadoras, descreveu a posição da conferência
como se segue: “Já que a inteligência social humana, o uso de
artefatos e da linguagem dependem todos de um aumento
quantitativo do tamanho do cérebro e de sua capacidade de
processamento de informação, nada poderia ter emergido
subitamente já pronto, como Minerva da cabeça de Zeus. Em
vez disto, assim como o tamanho do cérebro, cada uma destas
faculdades intelectuais deve ter evoluído gradualmente. E
mais, como estas faculdades são interdependentes, nenhuma
poderia ter alcançado seu nível moderno de complexidade
isoladamente.” Será um desafio considerável desemaranhar
estas complexidades.

Como já disse, aqui há muito mais em jogo do que a recons-


trução da pré-história. A visão de nós mesmos e do nosso lugar
na natureza está também em jogo. Aqueles que desejam
manter os humanos como especiais darão boas-vindas a
indícios que apontam para uma origem recente e abrupta da
linguagem. Aqueles que se sentem confortáveis com a
conexão humana com o resto da natureza não ficarão
desestimulados com um desenvolvimento precoce e lento
desta faculdade humana. Imagino que se, por algum capricho
da natureza, ainda existissem populações de Homo habilis e
Homo erectus, nós as veríamos com gradações de linguagem
referencial. A distância entre nós e o resto da natureza seria
portanto coberta por nossos próprios ancestrais.

133
8 - A origem da mente
Três grandes revoluções marcam a história da vida na Terra. A
primeira foi a origem da vida propriamente dita, em alguma
época situada antes dos 3,5 bilhões de anos atrás. A vida, na
forma de microorganismos, tornou-se uma força poderosa em
um mundo onde anteriormente apenas a química e a física
haviam operado. A segunda revolução foi a origem dos
organismos multicelulares, há cerca de meio milhão de anos. A
vida tornou-se complexa, as plantas e os animais em miríades
de formas e tamanhos evoluíram e interagiram em
ecossistemas férteis. A origem da consciência humana, em
alguma época nos últimos 2,5 milhões de anos, foi o terceiro
evento. A vida tornou-se ciente de si própria, e começou a
transformar o mundo da natureza com seus objetivos próprios.

O que é consciência? Mais especificamente, para que serve?


Qual é a sua função? Tais questões podem parecer estranhas,
já que cada um de nós sente a vida por meio da consciência ou
da autopercepção. Ela é uma força tão poderosa em nossas
vidas que é impossível imaginar a existência na ausência da
sensação subjetiva que chamamos consciência reflexiva. Tão
poderosa subjetivamente, e ainda assim objetivamente
indefinível. A consciência apresenta-se aos cientistas como um
dilema, que alguns acreditam insolúvel. O sentido da
autopercepção que cada um de nós vivência é tão brilhante
que ilumina tudo o que fazemos e pensamos; e, ainda assim,
não há maneira pela qual, objetivamente, eu possa saber que
você experimenta a mesma sensação que eu experimento, e
vice-versa.

Cientistas e filósofos lutaram durante séculos para controlar


este fenômeno inconstante. Definições operacionais que foca-
lizem a habilidade de monitorar nossos próprios estados
mentais podem ser objetivamente precisas em certo sentido,
mas elas não se relacionam com o modo pelo qual sabemos
que estamos cientes de nós mesmos e do nosso ser. A mente
é a fonte do sentido do eu — um sentido algumas vezes
privado, algumas vezes compartilhado com outros. A mente,
por meio da imaginação, é também o canal para atingir mundos
que estão além dos objetos

134

materiais da vida diária; e ela oferece-nos um meio de trazer


em Technicolor mundos abstratos para a realidade.
Há três séculos, Descartes tentou enfrentar o mistério per-
turbador da fonte do sentido do eu que surge em nosso interior.
Os filósofos referiram-se a esta dicotomia como o problema do
corpo e da mente. “Sinto como se tivesse caído de forma
inesperada num redemoinho profundo que me carrega
continuamente aos trombolhões, de modo que não posso ficar
de pé no seu fundo nem nadar até sua superfície”, escreveu
Descartes. Sua solução para o problema do corpo e da mente
foi descrevê-los como entidades inteiramente separadas, um
dualismo que perfazia um todo. “Era uma visão do eu como
uma espécie de fantasma imaterial que é o dono e controla o
corpo do mesmo modo como você é o dono e controla seu
automóvel”, observa o filósofo da Universidade Tufts, Daniel
Dennett, em seu recente livro Consciouness Explained.

Descartes também considerou a mente reservada aos huma-


nos, enquanto todos os outros animais eram meros autômatos.
Uma visão similar dominou a biologia e a psicologia nos últimos
cinqüenta anos. Conhecida como behaviorismo, essa visão de
mundo sustenta que os animais não humanos simplesmente
respondem com reflexos aos eventos de seus mundos e são
incapazes de processos de pensamento analíticos. Não há
uma coisa chamada mente animal, disseram os behavioristas;
ou, se há, não temos maneiras de ter acesso a ela de um modo
científico, e deveríamos portanto ignorá-la. Nos últimos tempos
esta visão vem sofrendo modificações, graças em grande parte
a Donald Griffin, biólogo do comportamento da Universidade
Harvard, que vem fazendo uma campanha há duas décadas
para derrubar esta visão negativa do mundo animal. Ele
publicou três livros sobre o assunto, o último, Animal Minds, em
1992. Os psicólogos e etologistas parecem ter ficado “quase
petrificados pela noção de consciência animal”, sugere ele. Isto
é uma conseqüência, diz ele, da influência contínua do
behaviorismo, pairando como um fantasma sobre a ciência.
“Em outros domínios do empreendimento científico temos que
aceitar uma prova que é menos do que cem por cento
rigorosa”, diz Griffin. “As ciências históricas são assim — pense
na cosmologia, pense na geologia. E Darwin não pode provar o
fato da evolução biológica de modo rigoroso.”

