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TATIANA ROQUE - O NEGACIONISMO NO PODER

“Que aquecimento global é esse?”, questionou o deputado federal Eduardo Bolsonaro num
vídeo que gravou para o YouTube em 2018, durante o inverno nos Estados Unidos. Vestindo um
gorro de lã e diante de um cenário tomado pela neve, o filho Zero Três do presidente da República
manifestou seu espanto com o frio, que lhe parecia desmentir a mudança climática alardeada pelos
cientistas e pela imprensa. Concluiu com um conselho para seus seguidores: “Não deixe que o
discurso, principalmente dos globalistas, matéria em cima de matéria, jogando essa mentira para
vocês, que ela reste sedimentada como verdade [sic].”
O raciocínio ignorou que a ocorrência de invernos rigorosos em algumas localidades não é
incompatível com o aumento da temperatura média da superfície do planeta – que está cerca de 1ºC
mais alta do que era antes da Revolução Industrial. A suposta “mentira” denunciada por Eduardo
Bolsonaro é endossada por praticamente todos os pesquisadores que se dedicam à análise do clima
global. Um estudo do geólogo americano James Powell publicado no final do ano passado concluiu
que, dentre os mais de 11 mil artigos científicos publicados sobre mudança climática entre janeiro e
julho de 2019, não havia um único sequer que contestasse que o planeta está ficando mais quente
por causa dos gases de efeito estufa lançados na atmosfera por atividades humanas.
A atitude do deputado reflete a descrença com que o conhecimento científico vem sendo
tratado por alguns setores do governo e da sociedade. Até pouco tempo atrás, quando queríamos
sustentar uma afirmação sem argumentar demais, bastava dizer: “É comprovado cientificamente.”
Mas essa tática já não tem mais a mesma eficácia, pois a confiança na ciência está diminuindo.
Vivemos hoje um clima de ceticismo generalizado, uma descrença nas instituições que favorece a
disseminação de negacionismos, encampados por governos com políticas escancaradamente
anticientíficas. É o caso de Donald Trump, que está tirando os Estados Unidos do Acordo de Paris,
pelo qual quase duzentos países haviam se comprometido em 2015 a tentar conter os prejuízos
causados pelo aquecimento global; e de Jair Bolsonaro, que também comanda um governo contrário
às ações para combater a mudança climática.
Algumas pesquisas confirmam a crise de confiança que atinge, ao mesmo tempo, a ciência e a
política. O fenômeno da pós-verdade – esse momento que atravessamos no qual fatos objetivos têm
menos influência na opinião pública do que crenças pessoais – é um sintoma extremo dessa crise.
Muita gente não enxerga que a ciência, assim como a política, existe para beneficiar a sociedade. E
esse desencanto produz um terreno fértil para movimentos anticiência e teorias da conspiração
(além de fomentar extremismos). A pós-verdade, assim, não designa apenas o uso oportunista da
mentira (embora ele seja frequente). O termo sinaliza, acima de tudo, um ceticismo quanto aos
benefícios das verdades que costumavam compor um repertório comum, o que explica certo
desprezo por evidências factuais usadas na argumentação científica. Diante disso, contradizer
argumentos falsos exibindo fatos reais pode ter pouca relevância em uma discussão. Evidências e
consensos científicos têm sido facilmente contestados com base em convicções pessoais ou
experiências vividas – como se viu no vídeo de Eduardo Bolsonaro e como se percebe todos os dias
nas redes sociais.
No mundo todo, as pessoas vêm manifestando uma confiança apenas moderada na ciência,
mesmo nas nações mais ricas. Nos países com renda de média para alta – grupo em que o Brasil se
enquadra –, 54% dos habitantes confiam medianamente na ciência. O resultado foi obtido pelo
Wellcome Global Monitor, um levantamento britânico de 2018 que investigou como a população de
mais de 140 países se posiciona em relação a questões de ciência e saúde.
