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O Momento Sul-Africano – Mahmood Mamdani

Ativistas do Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) que desejam aprender com a luta
sul-africana precisam colocar o boicote sul-africano em um contexto mais amplo, a luta
antiapartheid. Não houve vitória militar contra o apartheid. O fim do apartheid foi um acordo
negociado. Boicote e colaboração eram duas pontas de um mesmo espectro. No meio estão
diferentes formas de engajamento crítico. O boicote foi um instrumento entre muitos. Ver o
boicote isoladamente seria enganoso. Ver o boicote em um contexto mais amplo é entender a
política que informou, influenciou, orientou o boicote. Dessa forma, minha pergunta é: qual foi o
momento decisivo no desenvolvimento da luta antiapartheid na África do Sul? Qual foi o
momento sul-africano?
Meu argumento será o seguinte. O momento sul-africano envolveu uma mudança tripla.
Primeiro, foi uma mudança de exigir o fim do apartheid para fornecer uma alternativa ao
apartheid. Em segundo lugar, a mudança de representação dos oprimidos, o povo negro da África
do Sul, a maioria, para representação de todo o povo. A terceira foi a mudança de resistir dentro
dos termos estabelecidos pelo apartheid para redefinir os próprios termos de como a África do
Sul deveria ser governada.
O momento sul-africano foi se formando ao longo do tempo, em resposta a um conjunto
de desafios enfrentados pela luta antiapartheid.

Começarei com o nascimento da luta armada após o massacre de Sharpeville de 1960. O


objetivo declarado da guerrilha armada era libertar a população desarmada. Os revolucionários
profissionais seguiram o modelo das injunções de Lenin em “O que fazer?”. Ele e ela faziam
parte de uma vanguarda cuja missão era liderar e libertar o povo. Nas imagens maoístas, os
guerrilheiros deveriam ser como peixes na água - os peixes seriam ativos, a água os sustentaria.

À medida que a luta armada se desenrolava como um projeto, os resultados eram em


geral negativos. Quanto mais ativistas iam para o exílio, mais a população era pacificada. O
capital assumiu o comando: os anos 60 foram uma época de rápido desenvolvimento econômico,
uma época em que enormes quantidades de capital estrangeiro foram transferidos para a África
do Sul. Os historiadores econômicos falam dos anos 60 como o segundo maior período
significativo na transformação industrial da África do Sul, sendo o primeiro a década de 1930.
Ao contrário da década de 1930, que foi marcada pela Grande Depressão, o impulso para a
industrialização na década de 1960 veio de uma onda crescente de investimento estrangeiro. Do
ponto de vista do povo, porém, os anos 1960 foram uma década de relativo silêncio, o silêncio do
cemitério.

Esse silêncio foi quebrado por duas rajadas. A primeira foi a greve geral de Durban de
1973. A segunda foi a onda de protestos em municípios provocados pelo tiroteio da polícia
contra estudantes que protestavam em Soweto, em 16 de junho de 1976. Discutirei Soweto
primeiro, e depois irei a Durban como contraponto. O significado de Soweto era triplo. Primeiro,
Soweto mudou a iniciativa de revolucionários profissionais no exílio para ativistas baseados na
comunidade. Em segundo lugar, mudou o foco da luta armada para a ação direta. Os jovens de
Soweto não tinham mais do que pedras para atirar na polícia armada. Em ambos, Soweto evoca a
Primeira Intifada na Palestina. Mas Soweto também sinalizou uma mudança ideológica, uma
mudança na perspectiva política popular, uma mudança tão vasta que se pode falar dela como
uma mudança radical.

Antes de Soweto, a resistência na África do Sul se desenvolveu dentro da estrutura


estabelecida pelo apartheid. Para entender essa estrutura, é preciso olhar para o modo de
governança do apartheid. O apartheid dividiu toda a população em raças: africanos, indianos,
pessoas de cor (um grupo de “raça mista”), brancos - muitos dos chamados grupos
populacionais. Em resposta, cada grupo populacional se organizou separadamente, como uma
raça: os africanos com o Congresso Nacional Africano (African National Congress, ANC);
indianos com o Congresso Nacional Indiano (Natal Indian Congress), organizado pela primeira
vez por Gandhi; pessoas de cor com o Congresso dos Povos de Cor; e os brancos com o
Congresso dos Democratas. A Aliança do Congresso (Congress Alliance) era uma aliança
guarda-chuva desses grupos separados de resistência de base racial - e o Congresso dos
Sindicatos da África do Sul, que não era organizado segundo linhas raciais. Foi assim que o
modo de governança do apartheid se naturalizou como o modo de resistência contra ele.