Os antropólogos, ao tentarem explicar a evolução da forma


humana, devem em última análise levar em conta também a
evolução da mente — e, especificamente, da consciência
humana,
135

um assunto que os biólogos estão mais preparados para


examinar. Temos também que perguntar como tal fenômeno
surgiu no cérebro humano: isto é, terá ele surgido subitamente
e inteiramente formado no cérebro do Homo sapiens, sem
nenhum tipo de precursor no resto do mundo da natureza,
como o ponto de vista behaviorista implica? Podemos
perguntar quando na pré-história humana a consciência atingiu
o estágio que agora experimentamos: terá ela surgido cedo, e
crescido sempre cada vez mais brilhante através da pré-
história? E podemos perguntar: que vantagens evolutivas teria
tal propriedade da mente conferido aos nossos ancestrais?
Observe que essas questões são paralelas àquelas que dizem
respeito à evolução da linguagem. Isto não é mera
coincidência, pois a linguagem e a autopercepção reflexiva são
indubitavelmente fenômenos intimamente relacionados.

Ao procurar respostas a estas questões, não podemos evitar a


questão sobre para que “serve” a consciência Como pergunta
Dennett: “Haverá qualquer coisa que uma entidade consciente
pode fazer por si mesma que uma simulação inconsciente (mas
habilmente programada) desta entidade não possa fazê-lo?” O
zoólogo da Universidade Oxford Richard Dawkins admite estar
também estupefato. Ele fala da necessidade de os organismos
serem capazes de predizer o futuro, uma habilidade obtida por
meio do equivalente aos cérebros na simulação por
computadores. Este processo, afirma ele, não precisa ser
consciente. Ainda assim, ele observa que “a evolução da
capacidade de simular parece ter culminado com uma
consciência subjetiva”. Por que isto deveria ter acontecido é,
afirma ele, o mistério mais profundo com que depara a biologia
moderna. “Talvez a consciência surja quando a simulação
cerebral do mundo torna-se tão completa que ela deve incluir
um modelo de si mesma”

Há sempre a possibilidade, é claro, de que ela não “sirva” para


nada e seja simplesmente um subproduto de cérebros grandes
em ação. Prefiro adotar o ponto de vista evolutivo, que sustenta
que um fenômeno mental tão poderoso provavelmente conferiu
benefícios para a sobrevivência e foi portanto produto da
seleção natural. Se nenhum de tais benefícios pode ser
discernido, então talvez a alternativa — isto é, nenhuma função
adaptativa — pode ser considerada.
O neurobiólogo Harry Jenson realizou um longo estudo da
trajetória da evolução cerebral desde o advento da vida em
solo seco. O padrão de mudança através dos tempos é bem
suroreendente:

136

a origem de novos grupos importantes de fauna (ou grupos


dentro de grupos) é usualmente acompanhada por um salto no
tamanho relativo do cérebro, conhecido como encefalização.
Por exemplo, quando os primeiros mamíferos antigos
evoluíram, há uns 230 milhões de anos, eles eram equipados
com cérebros que eram quatro ou cinco vezes maiores do que
o cérebro reptiliano médio. Um impulso similar na maquinaria
mental aconteceu com a origem dos mamíferos modernos, há
50 milhões de anos. Comparados aos mamíferos como um
todo, os primatas são os que têm cérebros maiores, sendo
duas vezes mais encefalizados do que o mamífero médio.
Entre os primatas, os macacos são os que têm cérebros
maiores; eles têm mais ou menos duas vezes o tamanho
médio. E os humanos são três vezes mais encefalizados do
que o macaco médio.

Deixando por um instante os humanos de lado, considere-se


que o aumento a passos largos do tamanho cerebral através
da história evolutiva pode implicar uma progressão em direção
a uma superioridade biológica cada vez maior, cérebros
maiores significam criaturas mais espertas. Em algum sentido
absoluto isto deve ser verdade, mas é útil adotar um ponto de
vista evolutivo sobre o que está acontecendo. Podemos pensar
nos mamíferos como de algum modo mais espertos e
superiores aos répteis, de algum modo mais capazes de
explorar os recursos de que necessitam. Mas os biólogos
deram-se conta de que isto não é verdade. Se os mamíferos
fossem realmente superiores em seu aproveitamento dos
nichos ecológicos existentes no mundo, então uma maior
diversidade nos modos de fazê-lo, refletida na diversidade de
gêneros, deveria ser esperada Entretanto, o número de
gêneros de mamíferos que existiram em qualquer momento de
sua história recente é quase igual ao número de gêneros de
dinossauros, estes répteis altamente bem-sucedidos de uma
era anterior. Mais ainda, o número de nichos ecológicos que os
mamíferos são capazes de explorar é comparável ao número
de nichos disponíveis aos dinossauros. Onde, então, está o
benefício de possuir um cérebro maior?
Uma das forças que conduzem a evolução é uma competição
constante entre as espécies, no decurso da qual uma das
espécies ganha uma vantagem temporária por meio da
inovação evolutiva, apenas para ser superada por outra
inovação, e assim por diante. O resultado é o desenvolvimento
aparente de maneiras melhores de fazer as coisas, tais como
correr mais rápido, ver mais acuradamente, suportar ataques
de modo mais efetivo, ser mais esperto — embora nenhuma
vantagem permanente seja assegurada.