O resultado mais interessante é a correlação entre a desconfiança na ciência e o descrédito de
outras instituições: quem duvida do conhecimento científico geralmente desconfia também dos
governos, das Forças Armadas ou da Justiça. Além disso, pesa bastante o modo como a população
percebe o impacto dos resultados científicos em sua vida cotidiana: pessoas que afirmam ter uma
existência confortável confiam mais na ciência do que aquelas que se dizem em dificuldades.
Obviamente, a exposição à ciência durante o percurso escolar e o acesso aos meios de
comunicação são determinantes para gerar confiança no conhecimento científico. Mas fatores como
a distribuição de renda também entram na equação: sociedades mais desiguais tendem a desconfiar
mais da ciência.
Você acha que a ciência o beneficia pessoalmente ou beneficia a maioria da sociedade? Quem
respondeu “não” foi classificado como “cético”. No Brasil, esse grupo representa 23% da população.
Um resultado alarmante, em sintonia com a média da América do Sul, onde dois em cada cinco
habitantes percebem uma desconexão entre ciência e sociedade – e isso independentemente de
sua faixa de renda. Em nosso continente, a taxa de confiança nas instituições é bem menor do que
em outras partes do mundo, o que se reflete num maior descrédito na ciência, em hospitais e
clínicas médicas.
Mesmo em países de renda alta, pessoas que dizem ter uma vida difícil têm probabilidade três
vezes maior de serem céticas do que aquelas que alegam viver em condições confortáveis. Ou seja,
a atitude das pessoas em relação à ciência parece estar ligada aos benefícios tangíveis em suas
vidas cotidianas. E o ceticismo é estimulado pela percepção de uma distância entre os resultados da
ciência e os problemas enfrentados no dia a dia. Esse é o alerta mais importante, tanto para
cientistas quanto para políticos.
A ciência e a tecnologia vão aumentar o número de empregos na sua localidade? “Não, de jeito
nenhum” foi a resposta de 42% dos mil brasileiros pessoalmente entrevistados durante a pesquisa,
resultado que ajuda a explicar a desconfiança. Mesmo que uma parcela de igual tamanho tenha dito
que a ciência e a tecnologia podem criar empregos, é significativa a descrença de que trarão
soluções para demandas urgentes.
O fundamentalismo religioso tem inquietado o meio intelectual. Com razão, pois 75% dos
entrevistados dizem que, quando a ciência discorda de sua religião, seguem a orientação religiosa.
Essa tendência é influenciada pela importância crescente da religião na vida cotidiana de muitas
pessoas. O pertencimento à comunidade religiosa gera confiança, fazendo com que pastores,
padres ou irmãos de fé sejam mais ouvidos do que figuras públicas, políticos ou cientistas.
A pesquisa mostrou ainda que um terço dos brasileiros não confia muito nos funcionários das
organizações não governamentais, sendo que quase metade da população confia apenas em alguns
deles. Nos últimos meses, o presidente Jair Bolsonaro e seus ministros atacaram frontalmente as
ONGs, principalmente as que atuam na área ambiental, insinuando que poderiam estar por trás das
queimadas na Amazônia ou do derramamento de óleo que atingiu as praias do Nordeste. A
desconfiança nas ONGs ajuda a entender por que essas alegações sem fundamento não motivaram
grande indignação junto à sociedade.
No meio de tantas notícias ruins, um resultado positivo: 80% dos brasileiros acham que as
vacinas são seguras. Uma explicação possível é o sucesso das políticas públicas de vacinação, ao
menos até 2018. É apenas um palpite, mas ações governamentais bem-sucedidas podem estar
conseguindo convencer a população de que instituições, governos e cientistas, nesse caso,
trabalham em prol do bem-estar da sociedade. Ainda assim, não podemos baixar a guarda: nos
últimos anos, o índice de cobertura vacinal contra várias doenças vem caindo, e o sarampo, que
havia sido erradicado do Brasil no passado, voltou em 2019. Ainda falta compreender melhor os
fatores por trás desse fenômeno, mas ele talvez indique que movimentos antivacina estejam, neste
exato momento, conquistando mais adeptos.
