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A esquerda argentina entrou no quarto de Jack

David Cavalcante (Colaborador do Esquerda Online)


Publicado em: 10/11/2023 12h48

Ao pensar sobre o título deste artigo, tomei emprestada uma analogia ao artigo original para
me reportar a uma triste constatação sobre o posicionamento da esquerda anticapitalista
argentina no segundo turno que se avizinha, principalmente aquela que se organiza ao redor da
Frente de Esquerda e dos Trabalhadores Unidade – FITU (PTS, MST, PO, IS) e fora desta, as
organizações o Novo MAS, o PO (Política Operária) e outras organizações menores.

Poderia utilizar os termos da esquerda, sectarismo e ultraesquerdismo, que são conceitos


distintos (que lá se encontraram como numa dança dos cisnes), mas preferi a singela analogia
do “quarto de Jack”, numa referência ao personagem protagonista do filme:

“Todos os dias pela manhã, Jack acorda e passeia no seu mundo, dá bom dia a todos
os seus brinquedos e objetos pessoais, e conversa com eles o tempo todo. Jack acha
que as pessoas da TV são feitas de cores, como os desenhos animados, e que não
existem de verdade. Nada do que está na TV é verdadeiro. É apenas diversão. E Jack
realmente se diverte. Em sua mente imaginativa, depois da claraboia não há nada,
apenas o espaço sideral”.

Ora, as esquerdas, as organizações democratas e até segmentos liberais do mundo inteiro, em


particular da América Latina, estão de orelha em pé em face da possibilidade da vitória de um
projeto de extrema direita e protofascista, liderada pela chapa Milei-Victoria, no próximo
dia 19 de novembro. Mas parece que a maioria da esquerda da nossa querida nação vizinha
trata tal eleição como mais do mesmo, como se vivessem de fato num quarto isolado como
Jack.

As pesquisas publicadas até agora evidenciam um empate técnico com ligeiras vantagens para
“el loco” – mas Milei de louco não tem nada. Os loucos merecem cuidados médicos e
terapêuticos, um fascista merece repúdio popular e seu projeto precisa ser derrotado nas urnas,
TAMBÉM NAS URNAS! Tentar contornar a decisão real de quem escolher para votar no dia
19, em nome de supostas lutas futuras é um exercício típico do ultraesquerdista para fugir da
realidade que se aproxima. Um ultraesquerdista é aquele que se agarra somente a um aspecto da
realidade para decidir sobre uma totalidade muito mais complexa.

O caso é que o segundo turno pode ser decidido por 1 a 3 por cento dos votos e seu desenlace
afetará todo o Cone Sul. Ou seja, a decisão de defender o voto nulo ou branco pode interferir na
reta final, isso não é um detalhe.

Nos últimos anos, ocorreram importantes ares de derrotas das direitas no Brasil, Peru, Chile,
Colômbia e Bolívia, mas, na sequência, derrotas significativas das esquerdas revelam que a
correlação de forças não se inverteu e pode até retroceder.

Vejamos. No Equador (onde uma parte da esquerda novamente chamou voto nulo no segundo
turno), a direita derrotou Luisa González; houve o golpe parlamentar no Peru contra Castillo e a
derrota no Plebiscito no Chile; a semi insurreição golpista do 8 de janeiro no Brasil, ainda que
derrotada, revelou a força social da extrema direita no Brasil. E, na Venezuela, as várias
tentativas golpistas foram derrotadas, mas temos fortes sequelas sociais e econômicas da
investida golpista e do bloqueio imperialista. Ou seja, o mar não tá pra peixe, e olha que a
América do Sul tem sido a região do mundo mais resiliente em manter posições progressistas.

E não há como ajudar a derrotar uma candidatura protofascista votando em branco ou nulo! Ou
publicando declarações malabaristas que igualam o Massa ao Milei porque todo trabalhador ou
trabalhadora com consciência mediana de classe na Argentina e todo o ativismo latino-
americano conhece razoavelmente das relações que o peronismo mantém historicamente
(mesmo em sua versão mais liberal e diante de toda justa desconfiança gerada contra o
Fernandes e o Massa) com as combativas bases sindicais e populares argentinas.