Houve duas violações principais nessa mentalidade. A primeira foi a Carta da Liberdade
(Freedom Charter), adotada pela Aliança do Congresso em 1955, e sua declaração sonora: “A
África do Sul pertence a todos os que nela vivem”. Embora uma declaração de uma elite a
setores insatisfeitos de outra elite, essa declaração marcou o nascimento do não-racialismo
(nonracialism). Como tal, acabou por ter uma enorme importância ideológica.

A segunda violação, igualmente fundamental, se não mais, foi o trabalho de Steve Biko e
do Movimento da Consciência Negra (Black Consiousness Movement). Esta foi uma aliança de
pessoas comuns, principalmente estudantes, vindas de baixo. Em contraste, a Carta da Liberdade
criou a base para uma aliança no topo. Seu efeito foi incorporar brancos individuais ao
movimento antiapartheid. No entanto, sua importância não pode ser subestimada.

A África do Sul afirmou ser a única democracia ao sul do Saara - assim como Israel
afirma ser a única democracia na região. Ambos eram racialmente definidos, e Israel ainda é: era
uma democracia apenas para judeus em Israel e apenas para brancos na África do Sul. Em ambos
os casos, a democracia se transformou em uma folha de figueira escondendo privilégios raciais.
É nesse contexto que o ANC - Congresso Nacional Africano apresentou uma noção significativa
de democracia - não uma democracia de apenas um grupo racial, nem mesmo da maioria contra a
minoria, mas uma democracia para todos. Logo, ativistas anti-apartheid brancos individuais
começaram a se juntar ao ANC.
Fico tentado a perguntar: quantas organizações antissionistas na Palestina histórica
abriram suas portas para judeus israelenses que se opunham a um Estado judeu? Não apenas
como membros comuns, mas também como líderes? Pergunto porque não sei a resposta. Se a
resposta é nenhuma ou quase nenhuma, por que não?

O significado histórico do Consciência Negra (BC) foi que ele construiu uma unidade de
baixo, uma unidade de todos os oprimidos: africanos, indianos, pessoas de cor. O poder do
apartheid fragmentou a população sujeita em tantos grupos, registrados separadamente no censo:
africanos, indianos, pessoas de cor. A grande conquista histórica do BC foi puxar o tapete sob o
apartheid. O preto, disse Steve Biko, não é uma cor, o preto é uma experiência - se você é
oprimido, você é negro!

Existe uma lição aqui para a luta antissionista?

A situação difícil dos palestinos não é a mesma dos sul-africanos sob o apartheid; é pior.
Apenas uma pequena minoria de sul-africanos foi expulsa de seu país; a maioria dos palestinos
vive fora da Palestina histórica. Quando uma delegação da Organização para a Libertação da
Palestina (OLP) visitou a Tanzânia na década de 1960 e foi fazer uma visita de cortesia ao
presidente Nyerere, ele disse a eles: “Perdemos nossa independência, vocês perderam seu país!”

Não se pode deixar de ficar impressionado com a extraordinária resiliência do povo


palestino em face de adversidades esmagadoras. Vivemos em uma época em que a violência
política se confunde com a violência criminal, em que todas as formas de resistência estão sendo
redefinidas como terror, em que a repressão é considerada uma guerra ao terror. A principal
exceção a essa tendência global é a Palestina. É uma homenagem à tenacidade do povo palestino,
liderado por aqueles em Gaza, e ao trabalho político feito pela resistência palestina, incluindo o
movimento BDS, que impede Israel e Estados Unidos de marcar a resistência popular na
Palestina histórica com o pincel do terrorismo. Mais do que nunca, o mundo está convencido de
que a causa do povo palestino é justa.

Qual é, então, o principal obstáculo para um avanço? É o poder militar dos Estados
Unidos e de Israel? Seria um erro pensar assim.

