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Bárbara de Souza da Silva

A MULHER NA SOCIEDADE BRASILEIRA E SUA INVIBILIDADE


DURANTE A DITADURA MILITAR

Centro Universitário Toledo


Araçatuba
2018
Bárbara de Souza da Silva

A MULHER NA SOCIEDADE BRASILEIRA E SUA INVIBILIDADE


DURANTE A DITADURA MILITAR

Trabalho de conclusão de curso, Licenciatura em História pelo Centro


Universitário Toledo, sob orientação da Professora Doutora Jamilly
Nicácio Nicolete.

Centro Universitário Toledo

Araçatuba

2018
A MULHER NA SOCIEDADE BRASILEIRA E SUA INVIBILIDADE
DURANTE A DITADURA MILITAR
THE WOMAN IN THE BRASILIAN SOCIETY AND HER VISIBILITY
DURING THE MILITARY DITATORSHIP

Bárbara de Souza da Silva1 – UNITOLEDO


Jamilly Nicácio Nicolete2 – UNITOLEDO
Resumo
O presente trabalho foi realizado através de pesquisa bibliográfica com o intuito de colocar
em foco a participação feminina durante o regime militar, consequentemente questionar sua
invisibilidade no período que estava em curso. Dar voz às mulheres que lutaram igualmente
por democracia e igualdade de gênero. Quebraram paradigmas impostos pela sociedade e
merecem reconhecimento por sua participação na história. Além disto, é mister dar às
mulheres o reconhecimento da atuação feminina, durante a ditadura militar brasileira, dando-
lhes justiça histórica.

Palavras chaves: Mulher; Ditadura Civil Militar; Gênero; Tortura; Invisibilidade.

Summary
The presente work was carried out through bibliographic research in order to focus the female
participacion during the military regime, consequently to question its invisibility in the period
that was in progress. Give voice to women who have also fought for democracy and gender
equality. They have broken paradigms imposed by society and deserve recognition for their
participation in history. In addition, it is necessary to give women the recognition of
women’s performance during the Brazilian military dictatorship, giving them historical jusice.

Key words: Woman; Military Civilian Dictatorship; Genre; Torture; Invisiility.

Introdução

A supremacia masculina está presente no decorrer da História, sendo que no caso


brasileiro, tais injustiças históricas se mantêm e a figura feminina não aparece com
reconhecimento, com exceção da princesa Isabel que, em situação bastante peculiar e que
requer muitos questionamentos, recebe, o reconhecimento pela assinatura da Lei Áurea, que
em 1888 aboliu a escravidão no Brasil. É prevalente, nos materiais didáticos, ainda, a

1
Graduanda em história pelo Centro Universitário Toledo de Ensino – Araçatuba/SP.
2
Docente dos cursos de Licenciatura pelo Centro Universitário Toledo de Ensino – Araçatuba/SP; Doutora em
Educação.
influência dos personagens masculinos, levando a errônea compreensão de que as mulheres
não participaram da história deste país.
A invisibilidade a que estas mulheres foram submetidas no período do regime militar
permanece, não aparecendo nos livros didáticos e com uma bibliografia limitada a esse
respeito. Analisar a história e inserir estas mulheres neste período é produzir justiça histórica
para aquelas que não fugiram a luta quando precisaram defender o seu país.
A Secretária Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República,
SPM/PR, criada no ano de 2011, tem se encarregado de tentar mudar esta história, realizando
parcerias e patrocínios para que alguns livros como Mulheres Negras no Brasil e Mulheres e
movimentos fossem organizados, demonstrando a relevância da participação das mulheres
nesse período da história do Brasil.
Discorrer sobre a ditadura militar e abordar a participação feminina são escancarar que
apesar de serem consideradas incapazes de incorporarem a política, elas adentraram o sistema
e atuaram desde a transmissão de informações e anexaram tarefas que só os homens
realizavam até então. A partir de então, sem que se julguem suas escolhas, participaram,
inclusive, de lutas armadas até arriscarem suas vidas por se manifestarem.
Nilcéa Freire, diz, na introdução do livro Direito à Memoria e à Verdade, organizado
por Merlino e Ojeda (2010), que a tortura tinha como objetivo desumanizar as suas vítimas e
com as mulheres o seu algoz precisaria aniquilar com a sua humanidade feminina, se tornando
mais cruéis, silenciando muitas das vitimas.
Os relatos dessas mulheres, alguns, incorporados a esse trabalho, evidenciam o seu
sofrimento na luta pela restauração da democracia e os direitos violados de toda população
brasileira. Além disso, evidencia que, pela soberania popular nenhuma de seus filhos, nesse
caso, filhas, fugirá à luta.

O início da Ditadura Militar

Antes de começar uma investigação mais aprofundada sobre o tema e explanar sobre o
assunto, devemos realizar uma contextualização histórica, com o intuito de analisar as
conjunturas sociais e políticas da sociedade brasileira neste período.
Em 31 de março de 1964, começa no Brasil um movimento que visa livrar o país da
corrupção e da ameaça comunista, assim, teoricamente, restaurando a democracia, entretanto
é este mesmo movimento que ajuda a consolidar o início do regime militar.
O comando militar começa a mudar o país através de decretos, Atos Institucionais –
AI -, que tinham como propósito aumentar a “autoridade” do poder Executivo independente
das medidas que precisassem ser tomadas, por exemplo, as eleições seriam realizadas pela
maioria dos votos do Congresso, a extinção dos partidos políticos.
Os militares acreditavam que os partidos eram responsáveis pela crise política,
estabelecendo uma constituição onde concretizava que a jurisdição do poder Executivo só
aumentava e passando assim o governo do país mediante sucessões.
Em 1968, iniciaram as lutas por direitos trabalhistas após uma reunião da Força Ampla
composta por Lacerda3, Jango4 e Kubitschek5, começando a utilizar a música popular como
crítica a essa ditadura.
Após a morte de um acadêmico, começa a mobilização de estudantes, membros
significativos da Igreja e da classe média, e ao mesmo tempo ocorriam duas greves
operacionais, uma em Contagem/MG, com a paralização de 15 mil operários, e outra em
Osasco/SP, onde ocuparam a Cobrasma6, junto aos estudantes. É a partir dessas greves que
surgem os confrontos armados, pois tentam colocar fim ao regime militar, acompanhado dos
partidos e os movimentos esquerdistas (entre eles militares esquerdistas denominados VPR7)
realizando saques para a sua sobrevivência.
Logo, Humberto Castelo Branco8, ocupando o lugar de presidente da república, usurpa
o poder do congresso conseguindo assim determinar o seu fechamento, interferindo nos
estados e municípios, iniciando uma caça a mandados, expondo professores universitários a
censuras e controlando os meios de comunicação que consequentemente passa a ser parte do
dia a dia da população.
Em 1969, os confrontos armados se multiplicaram e a junta militar respondia a altura
com repressões e torturas cada vez mais severas, aprisionando presidentes e diplomatas de
outros países para conseguir trocar a liberdade dessas pessoas por pena de banimento e pena
de morte como mostra Boris Fausto:

