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Ao pensar sobre o título deste artigo, tomei emprestada uma analogia ao artigo original para
me reportar a uma triste constatação sobre o posicionamento da esquerda anticapitalista
argentina no segundo turno que se avizinha, principalmente aquela que se organiza ao redor da
Frente de Esquerda e dos Trabalhadores Unidade – FITU (PTS, MST, PO, IS) e fora desta, as
organizações o Novo MAS, o PO (Política Operária) e outras organizações menores.
“Todos os dias pela manhã, Jack acorda e passeia no seu mundo, dá bom dia a todos
os seus brinquedos e objetos pessoais, e conversa com eles o tempo todo. Jack acha
que as pessoas da TV são feitas de cores, como os desenhos animados, e que não
existem de verdade. Nada do que está na TV é verdadeiro. É apenas diversão. E Jack
realmente se diverte. Em sua mente imaginativa, depois da claraboia não há nada,
apenas o espaço sideral”.
As pesquisas publicadas até agora evidenciam um empate técnico com ligeiras vantagens para
“el loco” – mas Milei de louco não tem nada. Os loucos merecem cuidados médicos e
terapêuticos, um fascista merece repúdio popular e seu projeto precisa ser derrotado nas urnas,
TAMBÉM NAS URNAS! Tentar contornar a decisão real de quem escolher para votar no dia
19, em nome de supostas lutas futuras é um exercício típico do ultraesquerdista para fugir da
realidade que se aproxima. Um ultraesquerdista é aquele que se agarra somente a um aspecto da
realidade para decidir sobre uma totalidade muito mais complexa.
O caso é que o segundo turno pode ser decidido por 1 a 3 por cento dos votos e seu desenlace
afetará todo o Cone Sul. Ou seja, a decisão de defender o voto nulo ou branco pode interferir na
reta final, isso não é um detalhe.
Nos últimos anos, ocorreram importantes ares de derrotas das direitas no Brasil, Peru, Chile,
Colômbia e Bolívia, mas, na sequência, derrotas significativas das esquerdas revelam que a
correlação de forças não se inverteu e pode até retroceder.
Vejamos. No Equador (onde uma parte da esquerda novamente chamou voto nulo no segundo
turno), a direita derrotou Luisa González; houve o golpe parlamentar no Peru contra Castillo e a
derrota no Plebiscito no Chile; a semi insurreição golpista do 8 de janeiro no Brasil, ainda que
derrotada, revelou a força social da extrema direita no Brasil. E, na Venezuela, as várias
tentativas golpistas foram derrotadas, mas temos fortes sequelas sociais e econômicas da
investida golpista e do bloqueio imperialista. Ou seja, o mar não tá pra peixe, e olha que a
América do Sul tem sido a região do mundo mais resiliente em manter posições progressistas.
E não há como ajudar a derrotar uma candidatura protofascista votando em branco ou nulo! Ou
publicando declarações malabaristas que igualam o Massa ao Milei porque todo trabalhador ou
trabalhadora com consciência mediana de classe na Argentina e todo o ativismo latino-
americano conhece razoavelmente das relações que o peronismo mantém historicamente
(mesmo em sua versão mais liberal e diante de toda justa desconfiança gerada contra o
Fernandes e o Massa) com as combativas bases sindicais e populares argentinas.
Genericamente, o que podemos denominar de toda a “esquerda social” sabe que mesmo o
peronismo desidratado e social-liberal não significa a mesma coisa que a vitória de um projeto
que requer uma profunda mudança de regime para implantar as medidas ultraliberais até as
últimas consequências como propõem abertamente Milei e sua facção, mal chamada de
Liberdade Avança.
Milei defende abertamente medidas de choques neoliberais bárbaras como a dolarização total da
economia, o fechamento do banco central do país, a liberação do mercado de armas e órgãos
humanos, a criminalização dos protestos, a privatização total das empresas estatais, a
voucherização da educação, uma reforma trabalhista e da seguridade social para acabar com os
direitos que ele denomina de “privilégios”. Milei é negacionista da ditadura e com sua vice
pretende reabilitar os militares golpistas, sequestradores e torturadores que foram punidos
judicialmente e moralmente.
Acreditem, o projeto de Milei pode ser imposto, sim! Uma vez no comando do Estado, as forças
mais obscuras da sociedade saem do esgoto e se fortalecem qualitativamente. O bolsonarismo
só não concluiu seu projeto porque foi derrotado eleitoralmente, repito eleitoralmente, por uma
frente ampla. Não fosse a derrota de Bolsonaro no 2º turno, o Brasil estaria mil vezes pior!
Um programa tão radical e nefasto contra amplos direitos sociais conquistados é impossível de
ser alcançado a frio, em negociações parlamentares. Somente impondo uma grave derrota à
classe trabalhadora e aos movimentos sociais, tal desastre será implementado e dada a tradição
de lutas e mobilizações dos trabalhadores argentinos, somente impondo um novo regime a
pauladas será possível. E nós temos precedentes históricos na América Latina de conjunto.