137

No jargão militar, este processo é conhecido como uma corrida


armamentista: as armas tornam-se mais numerosas ou efetivas
em ambos os lados, mas nenhum deles, em última análise, se
beneficia Os estudiosos importaram o termo “corrida armamen-
tista” para a biologia com o intuito de descrever o mesmo fenô-
meno na evolução. A “construção” de cérebros maiores pode
ser vista como conseqüência de corridas armamentistas.

Entretanto, algo diferente deve acontecer com os cérebros


grandes quando comparados a cérebros menores. Como
poderemos visualizar este algo? Jerison argumenta que
deveríamos pensar nos cérebros como criadores da versão da
realidade da espécie. O mundo que percebemos como
indivíduos é essencialmente de nossa própria feitura,
governado por nossa própria experiência. Da mesma forma, o
mundo que percebemos como espécie é governado pela
natureza dos canais sensoriais que possuímos. Qualquer um
que possua um cachorro sabe que há um mundo de
experiências olfativas com o qual os cães são íntimos mas os
humanos não. As borboletas são capazes de ver a luz
ultravioleta; nós não. O mundo dentro de nossas cabeças —
sejamos nós Homo sapiens, cachorros ou borboletas — é,
portanto, formado pela natureza qualitativa do fluxo de
informações proveniente do mundo externo para o mundo
interno, e pela habilidade do mundo interno em processar a
informação. Há uma diferença entre o mundo real, o “lá fora”, e
o que percebemos na mente, o “aqui dentro”.

À medida que os cérebros aumentaram de tamanho através do


tempo de evolução, mais canais de informação sensorial
podiam ser manipulados de modo completo, e seus dados de
entrada integrados mais efetivamente. Os modelos mentais
atingiram portanto o ponto de igualar as realidades do “lá fora”
e do “aqui dentro” mais intimamente, embora com algumas
lacunas informacionais inevitáveis, como acabei de mencionar.
Podemos estar orgulhosos de nossas consciências
introspectivas, mas podemos estar cônscios apenas do que o
cérebro está equipado para monitorar no mundo. Embora a
linguagem seja vista por muitos como um instrumento de
comunicação, ela também é, argumenta Jerison, um meio
adicional pelo qual nossa realidade mental é aprimorada. Assim
como os canais sensoriais da visão, olfato e audição são de
importância especial para certos grupos de animais, na
construção de seus mundos mentais particulares, a linguagem
é um componente-chave para os humanos.

Há uma vasta literatura, em filosofia e psicologia, que se


relaciona com a questão de o pensamento depender da
linguagem

138

ou a linguagem do pensamento. Não há dúvida de que muito,


talvez a maior parte, dos processos cognitivos humanos se dão
na ausência da linguagem ou mesmo da consciência. Qualquer
atividade física, tal como jogar tênis, acontece em grande parte
automaticamente — isto é, sem um comentário literal do que
fazer a seguir. A solução de um problema que surge na mente
enquanto estamos pensando sobre alguma outra coisa é outro
exemplo claro. Para alguns psicólogos, a linguagem falada é
meramente um pensamento a posteriori, por assim dizer, de
uma cognição mais fundamental. Mas a linguagem certamente
molda os elementos do pensamento de um jeito que uma
mente muda não pode fazer, desta maneira Jerison está
justificado em sua afirmação.

A mudança mais óbvia no cérebro do hominídeo em sua


trajetória evolutiva foi, como observado, um triplicamento em
tamanho. Entretanto, o tamanho não foi a única mudança; a
organização geral também mudou. Os cérebros dos macacos e
dos humanos são construídos de acordo com o mesmo padrão
básico: ambos são divididos em hemisférios esquerdo e direito,
cada um dos quais tem quatro lobos distintos: frontal, parietal,
temporal e occipital. Nos macacos, os lobos occipitais (na parte
de trás do cérebro) são maiores do que os lobos frontais; nos
humanos, o padrão é revertido, com grandes lobos frontais e
pequenos lobos occipitais. Esta diferença em organização é
presumivelmente subjacente de algum modo à criação da
mente humana como oposta à mente do macaco. Se
soubéssemos quando a mudança na configuração ocorreu na
pré-história humana, teríamos uma pista sobre a emergência
da mente humana.

Felizmente, a superfície externa do cérebro deixa um mapa de


seu contorno sobre a superfície interna do crânio. Fazendo um
molde de látex da superfície interna de um crânio fossilizado, é
possível obter-se uma imagem de um cérebro antigo. A história
que emerge de uma investigação deste tipo é dramática, como
Dean Falk descobriu em seus estudos de uma série de crânios
fossilizados oriundos da África Oriental e do Sul. “O cérebro do
australopitecíneo é essencialmente semelhante ao do macaco
em sua organização”, afirma ela, referindo-se aos tamanhos
relativos dos lobos frontal e occipital. “A organização
humanóide está presente nas espécies primitivas de Homo.”

