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A Marcha Contra a Farsa da Abolição na Transição Democrática (1988).

Rodrigo Bueno de Abreu*1

Contexto e Abordagens Preliminares

No dia 11 de maio ocorreu uma das maiores demonstrações públicas do Movimento


Negro contemporâneo, a Marcha contra a Farsa da Abolição, um protesto que reuniu mais de
5 mil pessoas no centro da cidade, cujo objetivo era explicitar uma posição crítica acerca das
comemorações do centenário da abolição da escravidão. Utilizando carros de som, faixas e,
fundamentalmente, os pulmões, os militantes pretendiam ir da Candelária até o monumento
de Zumbi dos Palmares, na Praça Onze. Não conseguiram. Foram impedidos pelo Exército,
em frente ao Comando Militar do Leste, mais especificamente, um pouco antes do Panteão de
Caxias. Mais de 600 soldados, armaram barricadas e ostentaram armas pesadas, impedindo a
passagem da Marcha. Os militantes não puderam passar em frente ao monumento de Caxias e
por isso não chegaram, como pretendiam, ao monumento a Zumbi. Zumbi e Caxias, numa
batalha metafórica no meio da Avenida Presidente Vargas. Se considerarmos que os
monumentos vão muito além de seus suportes materiais, notamos facilmente a importância do
episódio.
A Marcha figurou entre os grandes eventos programados pelo Movimento Negro para
aquele ano. O poder simbólico do contexto foi muito significativo para o país e para todos os
atores envolvidos na redemocratização, após o encerramento do regime militar. Foi um ano de
mobilização para a miltância. Enquanto o centenário da abolição da escravidão provocou uma
reunião das diversas associações e órgãos – em franca expansão e reconfiguração desde os
anos 70, em especial após a fundação do MNU (Movimento Negro Unificado), em 1978 –
com o objetivo de denunciar a permanência do racismo e as condições de exclusão dos negros
brasileiros, a sociedade acompanhava o fim dos trabalhos da Assembléia Nacional
Constituinte, que havia marcado para outubro a promulgação da nova Constituição.
Anunciava-se a Nova República, uma nova democracia, um novo Brasil.
Nesse sentido, podemos observar que o ano de 1988 possuiu duas agendas, bem
distintas. Uma ligada aos órgãos oficiais, onde figuravam eventos comemorativos, shows,

1 Mestrando do PPGH – UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).


encenações públicas, etc. Outra ligada às associações e órgãos de luta contra a discriminação
e o racismo, onde os eventos tinham o sentido de protesto e conscientização.
As duas agendas focalizavam a questão do negro em dias distintos: o 13 de maio e o
20 de novembro. O 13 de maio assumiu um significado muito importante no contexto da
transição para a República, com grande apelo popular e quase sempre motivo de celebrações.
Celebrações sobre uma transição que, acima de tudo fora realizada pacificamente. Cem anos
depois, os órgãos oficiais, ainda que reconhecendo a situação social inferior do negro,
insistiam na idéia de comemoração. Em contrapartida, desde a década de 70, o Movimento
Negro vinha tentando estabelecer a data da morte de Zumbi dos Palmares como o dia
escolhido pelos próprios negros para a celebração de sua própria história. Na trajetória do
Movimento Negro contemporâneo, a mitificação de Zumbi significou uma ruptura com o
sistema de valores opressores sustentados por uma versão da história que ignorava os
problemas da população descendente dos antigos escravos 2.
A Marcha foi interrompida pelo Exército brasileiro, pois foi considerada uma ameaça
ao patrimônio público. A desconfiança dos militares era oriunda de uma entrevista de Frei
Davi (militante do movimento) em que ele defendia uma revisão da história brasileira no
sentido de derrubar os “falsos heróis” (Caxias) e substituí-los pelos “verdadeiros” (Zumbi).
Outro militante do Movimento Negro, Amauri Mendes Pereira, relata sua visão sobre o
ocorrido:
“Mas ele não falou em agressão, não falou em nada disso. E se fosse realmente para defender, bastava
botar uma barreira de soldados ali. Nada justifica o tamanho, o volume, a comoção que ficou perante aquele
monte de tropas que se colocou nas ruas: os tanques, armaram casamata, aqueles sacos enormes,
metralhadoras...Loucura. Isso está documentado em todos os jornais. Nós temos vários vídeos. Foi paranóia do
Comando Militar do Leste.”(VERENA, Alberti e PEREIRA, Amílcar, 2007:267)