Os alertas não têm origens somente nas análises marxistas, do progressismo ou da esquerda
radical. Até mesmo segmentos das classes dominantes e liberais alertam para a ameaça à
democracia que bateria à porta com uma vitória. Uma das revistas da grande burguesia mais
importante do mundo, The Economist, alertou que Milei é um perigo para a democracia. Então
fica a pergunta: não faz diferença a vitória de Massa contra Milei?
A política do avestruz
A própria classe trabalhadora argentina acendeu a luz vermelha ao votar no 1º turno. Pois se
assim não fosse, como explicar a reação dos segmentos populares e de esquerda ampla que
votou no governista Sérgio Massa no 1º turno, ante a vitória anterior de Milei nas prévias de
agosto?
Massa alcançou 36,68% dos votos, aumentando sua votação de 5 milhões nas prévias (PASO)
para mais de 9,6 milhões de votos, ultrapassando Milei, que diminuiu sua votação em quase 800
mil votos em relação às prévias. Pesou a máquina do peronismo? Sim, mas sem o amplo
impulso defensivo da classe trabalhadora mais organizada isso não seria possível.
Manuela Castañeira, que foi a candidata à Presidenta pelo Novo MAS, que obteve somente
(0,36%) 85.628 votos nas prévias de agosto, declarou em seu perfil do Instagram,
“Conclamamos a não votar em Milei. Mesmo assim, não damos nenhum apoio ao Massa e que,
com exceção a Milei, os eleitores elejam livremente sua opção”… e em seu discurso na Marcha
LGBTQIA+ da Argentina (Marcha do Orgulho), afirmou: “nesse momento que há um discurso
reacionário do monstro fascista de Milei…. que não respeita as liberdades democráticas… nesta
marcha estamos aqui para defender nossos direitos… mas para derrotar a direita temos que
também derrotar o ajuste econômico… não confiem na direita, confiem em nossa própria força
e em nenhum governo não há nenhum salvador… e a saída é a mobilização… vão às ruas”
(tradução do autor).
Ou seja, para fugir ao tema da escolha do voto no dia 19 o Novo MAS propõe… a ida às ruas.
Que beleza! E porque as ruas não derrotaram o ajuste do Massa antes das eleições? Tal linha
transborda uma linha anarquista como se o resultado eleitoral num dos maiores países do
continente, e como se o regime político (autocrático-bonapartista ou democrático-liberal) não
fizesse nenhuma diferença para as mesmas lutas nas ruas que serão necessárias.
Por seu turno, o PTS, principal partido da FITU e que tem a maior responsabilidade, que
conseguiu ultrapassar a cláusula de barreira dentro das prévias da Frente de Esquerda, obtendo
442 mil votos nas PASO e 709.932 votos (2,70%) no primeiro turno, parecia ir até num
caminho mais sensato, quando Miriam Bregman, candidata pelo partido, afirmou no jornal
Página 12, “está claro que Massa e Milei não são a mesma coisa”, mas a declaração da Direção
Nacional de 30 de outubro, que afirma corretamente: “Os três milhões de votos que somou
Unión por la Patria neste 22 de outubro se explicam majoritariamente pelo enorme repúdio e
temor que despertou a campanha da direita, encarnada por Javier Milei, mas também, por outro
lado a Patricia Bulrich, que junto com Mauricio Macri hoje se converteram no principal aval do
ultradireitista…” não conclui pela defesa ao voto em Massa.
E segue criticando em um correto tom de alerta todo o programa de Milei que resumidamente é
uma declaração de guerra aos históricos direitos sociais, trabalhistas e civis que foram
conquistados por muitas lutas e anos e anos pela classe trabalhadora argentina. E conclui de
forma certeira… “somente o enorme temor do triunfo de Milei explica que muitos e muitas
tenham decidido votar no candidato oficialista, que passou de 21% a 36,6% dos votos, ficando
com uma folgada margem sobre o mal chamado ‘libertário’”, mas…
“De frente para o segundo turno, seguramente milhões voltarão a utilizar o voto para
evitar um eventual triunfo do ultrarreacionário Milei. Compreendemos esta atitude,
mas não a compartilhamos, já que seria contribuir para fortalecer uma opção contrária
aos interesses dos trabalhadores e de continuidade com a submissão ao FMI. Desde já,
conclamamos a não votar em Milei, mas, como membros da esquerda, não podemos
dar nenhum tipo de apoio político nem eleitoral a Massa”…
Ou seja, o PTS, parte da análise correta da maioria da classe organizada que já conhece Massa e
já sabe que não confia nele e no governo atual, devido à experiência econômica recente de
ajuste, inflação, desemprego, etc., mas essa mesma classe sabe de forma consciente que é
preciso derrotar Milei no 2° turno. Sabe que as condições para lutar e ganhar as ruas serão
muito piores sob um regime bonapartista que se avizinha.
Neste caso, parece não ter a menor importância que a tese leninista de que a necessidade do
partido é imprescindível para cumprir um papel dirigente e dar coerência estratégica para as
classes exploradas, preparando as próximas batalhas.
