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NEGACIONISMO CIENTÍFICO – REVISTA USP - BITE

A ciência contra o negacionismo A maior parte desse esforço está direcionado para as
Cientistas ganham espaço nas redes sociais, mas ainda é preciso redes sociais, que é por onde transita a maior parte das mentiras,
crescer muito para superar a influência de grupos obscurantistas distorções e teorias conspiratórias em geral. Assim como já fazem
22/01/2021 os políticos, cada vez mais pesquisadores estão aprendendo a
Por Herton Escobar
usar essas plataformas como um canal direto de comunicação
O negacionismo científico e obscurantismo intelectual do com a sociedade, aproveitando-se do dinamismo e da
governo federal tiveram ao menos um efeito colateral positivo: capilaridade delas para desfazer mitos e disseminar informações
um despertar da comunidade científica para a importância da de qualidade para a população, em sincronia com o noticiário.
comunicação com a sociedade. É notável o aumento da
participação de pesquisadores, médicos e acadêmicos na
divulgação da ciência e no combate às fake news no decorrer da
pandemia, tanto pelos meios tradicionais de comunicação
(servindo como fontes de informações confiáveis para a imprensa,
por exemplo), quanto por iniciativas pessoais nas redes sociais.
A negligência no combate à pandemia, a negação das
vacinas e a insistência na promoção de tratamentos
comprovadamente ineficazes contra a covid-19 suscitaram um
verdadeiro levante de pesquisadores e entidades científicas
contra a praga da desinformação que se alastra com
consequências cada vez mais nefastas pelas mídias digitais. Na
ausência de uma campanha oficial de esclarecimento e incentivo
à vacinação por parte das autoridades, diversas universidades,
organizações e entidades médico-científicos lançaram campanhas
próprias sobre o tema nesta semana — num embate semelhante
ao que já vem sendo travado desde 2019 na área ambiental,
frente à negação sistemática de dados científicos sobre
desmatamento e queimadas por parte do governo federal.
“A defesa das vacinas é o nosso último front. Se não Crédito: Marcos Muller / #todospelasvacinas

conseguirmos convencer as pessoas de que as vacinas são O médico e advogado Daniel Dourado é um exemplo
seguras e que elas precisam se vacinar, vai ficar muito difícil disso. Apesar de ter uma conta no Twitter desde julho 2009, até
defender qualquer coisa com base na ciência daqui pra frente”, o início do ano passado ele só usava a plataforma para ler notícias
diz o analista de comunicação João Henrique Rafael Junior, e comentários ligados à sua área de pesquisa (direito sanitário e
membro da União Pró-Vacina (UPVacina), da USP Ribeirão Preto, políticas de saúde). Não postava quase nada e raramente
e um dos organizadores da campanha Todos Pelas Vacinas, interagia com alguém na rede. Quando a pandemia chegou ao
lançada na quarta-feira, 21 de janeiro. Brasil, porém, ele começou a usar o Twitter para divulgar estudos
Num esforço colaborativo que reúne mais de 20 entidades da científicos que estavam saindo sobre o tema; e a atenção que as
comunidade científica e acadêmica, a campanha oferece diversos postagens receberam o surpreendeu.
arquivos de vídeo, áudio e ilustrações sobre vacinas para serem “Percebi que as pessoas estavam totalmente desorientadas, com
compartilhadas nas redes sociais com a hashtag uma fome enorme de conhecimento”, conta Dourado, que é
#todospelasvacinas. Várias celebridades aderiram à iniciativa, pesquisador associado do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário
incluindo o cantor de funk MC Fioti, cujo hit Bum Bum Tam da USP e atualmente faz doutorado na Universidade de Paris.
Tam acabou virando trilha sonora da vacina Coronavac, do Estimulado pelo feedback que estava recebendo, ele começou a
Instituto Buntantan. O vídeo abaixo, publicado com a hashtag da tuitar também sobre outros assuntos ligados à pandemia, e sua
campanha no seu canal esta semana, inclui até uma “entrevista” audiência cresceu. Em maio de 2020, juntou-se a outros
com o pesquisador Daniel Bargieri, professor do Instituto de pesquisadores para formar o Infovid, um grupo de especialistas
Ciências Biomédicas (ICB) e coordenador do Núcleo de Pesquisas dedicado à divulgação de informações científicas verdadeiras
em Vacinas (NPV) da USP — uma parceria inusitada no sobre a covid-19, num esforço capitaneado pelo professor Paulo
tradicionalmente polido e bem comportado mundo da ciência. Lotufo, da Faculdade de Medicina da USP (que também se tornou
“A ciência está sendo demolida dia após dia no Brasil”, uma voz influente no Twitter). “Acho que muita gente pensou
desabafa Rafael Junior. “Cada dia que a gente tolera isso, mais como eu e começou a usar mais as redes a partir daí”, afirma
vidas são perdidas sem necessidade.” A boa notícia, segundo ele, Dourado, que agora tem mais de 60 mil seguidores no Twitter. “A
é que a resposta à campanha nesses primeiros dias foi gente recebe muito xingamento, muitas ameaças, mas também
extremamente positiva. “Estamos muito longe de cantar vitória, muitos agradecimentos.”
mas é um projeto que mostra a capacidade de mobilização da Faz parte do meu trabalho divulgar para a sociedade o
comunidade científica. Isso traz um pouco de esperança”, diz. A conhecimento que ela me paga para produzir"
USP, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(Fapesp), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência Marcio Bittencourt
(SBPC) e outras entidades também lançaram campanhas em O cardiologista Márcio Bittencourt, da Divisão de Clínica
defesa das vacinas nos últimos dias, buscando disseminar Médica do Hospital Universitário da USP, é outro que foi sugado
informações confiáveis e mensagens positivas para a população. pelo vácuo de informações científicas sobre covid-19 nas redes