Uma lição a ser tirada dos dados é que precisamos de mais diálogo, melhores estratégias de
convencimento e iniciativas de divulgação científica abertas à autocrítica. Não basta defender a
ciência a partir de posições de autoridade, calcadas na superioridade ou na neutralidade do saber
científico. Sustentar uma verdade afirmando apenas que “é comprovada cientificamente” pode
reforçar a indiferença ou mesmo gerar irritação.
Talvez o efeito mais deletério da crise de confiança seja o de abrir espaço para o negacionismo
climático. Coincidência ou não, a desconfiança atinge a ciência em um momento crítico, quando se
torna urgente ampliar a mobilização social em torno da agenda ambiental. Se quisermos cumprir o
objetivo do Acordo de Paris de limitar o aquecimento do planeta a 1,5ºC ou no máximo 2ºC em
relação ao período pré-industrial, temos que agir com firmeza desde já.
Admitir a verdade científica sobre a causa humana do aquecimento global implica em
transformações radicais na economia e na política, o que exige rever atitudes cristalizadas em
nossos modos de vida. Hábitos de consumo e locomoção, padrões alimentares, perspectivas de
futuro para os filhos, tudo isso precisa mudar. Como convencer as pessoas de que algum sacrifício
vale a pena sem oferecer a elas garantias de que todas essas mudanças poderão criar um mundo
melhor? Sem enxergar benefícios tangíveis em suas vidas cotidianas, aqui e agora, as pessoas
provavelmente continuarão desconfiadas. E a negação pode se tornar uma alternativa tentadora.
Sobretudo porque o negacionismo não se apresenta como tal, e sim travestido de “polêmica”.
Há três décadas, uma ação concertada de organizações negacionistas tenta contestar
verdades produzidas pela ciência do clima. Em outubro de 2019, a House of Representatives – o
equivalente à Câmara dos Deputados nos Estados Unidos – instalou uma comissão para investigar
campanhas que visavam desacreditar afirmações científicas sobre o aquecimento global, bancadas
pela indústria do petróleo. Por mais expressivos que sejam os recursos investidos nessas
campanhas, seu alcance não pode ser explicado exclusivamente pelos interesses econômicos e
políticos dos responsáveis. Talvez apenas hoje possamos medir os efeitos do novo tipo de
propaganda inventado na época.
Os “mercadores da dúvida” começaram a agir nos anos 1990, quando se consolidava o
consenso sobre o papel do dióxido de carbono e outros gases de origem humana no agravamento
do efeito estufa (o termo vem de Merchants of Doubt, um livro essencial sobre o negacionismo
climático lançado em 2010 por Naomi Oreskes e Erik M. Conway e sem edição brasileira – a obra
inspirou também um documentário homônimo). Naquela década, publicavam-se pesquisas
confirmando o alarme e reuniões mundiais buscavam soluções comuns (como a Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Eco-92, realizada no Rio de Janeiro).
Essas iniciativas geraram fatos políticos inéditos, produzindo convergência entre adversários –
incluindo democratas e republicanos, nos Estados Unidos – em torno da necessidade de combater
as causas do aquecimento global.
O consenso incomodava principalmente um setor: as empresas de petróleo, maiores
responsáveis pelo efeito estufa. Essas empresas não deixaram barato e adotaram a única estratégia
possível para frear o consenso científico que se consolidava: semear a dúvida. O mesmo tipo de
propaganda já tinha sido usado pela indústria do cigarro, nos anos 1950, ao tentar disfarçar como
polêmica o consenso científico sobre as doenças causadas pelo tabaco. Como era impossível negar
o aquecimento global antrópico, a única saída era travesti-lo de controvérsia. Profissionais treinados
para polemizar com cientistas conseguiram espaço na mídia, explorando o condicionamento dos
jornalistas a “ouvir os dois lados” envolvidos em questões contenciosas. De verdade inconveniente,
o aquecimento global antrópico acabou associado na opinião pública a uma “controvérsia” que
nunca houve entre os climatologistas.