Vimos que muitos aspectos da biologia hominídea, tais como a


estatura do corpo e padrões de desenvolvimento durante o
crescimento, modificaram-se quando a primeira espécie de
Homo

139

evoluiu — modificações estas que vejo como sinalizadoras de


uma mudança para um novo nicho adaptativo de caça e coleta.
A mudança na organização assim como no tamanho do
cérebro é portanto neste ponto consistente e faz sentido
biológico. O quanto da mente humana está neste momento no
lugar, porém, é menos fácil de se determinar. Precisamos
saber a respeito das mentes de nossos parentes mais
próximos, os macacos, antes que possamos enfrentar esta
questão.

Os primatas são a quintessência das criaturas sociais. Apenas


umas poucas horas com um grupo de macacos é suficiente
para obter-se um sentido da importância que a interação tem
para seus membros. Alianças estabelecidas são
constantemente testadas e mantidas; novas alianças são
exploradas; amigos são socorridos, rivais desafiados; e uma
vigilância constante é mantida em busca de oportunidades de
acasalamento.

Os primatologistas Dorothy Cheney e Robert Seyfarth, da


Universidade da Pensilvânia, devotaram anos de observação e
registro da vida de vários grupos de macacos vervet* no Parque

*
Tipo de macaco africano, Cercopithecus aethiops pygerythrus, identificado por
uma mancha de cor ferruginosa na base da cauda. (N. do T.)
Nacional Amboseli, no Quênia. Para o observador casual dos
macacos, surtos de atividades, as quais são muitas vezes
agressivas, podem parecer um caos social. Entretanto,
conhecendo os indivíduos, conhecendo quem está relacionado
com quem, e conhecendo a estrutura das alianças e rivalidade,
Cheney e Seyfarth são capazes de dar sentido ao caos
aparente. Eles descrevem um encontro típico: “Uma fêmea,
Newton, pode investir sobre outra, Tycho, enquanto disputa
uma fruta. Quando Tycho se afasta, a irmã de Newton, Charing
Cross, corre para ajudar a espantá-la. Enquanto isso,
Wormwood Scrubs, outra irmã de Newton, corre para a irmã de
TVcho, Holborn, que está se alimentando afastada uns 180
metros, e a golpeia na cabeça.”

O que começa como um conflito entre dois indivíduos expande-


se rapidamente e passa a incluir amigos e parentes, e pode ser
influenciado por surtos recentes e similares de agressão. “Não
apenas as macacas devem predizer o comportamento mútuo,
mas também avaliar as relações que elas têm umas com as
outras”, explicam Cheney e Seyfarth. “Uma macaca
confrontada com todo este tumulto não pode contentar-se
simplesmente em aprender quem lhe é dominante ou quem lhe
é subordinado; ela deve também

140

saber quem está aliado com quem, e quem tem tendência a


ajudar uma oponente.” As exigências mentais de monitorar
alianças sociais são a chave para um paradoxo na
primatologia, argumenta Nicholas Humphrey, psicólogo na
Universidade de Cambridge.

É este o paradoxo: “Tem sido repetidamente demonstrado em


situações artificiais no laboratório que macacos antropóides
possuem poderes impressionantes de raciocínio criativo”, expli-
ca Humphrey, “e, ainda assim, estes feitos de inteligência
simplesmente não têm quaisquer paralelos no comportamento
destes mesmos animais em seu meio ambiente natural. Ainda
não ouvi falar de nenhum exemplo de campo de um chimpanzé
(...) que faz uso de sua capacidade total de raciocínio inferente
na solução de um problema prático biologicamente relevante.”
O mesmo pode ser dito a respeito dos humanos, comenta
Humphrey. Suponha, por exemplo, que Einstein fosse
observado como os primatologistas observam os chimpanzés,
por meio de um par de binóculos de campo. Apenas raramente
veriam eles cintilações do gênio de um grande homem. “No
mundo comum dos assuntos práticos, ele não usou o seu
gênio, pois não precisou usá-lo.”

Ou a seleção natural foi generosa ao fazer os primatas —


inclusive os humanos — mais espertos do que realmente preci-
sam ser, ou sua vida cotidiana é mais exigente do ponto de
vista intelectual do que parece ser para um observador externo.
Humphrey chegou à conclusão de que a segunda destas
alternativas é a correta: especificamente, que os elos sociais da
vida do primata apresentam um duro desafio intelectual. O
principal papel de intelecto criativo, sugere ele, é “manter a
sociedade unida”.

Os primatologistas agora sabem que a rede de alianças dentro


dos grupos de primatas é extremamente complexa. Aprender
as complicações de tal rede, como os indivíduos devem fazer
se quiserem ter sucesso, é suficientemente difícil. Mas a tarefa
torna-se muito mais difícil em razão da constante mudança de
alianças, na medida em que os indivíduos procuram de modo
incessante aumentar o seu poder político. Sempre cuidando de
seus interesses, e dos interesses de seus parentes próximos,
os indivíduos podem algumas vezes achar vantajoso romper as
alianças existentes e formar novas, mesmo, talvez, com antigos
rivais. Os membros do grupo encontram-se portanto em meio a
padrões de alianças variáveis, e exige-se um intelecto aguçado
para jogar o jogo sempre em mutação que Humphrey chama
xadrez social.