A junta criou a pena de banimento do território nacional, aplicável a todo brasileiro


que “se tornar inconveniente, nocivo ou perigoso a segurança nacional”. Os
primeiros banidos foram os prisioneiros trocados pelo embaixador americano.

3
Carlos Frederico Werneck de Lacerda, jornalista, governador do estado de Guanabara.
4
João Belchior Marques Goulart, advogado e ex-presidente do Brasil
5
Juscelino Kubitschek de Oliveira, médico, oficial da Policia Militar mineira e ex-presidente do Brasil
6
Companhia Brasileira de Materiais Ferroviários
7
Vanguarda Popular Revolucionária
8
Humberto Castelo Branco foi o primeiro presidente do Brasil no período militar, sendo um dos articuladores do
Golpe.
Estabeleceu-se também pelo AI-14 a pena de morte para casos de “guerra externa,
psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva” (FAUSTO, 2006, p. 481).

Após todas essas medidas, os grupos armados que lutavam contra o regime
desapareceram, restando apenas um grupo guerrilheiro no Leste do Pará, a junta militar
censura as telecomunicações - rádio, jornal, música, televisão, entre outras - uma importante
aliada para manter a população neutralizada.
Todavia, em 1973 começam os sinais claros de flexibilização do sistema político,
tendo seu início marcado pelo confronto com a Igreja Católica, por sinal, muito desgastante
para o regime, Geisel, então, encontra um ponto para tentar controlar este confronto: a luta
contra a tortura, notando que a hierarquia militar estava fragilizada e para se reconstruir
travam uma luta contra a linha dura9.
Inicialmente, a repressão permitindo até que as eleições em 1974 tivessem uma
liberdade considerável, os partidos puderam ter acesso a algumas telecomunicações para fazer
suas campanhas, causando um aumento das cadeiras do Movimento Democrático Brasileiro
(MDB) no Senado e na Câmara Federal.
Em 1975, a censura ao jornal começa a se flexibilizar, mas o marco deste ano é o
combate direto a linha dura que continuava praticando ilegalmente as torturas, aumentando o
número de desaparecidos. A morte do jornalista Vladimir Herzog – figura abaixo – por
“suicídio por enforcamento” causa uma indignação da população e da Igreja novamente,
tempos mais tarde relata Boris Fausto (2006) que morre um metalúrgico, Manuel Fiel Filho,
nas mesmas condições que Herzog

Imagem 1 – “suicídio” por enforcamento de Vladimir Herzog

9
Pessoal responsável pela repressão e tortura.
Fonte: Uol (2018)
Contudo, a linha dura continua com as repressões, invadindo uma Universidade
Católica, seguindo ordem de um coronel da polícia militar, para que espancassem e jogassem
bombas nos campos, deixando cinco estudantes gravemente feridos.
O acesso às telecomunicações é revogado em 1976 por Geisel, criando outra vez uma
lei para prejudicar a oposição ao seu governo de divulgar suas ideias, uma tentativa falha, já
que o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) vence as eleições em 59 das 100 maiores
cidades, começando aí a quebra do regime militar.
À derrota proveniente do processo eleitoral, Geisel, se sente ameaçado e em1997 a
censura ao jornal se encerra e, além disto, em abril do mesmo ano, introduz várias medidas
para que suas decisões não sejam barradas, entre elas estavam o pacote de abril10, o
fechamento do Congresso em recesso e emenda da Constituição vigente da época.
Entre as ações do pacote de abril estava à criação do senado biônico, tendo como
função impedir que a oposição ganhasse a maioria dos votos no senado e que a Câmara dos
Deputados voltasse a funcionar transferindo a preferência aos estados do Nordeste - onde o
governo militar tinha a maioria dos votos. Os atributos destas emendas se estendem à Lei
Falcão11 e o mandato presidencial teve alterações em sua duração sendo agora seis anos.
Já em 1978, as coisas realmente começam a mudar, o governo encaminha uma
reestruturação aprovando uma emenda na Constituição cujo objetivo é anular algumas

10
Conjunto de medidas tomadas por Geisel, compostos por uma emenda constitucional e seis decretos, tendo
como principal objetivo dar ao governo controle sobre o legislativo.
11
Lei 6.339/1976 transformou as propagandas eleitorais em apenas uma divulgação dos candidatos, onde não
podiam falar suas propostas.
atribuições dos Atos Institucionais permitindo que os estados e municípios consigam decretar
estado e medidas de emergência.
Em 1979 os cidadãos voltam a se manifestar sem medo de repressão e a imprensa não
sofre mais censura, o Movimento Democrático Brasileiro é apoiado por estudantes,
advogados, sindicalistas e a Igreja (leva a aproximação do povo), mas mesmo diante de tantas
conquistas e apoio os militares ainda tem a maioria no Senado.
No que diz respeito especificamente aos movimentos sociais, o regime militar
reprimiu a população, mas não reprimiu os sindicatos, tendo como exemplo os produtores
rurais, com aumento significativo entre 1968 e 1979, surgindo lideranças onde a Igreja seria a
principal influenciadora junto com o sindicato de trabalhadores de “colarinho branco”, como
denomina Boris Fausto (2006), se referindo aos profissionais formados como médicos,
professores, bancários, advogados, entre outras profissões. Entre essas profissões o sindicato
dos advogados tem destaque já que foram as ruas se manifestar.
Em 1977, após manifestações dos operários, o governo admite que o salário está
inferior a equivalente 31,4%, levando os metalúrgicos, liderados por Luís Inácio Lula da
Silva, as ruas em prol do reajuste salarial.
“Em 1979, cerca de 3,2 milhões de trabalhadores entraram em greve no país. Houve
27 paralisações de metalúrgicos que abrangeram 958 mil operários; ao mesmo tempo, ocorreu
vinte greves de professores que reuniram 766 mil assalariados” (FAUSTO, 2006, p 500). As
reinvindicações desta greve tinham como objetivo reajuste salarial, liberdade democrática,
garantia de emprego e os reconhecimentos das comissões organizadas nas fábricas sendo de
esquerda ao regime a esquerda tradicional – Partido Comunista Brasileiro (PCB)12- possuía
influência.
Enquanto isso, Geisel, conseguia passar a presidência para um sucessor eleito pelo
Colégio Eleitoral13, derrotando assim os adversários do Movimento Democrático Brasileiro
(MDB), general João Batista Figueiredo era contra a liberdade brasileira já que havia sido
chefe das organizações de repressão.
Este governo passaria por dois problemas: o primeiro, a abertura democrática e o
segundo, as péssimas condições da economia do país, sob o risco de uma nova revolta da
população, e consequentemente, o governo reagiria com repressão, mas a abertura seguiu seu