O debate não era honesto, pois tais campanhas difamavam lideranças da causa ambiental e
autores de estudos sérios sobre o efeito estufa, que chegaram a ter suas vidas devastadas. Nesse
contexto, surgiu a alcunha de “melancia” para acusar ambientalistas de serem “verdes por fora e
vermelhos por dentro”. A brincadeira não foi inócua: de modo jocoso, disseminou-se a acusação de
que ecologistas famosos eram, no fundo, comunistas disfarçados. A suspeita fez com que alguns
cientistas verdadeiros – especialistas em áreas distantes da climatologia, mas engajados na missão
anticomunista – aderissem ao negacionismo climático. Eram poucos, mas ajudaram a legitimar a
comunidade dos autodenominados “céticos do clima”. Disseminava-se um argumento similar ao que
tem sido defendido por Jair Bolsonaro: sob o disfarce das causas verdes, haveria um complô
internacional para diminuir a liberdade de escolha dos cidadãos e o poder de empresas que os
beneficiam, pois produzem riquezas e garantem uma posição soberana para o país. No Brasil de
hoje, supostos integrantes desse complô ganharam o apelido de “globalistas”.
É impressionante o número de ingredientes da atual crise da verdade que já estavam
presentes na estratégia dos mercadores da dúvida: falsa simetria na argumentação científica (“ouvir
os dois lados”); acusação de complô comunista; proliferação de think tanks para diminuir o poder de
universidades e centros científicos legítimos; teorias conspiratórias; formação de especialistas por
meio do manejo de mídias alternativas. Nem sempre a atuação dos negacionistas teve sucesso. Na
Wikipédia, “aquecimento global” e “mudanças climáticas” alinham-se hoje com os termos
estabelecidos pela ciência. Ainda assim, na versão em português houve editores que tentaram
apresentar o consenso como controvérsia, o que ainda se nota em verbetes menos acessados,
conforme mostrou um estudo feito por Bernardo Esteves, repórter da piauí, e Henrique Cukierman,
pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Seria exagero dizer que movimentos anticientíficos estejam ganhando o debate. Mas seria
autoengano, por outro lado, negligenciar o quanto eles têm minado consensos sobre agendas e
políticas públicas. Embora venha sendo fomentado há tempos, o negacionismo ganhou espaço
inédito em governos de extrema direita ao redor do mundo. Obviamente, o caráter oficial amplifica
seu poder de convencimento. Só que esses governos contam com um apoio razoável da população,
que parece não se incomodar com afirmações e atitudes flagrantemente anticientíficas de seus
líderes.
O caso do Brasil é exemplar. Uma pesquisa do Datafolha divulgada em dezembro passado
mostra que Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente que não considera o aquecimento global um
problema prioritário para sua pasta, é considerado ótimo ou bom por 27% dos entrevistados, e
regular por 38%. Os números são altos, principalmente depois das queimadas na Amazônia e do
vazamento de óleo em nossa costa, sem nenhum plano de contenção à altura. No geral, mantém-se
um patamar razoável de aprovação a ministros caricatos, que nos surpreendem a cada dia com
declarações absurdas.
A crise de confiança pode ajudar a explicar a indiferença dessa parcela da população em
relação à veracidade das declarações de quadros do governo. Não é que tantas pessoas acreditem
no que eles dizem, é que boa parte delas não se importa. A fragilização do tecido social e das
instituições abre espaço para um ceticismo generalizado, que se traduz em rejeição ao “sistema”
como um todo. É nesse terreno fértil que atitudes negacionistas podem proliferar e conquistar mais
apoio. Lideranças conservadoras garantem poder político dialogando com o sentimento de deboche
que acompanha o ceticismo. Mas, além da descrença, o cético se caracteriza por uma predisposição
constante para a dúvida. Assim, a estratégia torna-se ainda mais eficaz quando posicionamentos
políticos aparecem disfarçados como “controvérsias”. Há uma ironia nesse fenômeno, pois o
“ceticismo” produzido artificialmente, mero eufemismo usado pelos negacionistas, pode se
disseminar mais facilmente ao repercutir um ceticismo real. No caso do meio ambiente, as
consequências de não interromper desde já a ampliação da esfera de influência de opiniões
anticientíficas, mesmo quando parecem apenas suscitar dúvidas, são especialmente preocupantes,
pois serão irreversíveis.
