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1. INTRODUÇÃO
A história da ditadura militar brasileira (1964 – 1985), assim como a de sua oposição,
é uma história masculina (COLLING, 2015), partindo desse fato o presente texto busca
contribuir para história política recente do país a partir das memórias de quatro mulheres, que
resistiram cada qual a seu modo, a lembranças perturbadoras de perseguições e violências.
Mesmo assim, apesar de suas experiências negativas, que repercutiram em suas vidas para
sempre. Nos propomos a discutir, de forma genérica e inicial, sentimentos e emoções
percebidas, por meio de depoimentos gravados, de mulheres que foram presas e perseguidas
pelos agente do Estado militar e autoritário no Brasil, e como elas ressignificaram esses
sentimentos. Assim, além de narrar sobre o pretérito vivido, buscaremos perceber um pouco
da subjetividade das mulheres em sua atuação política. Para tanto, a categoria gênero se torna
fundante.
A categoria de gênero expresso por Joan Scott (1990) divide-se em duas partes, como
expresso por ela: “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as
1 “A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12.528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012. A
CNV tem por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e
5 de outubro de 1988” (BRASIL, Comissão Nacional da Verdade, 2012).
força na luta pelo reconhecimento do Estado brasileiro das violações aos direitos humanos e a
exigência de punições dos algozes de seus familiares.
A criação da CNV e, posteriormente, das Comissões Estaduais e institucionais da
Verdade, além de buscarem a acareação de processos internos e de ações promovidas em prol
do estabelecimento do regime autoritário, objetivaram ampliar o debate com a participação da
comunidade que o cerca e da sociedade. As chamadas para sessões de depoimentos públicos
seguidas de debates foram algumas das ações observadas durante o exercício dessas
comissões; além da elaboração e entrega de relatórios com as informações encontradas.
O corpus documental utilizado para a realização desse trabalho se insere neste
conjunto. São depoimentos de mulheres perseguidas por representantes do regime ditatorial
brasileiro, disponíveis no site da DHPaz (Sociedade Direitos Humanos para a Paz)2, que
desenvolve o projeto Depoimentos para a História – A Resistência à Ditadura Militar no
Paraná, em parceria com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e sob a coordenação
do Grupo Tortura Nunca Mais do Paraná. Esse projeto junto com o projeto Marcas da
Memória tem como finalidade, integrar o acervo do Memorial da Anistia, com depoimentos
de ativistas integrantes da resistência que foram perseguidas/os, presas/os e torturadas/os
durante a ditadura militar no Estado do Paraná, além de contribuir com a Comissão Nacional
da Verdade.
Para análise utilizaremos a metodologia inspirada na História Oral. Segundo
Passerini (2011, p.99), “a história de gênero e a história oral caminham de mãos dadas na
ampliação do território da História e na renovação de seus objetos e métodos de estudo”. Pois
elas colocam em evidências problemas que outras fontes não conseguem, “como o papel das
emoções no cruzamento entre o publico e privado” (Idem, p.100).
O recorte feito para delimitar o estudo foi o de mulheres que aturaram na militância no
Paraná e que foram presas na década de 1970. Selecionamos depoimentos de quatro mulheres:
Ana Beatriz Fortes, Diva Ribeiro, Elza Correia e Ligia Cardieri.
No Paraná como na maior parte do país o golpe civil-militar contou com a participação
de militares insatisfeitos, com o apoio de uma parcela da imprensa e dos meios de
O medo às acompanhou depois da prisão também, Ana Beatriz Fortes quando saiu da
prisão voltou a dormir com a mãe, pois “não conseguia dormir, eu ficava a noite inteira dando
pulos, por causa de tanto choque que eu tinha levado. Então eu fiquei bem assim alterada...5”,
Elza tinha medo do escuro também, e só com ajuda da mãe conseguiu superar esse medo, ela
conta das sessões de terapia com a mãe:
[...] Eu adquiri um medo de escuro muito grande, e a minha mãe com sua sabedoria,
ela apagava as luzes da casa e me fazia andar por vários cômodos e quando ela via
que eu não ia aguentar ela acendia a luz e me abraçava 6.