Genericamente, o que podemos denominar de toda a “esquerda social” sabe que mesmo o
peronismo desidratado e social-liberal não significa a mesma coisa que a vitória de um projeto
que requer uma profunda mudança de regime para implantar as medidas ultraliberais até as
últimas consequências como propõem abertamente Milei e sua facção, mal chamada de
Liberdade Avança.
Milei defende abertamente medidas de choques neoliberais bárbaras como a dolarização total da
economia, o fechamento do banco central do país, a liberação do mercado de armas e órgãos
humanos, a criminalização dos protestos, a privatização total das empresas estatais, a
voucherização da educação, uma reforma trabalhista e da seguridade social para acabar com os
direitos que ele denomina de “privilégios”. Milei é negacionista da ditadura e com sua vice
pretende reabilitar os militares golpistas, sequestradores e torturadores que foram punidos
judicialmente e moralmente.

Acreditem, o projeto de Milei pode ser imposto, sim! Uma vez no comando do Estado, as forças
mais obscuras da sociedade saem do esgoto e se fortalecem qualitativamente. O bolsonarismo
só não concluiu seu projeto porque foi derrotado eleitoralmente, repito eleitoralmente, por uma
frente ampla. Não fosse a derrota de Bolsonaro no 2º turno, o Brasil estaria mil vezes pior!

Um programa tão radical e nefasto contra amplos direitos sociais conquistados é impossível de
ser alcançado a frio, em negociações parlamentares. Somente impondo uma grave derrota à
classe trabalhadora e aos movimentos sociais, tal desastre será implementado e dada a tradição
de lutas e mobilizações dos trabalhadores argentinos, somente impondo um novo regime a
pauladas será possível. E nós temos precedentes históricos na América Latina de conjunto.

Os alertas não têm origens somente nas análises marxistas, do progressismo ou da esquerda
radical. Até mesmo segmentos das classes dominantes e liberais alertam para a ameaça à
democracia que bateria à porta com uma vitória. Uma das revistas da grande burguesia mais
importante do mundo, The Economist, alertou que Milei é um perigo para a democracia. Então
fica a pergunta: não faz diferença a vitória de Massa contra Milei?

A política do avestruz

A própria classe trabalhadora argentina acendeu a luz vermelha ao votar no 1º turno. Pois se
assim não fosse, como explicar a reação dos segmentos populares e de esquerda ampla que
votou no governista Sérgio Massa no 1º turno, ante a vitória anterior de Milei nas prévias de
agosto?
Massa alcançou 36,68% dos votos, aumentando sua votação de 5 milhões nas prévias (PASO)
para mais de 9,6 milhões de votos, ultrapassando Milei, que diminuiu sua votação em quase 800
mil votos em relação às prévias. Pesou a máquina do peronismo? Sim, mas sem o amplo
impulso defensivo da classe trabalhadora mais organizada isso não seria possível.

Diante desse quadro, há de se perguntar, para o marxismo é indiferente um resultado eleitoral


entre uma candidatura liberal e uma candidatura protofascista? Milei já afirmou com todas as
letras que vai criminalizar os movimentos para retirar os direitos dos trabalhadores e impor a
dolarização total da economia e o corte radical de gastos. Por que um importante movimento
político como a maioria da FITU ignora tais alertas? Em qual manual os clássicos do marxismo
afirmaram essa tática dogmática que mais se assemelha às posições anarquistas?

Manuela Castañeira, que foi a candidata à Presidenta pelo Novo MAS, que obteve somente
(0,36%) 85.628 votos nas prévias de agosto, declarou em seu perfil do Instagram,
“Conclamamos a não votar em Milei. Mesmo assim, não damos nenhum apoio ao Massa e que,
com exceção a Milei, os eleitores elejam livremente sua opção”… e em seu discurso na Marcha
LGBTQIA+ da Argentina (Marcha do Orgulho), afirmou: “nesse momento que há um discurso
reacionário do monstro fascista de Milei…. que não respeita as liberdades democráticas… nesta
marcha estamos aqui para defender nossos direitos… mas para derrotar a direita temos que
também derrotar o ajuste econômico… não confiem na direita, confiem em nossa própria força
e em nenhum governo não há nenhum salvador… e a saída é a mobilização… vão às ruas”
(tradução do autor).

Ou seja, para fugir ao tema da escolha do voto no dia 19 o Novo MAS propõe… a ida às ruas.
Que beleza! E porque as ruas não derrotaram o ajuste do Massa antes das eleições? Tal linha
transborda uma linha anarquista como se o resultado eleitoral num dos maiores países do
continente, e como se o regime político (autocrático-bonapartista ou democrático-liberal) não
fizesse nenhuma diferença para as mesmas lutas nas ruas que serão necessárias.