No Brasil, é mais do que óbvio que a ascensão da extrema direita tem relação direta com o
negacionismo climático, alçado à política de Estado por Jair Bolsonaro. Não faltam exemplos de
ações que corroboram esse diagnóstico. Durante a campanha, Bolsonaro prometeu tirar o Brasil do
Acordo de Paris, a exemplo do que Trump fizera nos Estados Unidos, com base no temor tão
antiquado quanto infundado de internacionalização da Amazônia. O presidente voltou atrás dessa
decisão, mas nomeou um ministro do Meio Ambiente que flerta com think tanks negacionistas norte-
americanos e um chanceler que considera o aquecimento global (ou “climatismo”, como ele prefere
dizer) um complô de inspiração marxista. Em agosto, o presidente pediu a cabeça de Ricardo
Galvão, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por divulgar dados corretos
sobre a explosão do desmatamento na Amazônia – no fim do ano, o anúncio da taxa anual
divulgada pelo próprio Inpe deu razão a Galvão, com um aumento de quase 30%, o maior registrado
neste século. O negacionismo não se restringiu à Esplanada dos Ministérios: em 2019,
parlamentares da base de apoio de Bolsonaro convocaram para uma audiência no Senado
pesquisadores que contestam o aquecimento global antrópico, embora não tenham trabalhos
relevantes publicados sobre o tema e nem sejam reconhecidos como autoridade por especialistas.
Se em países como Estados Unidos, Austrália e Reino Unido o negacionismo climático é
alimentado por agentes financiados pela indústria dos combustíveis fósseis, no Brasil é
principalmente o agronegócio que ajuda a disseminar as contestações à ciência do clima. Trata-se
justamente do setor econômico que mais contribui para o aquecimento global em nosso país: juntos,
o desmatamento e a agropecuária que se instala nas terras destituídas de sua cobertura vegetal
respondem por dois terços de todos os gases do efeito estufa emitidos pelo Brasil.
O agrônomo Evaristo de Miranda, chefe da Embrapa Territorial, conseguiu espalhar o
argumento falso de que a extensão da floresta deixa pouco espaço para a agropecuária. Unidades
de conservação, áreas indígenas, assentamentos de reforma agrária e florestas preservadas em
imóveis rurais inviabilizariam o desenvolvimento nacional. Além disso, pitadas conspiratórias tornam
seu argumento sedutor: a agenda ambiental vigente seria parte de um plano de países
desenvolvidos para expandir suas próprias economias agrícolas, bloqueando o potencial competitivo
do Brasil nesse setor. As inverdades na argumentação de Miranda já foram amplamente
denunciadas (veja, por exemplo, o vídeo Fatos Florestais, produzido pelo Observatório do Clima).
Ainda assim, o pesquisador da Embrapa tornou-se o braço direito de Jair Bolsonaro e conselheiro
intelectual de Ricardo Salles, que aceitou o posto de ministro depois que o próprio Miranda declinou
o convite para ocupá-lo.
Luiz Carlos Molion, meteorologista aposentado da Universidade Federal de Alagoas e um dos
mais conhecidos negacionistas brasileiros, no ano passado fez uma série de palestras sobre a
Amazônia e o clima global promovida pelo senador Marcio Bittar (MDB-AC), que também o convidou
para falar no Senado. Bittar é o mesmo que propôs, junto com o senador Flavio Bolsonaro, o filho
Zero Um do presidente, um projeto de lei para acabar com a reserva legal prevista no Código
Florestal – a área das propriedades rurais que os produtores são obrigados a manter preservada (o
projeto foi retirado pelos proponentes meses depois). Molion se vale de mentiras há muito
desacreditadas pela ciência do clima – como a de que o aquecimento é provocado por fatores
naturais como os ciclos da atividade solar –, que o público leigo não detecta por serem apresentadas
com verniz científico, amparadas por gráficos e jargões técnicos.
Outro negacionista conhecido no Brasil, o geógrafo Ricardo Felicio, da Universidade de São
Paulo, ganhou popularidade com uma entrevista que deu em 2012 a Jô Soares, que não contestou
seus disparates sobre a mudança climática. Hoje Felicio defende, em diversos veículos da imprensa,
que o aquecimento global é uma discussão meramente ideológica. Em 2018, o professor da USP se
candidatou à Câmara dos Deputados pelo PSL, mas não se elegeu.