12
Este partido possuía força na clandestinidade
13
Responsável por escolher o Presidente da República. Era composto por 475 parlamentares que tinha que
escolher entre os candidatos indicados.
caminho. O humor era utilizado como uma crítica ao período, Jô Soares é um exemplo, criou
um personagem criticando a escolha do ministro da economia.
Os problemas econômicos enfrentados pelo país começam quando Simonsen14 tenta
impor políticas falhas no setor. Em 1979, Delfin Neto assume o ministério da economia e
também tem problemas com as taxas que só aumentam e concretizando diversos empréstimos
para arcar com todas as taxas, mas os prazos para quitar os credores internos não são
cumpridos, obrigando o ministro a recuar.
A expansão da moeda faz com que os juros internos aumentem e o investimento
decaia ocasionando um PIB negativo, o primeiro desde 1947, e seguindo-se de desemprego,
estagnação econômica e infracional. Após várias tentativas de reativar a economia do país
somente em 1984 ela volta a girar, principalmente no setor de exportação, porém a inflação
continuava sendo um problema a ser contornado e só se resolveria quando Figueiredo15
deixasse o governo.
A Lei da Anistia16 foi um importante passo para que a liberdade pública se ampliasse,
entretanto a repressão continuava presente, após a aprovação da lei houve ataques com
bombas a jornais da oposição ao governo e a Câmara Municipal do Rio de Janeiro. À OAB,
também enviaram uma carta com uma bomba destinada ao presidente da ordem, mas estourou
antes e ocasionou a morte da secretária. Os bispos da Igreja também foram vítimas de
sequestros, entre outras bombas que estavam para serem instaladas em locais públicos como o
centro de convenções onde estaria havendo um musical e teria muitos jovens como relata
Boris Fausto (2006), mas os responsáveis foram isentos das ações.
Após ser aprovada uma lei que dizia ser valida a fundação de novos partidos e que
modificassem as correntes partidárias, a ARENA17(Apoiador do governo) passou a ser Partido
Democrático Social (PDS), o Movimento Democrático Brasileiro (oposição ao regime) se
transformou em Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Surgem novos
partidos para compor a oposição como o Partido dos Trabalhadores (PT), tendo como
proposta defender as amplas classes de assalariados, criando laços com os sindicatos para a
consolidação do partido, fundou o Partido Democrático Trabalhista (PDT), e por último o
Partido Popular (PP) que teve uma duração pequena, pois se vinculou ao PMDB.

14
Mario Henrique Simonsen foi ministro da Economia durante o governo de Geisel.
15
João Batista de Oliveira Figueiredo, foi presidente entre 1979 e 1985.
16
Em 1979 foi ordenado que fosse publicada esta lei para reverter às punições dos cidadãos que foram
considerados criminosos políticos pelo regime militar entre 1961 à 1979.
17
Aliança Renovadora Nacional
Em 1982, as eleições diretas aconteceriam novamente, mas o Partido Democrático
Social venceria no Congresso (Senado e Câmara dos Deputados), já para governador o partido
sofre derrota em estados importantes como São Paulo, Minas Gerais e Paraná, mas tem vitória
nos outros.
Logo que se inicia a luta pelas Diretas Já18 com o Partido dos trabalhadores (PT), em
1983, e posteriormente com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e
outros partidos, montando um comitê para organizar vários comícios em algumas cidades
brasileiras, reunindo milhares de pessoas em São Paulo, e desde este comício passou a ser
unanimidade nacional a luta pela votação direta para a Presidência da República, entretanto o
movimento não teve sucesso perderam por 22 votos contra as diretas.
Em 1984, Tancredo Neves se lança a candidato à Presidência, fazendo campanha com
direito a discursos na televisão e comícios, Tancredo ganha apoio da população que é
favorável a sua candidatura.
Já em 1985, Tancredo Neves vence as eleições junto com José Sarney no Colégio
Eleitoral, com 480 a 180 votos para Paulo Maluf, finalmente a oposição chegava ao poder
usando o mesmo sistema de votos que o governo militar tinha imposto para ser eleito - a
eleição indireta - e assim chega ao fim do regime militar.

A Participação Feminina no Regime Militar

Após uma retomada histórica do período, para uma compreensão melhor dos fatos,
faremos, a partir deste tópico, a introdução da participação feminina na ditadura civil militar.
A Marcha da Família com Deus pela Liberdade19 ocorridas entre Março e Julho de
1964, principia como reflexo a uma ameaça comunista, considerado pelos militares e pela
população conservadora da sociedade, sendo moldada através das ações dos grupos radicais e
também do discurso utilizado em comícios do presidente vigente João Goulart.
O comício que deu início a toda revolta do setor tradicionalista do país, Goulart havia
prometido que faria reformas de base, ou seja, reformas administrativas, jurídicas,
econômicas, agrárias, sociais, trazendo os movimentos para próximo presidente, no entanto,
feriam os interesses do setor conservador e da Igreja Católica, que liderava a marcha junto
com autoridades civis para defender a tradição familiar e a propriedade privada.