O Movimento Negro e a Marcha

Ao contrário de organizações anteriores, que marcaram a trajetória do Movimento


Negro ao longo de todo o século XX, como a FNB (Frente Negra Brasileira) ou o TEN
(Teatro Experimental do Negro), para ficar apenas nas mais expressivas, o propósito de

2Aaná lise sobre a mitificaçã o de Zumbi dos Palmares é didaticamente demonstrada em:
GOMES, Flá vio dos Santos. De Olho Em Zumbi dos Palmares: Histó rias, Símbolos e
Memó ria Social. Sã o Paulo, Ed. Claro Enigma, 2011.

2
mudar a sociedade ou denunciar o racismo, não seria mais perseguido através de estratégias
pacíficas. A ideia de organizações como o SINBA (Sociedade de Intercâmbio Brasil – África)
e o IPCN (Instituto para Pesquisa em Culturas Negras), era a do enfrentamento explícito.
Diversos historiadores vêm se debruçando sobre essa mudança no sentido de decifrá-
la3. Suas conclusões têm apontado para a mesma direção. É preciso contextualizar o
Movimento Negro contemporâneo e explorar algumas de suas peculiaridades, para entender
essa mudança. O início dessa nova fase coincide com um marco importante do regime militar:
o início do processo de descompressão, chamado de abertura política. Foi durante a chamada
“abertura” que ocorreu a retomada dos movimentos sociais, como o movimento estudantil e o
movimento sindical. No caso do Movimento Negro, pode-se aferir que seus militantes
iniciaram sua formação justamente no bojo desses movimentos maiores e mais mobilizadores.
No meio acadêmico, é notório que nos anos 70 as discussões sobre a democracia racial
brasileira e os mitos que a cercavam estavam bem avançadas e em claro estágio de refutação.
Por causa das dificuldades de se desenvolver uma discussão acerca do problema do negro no
âmbito dos grupos estudantis, partidos e sindicatos ligados à esquerda – por esses
considerarem essa discussão um risco para a consciência de classe – optou-se pela criação de
órgãos e grupos de ação próprios.
Pode-se afirmar que esse ressurgimento dos movimentos sociais ou das
esquerdas foi acompanhado por uma literatura, produzida por pensadores brasileiros e
estrangeiros de matriz marxista. Essa literatura foi bastante influente para a formação dos
quadros mais destacados e da intelectualidade ligada ao Movimento Negro. Para essa nova
militância, passou a existir, de fato, um projeto de democracia inclusiva a ser alcançado, onde
a questão da raça deveria ocupar um lugar central, pois percebia-se a raça como componente
importante da exclusão social mais abrangente. Isso teria impulsionado essa guinada política
“esquerdista” do movimento.

3 Ver: DOMINGUES, Petrô nio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos.


Revista TEMPO, vol.12, n. 23, julho, 2007, pp. 100-122. Rio de Janeiro, EDUFF, 2007;
PEREIRA, Amilcar Araújo. O Mundo Negro: A Constiuição do Movimento Negro
Contemporâneo no Brasil (1970-1995), 2010. 268 f. Tese de Doutorado – Universidade
Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História,
Niterói, Rio de Janeiro, 2010; e ALBERTO, Paulina Laura. Terms of Inclusion: Black
Intellectuals in twentieth-century Brazil. North Carolina (USA), North Carolina Press, 2011.