Por seu turno, o PTS, principal partido da FITU e que tem a maior responsabilidade, que
conseguiu ultrapassar a cláusula de barreira dentro das prévias da Frente de Esquerda, obtendo
442 mil votos nas PASO e 709.932 votos (2,70%) no primeiro turno, parecia ir até num
caminho mais sensato, quando Miriam Bregman, candidata pelo partido, afirmou no jornal
Página 12, “está claro que Massa e Milei não são a mesma coisa”, mas a declaração da Direção
Nacional de 30 de outubro, que afirma corretamente: “Os três milhões de votos que somou
Unión por la Patria neste 22 de outubro se explicam majoritariamente pelo enorme repúdio e
temor que despertou a campanha da direita, encarnada por Javier Milei, mas também, por outro
lado a Patricia Bulrich, que junto com Mauricio Macri hoje se converteram no principal aval do
ultradireitista…” não conclui pela defesa ao voto em Massa.

E segue criticando em um correto tom de alerta todo o programa de Milei que resumidamente é
uma declaração de guerra aos históricos direitos sociais, trabalhistas e civis que foram
conquistados por muitas lutas e anos e anos pela classe trabalhadora argentina. E conclui de
forma certeira… “somente o enorme temor do triunfo de Milei explica que muitos e muitas
tenham decidido votar no candidato oficialista, que passou de 21% a 36,6% dos votos, ficando
com uma folgada margem sobre o mal chamado ‘libertário’”, mas…

“De frente para o segundo turno, seguramente milhões voltarão a utilizar o voto para
evitar um eventual triunfo do ultrarreacionário Milei. Compreendemos esta atitude,
mas não a compartilhamos, já que seria contribuir para fortalecer uma opção contrária
aos interesses dos trabalhadores e de continuidade com a submissão ao FMI. Desde já,
conclamamos a não votar em Milei, mas, como membros da esquerda, não podemos
dar nenhum tipo de apoio político nem eleitoral a Massa”…

Ou seja, o PTS, parte da análise correta da maioria da classe organizada que já conhece Massa e
já sabe que não confia nele e no governo atual, devido à experiência econômica recente de
ajuste, inflação, desemprego, etc., mas essa mesma classe sabe de forma consciente que é
preciso derrotar Milei no 2° turno. Sabe que as condições para lutar e ganhar as ruas serão
muito piores sob um regime bonapartista que se avizinha.

Neste caso, parece não ter a menor importância que a tese leninista de que a necessidade do
partido é imprescindível para cumprir um papel dirigente e dar coerência estratégica para as
classes exploradas, preparando as próximas batalhas.

A classe sabe e tem memória sobre o que foi a ditadura e o impacto sobre suas organizações e
as torturas e mortes, e que avaliam ter chegado a 30 mil pessoas mortas e desaparecidas. Sabem
que o retorno de um regime brutalmente repressor é possível diante da vitória de Milei que é
negacionista da ditadura e sua vice tem relação direta com os meios militares e defende igualar
as vítimas da repressão aos militares que supostamente teriam sido injustiçados nos julgamentos
pós-ditadura.

A classe trabalhadora e os segmentos populares têm instinto de luta e sobrevivência, têm


memória histórica e não atribuem um voto dado a um candidato do peronismo, mesmo sendo
social liberal, a um sentido de apoio político. Não cabe cheque em branco. O PTS faz uma
associação direta entre a declaração de voto a um apoio político incondicional.

O PTS parece não escutar a classe e os alertas de que frente a uma provável regressão de regime
é melhor ter a democracia liberal com as liberdades democráticas em funcionamento. A classe
sabe que nem todos os governos burgueses são iguais e que é possível escolher o terreno onde
irá lutar – se num terreno mais democrático ou mais repressor.

Nesta linha segue o Partido Operário – PO, “No apoyamos politicamente ni votamos en Milei ni
a Massa”, diz a sua resolução, cujo conteúdo é mais explícito em igualar Milei a Massa. Sobre
a ameaça antidemocrática afirma na sua Resolução, ponto 3, “A questão repressiva na
Argentina não se apresenta na disjuntiva entre democracia ou fascismo senão que sobre o
agravamento da perseguição, mediante mecanismos legais e judiciais”. Afirmam ainda que o
segundo turno seria uma chantagem para ter que decidir entre dois candidatos que representam
um mesmo projeto.