18
Um movimento de massas pedindo a volta das eleições diretas para presidente da república e o fim do regime
militar. Foi considerado a maior campanha cívica já ocorrida no país.
19
Nome comum dado a uma série de manifestações públicas ocorridas no país.
A elite conservadora se prejudicaria com a reforma de base, já que Goulart queria
fazer a distribuição dos bens privados da elite para a população e é neste fato que a massa
conservadora ataca fazendo propagandas de rádio, televisão, cartuns, filmes, revistas e jornais,
mas a sua principal fonte de propaganda para alertar da ameaça comunista, era à televisão.
Segundo Guisolphi (2009), esse grupo conservador precisava que algum Instituto
financiasse e mantivesse a propaganda ideológica contra o governo, então diretores e
presidentes de associações e indústrias, junto com a Câmara de Comércio dos Estados
Unidos20, criaram o Instituto Brasileiro de Ação Democrática, IBAD, que se encarregou de
arrecadar fundos e distribuir para que continuasse com a campanha forte contra o governo de
Goulart.
A Igreja Católica não passava por bons momentos desde 1946, principalmente em
relação aos pensamentos do clero, parte deles pensava no povo, os mais jovens, em sua
situação precária, enquanto o alto clero continuava com seus mecanismos de controle político,
a principal forma de controle era através da Liga Eleitoral Católica – LEC - este grupo foi
criado pelo alto clero para impor uma direção de voto aos fiéis. Estes candidatos tinham que
defender os interesses da Igreja.
Já que estava passando por desconfortos com essa divergência de pensamentos entre
os cleros, os integrantes mais jovens apoiavam o governo de Goulart pelos benefícios que
traria a população carente. Enquanto o alto clero tinha medo de que o poder político que a
Igreja tinha se erradicasse, a elite dominante se junta ao catolicismo e seus apoios financeiros
utilizando o IBAD para manipular a população e evitar que os cidadãos apoiassem Goulart e
seu governo permanecesse.

Nas ruas, Plinio Corrêa de Oliveira organizava a TFP: Tradição Família e


Propriedade. Essa organização também estava ligada ao setor conservador da Igreja
Católica. Fizeram procissões com orações e jaculatórias anticomunistas. Foi um
ensaio para a Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
A Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi um movimento urbano ocorrido
em março de 1964 e que consistiu em uma série de manifestações ou “marchas”,
organizadas por setores conservadores do clero, articulados com as elites
hegemônicas. Foi uma resposta ao comício do presidente Goulart em 13 de março de
1964 (GUISOLPHI, 2009, p. 457).

A Marcha da Família com Deus pela Liberdade aconteceu dia 19 de Março de 1964,
na capital do estado de São Paulo, realizada seis dias após o comício de Goulart, tendo uma
duração de aproximadamente quatro horas e estimam que passassem pela marcha entre

20
É um grupo americano que representa os interesses de inúmeras empresas e associações profissionais,
especializada em politica, advogados, entre outros. É conservadora e não pertence ao governo.
quinhentas mil pessoas, segundo consta nos jornais da época. A mesma estava acontecendo
para evitar uma ameaça comunista, autenticando assim que as Forças Armadas tomassem o
poder legislativo do país.
Além desta marcha aconteceram outras espalhadas pelo país, no interior paulista as
cidades de Araraquara, Assis, Atibaia, Ipaussu, Itapetininga, Tatuí e Santos, a maior delas
aconteceu em Santos, onde marcharam cerca de oitenta mil pessoas. No estado do Paraná
aconteceu uma marcha com o propósito de legitimar as Forcas Armadas na cidade de
Bandeirantes totalizando quarenta e nove mobilizações espalhadas pelo sul e sudeste forjando
um caos.

Estas manifestações de mulheres pelas forças mais conservadoras e retrógadas se


realizaram em ações dominadas [...]. Assim forjou-se uma ameaça de caos, o que
levou às Marchas, principalmente a grande quantidade de mulheres pobres, negras e
das periferias. Nas capitais, como Rio, São Paulo e Belo Horizonte, ajuntaram-se
multidões de mulheres, a maioria pobre, chegando a espantosas cifras de 300 a 500
mil pessoas (TELES, 2014, p. 11).

No dia 2 de Abril de 1964 aconteceu na capital do estado do Rio de Janeiro, a Marcha


da Vitória, realizada para comemorar que as Forças Armadas tinham alcançado o objetivo de
chegar ao poder, esta marcha reuniu em torno de um milhão de pessoas, em comemoração que
tinham parado a ameaça comunista, assim relata o jornal EBC.
Embora seja uma marcha marcada pela presença de muitas mulheres conservadoras,
donas de casa, brancas e esposas dos militares, mas as que estavam presente na multidão e
formaram a manifestação eram as de classe média baixa, empregadas domésticas moradoras
da periferia que acreditaram no discurso da igreja, foram elas que trocaram o rosário por
cartazes assim como mostra Maria Amélia Teles (2014). Entretanto essas mulheres não
tinham conhecimento de que as propostas de Goulart eram pautas sobre a distribuição de
renda que beneficiaria a classe média baixa.
Posteriormente a instauração do regime começaram os confrontos diretos, o exército
militar estava disposto a reprimir todos, sem exceção, que lutassem por liberdade e
democracia, as mulheres tiveram uma luta maior, passaram a buscar o mercado de trabalho
quando as pessoas deixaram a área rural para virem à cidade em busca de melhores condições
de vida com a amplificação do capitalismo e o aumento da demanda de trabalho das fábricas,
como nos mostra Maria Almeida Teles (2015)

O crescimento do mercado de trabalho e o achatamento levaram as mulheres a


buscarem o trabalho remunerado. Isso, por sua vez, propiciou um aumento
significativo da participação feminina no mercado de trabalho. Em 1950, a mão de
ora feminina representava 13,5% da força de trabalho; em 1976, as mulheres mais
que dobraram sua participação: passaram a ser 28,8%; e, em 1985, as mulheres
chegaram a 37%, o que significou um crescimento maior da participação feminina
do que masculina (p. 1005).