Jair Bolsonaro, seus ministros e sua base de apoio no Congresso reforçam, a cada dia, o poder
dessa rede de conselheiros, com papel essencial na conquista de um público amplo que endosse
escolhas políticas desastrosas.
Todo esse plano pode parecer invencível se olharmos apenas para o lado conspiratório. Vale a
pena lembrar, porém, que estratégias apoiadas no ceticismo frutificam em um tecido social
desgastado. Não fosse isso, mesmo com dinheiro, think tanks, falsos cientistas, robôs ou
influenciadores digitais treinados, a repercussão poderia ser mais restrita. A prova é que esses
“cientistas” negacionistas já atuam há tempos, mas não causavam tanto estrago. O pulo do gato da
extrema direita foi vampirizar a desconfiança de parte considerável da opinião pública para legitimar
governantes com posições anticientíficas e inserir o negacionismo na máquina estatal.
Como agir diante disso? Antes de tudo, é importante notar que o desinteresse é o problema
principal. Não existe – ainda? – uma adesão maciça ao anticientificismo: as pessoas querem ser
mais ouvidas e ter suas razões consideradas. Por isso, é um péssimo começo de conversa apontar
a ignorância ou a crença religiosa como culpadas pela crise da verdade.
Uma pesquisa feita no Brasil em 2019 indica que a ciência ainda tem crédito junto à população,
mas a desconfiança está aumentando. O Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, órgão do
Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, comparou a opinião de diferentes
estratos sociais, analisando também sua evolução no tempo.
A ciência e a tecnologia trazem mais malefícios ou benefícios para a humanidade? Somando
as pessoas que responderam “só benefícios” com as que disseram “mais benefícios do que
malefícios”, o total é de 72%. E esse percentual não muda significativamente quando focamos nos
estratos de rendas mais baixas. No entanto, mesmo que seja importante manter algum otimismo,
não podemos relaxar. Entre 2015 e 2019, o percentual de “só benefícios” caiu muito (de 53% para
30%), ao mesmo tempo em que aumentou o percentual dos que dizem trazer “mais benefícios do
que malefícios” (de 19% para 41%). Há um dado importante que desestabiliza explicações fáceis
baseadas apenas na renda: na faixa dos que ganham mais de dez salários-mínimos, a queda do
entusiasmo é ainda mais perceptível. A visão positiva ainda é expressa por 77% das pessoas nesse
estrato, mas o percentual dos que enxergam só benefícios caiu de 61%, em 2015, para 26%, em
2019. No mesmo período, a dúvida – contida na expressão “mais benefícios do que malefícios” –
aumentou de 24% para 51%. Ou seja, a desconfiança não chega a ser majoritária, mas o ceticismo
se insinua, independentemente do estrato social dos entrevistados.
Será que os brasileiros se sentem contemplados pelo modo como são tomadas as decisões
sobre ciência e tecnologia? Parece que nem tanto. É praticamente consensual, em todas as faixas
de renda, a reivindicação de que a população seja ouvida quanto aos rumos da ciência e da
tecnologia. A proporção dos que concordam totalmente com essa afirmação, somada a dos que
concordam em parte, chega a 83%.
Atender a uma demanda como essa não é simples. Nos meios acadêmicos, aumenta a
consciência de que pesquisadores devem se comunicar melhor e fazer mais divulgação científica. É
um ótimo começo, porém a população parece querer também participar das decisões. Mas como
tornar democráticas escolhas sobre temas complexos abordados na ciência? Lidar com evidências,
manejar dados e experimentos, dominar bibliografias e estabelecer colaborações são ingredientes
da prática científica que exigem treino, protocolo e dedicação. Por isso, é difícil compartilhar todos
esses processos com não iniciados. Simplificando as coisas, o desejo de participação, expresso na
pesquisa, pode não ser o de opinar em todas as etapas da produção científica. Talvez reflita uma
demanda por mais informação a respeito das consequências das escolhas dos cientistas, permitindo
a um público mais amplo interferir na avaliação de prioridades.
