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O fio
“Vivemos num neofeudalismo. Isto não é capitalismo”. A quem pertence a
frase? A círculos intelectuais anarquistas, socialistas do século XXI, a alguma
divisão perdida do comunismo revolucionário? Não: pertence a ninguém
menos do que Steve Bannon, que foi o líder da campanha eleitoral de
Donald Trump, em 2016. Bannon, preso há algumas semanas por ter ficado,
ilegalmente, com um milhão de dólares, procedente da campanha de de
Trump para construir o muro entre o México e os EUA, é uma figura
bastante peculiar. Diretor do site de notícias de extrema-direita, Breitbart
News (famoso pelo uso de fake news e por seus brutais ataques àqueles
que obstruem o caminho de seus protegidos), foi demitido da Casa Branca
em agosto de 2017 por suas posições extremas, principalmente, por
aquelas que envolvem sua oposição à globalização. Desde então, vem se
dedicando a assessorar boa parte dos setores mais radicalizados e racistas
da Europa e América Latina. Nesta figura particular, que veste duas camisas
sobrepostas, são catalisadas as ideias de uma direita que perdeu a vergonha
de dizer o que pensa e que tem grande capacidade tecnológica para cultivar
o discurso do ódio no fértil adubo neoliberal.
Esta empresa, extinta após o escândalo das eleições presidenciais nos EUA,
era uma filial norte-americana da SCL, companhia inglesa especializada em
operações psicológicas. Mercer é bastante reservado, não dá entrevistas
nem palestras, mas, como explica a jornalista britânica Carol Cadwalladar
no documentário Fake America Great Again, ao seguirmos as pegadas do
seu dinheiro, compreendemos o que ele pensa. Bannon é quem dá as caras
pelas ideias que Mercer financia.
É por isso que vale a pena parar e prestar atenção na trajetória do homem
que esteve por trás das campanhas — de sucesso, em geral — não só de
Trump, como também do Brexit no Reino Unido, de Jair Bolsonaro no Brasil,
de Viktor Orbán na Hungria, de Matteo Salvini na Itália, do partido Vox na
Espanha, e de Marine Le Pen na França (que logo em seguida, se recusou a
trabalhar com ele), entre outros. Durante esses anos, fundou O Movimento,
uma organização com o intuito de ajudar os partidos nacionalistas europeus
em suas campanhas políticas. Além disso, como pode ser visto no
documentário Privacidade Hackeada (de Karim Amer e Jehane Noujaim,
2019), colaborou com a campanha de Mauricio Macri na Argentina,
e trabalhou para Guo Wengui, um exilado chinês bilionário que se opõe ao
regime de seu país.
Não é preciso ser de direita para se indignar junto com ele. É verdade que
Obama abriu uma enorme expectativa de mudança no que diz respeito aos
governos Clinton e Bush — ambos alinhados, apesar de suas diferenças
partidárias, com o poder de Wall Street. Ao aceitar o resgate, ele não quis
nem ousou aproveitar a oportunidade para limitar a voracidade do poder
financeiro. Com seu aval, morreu a esperança de mudar um sistema
financeiro que produz desigualdade, empregos inúteis, endividamento e
frustração na classe trabalhadora daquele país.
Levá-lo a sério
No início deste ano, foi lançado o livro War for Eternity, do etno-músico
Benjamin Teitelbaum, que estuda há anos alguns obscuros pensadores de
direita (antes desse livro, ele escreveu Lions of the North, sobre o
nacionalismo na Escandinávia). Ouvindo Bannon em suas entrevistas,
Teitelbaum chegou numa hipótese: ele, assim como outros pensadores de
direita, é um tradicionalista.
Apesar das afinidades que encontra, Teitelbaum reconhece que, para além
das críticas ao sistema e de uma certa cosmologia, o fio ideológico que une
esses personagens é tênue. Todos os três concordam com a necessidade de
promover nacionalismos locais para produzir uma desintegração dos países
e reverter a globalização materialista e esclarecida que destrói os valores
espirituais tradicionais. Mas, rapidamente, surgem as diferenças: Carvalho,
que praticou o sufismo na juventude, se define como um homem único,
“um filósofo, mas não um discípulo”, e discute fortemente com outro
tradicionalista como Dugin sobre qual país representa melhor o próximo
estágio: o do reino dos filósofos por vir (Rússia ou Estados Unidos). A
sensação é de que a falta de um referencial teórico coerente reduz as
coincidências a pouca coisa — e, pior, permite diferentes interpretações da
atualidade. Seria a China materialista? Ou ainda, como diz Carvalho,
representam os Estados Unidos uma visão materialista do mundo, ou isso
é feito apenas por membros de sua elite exploradora? Seria a classe
trabalhadora daquele país, simples e conservadora, o sujeito histórico
emancipatório que buscam?
A eclosão da tecnopolítica
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Essas linhas permitem traçar algumas respostas sobre o avanço da direita
global, mas ainda há muito a ser respondido. A rejeição de grandes setores
do establishment será suficiente para não considerar esses novos
populismos de direita apenas uma nova “virada” neoliberal? Estes
governos, cuja estratégia consiste em manter as bases de apoio irritadas e
em neutralizar seus adversários, serão sustentáveis? Qual o lugar da
realidade material para minar seus discursos anti-científicos e anti-
iluministas, como exposto pela pandemia? Até agora, a receita foi duplicar
a energia de cada ataque, mas… será que existe um limite? Será que vão
sobreviver ao nível de putrefação social que eles mesmos potencializaram?
E, principalmente: o que virá depois de seus fracassos (cada vez mais
evidentes) em satisfazer as expectativas das bases eleitorais?
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ALT RIGHT, CAPA, CAPITALISMO, DIREITA, RETRO2020-
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