3
Igualmente importante é perceber que o Movimento Negro a partir dos anos 70,
buscou referências em lutas contra o racismo desenvolvidas em outros países do chamado
Atlântico Negro (PEREIRA, Amílcar, 2010: 106-127). A luta pelos direitos civis nos Estados
Unidos e fundamentalmente o movimento de descolonização do continente africano
exerceram um peso considerável nas discussões sobre as possíveis trajetórias a serem
seguidas pelas entidades brasileiras. A percepção, guardados os devidos distanciamentos e
especificidades, de que a temática racial perpassava sociedades em condições muito
diferentes, mas que o desenvolvimento de legislações antirracistas era especialmente pequeno,
e até mesmo inexistente, nos países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos (categorização
utilizada na época) foi importante na formulação de várias teorias antimperialistas. É
importante destacar que muitas obras de intelectuais ligados à descolonização começaram a
ser lidas e debatidas.

Os Militares e a Marcha

Pelo que foi exposto até aqui procurei apresentar algumas análises para a compreensão
da atuação do Movimento Negro nessa fase contemporânea. O que poderia ser discutido
acerca da atuação do Exército? É possível confrontar a fala dos militantes? Foi paranóia e até
loucura do Comando Militar do Leste? Acredito que não. A postura do Exército no episódio
possui raízes bem mais profundas, algumas até desconhecidas ou pouco exploradas.
José Murilo de Carvalho destaca a importância do Exército na história republicana e o
preconceito, acadêmico fundamentalmente, que pesa sobre essa constatação (CARVALHO,
2006: p 138-153) . Está muito claro, em análises abrangentes, que construiu-se uma espécie
de cultura política na República brasileira, e porque não dizer em boa parte das repúblicas da
América Latina, onde na ausência das soluções, arranjos ou equilíbrios, às FFAA caberia o
papel de intervenção. Desde a introdução do regime em 1889, contamos pelo menos quatro
intervenções responsáveis por significativas mudanças de rumo para o país4. Nessa
perspectiva o golpe de 1964 e a Ditadura são tributários de uma longa tradição de
intervenções, onde as FFAA e o Exército em particular se tornaram responsáveis pela
manutenção da ordem e pela estabilização.

4 Refiro-me à s datas: 1930, 1937, 1945 e 1964.

4
Da mesma forma é possível, assim como faz Celso Castro 5 compreender os valores
sobre os quais se assentam os ideiais nacionais do Exército brasileiro. A mitificação do Duque
de Caxias foi brilhantemente analisada pelo antropólogo, que demonstrou como “O Patrono”
passou a simbolizar os ideiais de pacificação e união da nação, desde os tempos do Império
até nossos dias. São incontáveis às referências positivas à Caxias em diversas publicações e
discursos militares, bem como à alusão às suas grandes realizações como exemplos da
importância do Exército para a nação.
Muitos autores também destacam as reformas militares introduzidas nas forças
armadas latino-americanas, desde o fim do século XIX, oriundas das diversas missões
estrangeiras, como o fator de elevação do Exército à condição de instituição exclusiva no
desenvolvimento da segurança geopolítica6. Como demonstra Comblin7, durante o período da
Guerra Fria, por influência direta das diretrizes elaboradas pelos EEUU, o termo geopolítica
se converteu em algo mais complexo e elaborado, indo desde o combate ao comunismo até a
defesa dos valores e comportamentos pscicossociais que caracterizariam uma sociedade
ocidental estável e harmônica. Tais valores e preocupações foram sistematizados na chamada
Doutrina de Segurança Nacional (DSN). A DSN foi o rol de teorias que justificou as ações
repressoras e autoritárias dos últimos regimes militares do cone sul. Sua faceta mais destacada
e analisada era o combate ao comunismo, mas de certa forma, ela buscava combater todas as
ameças à nação e aos seus valores, e posicionava as FFAA – Exército à frente – como
protagonistas desses combates. Vejamos a definição proposta pela ESG em 1979:

“Segurança Nacional é a garantia que, em grau variável, é proporcionada à Nação, principalmente


sob a égide do Estado, através de ações políticas, econômicas, psicossociais e militares, para a conquista e
manutenção dos Objetivos Nacionais, a despeito dos antagonismos e pressões existentes ou potenciais.” (A
Defesa Nacional, 1979: p.13). 8

5 Ver:CASTRO, Celso. Exército e Naçã o: Estudos Sobre a Histó ria do Exército Brasileiro.
Rio de Janeiro: FGV, 2012. Ver também: CASTRO, Celso. A Invençã o do Exército
Brasileiro, Coleçã o Descobrindo o Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 2002.
6 Ver:NOVARO, Marcos e PALERMO, Vicente. A Ditadura Militar na Argentina 1976 –
1983. Sã o Paulo: EDUSP, 2007.
7 Ver: COMBLIN, Joseph. Ideologia de Segurança Nacional. Rio de Janeiro, Paz e Terra

1979.
8 ESG. Segurança Nacional – Conceituaçã o da Escola Superior de Guerra. Separata de: A

Defesa Nacional. Rio de Janeiro: BIBLIEX, n. 681 – 682, p. 13-22, janeiro/fevereiro, 1979.

5
É evidente que o combate ao comunismo envolvia o combate aos comunistas internos,
organizados ou não em agremiações, guerrilhas, grupos, etc. Mas não somente isso. A
definição de DSN proposta pela ESG não nomeia o inimigo diretamente, optando pela forma
genérica dos “antagonismos e pressões” contrários aos objetivos nacionais. Sob esse prisma
pode-se propor uma análise de outros possíveis “inimigos”, sem deixar de reconhecer o
protagonismo dos comunistas. Paulina Alberto (ALBERTO, 2011: p. 245-296), analisando
documentos do DOPS, posteriormente transformado em DGIE (respectivamente: Divisão de
Ordem Política e Social e Divisão Geral de Investigações Especiais), deparou-se com algumas
ordens de investigação sobre eventos e entidades do Movimento Negro, que comprovam seu
constante patrulhamento9. Em uma dessas investigações é citado diretamente o IPCN, onde a
DGIE descreve o teor de algumas reuniões, o que evidencia a infltração da entidade pela
Ditadura. Logo na capa, na determinação do assunto da investigação, aparece sublinhada a
expressão: RACISMO NEGRO. É transcrita toda a a pauta da reunião realizada na sede do
IPCN em abril de 1977, onde foi discutida a questão das possíveis intervenções educacionais
do movimento para despertar uma nova consciência entre os negros brasileiros.

“Desta forma, o tema predileto dos debates nas reuniões levadas a efeito, é o preconceito racial e/ou
social e o papel do negro na coletividade(...) O Raciocínio seguido pelo IPCN, conduz a uma desvinculação do
que até aqui foi observado em termos da história do negro no Brasil. Assim, tratam eles de desmistificar as
datas históricas significativas para a compreensão da Cultura Negra (o 13 de maio por exemplo), da forma
como eram apresentados, emergindo, modernamente o fato de libertação dos escravos como uma obrigação e
não como um ato de caridade do SISTEMA.”10

Investigando os referidos documentos podemos apresentar algumas ideias


preliminares sobre a preocupação dos militares com as manifestações das entidades negras.
Em primeiro lugar é fato, como já discutimos, a existência de vínculos entre os militantes do
Movimento Negro e as esquerdas, seja em termos teóricos, seja na inspiração, como no caso
das lutas de libertação levadas à cabo pelo MPLA, pela FRELIMO e pelo PAIGC, na África

9 Alguns exemplos: ARQUIVO PÚ BLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (APERJ) –


Arquivo: Polícias Políticas /DGIE pastas: 258 ff. 622-629/ 259 ff. 40-46. Ver imagem.
10 ARQUIVO PÚ BLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (APERJ) – Arquivo: Polícias

Políticas /DGIE pasta 258 ff. 624 e 625.