3 Depoimento concedido por Ligia Cardieri ao Projeto Depoimentos para a História – A Resistência à
Ditadura Militar no Paraná, do site DHPaz. Disponível em:
<http://www.dhpaz.org/dhpaz/depoimentos/detalhe/67/depoimento-para-a-historia-a-resistencia-a-ditadura-
militar-no-parana>. Acesso em 24/08/2016.
4 Idem.
5 Depoimento concedido por Ana Beatriz Fortes ao Projeto Depoimentos para a História – A Resistência à
Ditadura Militar no Paraná, do site DHPaz. Disponível em:
<http://www.dhpaz.org/dhpaz/depoimentos/detalhe/19/o-capitao-balbinotti-me-entregou-ao-meu-pai-e-disse-
que-a-prisao-foi-um-engano>. Acesso em 24/08/2016.
6 Depoimento concedido por Elza Pereira Correia ao Projeto Depoimentos para a História – A Resistência à
Ditadura Militar no Paraná, do site DHPaz. Disponível em:
<http://www.dhpaz.org/dhpaz/depoimentos/detalhe/148/depoimento-para-a-historia-a-resistencia-a-ditadura-
militar-no-parana>. Acesso em 24/08/2016.
prisioneiras, de forma ilegal, eram obrigadas a se despir na frente de seus torturadores,
homens em sua maioria. A sensação de tirar a roupa na frente deles era para elas se sentirem
desprotegidas e envergonhadas. Como Ligia Cardieri mostra nos trechos a seguir:
[...] Hoje eu considero que não só sofri o constrangimento da minha liberdade, sofri
muito medo, a tortura foi psicológica, foi de tirar a roupa e sentar na cadeira do
dragão, mas a gente não chegou a ir “pro” pau de arara...78.
A humilhação era outro sentimento constante na prisão, pois os torturadores não
chamavam as mulheres pelo nome, elas eram insultadas constantemente, com coisas como:
“puta comunista” 9 como conta Elza Correia.
As marcas da tortura e da prisão acompanharam a vida dessas mulheres, a polícia
usava fotos intimas para difamar as militantes, mostrando elas como depravadas, como conta
Ligia que viu uma foto sua nua na capa dos jornais, “fotos minhas tiradas o meu quarto, nua
grávida da minha filha, que era pra uso intimo, botam em jornal, quer dizer tua privacidade e
completamente devastada”10, essa atitude de depreciar a imagem das militantes na mídia,
servia para conseguir ainda mais o apoio da população conservadora, pois para eles a mulher
militante cometia dois pecados, primeiro de ir contra o governo e segundo de sair do lugar que
era destinado à elas, o lar. (COLLING, 2015)
O pavor que elas passaram nos anos seguintes à prisão fica evidente nos trechos a
seguir:
[...] Você não esquece nunca, porque é a noite inteira grito, você escuta o grito, o
7 Depoimento concedido por Ligia Cardieri ao Projeto Depoimentos para a História – A Resistência à
Ditadura Militar no Paraná, do site DHPaz. Disponível em:
<http://www.dhpaz.org/dhpaz/depoimentos/detalhe/67/depoimento-para-a-historia-a-resistencia-a-ditadura-
militar-no-parana>. Acesso em 24/08/2016.
8 Cadeira do dragão foi um instrumento de tortura utilizado pela polícia política do Brasil, DOPS, e também pelo
DOI-CODI na época do regime militar para se obter informações de pessoas suspeitas de participarem de ações
subversivas ao governo brasileiro. Era uma espécie de cadeira elétrica, com assento, apoio de braços e espaldar
de metal onde um indivíduo era colocado e amarrado aos pulsos por cintas de couro. Eram amarrados fios em
suas orelhas, língua, em seus órgãos genitais (enfiado na uretra), dedos dos pés e seios (no caso de mulheres). As
pernas eram afastadas para trás por uma travessa de madeira que fazia com que a cada espasmo causado pelo
choque elétrico sua perna batesse violentamente contra a travessa de madeira causando ferimentos profundos.
Esta máquina era chamada pelos torturadores de "pimentinha". Água era jogada sobre o corpo completamente nu
do torturado o que fazia com que a força do choque fosse elevada ao extremo. Era também comum a prática de
espancar o torturado entre um choque e outro. Consulte:
http://www.dhnet.org.br/dados/projetos/dh/br/tnmais/instrumentos.html. Acesso em 01/12/2017.