Os jogadores do xadrez social devem ser mais hábeis do que


os jogadores deste jogo de mesa antigo, pois não apenas as
peças

141

mudam de identidade de modo imprevisível — cavalos viram


bispos, peões viram torres, e assim por diante — mas também
ocasionalmente aliados trocam de lado e tornam-se inimigos.
Os jogadores do xadrez social devem estar constantemente
alertas, à espreita de uma vantagem potencial, e precavidos
contra uma desvantagem inesperada. Como eles o fazem?

Para os indivíduos nas sociedades de primatas o desafio é ser


capaz de prever o comportamento dos outros. Uma maneira
seria os indivíduos terem um grande banco mental em seus
cérebros, que armazenasse todas as ações possíveis de seus
companheiros de grupo e suas respostas apropriadas. Este é o
modo pelo qual o poderoso programa de computador Deep
Thought (Pensamento Profundo) obtém o status de Grande
Mestre no xadrez. Entretanto, computadores são muito mais
rápidos do que cérebros de seres vivos o são na busca através
de todas as combinações possíveis apropriadas para um
determinado conjunto de circunstâncias. É necessário algum
outro modo. Se, por exemplo, os indivíduos fossem capazes de
monitorar o seu próprio comportamento, em vez de operar
simplesmente como autômatos computadorizados, então eles
desenvolveriam um senso heurístico do que fazer sob certas
circunstâncias. Por extrapolação, eles poderiam ser então
capazes de prever o comportamento dos outros sob as
mesmas circunstâncias. Esta habilidade de monitoramento, que
Humphrey chama o Olho Interior, é uma definição de cons-
ciência, e conferiria considerável vantagem evolutiva aos indiví-
duos que a possuíssem.

Uma vez estabelecida a consciência, não houve mais volta,


pois os indivíduos menos dotados estariam em desvantagem.
Da mesma forma, aqueles com uma pequena vantagem seriam
ainda mais favorecidos. Uma corrida armamentista se seguiria,
conduzindo o processo sempre para a frente, estimulando a
inteligência e aperfeiçoando a autopercepção. À medida que o
Olho Interior tornou-se cada vez mais observador,
inexoravelmente emergiria um sentido real do eu, uma
consciência refletiva, um Eu Interior.

A hipótese, que é parte do desenvolvimento da hipótese da


inteligência social, atraiu muito interesse e apoio. Em um artigo
de revisão de estudos de primatas publicado em 1986 na
revista Science, Cheney, Seyfarth e Barbara Smuts chamaram
a atenção para a importância da inteligência em contextos
sociais, quando comparada com sua importância em satisfazer
as exigências da tecnologia. E Robin Dunbar examinou as
diferentes quantidades de córtex cerebral — a parte “pensante”
do cérebro — em várias

142

espécies de primatas. Ele descobriu que as espécies que


viviam em grandes grupos, e portanto deparavam com os jogos
mais complexos do xadrez social, tinham o córtex cerebral
maior. “Isto é consistente com a hipótese da inteligência social”,
conclui ele.

Duas linhas de indícios têm sido importantes na revolução da


compreensão do comportamento animal — a revolução que
erodiu o dogma behaviorista que afirma que os animais não
têm mentes. Uma foi um conjunto pioneiro de experiências
projetadas para detectar a autopercepção — isto é, sinais de
auto-reconhecimento — em animais que não os humanos. A
segunda envolvia a busca de sinais de engodo tático nos
primatas em seu habitat natural.

Uma experiência tão privada quanto a consciência está


frustrantemente além dos métodos usuais do psicólogo
experimental. Esta pode ser uma das razões por que muitos
pesquisadores afastaram-se assustados da noção de mente e
consciência nos animais não humanos. Entretanto, no final da
década de 1960, Gordon Gallup, psicólogo da State University
of New York, em Albany, projetou um teste para o sentido do
eu: o teste do espelho. Se um animal fosse capaz de
reconhecer sua imagem refletida em um espelho como seu
“eu”, então poderíamos dizer que ele possui uma percepção do
eu, ou consciência. Os donos de animais de estimação sabem
que cães e gatos reagem à sua imagem em um espelho, mas
muitas vezes estes a tratam como um outro indivíduo cujo
comportamento em pouco tempo torna-se intrigante e depois
aborrecido. (Não obstante, estes mesmos donos de animais de
estimação jurarão que seu gato ou cachorro tem
autopercepção.)
O experimento — que ocorreu a Gallup numa manhã enquanto
se barbeava—demandava a familiarização do animal com o
espelho e a seguir a marcação da sua testa com uma pequena
mancha vermelha. Se o animal percebesse que a imagem
refletida fosse apenas um outro indivíduo, poderia ficar
intrigado com a curiosa mancha vermelha e poderia mesmo
tocar o espelho. Mas se o animal percebesse que a imagem
era de si mesmo, ele provavelmente tocaria a mancha em seu
próprio corpo. Da primeira vez que Gallup tentou fazer a
experiência com um chimpanzé, o animal agiu como se
soubesse que era a sua própria imagem; ele tocou a mancha
vermelha em sua testa. O relato de Gallup sobre a experiência,
publicado em um artigo de 1970 na revista Science, constitui
um marco na nossa compreensão das mentes dos animais, e
os psicólogos perguntaram-se o quão amplamente
disseminado o auto-reconhecimento se mostraria ser.