6
Portuguesa. Em segundo lugar, assim como faz Paulina Alberto (ALBERTO, 2011: p. 245-
296), podemos verificar um fato igualmente importante: a Ditadura projetou a ideia da
democracia racial como caracterísitica e valor da nação, assumindo sua defesa intransigente e
fazendo propaganda em eventos internacionais, como no FESTAC de 1977, na Nigéria
(ALBERTO, 2011: ibdem). Uma comprovação disso é o Decreto-Lei n. 510, de 20 de março
de 1969 que considera crime contra a Segurança Nacional a alusão ao racismo. No artigo 33
aparece: ART. 33 / VI - “incitar ao ódio ou discriminação racial” (pena de 1 a 3 anos de
reclusão). Em nenhum outro momento de nossa história republicana as ideias sobre a
harmonia das relações sócio-raciais brasileiras adquiriram tanta importância. A defesa desse
“bem”, desse valor, passou a ser também uma preocupação da DSN.

Conclusão: A Marcha e a Transição Democrática

A Marcha analisada nesse artigo ocorreu no contexto da chamada transição


democrática. Teoricamente, os militares não teriam justificativa para impedir um movimento
supostamente pacífico, num contexto diferente do período anterior. Nesse caso, cabe a
referência a alguns trabalhos sobre as transições democráticas e suas principais categorias de
análise11. É importante considerarmos que alguns conceitos como democracia, liberalização,
cidadania, autoritarismo, ditadura, são polissêmicos e de difícil definição. Como demonstra
Aarão12, no período imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial, as palavras ditadura e
autoritarismo gozavam até de certo prestígio, devido à descrença nos pressupostos liberais em
grande parte do mundo. Já depois do conflito, tais palavras passam a ser associadas ao
fascismo e por isso seu uso muda, tornando-se mais problemático. Da mesma forma, como
faziam os marxistas brasileiros da década de 70, o termo democracia foi e continua sendo
muito debatido nas ciências sociais. Pode-se considerar democrática uma sociedade que
adotou formas políticas de participação e acesso ao poder? Mesmo que essas formas políticas
não sejam capazes de agregar participação, mobilizar ou gerar algum grau de confiança para

11 D'ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon e CASTRO, Celso. S. A Volta
aos Quartéis – a memória militar sobre a abertura. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1995. p. 7
– 44.
12 FILHO, Daniel Aarã o Reis. As Conexõ es Civis. O Globo, Rio de Janeiro, 15 de Fev. , 2014,

Caderno Prosa, p. 3. Entrevista concedida a Leonardo Cazes.

7
os cidadãos? Alguns autores13 destacam que antes das instituições, a democracia deve ser
pensada como uma categoria social, vinculada à cultura política, ou seja, mais importante que
instituições democráticas deve-se pensar na consolidação de uma cultura democrática em
termos de ação social. Aliás, a ideia de cidadania que está normalmente vinculada à
democracia é tão problemática quanto. Consideramos cidadãos brasileiros todos os nascidos
no país ou naturalizados que tenham acesso aos direitos definidos constitucionalmente.
Todavia, mais da metadade da população não tem acesso a direitos básicos como educação e
saúde. É possível então afirmar que existe democracia no Brasil? Vivemos uma democracia
liberal, ou um liberalismo autoritário? É inegável que existiram avanços legislativos em
relação às liberdades civis, mas o que dizer sobre a cultura de autoritarismo persistente em
nossa legislação? A Constituição de 1988 permite intervenções militares desde que sejam
autorizadas por um dos três poderes. Eliézer Rizzo 14 demonstra, por exemplo, os bastidores da
disputa pelo texto da Carta que, seja por incompetência dos civis ou pelo preparo e articulação
dos militares, fracassou em subordinar o últimos aos primeiros. Novamente percebemos que
problematizar os conceitos implica necessariamente em problematizar interpretações. Ou seja,
questionar o senso comum que se construiu sobre determinados processos.
A historiografia já sinaliza para uma guinada interpretativa, onde destacam-se os
papéis de lideranças civis, empresários, imprensa, intelectuais, estudantes, associações, entre
outros, na implantação e sustentação do regime militar. Isso pode auxiliar análises sobre a
permanência de uma cultura autoritária no próprio meio civil. A recorrência às FFAA
continua figurando como garantia e segurança da ordem democrática, exatamente como
afirmavam os militares que tomaram o poder em 1964. Apesar da memória que aponta para
uma forte oposição entre militares e civis ao longo do regime militar , o conjunto dos valores
nacionais a ser protegido pelas FFAA, naquele contexto, continuou quase sem alterações até
nossos dias.

