Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Mesmo em países de renda alta, pessoas que dizem ter uma vida difícil têm
probabilidade três vezes maior de serem céticas do que aquelas que alegam viver
em condições confortáveis. Ou seja, a atitude das pessoas em relação à ciência
parece estar ligada aos benefícios tangíveis em suas vidas cotidianas. E o ceticismo
é estimulado pela percepção de uma distância entre os resultados da ciência e os
problemas enfrentados no dia a dia. Esse é o alerta mais importante, tanto para
cientistas quanto para políticos.
No meio de tantas notícias ruins, um resultado positivo: 80% dos brasileiros acham
que as vacinas são seguras. Uma explicação possível é o sucesso das políticas
públicas de vacinação, ao menos até 2018. É apenas um palpite, mas ações
governamentais bem-sucedidas podem estar conseguindo convencer a população
de que instituições, governos e cientistas, nesse caso, trabalham em prol do bem-
estar da sociedade. Ainda assim, não podemos baixar a guarda: nos últimos anos, o
índice de cobertura vacinal contra várias doenças vem caindo, e o sarampo, que
havia sido erradicado do Brasil no passado, voltou em 2019. Ainda falta
compreender melhor os fatores por trás desse fenômeno, mas ele talvez indique
que movimentos antivacina estejam, neste exato momento, conquistando mais
adeptos.
Uma lição a ser tirada dos dados é que precisamos de mais diálogo, melhores
estratégias de convencimento e iniciativas de divulgação científica abertas à
autocrítica. Não basta defender a ciência a partir de posições de autoridade,
calcadas na superioridade ou na neutralidade do saber científico. Sustentar uma
verdade afirmando apenas que “é comprovada cientificamente” pode reforçar a
indiferença ou mesmo gerar irritação.
Talvez o efeito mais deletério da crise de confiança seja o de abrir espaço para o
negacionismo climático. Coincidência ou não, a desconfiança atinge a ciência em
um momento crítico, quando se torna urgente ampliar a mobilização social em
torno da agenda ambiental. Se quisermos cumprir o objetivo do Acordo de Paris de
limitar o aquecimento do planeta a 1,5ºC ou no máximo 2ºC em relação ao período
pré-industrial, temos que agir com firmeza desde já.
O debate não era honesto, pois tais campanhas difamavam lideranças da causa
ambiental e autores de estudos sérios sobre o efeito estufa, que chegaram a ter suas
vidas devastadas. Nesse contexto, surgiu a alcunha de “melancia” para acusar
ambientalistas de serem “verdes por fora e vermelhos por dentro”. A brincadeira
não foi inócua: de modo jocoso, disseminou-se a acusação de que ecologistas
famosos eram, no fundo, comunistas disfarçados. A suspeita fez com que alguns
cientistas verdadeiros – especialistas em áreas distantes da climatologia, mas
engajados na missão anticomunista – aderissem ao negacionismo climático. Eram
poucos, mas ajudaram a legitimar a comunidade dos autodenominados “céticos do
clima”. Disseminava-se um argumento similar ao que tem sido defendido por Jair
Bolsonaro: sob o disfarce das causas verdes, haveria um complô internacional para
diminuir a liberdade de escolha dos cidadãos e o poder de empresas que os
beneficiam, pois produzem riquezas e garantem uma posição soberana para o país.
No Brasil de hoje, supostos integrantes desse complô ganharam o apelido de
“globalistas”.
No Brasil, é mais do que óbvio que a ascensão da extrema direita tem relação
direta com o negacionismo climático, alçado a política de Estado por Jair
Bolsonaro. Não faltam exemplos de ações que corroboram esse diagnóstico.
Durante a campanha, Bolsonaro prometeu tirar o Brasil do Acordo de Paris, a
exemplo do que Trump fizera nos Estados Unidos, com base no temor tão
antiquado quanto infundado de internacionalização da Amazônia. O presidente
voltou atrás dessa decisão, mas nomeou um ministro do Meio Ambiente que flerta
com think tanks negacionistas norte-americanos e um chanceler que considera o
aquecimento global (ou “climatismo”, como ele prefere dizer) um complô de
inspiração marxista. Em agosto, o presidente pediu a cabeça de Ricardo Galvão,
diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por divulgar dados
corretos sobre a explosão do desmatamento na Amazônia – no fim do ano, o
anúncio da taxa anual divulgada pelo próprio Inpe deu razão a Galvão, com um
aumento de quase 30%, o maior registrado neste século. O negacionismo não se
restringiu à Esplanada dos Ministérios: em 2019, parlamentares da base de apoio
de Bolsonaro convocaram para uma audiência no Senado pesquisadores que
contestam o aquecimento global antrópico, embora não tenham trabalhos
relevantes publicados sobre o tema e nem sejam reconhecidos como autoridade por
especialistas.
Jair Bolsonaro, seus ministros e sua base de apoio no Congresso reforçam, a cada
dia, o poder dessa rede de conselheiros, com papel essencial na conquista de um
público amplo que endosse escolhas políticas desastrosas.
