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DOI: http://dx.doi.org/10.010101/XXXXX2016-X
RESUMO
No Brasil, como em boa parte dos países latino-americanos, a emergência
da segunda onda do feminismo coincidiu com a luta armada contra as
ditaduras recém-instauradas na região – e, consequentemente, com a sua
repressão. Contrariando seu “destino” de gênero, muitas mulheres
pegaram em armas, e não raras vezes foram punidas por esta dupla
transgressão. No ano das primeiras eleições diretas para presidente desde
o golpe civil-militar de 1964, Lúcia Murat lança Que bom te ver viva, filme
que alterna depoimentos de ex-presas políticas que, assim como ela, foram
torturadas nos anos 1970, e uma personagem ficcional que passou pela
mesma situação. Neste artigo faremos um retrospecto da segunda onda do
feminismo brasileiro e suas principais questões, suas (des)articulações com
a luta contra a ditadura militar, e seguiremos refletirmos como elas
aparecem na obra de Murat, tanto em seu nível documental quanto no
ficcional.
PALAVRAS-CHAVE: Feminismo. Brasil. Ditadura. Cinema. Que bom te
ver viva.
ABSTRACT
In Brazil, as in most Latin American countries, the emergence of the
second wave of feminism coincided with the armed struggle against the
recently established dictatorships – and, consequently, with their
repression. Opposing their gender “destiny”, many women took up arms,
and quite often were punished for this double transgression. In the same
year of the first direct elections for president since the civil-military coup
in Brazil, Lúcia Murat releases How Nice to See You Alive (1989), a film
that alternates testimonies from former political prisoners (who, just like
her, were tortured in the 1970s) as well as from a fictional character. In
this article, we will review the second wave of Brazilian feminism and its
main concerns, along with its (dis)articulations with the struggle against
the military dictatorship, in order to reveal how they are represented in
Murat’s film – both on a documentary and fictional levels.
KEYWORDS: Feminism. Brazil. Dictatorship. Cinema. How nice to see
you alive.
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2Mesmo consciente das dificuldades de se trabalhar com a noção de onda, optou-se por mantê-la por
duas razões, a saber: 1) a ampla difusão do mesmo, que contribui para uma rápida identificação do
período estudado; e 2) a realização de uma discussão aprofundada sobre tal tema extrapola os limites
deste artigo. Para maiores informações, consultar COSTA, Suely Gomes Costa. Onda, rizoma e
“sororidade” como metáforas: representações de mulheres e dos feminismos (Paris, Rio de Janeiro: anos
70/80 do século xx). Florianópolis: UFSC, 2009.
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3Joana Maria Pedro (2006, p. 251) chama atenção para o tímido nome do evento realizado no Brasil,
em contraste com os direitos que eram reivindicados na Europa e nos Estados Unidos. PEDRO, Joana
Maria. Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970-1978). São Paulo: ANPUH,
2006.
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e como estratégia para chegar até as mulheres das camadas sociais mais
baixas), mas também por pressão de parte das militantes que estavam
filiadas a algum partido de esquerda – que tendiam a considerá-la um ponto
secundário – passaram a fazer parte de muitos dos feminismos que surgiam.
Em Que bom te ver viva (Lúcia Murat, Brasil, 1989), documentário
que intercala as lembranças de oito ex-presas políticas que foram torturadas
com as de uma personagem ficcional em igual situação (interpretada pela
atriz Irene Ravache), tal tema aparece explicitamente.
No entanto, antes de uma abordagem mais aprofundada deste e de
outros aspectos do filme, é necessário esclarecer que ele não está sendo
tomado como uma obra intencionalmente feminista. Como esclarece sua
diretora no making of 20 anos depois,
Por que que eu fiz esse filme só com as mulheres, né? Porque muita gente
pergunta: “ah, não, uma opção feminista”. Eu fui convidada para
milhares de festivais feministas por conta disso e tal. E não foi uma opção
absolutamente nada feminista. Foi uma opção pura e única e
exclusivamente dramatúrgica. A partir do momento que eu pensei que eu
deveria abordar esse filme dessa maneira ficcional, documental,
misturando essas três realidades, como o mundo vê essas pessoas, como
essas pessoas relatam suas experiências e como essas pessoas vivenciam
dentro das suas cabeças essas experiências, eu achei que eu não podia
misturar sexos aí, entendeu? Eu achei que eram experiências muito
íntimas. E pra essas experiências muito íntimas poderem se desdobrar
dessa forma circular, como eu tinha pensado o roteiro, eu não podia
colocar um homem. Porque ia romper essa sensação de circularidade,
essa sensação de reprodução que as experiências femininas permitiriam,
né? Porque realmente eram questões muito íntimas.