9 Depoimento concedido por Elza Pereira Correia ao Projeto Depoimentos para a História – A Resistência à
Ditadura Militar no Paraná, do site DHPaz. Disponível em:
<http://www.dhpaz.org/dhpaz/depoimentos/detalhe/148/depoimento-para-a-historia-a-resistencia-a-ditadura-
militar-no-parana>. Acesso em 24/08/2016.
10 Depoimento concedido por Ligia Cardieri ao Projeto Depoimentos para a História – A Resistência à
Ditadura Militar no Paraná, do site DHPaz. Disponível em:
<http://www.dhpaz.org/dhpaz/depoimentos/detalhe/67/depoimento-para-a-historia-a-resistencia-a-ditadura-
militar-no-parana>. Acesso em 24/08/2016.
choro depois, o choro de quem ainda não foi, choro de quem acha que já perdeu
alguém lá dentro, e eles mostravam, eles faziam questão de mostrar que aquele era
um lugar que você podia sair de lá só morta mesmo...11.
A desconfiança foi outro sentimento que acompanharam elas nos anos seguintes,
[...] Eu passei assim o resto da vida, um pouco, fica com uma sensação meio de
paranoia, de sensação que qualquer coisa de ruim pode acontecer a qualquer
momento “né”, [...] sensação assim de meio de perseguição, meio de que alguma
coisa ruim pode te acontecer, isso praticamente a vida inteira eu levei “né” 12.
Ela comenta que agora é até mais fácil, pois as pessoas não a julgam, porque que antes
as pessoas eram até agressivas quando ela falava que tinha sido uma presa política, como
vemos nessa passagem:
[...] Hoje vai ficando mais fácil porque você encontra nas pessoas mais empatia e
compreensão, porque muitas vezes dependendo da pessoa que você vai falar a
pessoa “né”, esses dias mesmo eu tava falando com uma pessoa, comecei a contar,
falei eu fui presa, e ela: mas o que você aprontou, entende? Aquela coisa agressiva,
um preconceito de que se é presa aprontou alguma coisa horrível... 14.
O silêncio tornou-se uma forma de proteção, não falar era mais seguro para não
reviver todo o trauma de novo (apesar dele não sair de sua mente), não falar era uma forma de
não voltar a ser reprimida por outras pessoas. Só quem viveu a tortura pode entender o que
passou. Falar sobre o que tinha ocorrido dentro do cárcere era o mesmo que estar se
condenando a morte, segundo Ana Fortes.
11 Idem.
12 Depoimento concedido por Ana Beatriz Fortes ao Projeto Depoimentos para a História – A Resistência à
Ditadura Militar no Paraná, do site DHPaz. Disponível em:
<http://www.dhpaz.org/dhpaz/depoimentos/detalhe/19/o-capitao-balbinotti-me-entregou-ao-meu-pai-e-disse-
que-a-prisao-foi-um-engano>. Acesso em 24/08/2016.
13 Idem.
14 Idem.
Ligia conta que para as mães que estavam presas era muito difícil ficar longe dos
filhos, a saudade a falta de saber se estavam bem ou não era angustiante. Muitas receberam a
visita dos filhos no cárcere, mas a hora da despedida era terrível para todas.
Ana conta que sua companheira de sela foi muito torturada por vários dias, chegando a
abortar um filho que estava esperando. A violência era tão forte que elas não eram tratadas
como seres humanos, pois a mãe perdeu o filho por causa da tortura, e eles não pararam.
Elza Correia conta que ainda é muito difícil falar sobre esse período, mas o faz por
obrigação política:
[...] Até hoje, pra você ver tantos anos depois, eu tenho sonhos horríveis ainda, da
polícia invadindo nossa casa ou meu pai sendo preso ou eu mesma na prisão, então
essas coisas ferem profundamente. Eu não gosto de falar disso, mas eu acho que eu
tenho obrigação política de falar desse assunto 15.
Com esses relatos podemos perceber que apesar de todo o sofrimento que elas
passaram, e reviveram ao dar seus depoimentos, essas mulheres conseguiram dar um novo
significado aos seus sentimentos. Transformaram a dor em força e resistência.