Todo esse plano pode parecer invencível se olharmos apenas para o lado
conspiratório. Vale a pena lembrar, porém, que estratégias apoiadas no ceticismo
frutificam em um tecido social desgastado. Não fosse isso, mesmo com dinheiro,
think tanks, falsos cientistas, robôs ou influenciadores digitais treinados, a
repercussão poderia ser mais restrita. A prova é que esses “cientistas”
negacionistas já atuam há tempos, mas não causavam tanto estrago. O pulo do gato
da extrema direita foi vampirizar a desconfiança de parte considerável da opinião
pública para legitimar governantes com posições anticientíficas e inserir o
negacionismo na máquina estatal.
Como agir diante disso? Antes de tudo, é importante notar que o desinteresse é o
problema principal. Não existe – ainda? – uma adesão maciça ao anticientificismo:
as pessoas querem ser mais ouvidas e ter suas razões consideradas. Por isso, é um
péssimo começo de conversa apontar a ignorância ou a crença religiosa como
culpadas pela crise da verdade.
Uma pesquisa feita no Brasil em 2019 indica que a ciência ainda tem crédito junto
à população, mas a desconfiança está aumentando. O Centro de Gestão e Estudos
Estratégicos, órgão do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e
Comunicações, comparou a opinião de diferentes estratos sociais, analisando
também sua evolução no tempo.
Será que os brasileiros se sentem contemplados pelo modo como são tomadas as
decisões sobre ciência e tecnologia? Parece que nem tanto. É praticamente
consensual, em todas as faixas de renda, a reivindicação de que a população seja
ouvida quanto aos rumos da ciência e da tecnologia. A proporção dos que
concordam totalmente com essa afirmação, somada a dos que concordam em parte,
chega a 83%.
Atender a uma demanda como essa não é simples. Nos meios acadêmicos, aumenta
a consciência de que pesquisadores devem se comunicar melhor e fazer mais
divulgação científica. É um ótimo começo, porém a população parece querer
também participar das decisões. Mas como tornar democráticas escolhas sobre
temas complexos abordados na ciência? Lidar com evidências, manejar dados e
experimentos, dominar bibliografias e estabelecer colaborações são ingredientes da
prática científica que exigem treino, protocolo e dedicação. Por isso, é difícil
compartilhar todos esses processos com não iniciados. Simplificando as coisas, o
desejo de participação, expresso na pesquisa, pode não ser o de opinar em todas as
etapas da produção científica. Talvez reflita uma demanda por mais informação a
respeito das consequências das escolhas dos cientistas, permitindo a um público
mais amplo interferir na avaliação de prioridades.
Medidas para evitar o colapso climático precisam ser vinculadas a valores mais
amplos do que a preservação da vida no planeta. É essencial que essa agenda
consiga apontar saídas para as aflições do presente: só assim poderá ser vista como
uma aposta interessante. O papa Francisco, cujo pontificado tem sido marcado pela
preocupação ambiental, tem um diagnóstico elucidativo sobre a anestesia que
envolve o tema: “Este comportamento evasivo serve-nos para mantermos os
nossos estilos de vida, de produção e consumo”, escreveu Francisco em Laudato
Si’, sua encíclica de 2015 dedicada à causa ambiental. “É a forma como o ser
humano se organiza para alimentar todos os vícios autodestrutivos: tenta não os
ver, luta para não os reconhecer, adia as decisões importantes, age como se nada
tivesse acontecido.”
Talvez a ofensiva da extrema direita abra caminho para ações mais efetivas
também dos setores da sociedade que não se alinham com o governo. Estratégias
de divulgação científica, especialmente no caso da mudança climática, precisam
partir de novas premissas e abordagens, abertas à constituição de uma imagem da
ciência distinta daquela que habitou nosso imaginário durante as últimas décadas.
Em outros momentos históricos, a ciência não adquiriu legitimidade de modo
automático. A percepção dos benefícios científicos e tecnológicos ajudou a moldar
a relação do público com os cientistas. O século XX, por exemplo, com suas
bombas atômicas e naves espaciais, associou à ciência uma imagem de força e
poder – inicialmente destrutivo, mas logo associado à promessa de um futuro
melhor. Já a climatologia tem uma natureza bem distinta, pois lida com simulações
de cenários pessimistas para as próximas décadas, construídas por modelos
diversos e dependentes de muitas variáveis. Além de ser uma área recente.
Em novo livro publicado no final de 2019, Why Trust Science? (Por que confiar na
ciência?), sem edição em português, Naomi Oreskes sugere que a confiança na
ciência deve ser reconquistada por seu caráter consensual, mais do que por sua
autoridade. O método científico e as evidências empíricas são insuficientes:
cientistas se autocriticam e criticam uns aos outros antes de tirar conclusões. Por
isso, o grau de diversidade e de abertura de uma comunidade é essencial para
garantir a confiabilidade do conhecimento obtido. A capacidade de se autocorrigir
depende do trabalho coletivo e da possibilidade de desenvolver experiências e
simulações reprodutíveis em culturas e contextos diversos. Esses atributos
diminuem o peso da autoridade e podem ajudar a mobilizar mais pessoas para
apreciar a ciência do clima, para além da comunidade de iniciados.