Após esta inserção no mercado de trabalho, outra luta feminina começou: a buscar
direitos igualitários, direito sobre o próprio corpo, direito sobre os contraceptivos que
possibilitava o prazer sexual, direito de escolha, começou a querer liberdade e neste momento
o governo militar começou a reprimir estas mulheres. Deram início a um programa para
controlar a natalidade.
Outro dado que Teles (2015) nos mostra que influenciou a busca dessas mulheres ao
mercado de trabalho foi, em 1960, a descoberta da pílula anticoncepcional que trouxe pra elas
uma maneira de experimentarem o prazer sexual sem terem medo de uma gravidez
indesejada, o que, consequentemente, possibilitou uma maior independência para a mulher.
O programa Sociedade do Bem-Estar da Família (Bemfam) realizou esterilizações em
massa e experimentos com substâncias proibidas em outros países, e as autoridades não
tinham controle algum sobre isto tendo em vista que o sistema de saúde não fornecia nenhuma
informação ou orientação sobre o uso dos métodos contraceptivos, também não ofereciam
assistência reprodutiva e isso tornava as mulheres mais suscetíveis às esterilizações e ao uso
incorreto dos anticoncepcionais.

Sem acesso à assistência à saúde reprodutiva, a população feminina ficou a mercê


das esterilizações e do uso inadequado de anticoncepcionais. O país passou a ter
altos índices de esterilizações femininas. Em Pernambuco, 18,9% das mulheres de
15 a 44 anos estavam esterilizadas, por meio de ligadura de trompas. Em Manaus,
33% das mulheres encontravam-se com as trompas ligadas, no Piauí, 17% e, em São
Paulo, 15%. Estavam excluídas destes cálculos aquelas mulheres esterilizadas em
decorrência de abortos inseguros ou pelo uso inadequado de anticoncepcionais ou do
dispositivo intrauterino (DIU) (TELES, 2015, p 1006).

Sofreram esterilizações decorrentes de processos de saúde mal explicados, realizados


de maneira insegura que assombram as mulheres até os dias atuais, um problema que se
iniciou durante a ditadura militar e permanece sem nenhuma solução vigente que evite.

Repressão, Tortura e Resistência

As mulheres estavam passando por uma transformação social essencial, renunciando


os costumes que eram transmitidos por gerações, trocando o papel de mãe, filha dedicada, boa
esposa e dona de casa, para entrarem em um mundo que a sociedade considerava masculino,
para militarem em movimentos sociais contra o governo, movimentos contra diferenças
sociais, raciais, de gênero, entre outros.
Participar da política e ser mulher era visto com outros olhos pela sociedade como se
fazer parte dos movimentos colocassem em prova a feminilidade de cada uma delas e por
conta disso, elas demoraram em tomar atitude e defenderem suas lutas, deixando de ter medo
de estarem sendo mal vistas pelas outras pessoas.
Segundo Tomazoni (2015), durante esse período a norma era a não participação das
mulheres na política, a não ser que fosse pra reafirmar seus lugares na sociedade como
aconteceu em 1964, quando se instaurou o regime militar e quando as mulheres deixavam
esse lugar que era socialmente imposto a elas, nesse sentido, elas estariam cometendo dois
grandes erros: primeiro estava se opondo ao sistema de governo militar e segundo, estava
rompendo com os lugares que o regime tinha determinado para os dois sexos.
“A repressão caracterizava a mulher militante como puta comunista” (TOMAZONI,
Larissa, 2015, p. 43), a perseguição dos oficiais contra a mulher era tão grande que muitas
não precisavam participar ativamente da militância, as mesmas que tinham irmã, mães ou
eram esposas de militantes também eram presas e exiladas por terem pessoas próximas como
ativistas, já as que possuíram condições e eram intelectualizadas eram incriminadas e
processadas por participar ativamente da militância política e de ações da esquerda, como por
exemplo, as lutas armadas.
Apesar de elas participarem de movimentos de oposição, não estavam livres da
separação por sexo ou por beleza, por exemplo, apesar de participarem do mesmo movimento
e com o mesmo objetivo, as que eram “desprovidas” de beleza, ficavam nos grupos mais
pesados, prontas para participarem de manifestações com a frente armada, já as que eram
mais “jeitosinha”, como chamavam, ficavam com as manifestações de rua.
Como maneira de proteção aos familiares dos participantes em si, e dos próprios
militantes, desenvolve-se a necessidade da vida na clandestinidade21, a maioria dos atuantes
nesses anos de chumbo passaram a viver de maneira oculta, evitando qualquer contato com
seus familiares para que os mesmos não fossem vítimas de torturas realizadas pelos agentes
repressores.

21
Troca de documentos, nome, sobrenome, origem. Cortava-se contato com os parentes que estavam na
militância.
No documentário Repare Bem22, encontrado no Youtube, Denise Crispim relata como
é viver com outra identidade, sem criar vínculo com o lugar, sem residência fixa, sem
conforto, se limitando ao essencial para subsistência, pois a qualquer momento teriam que
pegar suas coisas e sair daquela moradia para não serem descobertos.
A declaração do Ano Internacional da Mulher pela ONU, em 1975, foi um fator
importantíssimo para que as mulheres e seus grupos sociais saíssem da obscuridade e
tomassem uma proporção maior como mostra Sarti (1998):

Nessas circunstâncias, o Ano Internacional da Mulher, 1975, oficialmente declarado


pela ONU, propicia o cenário para o inicio do movimento feminista no Brasil, ainda
fortemente marcado pela luta política contra o regime militar. O reconhecimento
oficial pela ONU da questão da mulher como problema social favoreceu a criação de
uma fachada para um movimento social que ainda atuava nos bastidores da
clandestinidade, abrindo espaço para a formação de grupos políticos de mulheres
que passaram a existir abertamente (SARTI, 1998, p. 5).