A classe sabe e tem memória sobre o que foi a ditadura e o impacto sobre suas organizações e
as torturas e mortes, e que avaliam ter chegado a 30 mil pessoas mortas e desaparecidas. Sabem
que o retorno de um regime brutalmente repressor é possível diante da vitória de Milei que é
negacionista da ditadura e sua vice tem relação direta com os meios militares e defende igualar
as vítimas da repressão aos militares que supostamente teriam sido injustiçados nos julgamentos
pós-ditadura.
O PTS parece não escutar a classe e os alertas de que frente a uma provável regressão de regime
é melhor ter a democracia liberal com as liberdades democráticas em funcionamento. A classe
sabe que nem todos os governos burgueses são iguais e que é possível escolher o terreno onde
irá lutar – se num terreno mais democrático ou mais repressor.
Nesta linha segue o Partido Operário – PO, “No apoyamos politicamente ni votamos en Milei ni
a Massa”, diz a sua resolução, cujo conteúdo é mais explícito em igualar Milei a Massa. Sobre
a ameaça antidemocrática afirma na sua Resolução, ponto 3, “A questão repressiva na
Argentina não se apresenta na disjuntiva entre democracia ou fascismo senão que sobre o
agravamento da perseguição, mediante mecanismos legais e judiciais”. Afirmam ainda que o
segundo turno seria uma chantagem para ter que decidir entre dois candidatos que representam
um mesmo projeto.
Mesmo a ruptura do PO, que curiosamente tem quase o mesmo nome do partido de origem, o
Política Operária-PO, dirigida por Jorge Altamira, afirmou em sua página no Instagram que
diante da crise política e terminal e da explosão econômica, defendem o voto em branco e
pretendem a organização de uma luta operária independente.
O MST, por sua vez, enfatiza a importância de derrotar o candidato da extrema direita, mas não
defende o voto em Massa, apenas nega que fará campanha pelo voto em branco. Porém analisa:
“O duro golpe que Milei, de extrema direita, recebeu, levou-o a fazer um acordo com
Bullrich e Macri, ou seja, com parte da mesma casta que criticava. E um grande setor
votou em Massa como freio por temer que Milei vencesse. A nossa primeira definição
é apelar aos trabalhadores e aos jovens para NÃO votarem em Milei e no seu projeto
reacionário negacionista e antidireitos, que deve ser interrompido. Ao mesmo tempo,
por não serem projetos iguais, entendemos a vontade democrática de quem votou em
Massa para que Milei não vença, portanto, não convocaremos voto em branco ou
campanha nesse sentido”.
A posição do MST parte do lugar correto, mas termina de forma envergonhada, pois até mesmo
para criticar Sérgio Massa com mais autoridade, o melhor posicionamento seria defender o
voto, mesmo que seja crítico, alertando a necessidade de votar em defesa das liberdades
democráticas.
Importante destacar ainda a posição do Partido Comunista Argentino, PCA. Tem menos peso
no cenário político, mas também é representativo do que significa a falta de flexibilidade e
sensibilidade tática que permeia a grande parte da esquerda. Tal partido também iguala os dois
candidatos em sua Resolução do Comitê Central, defendendo a posição de não votar ou votar
nulo.
O outro partido da FITU, Esquerda Socialista (IS), parece ter uma melhor Resolução,
considerando as tarefas eleitorais até o segundo turno. Em seu formato, apresenta uma
propaganda sectária, mas pelo menos, em conteúdo, facilita um melhor diálogo com todos os
segmentos que tenderão a votar em Massa.
1. Primeiro, a decisão pelo voto em Massa, enquanto voto da classe trabalhadora, é importante
sim e tem peso inclusive para se preparar e escolher melhor o terreno das ações coletivas das
lutas futuras. Daí acolher a tática do voto tem uma relevância no contexto atual. Ilusões do voto
branco ou nulo são efêmeras e infantis.
2. Segundo, não se pode confundir declaração de voto tático com o apoio político e ao programa
do candidato. Fora das bolhas sectárias, o trabalhador medianamente consciente sabe que ante
uma ameaça há que se apegar a uma base real de defesa, mais segura, que é a democracia liberal
para incrementar as próximas batalhas.
3. Terceiro, existem frações distintas da burguesia pra enfrentar a própria crise do capital,
observamos que vêm crescendo as frações no mundo inteiro que tendem a apelar para regimes
mais autocráticos como forma de conter as reações sociais.
O mundo, às vezes, é ingrato, mas é melhor encará-lo do que fugir, utilizando os mais diversos
argumentos. É importante tirar as lições do enfrentamento ao bolsonarismo no Brasil. A
esmagadora maioria das organizações da esquerda brasileira votou acertadamente em Lula no 1º
turno e mais ainda no 2º turno. Até mesmos os partidos que se aventuraram em lançar
candidatos a Presidente no 1º turno, como o PSTU, PCB e UP, defenderam o voto em Lula no
2º turno.
A maioria da esquerda anticapitalista argentina deveria tentar fazer um esforço e buscar sair do
quarto de Jack, pois será muito mais difícil se perdermos essa batalha. (Publicado no Esquerda
Online, 10/11/2023) LINK PARA EMBUTIR => https://esquerdaonline.com.br/2023/11/10/a-
esquerda-argentina-entrou-no-quarto-de-jack/