Mesmo a ruptura do PO, que curiosamente tem quase o mesmo nome do partido de origem, o
Política Operária-PO, dirigida por Jorge Altamira, afirmou em sua página no Instagram que
diante da crise política e terminal e da explosão econômica, defendem o voto em branco e
pretendem a organização de uma luta operária independente.

O MST, por sua vez, enfatiza a importância de derrotar o candidato da extrema direita, mas não
defende o voto em Massa, apenas nega que fará campanha pelo voto em branco. Porém analisa:

“O duro golpe que Milei, de extrema direita, recebeu, levou-o a fazer um acordo com
Bullrich e Macri, ou seja, com parte da mesma casta que criticava. E um grande setor
votou em Massa como freio por temer que Milei vencesse. A nossa primeira definição
é apelar aos trabalhadores e aos jovens para NÃO votarem em Milei e no seu projeto
reacionário negacionista e antidireitos, que deve ser interrompido. Ao mesmo tempo,
por não serem projetos iguais, entendemos a vontade democrática de quem votou em
Massa para que Milei não vença, portanto, não convocaremos voto em branco ou
campanha nesse sentido”.

A posição do MST parte do lugar correto, mas termina de forma envergonhada, pois até mesmo
para criticar Sérgio Massa com mais autoridade, o melhor posicionamento seria defender o
voto, mesmo que seja crítico, alertando a necessidade de votar em defesa das liberdades
democráticas.

Importante destacar ainda a posição do Partido Comunista Argentino, PCA. Tem menos peso
no cenário político, mas também é representativo do que significa a falta de flexibilidade e
sensibilidade tática que permeia a grande parte da esquerda. Tal partido também iguala os dois
candidatos em sua Resolução do Comitê Central, defendendo a posição de não votar ou votar
nulo.

O outro partido da FITU, Esquerda Socialista (IS), parece ter uma melhor Resolução,
considerando as tarefas eleitorais até o segundo turno. Em seu formato, apresenta uma
propaganda sectária, mas pelo menos, em conteúdo, facilita um melhor diálogo com todos os
segmentos que tenderão a votar em Massa.

Termino com algumas reflexões:

1. Primeiro, a decisão pelo voto em Massa, enquanto voto da classe trabalhadora, é importante
sim e tem peso inclusive para se preparar e escolher melhor o terreno das ações coletivas das
lutas futuras. Daí acolher a tática do voto tem uma relevância no contexto atual. Ilusões do voto
branco ou nulo são efêmeras e infantis.

2. Segundo, não se pode confundir declaração de voto tático com o apoio político e ao programa
do candidato. Fora das bolhas sectárias, o trabalhador medianamente consciente sabe que ante
uma ameaça há que se apegar a uma base real de defesa, mais segura, que é a democracia liberal
para incrementar as próximas batalhas.

3. Terceiro, existem frações distintas da burguesia pra enfrentar a própria crise do capital,
observamos que vêm crescendo as frações no mundo inteiro que tendem a apelar para regimes
mais autocráticos como forma de conter as reações sociais.

4. Quarto, para criticar os candidatos reformistas, social-liberais, nacional-desenvolvimentistas,


e inclusive cobrar publicamente, é importante observar o lugar de onde se critica e como se faz,
visto que a maior batalha é derrotar o neofascismo na Argentina e no mundo, e de forma mais
imediata votar em Massa seria a melhor localização para poder criticar e organizar um
movimento eleitoral com esse perfil e não fazê-lo de forma envergonhada ou sectária. Significa
que a vida do peronismo fica mais tranquila, visto que não teria uma corrente perto de si
votando, mas cobrando criticamente.

O mundo, às vezes, é ingrato, mas é melhor encará-lo do que fugir, utilizando os mais diversos
argumentos. É importante tirar as lições do enfrentamento ao bolsonarismo no Brasil. A
esmagadora maioria das organizações da esquerda brasileira votou acertadamente em Lula no 1º
turno e mais ainda no 2º turno. Até mesmos os partidos que se aventuraram em lançar
candidatos a Presidente no 1º turno, como o PSTU, PCB e UP, defenderam o voto em Lula no
2º turno.

A maioria da esquerda anticapitalista argentina deveria tentar fazer um esforço e buscar sair do
quarto de Jack, pois será muito mais difícil se perdermos essa batalha. (Publicado no Esquerda
Online, 10/11/2023) LINK PARA EMBUTIR => https://esquerdaonline.com.br/2023/11/10/a-
esquerda-argentina-entrou-no-quarto-de-jack/

O título deste artigo é uma referência a ao artigo A esquerda no quarto de Jack

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