143

Não muito, é a resposta. Os orangotangos passaram no teste,


mas, surpreendentemente, os gorilas não. Em situações menos
formais, alguns observadores alegam ter visto gorilas usar
espelhos como se reconhecessem a própria imagem, o que
eles consideram indicação de sentido do eu nestes animais.
Um Rubicão mental, com a autopercepção em uma margem e
sua ausência na outra, faria sentido se a margem em que se
encontra a autopercepção incluísse os humanos e os grandes
macacos, ficando o resto dos primatas e outros animais na
outra. Entretanto, alguns primatologistas consideraram esta
divisão demasiado exclusiva, dadas as suas observações da
complexa vida social de muitas espécies de símios. Um teste
para esta exclusividade surgiu recentemente, o teste do
“engodo tático”.

Andrews Whiten e Richard Byrne, da Universidade de Saint


Andrews, na Escócia, cunharam este termo, que eles definem
como “a capacidade de um indivíduo utilizar uma 'ação
honesta' de seu repertório normal em um contexto diferente, de
maneira tal que mesmo indivíduos familiares são enganados”.
Em outras palavras, um animal mente intencionalmente para
outro. Para ser capaz de enganar intencionalmente, um animal
deve ter um sentido de como suas ações parecem para um
outro indivíduo. Esta habilidade exige autopercepção. Se o
engodo realmente acontece, ele é provavelmente raro: como o
garoto que gritou “Lobo!”, você não pode aplicá-lo
seguidamente se quiser preservar sua credibilidade.

Byrne e Whiten ficaram interessados no engodo depois de ver


diversos exemplos do que poderia ser interpretado como tal em
um grupo de babuínos que eles estavam observando nas mon-
tanhas Drakensberg, no sul da África. Por exemplo, um dia
Paul, um macho adolescente, aproximou-se de Mel, uma fêmea
adulta, que estava empenhada em desenterrar um tubérculo
suculento. Paul olhou à sua volta e viu que nenhum outro
babuíno estava por perto, embora tivesse certeza de que não
estavam muito longe. Paul deixou escapar um grito penetrante,
como se estivesse em perigo. A mãe de Paul, que era
dominante em relação a Mel, reagiu como qualquer mãe
protetora o faria: ela correu para a cena e enxotou Mel, a
atacante aparente. Paul então comeu, de maneira casual, o
tubérculo abandonado. Teria Paul pensado: “Hmmm, se eu
gritar, minha mãe pensará que Mel está me atacando. Ela cor-
rerá para defender-me, e eu serei deixado com o suculento
tubérculo e poderei comê-lo?” Se verdadeiro, isto seria um
exemplo de engodo tático.

144

Byrne e Whiten acharam que poderia ser verdadeiro, e, infor-


malmente, reuniram seus colegas primatologistas em torno de
suas observações de campo. Muitas histórias similares à de
Paul foram contadas, embora poucas tivessem constituído
páginas da literatura científica, já que eram anedóticas e
portanto não-científicas. Byrne e Whiten efetuaram
levantamentos com mais de uma centena de seus colegas, em
1985 e novamente em 1989, solicitando-lhes relatos de
supostos engodos táticos. Eles receberam mais de trezentos.
Os exemplos não se limitavam a observações com macacos
mas incluíam também observações com macaquinhos
arborícolas. Interessantemente, ninguém alegou ter visto
engodo tático em outros primatas, tais como os lemuróides e
bush babies, a não ser nos macacos e macaquinhos
arborícolas.

O problema com que os primatologistas deparam ao procurar


indícios de engodo tático é este: será a ação verdadeiramente
um exemplo de raciocínio individual, com base num sentido do
eu? Ou será ela meramente o resultado do aprendizado, que
não exige um sentido do eu? Paul, por exemplo, pode ter
simplesmente aprendido que, sob as circunstâncias que
encontrou, seu grito lhe daria acesso ao tubérculo de Mel;
neste caso sua ação seria uma resposta aprendida e não um
ato de engodo tático.

Quando Byrne e Whiten aplicaram critérios estritos aos su-


postos exemplos de engodo tático, descartando, o mais
cuidadosamente possível, possibilidades de aprendizado,
descobriram que, dos 253 casos reunidos na pesquisa de
1989, apenas 16 poderiam ser considerados, verdadeiramente,
de engodo tático. Todos estes casos eram com macacos, e a
maioria chimpanzés. Darei um exemplo, que foi observado pelo
primatologista holandês Frans Plooy na reserva Gombe
Stream, na Tanzânia.

Um chimpanzé macho adulto estava sozinho na área de ali-


mentação quando uma caixa foi aberta eletronicamente,
revelando a presença de bananas. Neste momento, chegou um
segundo chimpanzé. Então o primeiro rapidamente fechou a
caixa e afastou-se indiferente, olhando como se nada de mais
estivesse acontecendo. Ele esperou até o intruso partir, e então
rapidamente abriu a caixa e apoderou-se das bananas. Porém,
ele havia sido enganado. O intruso não havia ido embora mas
sim se escondido, e esperava para ver o que estava
acontecendo. O pretenso trapaceiro havia sido trapaceado.
Este é um exemplo convincente de engodo tático.

Observações como esta abrem uma janela para a mente dos


chimpanzés. Estes animais evidentemente possuem um grau
sig-

145

nificativo de consciência reflexiva, uma conclusão que os


pesquisadores que trabalham com chimpanzés diariamente
endossam com entusiasmo. Os chimpanzés exibem um forte
sentido de percepção na maneira pela qual interagem uns com
os outros e com os humanos. Eles são capazes de ler a mente
como os humanos o são, mas de modo mais limitado.