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Eu finjo que não sofri tortura sexual, você finge que não sabe de nada. Eu
finjo, tu finges, nós fingimos... Ah, meu amor, que mentira “o que passou,
passou”, que mentira. Eu odeio quando vocês dizem que se fosse com
vocês nunca mais vocês trepariam. [olha para a câmera] Eu gosto de
trepar. Por que eu não tenho direito de gostar? Por que marcaram o meu
corpo? Não marcaram não, é só lavar. Não marcaram. [aproxima-se da
câmera] Agora, o que é insuportável é ver vocês me olharem com esse
olhar constrangido, de quem não sabe como se pode gostar de trepar
depois de tudo o que aconteceu [Com cara de nojo da reação do
espectador, afasta-se e vira o rosto para o lado].
4Optou-se por colocar “parte ficção” entre aspas porque em diversos momentos do making of 20 anos
depois a diretora Lúcia Murat se refere à personagem interpretada por Irene Ravache como uma
mulher cuja construção foi muito baseada nas suas experiências de ex-presa política torturada.
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por toda essa problemática da tortura, consiga ter estrutura. Porque eu,
nem para ouvir eu tenho”.
Ela é consciente, contudo, de que tal batalha também deve ser
travada consigo mesma, como demonstra uma interrogação que se faz depois
de falar sobre determinado aspecto de um relacionamento amoroso que
tem/teve/imagina: “será que algum dia eu vou ser capaz de não fazer de todo
homem um torturador?”.
Já em relação à maternidade, o que acontece é exatamente o oposto.
Ela é algo tão central no depoimento das ex-presas políticas (e na
interpretação que Lúcia Murat faz deles) que o número de filhos aparece em
todas as cartelas que as apresentam5. A única exceção é a mulher que deu
seu depoimento por escrito e atrelou a utilização do mesmo ao anonimato.
Ser mãe, para muitas, revelou-se uma verdadeira estratégia de
sobrevivência, algo que permitia que acreditassem que suas vidas poderiam
seguir “normalmente” depois do que lhes havia acontecido.
Regina Toscano relata:
Quando eu fui presa eu tava grávida. E perdi esse neném, que seria o
meu primeiro filho, lá. E durante a cadeia toda, o que realmente me
segurou era a vontade de ter um filho. A certeza de que eu ia ter um filho.
Isso representava pra mim vida, né? Se eles tavam querendo me matar,
eu tinha que dar uma resposta de vida. E ter um filho pra mim
simbolizava, simboliza até hoje, a resposta que a coisa continua, que a
vida ta aí, que as coisas não acabam. E a primeira coisa que eu fiz ao sair
da cadeira, logo depois, Paulo, que era casado comigo na época, também
saiu, foi engravidar.
5O simples fato de uma questão aparecer fortemente em uma entrevista não garante sua presença no
filme. Esta depende, acima de tudo, da avaliação do(a) diretor(a) sobre a pertinência da mesma para
os aspectos que quer desenvolver em sua obra.
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acabou morrendo): “Descobri que a melhor coisa do mundo era ser mulher.
Descobri porque que o homem tem que mandar no mundo. Porque a barriga
deles só produz cocô. Deve ser uma coisa terrível isso. E a gente produz
vida”.
Este último depoimento chama a atenção pela coincidência de seus
argumentos com o que Scavone, baseada em Ferrand e Langevin, chama de
segundo momento da relação entre maternidade e feminismo, no que ela
“passa a ser considerada como um poder insubstituível, o qual só as
mulheres possuem e os homens invejam”. (SCAVONE , 2001, p.140)
Há, contudo, uma voz divergente em Que bom te ver viva.
Eu vejo assim como uma marca muito grande do que eu vivi, e que eu não
quis repetir depois, a questão da gravidez. Isso sim. Pra mim a gravidez
foi, marcou muito, né? Teve os seus aspectos positivos, eu acho que ter
um filho é uma coisa gostosa, e eu senti isso. Mesmo na prisão, que foi
uma situação difícil, ter um filho na prisão, mas foi uma sensação
gostosa. Uma sensação, assim, parece até meio impossível que a gente
possa pensar isso tendo um filho na prisão, cercada, com metralhadoras,
etc, e eu pensava o seguinte: eles tentam acabar comigo, e nasce mais um,
aqui mesmo, onde eles tentam me eliminar, onde eles tentam acabar com
as pessoas, a vida continua. Eu sentia o nascimento do meu filho como se
ele estivesse se libertando do útero. Pra mim era uma coisa, um sinal de
liberdade. O meu filho livre, né? É claro que teve as marcas negativas. E
essas marcas negativas me marcaram. Uma segunda gravidez pra mim
era qualquer coisa, assim, de pavoroso. Nove meses de gravidez era muito
tempo. Muita coisa podia acontecer em nove meses. Então isso aí me
marcou. Uma segunda gravidez, jamais.
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Referências bibliográficas
20 ANOS depois. Brasil: Taiga Filmes, 2009. 1 DVD (23 min), son., color.
COSTA, Suely Gomes. Onda, rizoma e “sororidade” como metáforas: representações
de mulheres e dos feminismos (Paris, Rio de Janeiro: anos 70/80 do século xx).
Revista Internacional Interdisciplinar INTHERthesis, Florianópolis, v. 6, n. 2, p. 1-
30, jun-dez. 2009.
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