13 Ver: AVRITZER, Leonardo. Cultura Política, Atores Sociais e Democratização - Uma


Crítica às Teorias da Transição Para a Democracia. Revista Brasileira de Ciências Sociais
(RBCS). São Paulo, v.10, n.28, junho, 1995. (Disponivel em:
http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_28/rbcs28_09.htm - acesso em
15/02/2014). Ver também: DAGNINO, Evelina; OLVERA, Alberto J., PANFICHI, Aldo
(orgs.). A Disputa pela Construção Democrática na América Latina. São Paulo, Paz e Terra;
Campinas, UNICAMP, 2006.
14 OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. De Geisel a Collor: Forças Armadas, Transição e

Democracia. Campinas: Papirus, 1994.

8
Será que também não seria possível observar algumas convergências, ainda que
relativas, entre militares e civis sobre valores que devem ou deveriam ser preservados? Em
caso afirmativo, seria também possível deslocar interpretações sobre conflitos civis-militares
para um terreno mais rico em possibilidades analíticas. Ou mesmo abrir caminhos para se
compreender as ações dos variados meios militares, considerando suas interfaces históricas,
políticas e sócio-culturais, bem como sua diversidade interna. Um exemplo disso, nos anos
80, é o artigo do Coronel Cláudio Moreira Bento publicado na revista A Defesa Nacional em
julho de 1988, alguns meses após a Marcha, intitulado: O Exército e a Abolição (Pensamento
e Ação). Nele, o Coronel elenca algumas conclusões de um extenso estudo desenvolvido pelo
AHEX (Arquivo Histórico do Exército), do qual era diretor na ocasião, sobre as relações entre
o Exército e a população negra, desde a independência até o centenário da abolição da
escravidão. Entre outras conclusões, afirma o autor:

“(...) 1o – Que a contribuição do negro e seus descendentes foi maciça, marcante e efetiva no campo
militar, para ajudar a legar aos brasileiros um país de dimensões continentais, cristão e, talvez, a maior
democracia racial, em que pese detectar-se vez por outra, sem justificação científica, pequenas manchas de
preconceito e de discriminação racial e até de racismo(...).” (A Defesa Nacional, 1988: p. 8)15

Por tudo isso é que a Marcha contra a Farsa da Abolição é mais um dos muitos objetos
de análise que vêm surgindo no horizonte historiográfico que podem lançar novas luzes sobre
aspectos da Ditadura e da transição ainda pouco explorados. É um desses momentos
privilegiados para o historiador no qual entram em disputa direta, nas ruas, os valores, as
memórias e os conceitos que marcaram e ainda marcam nossa história recente.

15 BENTO,Clá udio Moreira. O Exército e a Aboliçã o (Pensamento e Açã o). Separata de: A
Defesa Nacional. Rio de Janeiro: BIBLIEX, n.738, , p. 7-16, julho/agosto 1988.

9
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