A reivindicação por mais participação nas decisões é um indício de que a desconfiança na
ciência está ligada à crise da democracia. Durante muito tempo, cientistas tiveram uma espécie de
carta branca para enunciar verdades a partir de métodos aos quais poucos têm acesso. É como se
existisse um acordo tácito: “Acreditem, pois possuímos os atributos necessários para a realização de
verificações consistentes.” Esse acordo não está mais funcionando, ao menos não como antes.
Ocorre algo similar com diferentes profissionais da verdade, cujas afirmações costumavam ser
legitimadas a priori, com base na autoridade para lidar com informações não acessíveis a todos.
Além de cientistas, jornalistas, intelectuais, professores e experts têm sido questionados, dificultando
sua atuação como mediadores entre o poder político e o público em geral. Intermediários sempre
tiveram um papel importante no sistema de pesos e contrapesos que faz com que a democracia
funcione, o que vai além dos momentos eleitorais.
Atualmente, lideranças desprovidas de qualquer credencial técnica ou acadêmica reivindicam
autoridade para enunciar verdades, pois o contato direto com o público, favorecido pelas redes
sociais, dispensa mediações. É assim que novos formadores de opinião conquistam seguidores e
disputam a prerrogativa de influenciar o poder público. No Brasil, como vimos, chegam a participar
ativamente do governo.
Disputar espaço com esses novos atores usando diplomas ou reconhecimento acadêmico não
parece a melhor estratégia. A fragilização da democracia decorre também da descrença em
soluções tecnocráticas, vistas como elitistas e pouco permeáveis à opinião das pessoas comuns.
Portanto, reafirmar verdades científicas a partir de posições de autoridade pode ser um tiro no pé.
O desafio de fazer mais e melhor divulgação científica ganha relevância estratégica em tempos
de emergência climática. Entender que há uma desconfiança legítima – que atinge boa parte da
população – é essencial para acolher as dúvidas e iniciar uma conversa com quem ainda não se
mobiliza pela questão ambiental. O diagnóstico da crise mundial de confiança na ciência, discutido
no início deste artigo a partir da pesquisa Wellcome Global Monitor, não menciona as mudanças
climáticas. Contudo, os resultados fornecem pistas valiosas sobre os caminhos a seguir. Insistir
apenas na reafirmação do consenso científico sobre o aquecimento global antrópico é insuficiente.
Ao fragilizar a imagem da ciência – vista como pouco dedicada a obter benefícios para os problemas
cotidianos dos cidadãos –, a desconfiança gera dificuldades para a agenda climática.
Depois de décadas realizando encontros e participando ativamente da costura de acordos
internacionais pelo clima, é preocupante que a causa ambiental não seja popular no Brasil. Culpar
os atuais governantes não basta. O desinteresse de governos, mesmo progressistas, em relação ao
tema reflete a indiferença da maior parte da população, confirmada pela ausência desse debate nas
campanhas eleitorais. Não é por falta de conhecimento científico que a agenda ambiental não
mobiliza os brasileiros. Mesmo entre as organizações que lutam há tempos pela preservação do
meio ambiente, nota-se uma dificuldade de tornar essa pauta mais abrangente.
Medidas para evitar o colapso climático precisam ser vinculadas a valores mais amplos do que
a preservação da vida no planeta. É essencial que essa agenda consiga apontar saídas para as
aflições do presente: só assim poderá ser vista como uma aposta interessante. O papa Francisco,
cujo pontificado tem sido marcado pela preocupação ambiental, tem um diagnóstico elucidativo
sobre a anestesia que envolve o tema: “Este comportamento evasivo serve-nos para mantermos os
nossos estilos de vida, de produção e consumo”, escreveu Francisco em Laudato Si’, sua encíclica
de 2015 dedicada à causa ambiental. “É a forma como o ser humano se organiza para alimentar
todos os vícios autodestrutivos: tenta não os ver, luta para não os reconhecer, adia as decisões
importantes, age como se nada tivesse acontecido.”