A partir deste momento a luta feminina contra o atual cenário político e por seus
direitos se desliga de algo simples e acanhado e se transforma em um movimento que ganha
espaço, força e voz dentro do panorama político. Entretanto, devido ao fato do movimento
estar tomando as ruas e indo contra os padrões estabelecidos para as atuantes do movimento,
o governo resolve repreender e se criam alguns métodos de repressão.
Apesar destes meios de repressão serem todos fundamentados pelos Atos
Institucionais, proibições, ferramentas de denúncias, cassações, estava na mídia uma aliada
para desmoralizar essas mulheres já que noticiavam-nas como “mulheres que estavam na rua
a procura de homem”.
Apesar de não ter sido dito até então, em 1969, após a analise de um general de que o
inimigo não era mais os países do exterior, mas sim a população e os movimentos que
estavam tendo voz ativa, partindo deste princípio cria-se o DOI/CODi, Destacamento de
Operações de Informações/ Centro de Defesas Internas, que assumiu o primeiro posto de
repressão do país, o tão temível DOI/CODi como diz Tatiana Merlino e Igor Ojeda:

Tal doutrina, idealizada no Brasil especialmente pelo general Golbery do Couto e


Silva, principal teórico do regime, assentava-se na tese de que o inimigo da pátria
não era mais externo, e sim interno. Para enfrentar esse novo desafio, era urgente
estruturar um novo aparato repressivo por meio da integração completa dos
organismos de segurança. [...] A experiência foi aprovada pelo regime, que resolveu
estender seu formato a todo o país. Nasceu então o Destacamento de Operações de
Informações/Centro de Operações e Defesa Interna, o temível DOI/CODi. Com

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http://www.youtube.com/playlist?list=PL7UwKVJ6n_6WljlJl3lyK4o35EUaTsfGo acesso em 23 de novembro
de 2018
dotações orçamentárias próprias e chefiado por um alto oficial do Exercito, o órgão
assumiu o primeiro posto de repressão política do país (MERLINO; OJEDA, 2010,
p. 20).

Mesmo com a criação do DOI/CODi, os outros órgãos de defesa continuavam


prendendo, reprimindo e torturando a oposição ao regime para conseguir acabar com o
“inimigo” que estavam nas ruas lutando por seus direitos, por igualdade entre os sexos, por
liberdade; estavam presentes os movimentos de oposição ao governo e entre eles ficavam as
mulheres com o movimento feminista, que não se calaram e continuaram militando nas ruas.
A repressão era realizada para todos os insatisfeitos com o regime, independente de
gênero, entretanto as mulheres passaram por todas as formas de violência sexual, física,
verbal e psicológica, esse fato dava-se pelo fato de a maioria dos agentes que realizava esses
interrogatórios serem homens.
Tomazoni (2005, p. 37), diz que as formas de torturas eram bárbaras para ambos os
sexos, mas quando praticadas contra o sexo feminino eram atingidas de maneira particular, já
que “sofreriam todos os tipos de constrangimentos e sofrimentos sob o olhar de alguém que
lhes era diferente”, tendo em vista que a tortura se torna diferente já que coloca a mulher
como objeto de prazer do repressor.
O oficial agressor que praticava essas formas de tortura com a mulher tinha muito o
objetivo de fragilizar, amedrontar, desmoralizar a vitima e até mostrar que elas não eram nada
perto de um homem de maneira que deixasse clara a hierarquia de poder, como podemos ver
nos depoimentos retirados do livro Direito à Memória e à Verdade, organizado por Merlino e
Ojeda (2010), este relato é de Hecilda Fontelles Veiga, ex- militante da Ação Popular (AP)

Quando fui presa, minha barriga de cinco meses de gravidez já estava bem visível.
Fui levada à delegacia da Polícia Federal, onde, diante da minha recusa em dar
informações a respeito de meu marido, Paulo Fontelles, comecei a ouvir, sob socos e
pontapés: ‘Filho dessa raça não deve nascer’. Depois, fui levada ao Pelotão de
Investigação Criminal (PIC), onde houve ameaças de tortura no pau de arara e
choques. Dias depois, soube que Paulo também estava lá. Sofremos a tortura dos
‘refletores’. Eles nos mantinham acordados a noite inteira com uma luz forte no
rosto. Fomos levados para o Batalhão de Polícia do Exército do Rio de Janeiro,
onde, além de me colocarem na cadeira do dragão, bateram em meu rosto, pescoço,
pernas, e fui submetida à ‘tortura científica’, numa sala profusamente iluminada. A
pessoa que interrogava ficava num lugar mais alto, parecido com um púlpito. Da
cadeira em que sentávamos saíam uns fios, que subiam pelas pernas e eram
amarrados nos seios. As sensações que aquilo provocava eram indescritíveis: calor,
frio, asfixia. De lá, fui levada para o Hospital do Exército e, depois, de volta à
Brasília, onde fui colocada numa cela cheia de baratas. Eu estava muito fraca e não
conseguia ficar nem em pé nem sentada. Como não tinha colchão, deitei-me no
chão. As baratas, de todos os tamanhos, começaram a me roer. Eu só pude tirar o
sutiã e tapar a boca e os ouvidos. Aí, levaram-me ao hospital da Guarnição em
Brasília, onde fiquei até o nascimento do Paulo. Nesse dia, para apressar as coisas, o
médico, irritadíssimo, induziu o parto e fez o corte sem anestesia. Foi uma
experiência muito difícil, mas fiquei firme e não chorei. Depois disso, ficavam
dizendo que eu era fria, sem emoção, sem sentimentos. Todos queriam ver quem era
a ‘fera’ que estava ali (apud MERLINO; OJEDA, 2010, p. 76).

Esta outra narração dos momentos vividos nos departamentos de tortura é de Dulce
Chaves Pandolfi, ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN).

Toda vez que o guarda abria a cela e vinha com aquele capuz, a gente já sabia que ia
apanhar. Numa dessas vezes que foram me buscar, quando chego na sala de tortura,
ao tirarem meu capuz percebo que era uma aula. Havia um professor e vários
torturadores. Pelo sotaque, percebi que alguns não eram brasileiros, mas
provavelmente uruguaios, argentinos. Então me disseram que eu era uma cobaia.
Eles começaram a explicar como dar choque no pau de arara. Eu passei muito mal,
comecei a vomitar, gritar. Aí me levaram para a cela e, dali a pouco, entrou um
médico com outros torturadores. Ele me examinou, tomou minha pressão e o
torturador perguntou: ‘Como ela está?’. E o médico respondeu: ‘Tá mais ou menos,
mas ela aguenta’. E aí eles desceram comigo, sob gritos e protestos das
companheiras de cela. A aula continuou e acabou comigo amarrada num poste no
pátio com os olhos vendados, e os caras fazendo roleta russa comigo, no maior
prazer. Essa brincadeirinha levou muito tempo, até que no sexto tiro a bala não veio.
Na minha época, eu fui a única a servir de cobaia, acho que eles tinham uma
‘predileção’ especial por mim. No DOI-Codi, a barra foi pesadíssima. Teve pau de
arara com choque elétrico no corpo nu: nos seios, na vagina, no ânus. Lá tinha um
filhote de jacaré de estimação dos torturadores que eles colocavam para andar em
cima do nosso corpo, amarrado numa cordinha. Fiquei três meses no DOI-Codi,
depois fui para o Dops e, depois de um tempo, para o presídio de Bangu. Então, fui
transferida para o presídio de Bom Pastor, em Pernambuco (apud MERLINO;
OJEDA, 2010, p. 58).