Nos humanos, a leitura da mente vai além de simplesmente


predizer o que os outros farão sob certas circunstâncias: ela
inclui como os outros podem estar se sentindo. Todos nós
temos a experiência da simpatia, ou empatia, pelos outros
quando estes enfrentam situações que sabemos ser dolorosas
ou aflitivas. De modo vicário, experimentamos a angústia dos
outros, algumas vezes tão intensamente que chegamos a
sofrer dores físicas. A mais pungente das experiências vicárias
na sociedade humana é o medo da morte, ou simplesmente a
percepção da morte, que tem desempenhado um papel muito
importante na construção de mitologias e religiões. A despeito
de sua autopercepção, os chimpanzés no máximo parecem
intrigados com a morte. Há muitos relatos anedóticos de
indivíduos, ou mesmo famílias, aflitas ou desorientadas quando
um parente morre. Por exemplo, quando um bebê morre, sua
mãe algumas vezes carrega o diminuto corpo a esmo durante
alguns dias antes de descartar-se dele. A mãe parece estar
experimentando uma sensação de aturdimento e não o que
chamamos pesar. Mas, como sabê-lo? Mais significativo,
talvez, é a falta do que reconheceríamos como simpatia pela
mãe despojada por parte dos outros indivíduos. O que quer
que a mãe esteja sofrendo, ela sofre sozinha. A limitação dos
chimpanzés em ter empatia com os outros estende-se a si
próprios como indivíduos: ninguém viu indícios de que os
chimpanzés estão cientes de sua própria mortalidade, de uma
morte iminente. Mas, novamente, como sabê-lo?

O que podemos dizer sobre a autopercepção de nossos an-


cestrais? Uns 7 milhões de anos já se passaram desde que os
humanos e os chimpanzés compartilharam um ancestral
comum. Nós, portanto, devemos ser cautelosos em assumir
que os chimpanzés permaneceram inalterados, e que olhando
para eles estamos efetivamente olhando para aquele ancestral
comum. Os chimpanzés devem ter evoluído de várias maneiras
desde que divergiram da linhagem humana. Mas é plausível
sugerir que o ancestral comum, um macaco de cérebro grande
que vivia uma vida socialmente complexa, tivesse desenvolvido
um nível de consciência igual ao do chimpanzé.

146

Vamos assumir que o ancestral comum dos humanos e dos


macacos africanos possuísse um nível de autopercepção
equivalente àquele dos chimpanzés modernos. A partir do que
sabemos sobre a biologia e a organização social das espécies
australopitecíneas, eles eram essencialmente macacos
bipédes: a estrutura social entre estas espécies não deveria ter
sido mais intensa do que vemos entre os babuínos modernos.
Portanto, não há razão irrefutável pela qual seu nível de
autopercepção devesse ter sido reforçado durante os primeiros
5 milhões de anos de existência da família humana.

As mudanças significativas que ocorreram com a evolução do


gênero Homo, no tamanho do cérebro, arquitetura da organi-
zação social e modo de subsistência, provavelmente também
marcaram o começo de uma mudança no nível de consciência.
Os começos do modo de vida de caça e coleta certamente
aumentaram a complexidade do xadrez social que nossos
ancestrais tinham que dominar. Hábeis jogadores — aqueles
equipados com um modelo mental mais sensível, uma
consciência mais desenvolvida — teriam desfrutado um maior
sucesso social e reprodutivo. Isto é proveitoso para a seleção
natural, que teria elevado a consciência para níveis cada vez
mais altos. Este desdobramento gradual da consciência
transformou-nos em um novo tipo de animal. Transformou-nos
em um animal que cria padrões arbitrários de comportamento
com base no que é considerado certo ou errado.

Muito disto, é claro, é especulação. Como podemos saber o


que aconteceu com o nível de consciência de nossos
ancestrais durante os 2,5 milhões de anos passados? Como
podemos detectar quando esta se tomou o que
experimentamos hoje? A dura realidade com que os
antropólogos deparam é que estas questões podem ser
irrespondíveis. Se tenho dificuldade em provar que um outro
ser humano tem o mesmo nível de consciência que eu, e se a
maioria dos biólogos recua ao tentar determinar o grau de
consciência nos animais não humanos, como podemos
discernir sinais de consciência reflexiva em criaturas mortas há
muito tempo? A consciência é ainda menos visível no registro
arqueológico do que a linguagem. Alguns comportamentos
humanos, tal como a expressão artística, quase certamente
refletem ambas, a linguagem e a percepção consciente.
Outros, como a fabricação de artefatos de pedra, podem, como
vimos, dar pistas sobre a linguagem mas não sobre a
consciência. Entretanto, há uma atividade humana que é plena
de consciência e que algumas vezes deixa sua marca no
registro arqueológico: o sepultamento deliberado dos mortos.

147

A remoção ritual dos mortos fala claramente de uma percepção


da morte, e portanto de uma percepção do eu. Todas as socie-
dades têm maneiras pelas quais a morte é aceita como parte
de sua mitologia e religião. Há miríades de maneiras pelas
quais isto é feito nos tempos modernos, variando do cuidado
extensivo do cadáver durante um longo período, talvez
envolvendo a sua movimentação de uma locação especial para
outra depois de um período de um ano ou mesmo mais, até
uma atenção mínima ao corpo. Algumas vezes, mas não
freqüentemente, o ritual envolve o sepultamento. O
sepultamento ritual nas sociedades antigas ofereceria a
oportunidade para que a cerimônia se tornasse “congelada” no
tempo, disponível mais tarde a um arqueólogo disposto a
quebrar a cabeça com ela.