Talvez a ofensiva da extrema direita abra caminho para ações mais efetivas também dos
setores da sociedade que não se alinham com o governo. Estratégias de divulgação científica,
especialmente no caso da mudança climática, precisam partir de novas premissas e abordagens,
abertas à constituição de uma imagem da ciência distinta daquela que habitou nosso imaginário
durante as últimas décadas. Em outros momentos históricos, a ciência não adquiriu legitimidade de
modo automático. A percepção dos benefícios científicos e tecnológicos ajudou a moldar a relação
do público com os cientistas. O século XX, por exemplo, com suas bombas atômicas e naves
espaciais, associou à ciência uma imagem de força e poder – inicialmente destrutivo, mas logo
associado à promessa de um futuro melhor. Já a climatologia tem uma natureza bem distinta, pois
lida com simulações de cenários pessimistas para as próximas décadas, construídas por modelos
diversos e dependentes de muitas variáveis. Além de ser uma área recente.
O climatologista francês Hervé Le Treut admite que o negacionismo climático desenvolveu-se a
partir de fragilidades reais da ciência do clima. “Digamos que a ciência, porque segue uma ética – o
que também é sua força –, é fácil de contestar”, afirmou o pesquisador em setembro passado ao
jornal francês Le 1. Ou seja, a ciência só afirma algo quando tem certeza absoluta, e a climatologia
levou alguns anos para obter resultados seguros. Enquanto havia apenas presunção das mudanças
climáticas antrópicas, os cientistas foram cautelosos em suas afirmações, o que é correto, mas tal
atitude abriu espaço para a ação dos negacionistas. Mais tarde, entre o final dos anos 1990 e início
dos 2000, quando as provas já eram robustas, não foram suficientes para “convencer atores que não
queriam ser convencidos”.
A maior riqueza da ciência não são as certezas produzidas ao fim do processo de investigação,
e sim o modo qualificado de tratar as dúvidas durante esse processo. Ser cético é o que se exige de
todo cientista. Por isso, “ceticismo” é um termo desvirtuado para designar os negacionistas, e a
ciência precisa reivindicá-lo. Incertezas, perguntas, problemas e questões em aberto são matérias-
primas da ciência e podem ser usadas para valorizar o ceticismo. Faz falta, contudo, explicitar
melhor os processos que permitem à ciência extrair, das dúvidas iniciais, algumas certezas.
Em novo livro publicado no final de 2019, Why Trust Science? (Por que confiar na ciência?),
sem edição em português, Naomi Oreskes sugere que a confiança na ciência deve ser
reconquistada por seu caráter consensual, mais do que por sua autoridade. O método científico e as
evidências empíricas são insuficientes: cientistas se autocriticam e criticam uns aos outros antes de
tirar conclusões. Por isso, o grau de diversidade e de abertura de uma comunidade é essencial para
garantir a confiabilidade do conhecimento obtido. A capacidade de se autocorrigir depende do
trabalho coletivo e da possibilidade de desenvolver experiências e simulações reprodutíveis em
culturas e contextos diversos. Esses atributos diminuem o peso da autoridade e podem ajudar a
mobilizar mais pessoas para apreciar a ciência do clima, para além da comunidade de iniciados.
Ao mesmo tempo, será necessário reforçar os desdobramentos políticos ligados à agenda
ambiental. No fim das contas, é preciso que as pessoas efetivamente se importem com o colapso
climático para que considerem modificar seus modos de vida, mas também para que vislumbrem
desde já algum ganho que compense o esforço. Como a vida não está nada boa para a maioria das
pessoas, não parece impossível convencê-las de que vale a pena uma aposta inovadora. Momentos
de crise podem suscitar novos arranjos políticos que tenham impacto no presente e ajudem a lidar
com os desafios que temos diante de nós. Ações coletivas podem ser mais eficazes do que certezas
e verdades contra o negacionismo. Por isso, estratégias científicas e políticas precisam andar de
mãos dadas.

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-negacionismo-no-poder/
Tatiana Roque
É professora de matemática, história das ciências e filosofia da UFRJ, e coordenadora do
Fórum de Ciência e Cultura. Também é filiada ao Psol

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