A próxima narrativa de uma seção de tortura é feita por Maria do Socorro Diógenes,
ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).

A primeira coisa que fizeram foi arrancar toda a minha roupa e me jogar no chão
molhado. Aí, começaram os choques em tudo quanto é lado – seio, vagina, ouvido –
e os chutes. Uma coisa de louco. Passei por afogamento várias vezes. Os caras me
enfiavam de capuz num tanque de água suja, fedida, nojenta. Quando retiravam a
minha cabeça, eu não conseguia respirar, porque aquele pano grudava no nariz. Um
dos torturadores ficou tantas horas em pé em cima das minhas pernas que elas
ficaram afundadas. Demorou um tempão para se recuperarem. Meu corpo ficou todo
preto de tanto chute, de tanto ser pisada. Fui para o pau de arara várias vezes. De
tanta porrada, uma vez meu corpo ficou todo tremendo, eu estrebuchava no chão.
Eles abusavam muito da parte sexual, com choques nos seios, na vagina passavam a
mão. Também faziam acareações minhas com um companheiro do movimento
estudantil, o Pedro Eugênio de Toledo. Eles obrigavam a gente a se encostar nas
partes sexuais e a torturar um ao outro. Tínhamos que por a mão no órgão um do
outro para receber choques. Eles também faziam a gente se encostar como se
fôssemos ter uma relação, para os dois serem atingidos pelo choque. Fiquei quase
um mês sendo torturada diariamente. Em uma outra vez, eles simularam a minha
morte. Me acordaram de madrugada, saíram me arrastando, dizendo que iam me
matar. Me puseram dentro de um camburão, onde tinha corda, pá, um monte de
ferramentas. Deram muitas voltas e depois pararam num lugar esquisito. Aí, soube
que não iam me matar, pois me disseram que eu ia ser colocada numa solitária e que
iam espalhar o boato que eu tinha morrido (apud MERLINO; OJEDA, 2010, p.100).
Conquanto a violência sexual fosse um fato na realidade destas mulheres que eram
presas pelos órgãos de repressão, os agentes do DOI/Codi não paravam por aí, exploravam a
maternidade, já que a criança era um meio de pressionar a mulher e justificavam determinadas
agressões como necessidade de urgência da informação. Veremos esse método de violência
no depoimento Maria Amélia de Almeida Teles, ex-militante do Partido Comunista do Brasil
(PCdoB) relata no livro Direito à memória e à Verdade o seu depoimento a utilização da
maternidade como forma de tortura pelos agentes da Oban

Fomos levados diretamente para a Oban. Tiraram o César e o [Carlos Nicolau]


Danielli do carro dando coronhadas, batendo. Eu vi que quem comandava a
operação do alto da escada era o Ustra [coronel reformado do Exército Carlos
Alberto Brilhante Ustra]. Subi dois degraus e disse: ‘Isso que vocês estão fazendo
é um absurdo’. Ele disse: ‘Foda-se, sua terrorista’, e bateu no meu rosto. Eu rolei
no pátio. Aí, fui agarrada e arrastada para dentro. A primeira forma de torturar foi
me arrancar a roupa. Lembro-me que ainda tentava impedir que tirassem a minha
calcinha, que acabou sendo rasgada. Começaram com choque elétrico e dando socos
na minha cara. Com tanto choque e soco, teve uma hora que eu apaguei. Quando
recobrei a consciência, estava deitada, nua, numa cama de lona com um cara em
cima de mim, esfregando o meu seio. Era o Mangabeira [codinome do escrivão de
polícia de nome Gaeta], um torturador de lá. A impressão que eu tinha é de que
estava sendo estuprada. Aí começaram novas torturas. Me amarraram na cadeira do
dragão, nua, e me deram choque no ânus, na vagina, no umbigo, no seio, na boca, no
ouvido. Fiquei nessa cadeira, nua, e os caras se esfregavam em mim, se
masturbavam em cima de mim. A gente sentia muita sede e, quando eles davam
água, estava com sal. Eles punham sal para você sentir mais sede ainda. Depois fui
para o pau de arara. Eles jogavam coca-cola no nariz. Você ficava nua como frango
no açougue, e eles espetando seu pé, suas nádegas, falando que era o soro da
verdade. Mas com certeza a pior tortura foi ver meus filhos entrando na sala quando
eu estava na cadeira do dragão. Eu estava nua, toda urinada por conta dos choques.
Quando me viu, a Janaína perguntou: ‘Mãe, por que você está azul e o pai verde?’.
O Edson disse: ‘Ah, mãe, aqui a gente fica azul, né?’. Eles também me diziam que
iam matar as crianças. Chegaram a falar que a Janaína já estava morta dentro de um
caixão (apud MERLINO; OJEDA, 2010, p.162).

Entre todas as narrações apresentadas até aqui, Gisele Cosenza, ex-militante da Ação
Popular (AP) em depoimento para o livro Direito à Memoria e à Verdade, relata o
testemunho com uma violência psicológica tão agressiva que se torna crueldade.