Apesar do medo, da dor, do pânico e das paranoias que acompanharam a vida delas,
elas seguiram em frente com suas vidas, se formaram, algumas continuaram na vida política,
com a abertura da democracia. E também seguiram suas vidas privadas, casaram, tiveram
filhos.
Mesmo que foram silenciadas por muito tempo, guardaram na memória os
acontecimentos desse período. E quando deram seus depoimentos, conseguiram ter orgulho da
luta que travaram com o Estado opressor, mesmo que com pouca participação na resistência a
ele.
Transformaram todo o sofrimento em coragem para continuar a lutar por um país
melhor e com mais justiça social.
4. Considerações finais:
Como vimos ao longo deste trabalho, a história oficial da ditadura militar é uma
história masculina, pois em grande parte escrita pelos homens foi mais valorizada
15 Depoimento concedido por Elza Pereira Correia ao Projeto Depoimentos para a História – A Resistência à
Ditadura Militar no Paraná, do site DHPaz. Disponível em:
<http://www.dhpaz.org/dhpaz/depoimentos/detalhe/148/depoimento-para-a-historia-a-resistencia-a-ditadura-
militar-no-parana>. Acesso em 24/08/2016.
socialmente, e que para os grupos que lutaram contra a ditadura a ação dos homens eram mais
importantes politicamente. As ações das mulheres, geralmente aparecem ligadas aos homens,
como se só agiram por causa dos homens que as acompanhavam. Mas, vemos que existem
outras histórias e outras narrativas, que elas não são separadas, elas se complementam e se
interagem, ou seja, estão relacionadas.
Os depoimentos analisados contribuem não só para a reconstituição de uma história
política, mas, sobretudo, para termos um pouco da dimensão do sofrimento que muitas
mulheres passaram durante os 21 anos de ditadura civil-militar no Brasil. A dor física da
tortura, com seus choques, espancamentos ou afogamentos, a dor psicológica de que você vai
ser violentada por aqueles homens, que alguém de sua família vai morrer, de que você vai
sofrer muito. A humilhação, a intimidação entre tantas coisas que passaram. Enfrentaram
também o medo constante da morte.
No decorrer deste trabalho podemos perceber que o regime militar não afetou a vida
dessas mulheres só no decorrer do regime autoritário. As marcas desse acontecimento
afetaram todos os campos da vida delas e duraram muitos anos, até hoje. Elas tiveram que se
preparar mentalmente para ir dar seus depoimentos, reviver coisas, relembrar coisas que
queriam não mais falar.
Elas foram perseguidas por conta de seus ideais políticos, não apenas pelo Estado
autoritário, mas também pela população civil, onde por conta das prisões não conseguiam
empregos, e consequentemente muitas vezes passaram por grandes necessidades.
Após análise dos depoimentos, podemos perceber que as mulheres não apresentavam
grande ameaça ao regime autoritário, porém mesmo assim, foi usado contra elas todo o
aparato repressor do estado do Paraná. Pois, o que eles não conseguiam provar com
documentos ou confissões, eles forjavam ou matavam para encobrir seus atos desumanos.
Concluímos que os sentimentos que ficaram mais evidentes em seus depoimentos foi o
medo. A repressão que aconteceu durante o regime militar brasileiro foi opressiva, dogmática,
desesperadora e que marcou cada pessoa de um modo diferente, mas todas elas sufocantes e
violentas.
Com o passar do tempo elas conseguiram resignificar esses sentimentos ruins em
força, resistência e coragem. Usaram esses sentimentos para continuar a vida, e como vimos
para continuar lutando por um país mais justo e com igualdade social.
FONTES
CARDIERI, Ligia. Depoimento gravado ao Projeto Depoimentos para a História – A
Resistência à Ditadura Militar no Paraná, do site DHPaz, em parceria com a Comissão de
Anistia do Ministério da Justiça e sob a coordenação do Grupo Tortura Nunca Mais do
Paraná. Disponível em: <http://www.dhpaz.org/dhpaz/depoimentos/detalhe/67/depoimento-
para-a-historia-a-resistencia-a-ditadura-militar-no-parana>. Acesso em 24/08/2016.
Referencias bibliográficas