O problema é duplo. É certamente um problema que os Estados Unidos e Israel ainda não
estejam convencidos de que uma solução militar para a resistência palestina está fora de questão,
mas este é um problema secundário. O principal problema é que o povo israelense, a maioria da
população judia dentro do estado de Israel, ainda não está convencida de que existe uma opção
diferente ao sionismo. A mensagem sionista para a população judaica de Israel é esta: o sionismo
é sua única garantia contra outro Holocausto. Sua única defesa contra um segundo Holocausto é
o estado de Israel. O verdadeiro desafio que a resistência palestina enfrenta é político, não
militar.

Deixe-me voltar ao apartheid na África do Sul para esclarecer esse desafio. Considere
dois fatos. O partido do apartheid, o Partido Nacional, chegou ao poder por meio de eleições em
1948 e foi devolvido ao poder com maior número ao longo da década de 1950. A dissolução do
apartheid político e jurídico também envolveu um referendo exclusivo para brancos - por meio
do qual a maioria da população branca autorizou seu governo a negociar com representantes da
maioria negra. O referendo foi acompanhado de um debate tanto na população negra quanto na
branca. Para população negra, a visão rejeicionista foi proposta pelo Congresso Pan-africanista
em sua mobilização, embora não em seus pronunciamentos oficiais: um colono, uma bala!

Os rejeicionistas brancos pertenciam a várias organizações, desde o Partido Conservador


ao separatista Afrikaner Weerstandsbeweging. O ponto de vista deles foi melhor refletido em um
livro popular de Rian Malan, My Traitor’s Heart. Malan era descendente de um ex-presidente de
estado sul-africano. Como repórter do Jo’berg Star, Malan cobriu o crime nos bairros negros de
Jo’berg. Ele escreveu um livro sobre o que a imprensa do apartheid chamou de "crime negro
contra negro". Um capítulo narrou a história do Homem Martelo - um grande homem negro que
empunhava um martelo pesado com o qual esmagava o crânio de sua vítima. A violência foi
amplamente gratuita, desproporcional ao benefício que ele tirou dela. A história tinha um
subscrito: Se eles podem fazer isso um com o outro, o que farão conosco se tiverem uma chance?

Rian Malan não conseguiu convencer a maioria dos brancos sul-africanos. Por quê?
Porque seções importantes dos movimentos de libertação passaram a pensar em termos
holísticos. Disseram a quem quisesse ouvir - e havia muitos - que a luta não era contra os
colonos, mas contra o poder dos colonos. Sem um estado que garanta legalmente os privilégios
dos colonos, os colonos se tornariam apenas imigrantes comuns.

O momento sul-africano foi quando seções importantes do campo de libertação


redefiniram o inimigo não como colonos, mas como estado colonizador, não como brancos, mas
como o poder branco. Ao fazer isso, eles forneceram aos brancos uma alternativa - não uma
democracia apenas para os brancos, mas uma democracia não racial.

Em 1993, quando o líder do Partido Comunista da África do Sul, Chris Hani, foi
assassinado em um subúrbio de Jo'berg, centenas de milhares se reuniram em seu funeral para
homenageá-lo e ouvir Mandela, a polícia disse que não tinha certeza se eles podiam controlar as
multidões. O Sindicato Nacional dos Mineiros disse que sim, e o fizeram. Naquele dia, Mandela
discursou para todo o país, não apenas para os enlutados no estádio de Soweto. No dia seguinte,
embora de Klerk ainda fosse o presidente da África do Sul, Mandela era seu líder indiscutível.

Dei minha palestra inaugural na Universidade da Cidade do Cabo em 1998. Perguntei:


quando um colono se torna nativo? Minha resposta foi: “Nunca”. Nativo, argumentei, é a criação
do estado dos colonos. O nativo é inventado como o “outro” do colono. Se o colono é definido
pela história, o nativo é definido pela geografia. Se o colono faz sua própria história, o nativo é
considerado o cativo impensado de um costume imutável. Minha conclusão foi que o colono e o
nativo andam juntos. Eles estão unidos por um relacionamento. Nenhum dos dois pode existir
isoladamente: se você destruir um, o outro deixará de existir.
A libertação na África do Sul foi o resultado de uma combinação de fatores: guerra na
região, ação direta dentro do país e uma mudança no equilíbrio de poder global. A guerra em
Angola foi o epicentro da guerra na região: as Forças de Defesa da África do Sul foram
derrotadas pelos cubanos e pelo Movimento Popular de Libertação de Angola em Cuito
Cuanavale em 1987-88. Este desenvolvimento precipitou a independência da Namíbia. O
isolamento regional da África do Sul era completo e os limites de seu poderio militar eram
claros. A ação direta desenvolveu-se em ondas: de Durban 1973 e Soweto 1976 à insurreição nos
bairros e à campanha internacional de desinvestimento e boicote na década de 1980.
Internacionalmente, houve uma mudança marcante com o fim da Guerra Fria - uma vez que a
Guerra Fria acabou, não havia nenhuma razão moral ou politicamente convincente para apoiar o
apartheid. Todos os três desenvolvimentos foram importantes, mas o desenvolvimento decisivo
foi interno. Este será meu último ponto.