O primeiro indício de sepultamento deliberado na história


humana é o sepultamento neanderthal há não muito mais que
100 mil anos. Um dos sepultamentos mais pungentes
aconteceu um pouco mais tarde, há uns 60 mil anos, nas
montanhas Zagros ao norte do Iraque. Um macho adulto foi
enterrado na entrada de uma caverna; seu corpo
aparentemente havia sido colocado sobre uma câmara de
flores de potencial curativo, a julgar pelo pólen encontrado em
torno do esqueleto fossiüzado. Talvez, especularam alguns
antropólogos, ele tivesse sido um xamã. Antes de 100 mil anos
atrás, não há indício de qualquer tipo de ritual que pudesse
indicar uma consciência reflexiva. Nem, como observado no
capítulo 6, há qualquer forma de arte. É verdade que a
ausência de tais indícios não prova definitivamente a ausência
de consciência. Mas também não pode ser acrescentada como
apoio à existência da consciência. Acharia surpreendente,
porém, se os ancestrais imediatos dos povos sapiens antigos, o
desaparecido Homo erectus, não tivessem um nível de
consciência significativamente maior do que o dos chimpanzés.
Sua complexidade social, grande tamanho cerebral, e uma
provável habilidade lingüística, todos estes fatores apontam
para isto.

Os neanderthais, como já sugeri, e provavelmente outros


sapiens antigos, tinham realmente uma percepção da morte e
portanto, indubitavelmente, uma consciência reflexiva
altamente desenvolvida. Mas, teria ela a mesma luminosidade
que experimentamos hoje? Provavelmente não. A emergência
de uma linguagem completamente moderna e de uma
consciência também completamente moderna estavam sem
dúvida interligadas, cada uma alimentando-se da outra. Os
humanos modernos tornaram-se humanos quando passaram a
falar como nós e tiveram a expe-

146

riência do eu como nós a temos. Nós certamente vemos


indícios disto na arte da Europa e da África a partir de 35 mil
anos atrás e no elaborado ritual que acompanhava o
sepultamento no Paleolítico Superior.
Toda sociedade humana tem um mito de origem, a história
mais fundamental de todas. Estes mitos de origem têm como
fonte a consciência reflexiva, a voz interior que procura
explicações para tudo. Desde que a consciência reflexiva
passou a arder brilhantemente na mente do homem, a
mitologia e a religião têm sido parte da história humana.
Mesmo nesta era científica, elas provavelmente continuarão a
fazê-lo. Um tema comum da mitologia é a atribuição de
motivações e emoções semelhantes às dos humanos a animais
não humanos — e mesmo a forças e objetos físicos tais como
montanhas e tempestades. Esta tendência de antropomorfizar
flui naturalmente a partir do contexto no qual a consciência está
envolvida. A consciência é uma ferramenta social utilizada na
compreensão do comportamento dos outros ao modelar este
comportamento de acordo com nossos próprios sentimentos. É
uma extrapolação simples e natural imputar estas mesmas
motivações a aspectos do mundo que são inumanos mas não
obstante importantes.

Animais e plantas são fundamentais para a sobrevivência de


coletores-caçadores, assim como os elementos naturais, que
nutrem o meio ambiente. A vida, como um intercâmbio
complexo de todos estes elementos, é vista como um
intercâmbio de ações intencionais, exatamente como o nexo
social. Portanto, não é surpreendente que os animais e as
forças físicas desempenhem um papel importante na mitologia
dos povos que vivem à procura de alimentos em todo o mundo.
A mesma coisa deve ter sido válida no passado.

Na minha visita a muitas das cavernas decoradas da França há


uma década, este pensamento ocorria-me constantemente. As
imagens que vi diante de mim, algumas simplesmente esboços,
algumas trabalhadas com detalhes, eram sempre muito fortes
no que diz respeito ao seu impacto sobre minha mente, mas
elusivas em seu significado. As figuras meio humanas e meio
animais, em particular, desafiaram minha imaginação e a
derrotaram. Eu estava certo de estar na presença de elementos
do mito de origem de um povo antigo, mas não tinha modo de
vê-lo. Sabemos da história recente que o eland tem uma
miríade de poderes espirituais para o povo San do sul da
África. Mas podemos apenas especular

149

sobre o papel que o cavalo e o bisão desempenhavam na vida


espiritual dos europeus da Idade do Gelo. Sabemos que eles
eram poderosos mas não temos idéia de que modo.

Parado em frente às figuras de bisões em Le Tuc d’Audoubert,


senti a conexão entre mentes humanas através dos milênios: a
mente dos escultores daquelas figuras e a minha própria — a
mente do observador. E senti a frustração de estar distante do
mundo dos artistas, não porque estivéssemos separados no
tempo, mas porque estávamos separados por nossas culturas
diferentes. Este é um dos paradoxos do Homo sapiens: temos
a experiência da unidade e da diversidade de uma mente
moldada por eras de vida como coletor-caçador. E temos a
experiência de sua diversidade em diferentes culturas —
expressas na linguagem, costumes e religiões — que nós
criamos e que nos criam. Deveríamos alegrar-nos com um
produto tão maravilhoso da evolução.
150
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PREFÁCIO

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