Fomos colocadas na solitária, onde ficamos por três meses, sendo tiradas apenas
para sermos interrogadas sob tortura. Era choque elétrico, pau de arara,
espancamento, telefone, tortura sexual. Eles usavam e abusavam. Só nos
interrogavam totalmente nuas, juntando a dor da tortura física à humilhação da
tortura sexual. Eles aproveitavam para manusear o corpo da gente, apagar ponta de
cigarro nos seios. No meu caso, quando perceberam que nem a tortura física nem a
tortura sexual me faziam falar, me entregaram para uns policiais que me levaram, à
noite, de olhos vendados, para um posto policial afastado, no meio de uma estrada.
Lá, eu fui torturada das sete da noite até o amanhecer, sem parar. Pau de arara até
não conseguir respirar, choque elétrico, espancamento, manuseio sexual. Eles
tinham um cassetete cheio de pontinhos que usavam para espancar os pés e as
nádegas enquanto a gente estava naquela posição, de cabeça para baixo. Quando eu
já estava muito arrebentada, um torturador me tirou do pau de arara. Eu não me
aguentava em pé e caí no chão. Nesse momento, nessa situação, eu fui estuprada. Eu
estava um trapo. Não parava em pé, e fui estuprada assim pelo sargento Leo, da
Polícia Militar. De madrugada, eu percebi que o sol estava nascendo e pensei: se eu
aguentar até o sol nascer, vão começar a passar carros e vai ser a minha salvação. E
realmente aconteceu isso. Voltei para a solitária muito machucada. A carcereira viu
que eu estava muito mal e chamou a médica da penitenciária. Eu nunca mais vou
esquecer que, na hora que a médica me viu jogada lá, ela disse: ‘Poxa, menina, não
podia ter inventado isso outro dia, não? Hoje é domingo e eu estava de saída com
meus filhos para o sítio’. Depois disso, eles passavam noites inteiras me
descrevendo o que iam fazer com a minha menina de quatro meses. ‘Você é muito
marruda, mas vamos ver se vai continuar assim quando ela chegar. Estamos
cansados de trabalhar com adulto, já estudamos todas as reações, mas nunca
trabalhamos com uma criança de quatro meses. Vamos colocá-la numa banheirinha
de gelo e você vai ficar algemada marcando num relógio quanto tempo ela leva para
virar um picolé. Mas não pense que vamos matá-la assim fácil, não. Vocês vão
contribuir para o progresso da ciência: vamos estudar as reações, ver qual vai ser a
reação dela no pau de arara, com quatro meses. E quanto ao choque elétrico, vamos
experimentar colocando os eletrodos no ouvido: será que os miolos dela vão derreter
ou vão torrar? Não vamos matá-la, vamos quebrar todos os ossinhos, acabar com o
cérebro dela, transformá-la num monstrinho. Não vamos matar você também não.
Vamos entregar o monstrinho para você para saber que foi você a culpada por ela ter
se transformado nisso’. Depois disso, me jogavam na solitária. Eu quase enlouqueci.
Um dia, eles me levaram para uma sala, me algemaram numa cadeira e, na mesa que
estava na minha frente, tinha uma banheirinha de plástico de dar banho em criança,
cheia de pedras de gelo. Havia o cavalete de pau de arara, a máquina do choque, e
tinha uma mamadeira com leite em cima da mesa e um relógio na frente. Eles
disseram: ‘Pegamos sua menina, ela já vai chegar e vamos ver se você é comunista
marruda mesmo’. Me deixaram lá, olhando para os instrumentos de tortura, e, de vez
em quando, passava um torturador falando: ‘Ela já está chegando’. E repetia
algumas das coisas que iam fazer com ela. O tempo foi passando e eles repetindo
que a menina estava chegando. Isso durou horas e horas. Depois de um tempo, eu
percebi que tinham passado muitas horas e que era blefe (apud MERLINO; OJEDA,
2010, p.192/193).

Os órgãos repressores da ditadura militar eram cruéis, em todas as peculiaridades de


violência, desde física até sexual, mas é notório que as violências psicológicas, são pesadas e
de traumas imensos nessas mulheres, pois tiveram que conviver com todos os impactos
gerados nelas e em seus filhos, embora carecessem de viver com a culpa de suas progênies,
cônjuges e familiares terem passado por sessões de tormento devido ao envolvimento com o
movimento e buscarem direitos para todas as mulheres, sem fazer distinção entre militantes e
mulheres do âmbito doméstico.
As mulheres capturadas ou não pela repressão e que sobreviveram à tortura e ao
cárcere, estavam fadadas a transitar por outro processo, a ressocialização, um caminho longo
e nada fácil. Depois de passarem por anos de clandestinidade, prisões e diversos tipos de
violência, exigia todo um amparo para se readaptarem, escondendo anos de sua vida visando
facilitar o acesso ao mercado de trabalho, relações pessoais e assim voltarem a ter uma vida
despretensiosa.
Considerações finais

Ao longo do artigo estão relatadas as diversas dificuldades que as mulheres


enfrentaram durante o Regime Militar. Os depoimentos em si mostram como foram cruéis
todos os processos, desde a aceitação da sociedade ao trato realizado pela repressão. A não
aceitação dos papéis sociais determinados para cada sexo na época, 1960, tiveram papel
determinante para que as mulheres adentrassem a política e rompessem essa delimitação de
que elas estariam restritas ao âmbito doméstico, como esposas dedicada e mães zelosas.
Aos olhos da repressão e de parte da sociedade, a inserção política dessas mulheres era
considerada uma desorientação sexual, elas, por conta disso, a todos os momentos tinham sua
sexualidade questionada. Uma outra maneira de desqualificar a mulher era dizer fazer crível
sua incapacidade para a governança, inferindo que ou buscavam homens ou buscavam ser
como eles. A “desvantagem intelectual” em diversos momentos estaria ligada à sua
vulnerabilidade, demonstrada de maneira eficaz nos meios de tortura.
Era sob esses muros que estava sendo construída a participação da mulher na política e
toda a dificuldade que encontravam para se inserirem ativamente da militância em busca dos
seus direitos. Havia, ainda, a barreira quanto ao processo de ressocialização das relações
sociais de gênero nas quais estavam inseridas.
Consideramos que, a participação feminina na Ditadura Civil Militar no Brasil teve
maior demasia do que podemos imaginar, no entanto, sua invisibilidade está ligada ao
patriarcado, às recentes pesquisas, como é o caso desse trabalho, que buscam reparar tamanha
injustiça. A ruptura do padrão vigente foi determinante para a conquista de reconhecimento,
mas a luta pela igualdade de gênero ainda é um desafio no que tange aos direitos das
mulheres, em especial, em cenários neoconservadores, como o atual, a constante luta por
reconhecimento, busca reparar erros cometidos no passado, para que se possa desfazer a
injustiça histórica que atingiu e ainda atinge essas bravas militantes.

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