A ação direta começou na década de 1960 e se desenvolveu nas décadas de 1970 e 1980.
Foi uma resposta ao que era evidente para todos, que a luta armada era, na melhor das hipóteses,
uma arma de propaganda e, na pior, uma ostentação vazia. O início foi no final dos anos
sessenta. Isso veio com uma cisão na organização liberal de estudantes brancos, a União
Nacional de Estudantes Sul-Africanos (NUSAS), que havia admitido membros negros. Liderada
por Steve Biko, a seção negra formou uma organização separada, a South African Students
’Organization (SASO). E fora da SASO surgiu o Movimento da Consciência Negra.

Ambas as alas do movimento estudantil antiapartheid, brancos e negros, se


movimentaram para mobilizar setores mais amplos da sociedade contra o apartheid. Estudantes
da consciência negra mudaram-se para o município, e estudantes brancos para organizar
trabalhadores migrantes em albergues nas periferias dos municípios.

Dessa iniciativa em duas frentes, desenvolveram-se duas alas do movimento trabalhista,


uma baseada em albergues de migrantes, a outra na comunidade (municípios), a primeira
extraindo sua visão intelectual de estudantes brancos, a última de estudantes negros em cidades.
A primeira a ser organizada, em 1979, foi a Federação dos Sindicatos da África do Sul
(FOSATU). Seu núcleo eram sindicatos organizados após a onda de greves espontâneas de
trabalhadores negros em Durban e Pinetown em 1973. A constituição enfatizava o não-
racialismo, o controle dos sindicatos pelos trabalhadores e a independência dos trabalhadores da
política partidária. Em contraste, o Congresso dos Sindicatos da África do Sul (COSATU),
organizado em 1985, fez da aliança com o ANC e o Partido Comunista da África do Sul uma
parte central de sua estratégia.

Embora relativamente poucos em número, os alunos brancos eram de importância


estratégica. Eles foram os principais organizadores do FOSATU. Mais tarde, eles se juntaram ao
Partido Comunista e depois ao ANC. Quando chegou a hora, eles forneceram canais eficazes de
comunicação para a população branca.

Conclusão

A luta antiapartheid educou a África do Sul branca: a alegação do apartheid de que não
haveria segurança branca sem o poder branco era uma farsa. Na verdade, o inverso era
verdadeiro: sua segurança exigia que os brancos desistissem do monopólio do poder. O desafio
palestino é persuadir a população judaica de Israel e do mundo que - assim como na África do
Sul - a segurança de longo prazo de uma pátria judaica na Palestina histórica requer o
desmantelamento do Estado judeu. A lição sul-africana para a Palestina e Israel é que a Palestina
histórica pode ser uma pátria para os judeus, mas não apenas para os judeus. Em outras palavras,
os judeus podem ter uma pátria na Palestina histórica, mas não um estado.

Minha segunda conclusão é que o apartheid jurídico e político terminou em 1994. Mas
1994 também foi o ano de dois eventos que delinearam dois destinos muito diferentes para a
África. Foi o ano do fim do apartheid na África do Sul e do genocídio em Ruanda. Ambos
aconteceram no primeiro semestre de 1994. Dez anos antes, se você tivesse dito a intelectuais e
ativistas africanos que daqui a uma década haveria reconciliação em um desses países e um
genocídio em outro, a grande maioria não teria conseguido identificar os países corretamente -
por quê? Porque em 1984, o exército sul-africano ocupou a maioria dos distritos negros
importantes e Ruanda foi o local de uma tentativa de reconciliação. Em dez anos, tudo mudou -
testemunhando um fato: nada é inevitável na vida política!

Ed. Nota: Este texto é baseado em comentários como debatedor de uma palestra proferida por
Omar Barghouti da campanha BDS, na Columbia University, New York City, 2 de dezembro de
2014.

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