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sociais. Assim como Dourado, até o início da pandemia ele só
usava o Twitter para discutir questões científicas com seus pares,
principalmente em inglês. A partir daí, incomodado com a falta de
informações no Brasil, passou a postar mais coisas em português,
e sua audiência cresceu rapidamente de algumas centenas para
alguns milhares de seguidores. “Nem foi só para enfrentar fake
news; foi para informar coisas que o público geral precisava ouvir,
mas que não estavam sendo informadas, inclusive por pessoas
bem intencionadas”, relata Bittencourt.
As postagens atraíram não só a atenção do público no
Twitter (onde ele tem 24 mil seguidores), mas também da
imprensa nacional e internacional, que passou a procurá-lo como
uma fonte de referência para questões clínicas e epidemiológicas
ligadas à covid-19. No dia em que o Instituto Butantan divulgou
os dados do estudo clínico da Coronavac (12 de janeiro),
uma postagem dele explicando a importância dos resultados
recebeu milhares de compartilhamentos e também ajudou a
pautar a cobertura da imprensa sobre o assunto. “Foi um divisor
de águas”, conta.
Construir uma reputação nas redes sociais é bem mais
difícil e consome muito mais tempo do que se pode imaginar à
primeira vista. Ainda que cada postagem se resuma a apenas uma
ou duas frases, para falar com propriedade sobre ciência é preciso
ler artigos, conferir dados, refazer contas, consultar referências e
pensar bastante antes de escrever ou dizer alguma coisa. Não
basta entender do assunto nem ter opiniões fortes. Também é
preciso interagir com as pessoas, ter estômago para ouvir críticas
infundadas, ofensas, e muita paciência, também, para responder
perguntas elementares ou desprovidas de embasamento
científico. Para um médico ou pesquisador que já vive
sobrecarregado de trabalho, pode ser difícil encontrar tempo e
disposição para mais essa atividade.
Bittencourt, porém, vê a comunicação como uma
obrigação profissional de todo pesquisador vinculado a uma
instituição pública — como ele. “Eu sou pago para produzir
conhecimento e para que esse conhecimento tenha impacto na
sociedade”, diz. “Considero que faz parte do meu trabalho,
portanto, divulgar para a sociedade o conhecimento que ela me
paga para produzir.” E se alguém usa esse conhecimento de
forma indevida, completa ele, também é obrigação da
comunidade científica fazer as correções necessárias. “Produzir
conhecimento não é só publicar artigos científicos, é também
traduzir esse conhecimento para a população.”
Tanto ele quanto Dourado aparecem numa lista de
divulgadores científicos que vêm se destacando no debate sobre
a pandemia do novo coronavírus no Twitter, segundo um
estudo feito pelo Science Pulse e o Instituto Brasileiro de Pesquisa
e Análise de Dados (IBPAD). No topo da lista, considerando todos
os critérios de avaliação, estão o biólogo Atila Iamarino (formado
pela USP), a jornalista Luiza Caires (editora de Ciência do Jornal
da USP), o epidemiologista Otavio Ranzani (da Faculdade de
Medicina da USP), a biomédica Mellanie Fontes-Dutra (da
UFRGS), e Bittencourt, em quinto lugar.

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demissões de ministros até resultados de estudos de vacina sendo
anunciados nas redes sociais pelas próprias fontes oficiais; então
cientistas e divulgadores de ciência precisam estar lá também,
não só para comunicar os acontecimentos que se relacionam com
a ciência de uma forma correta, e desfazer enganos, mas também
para dar o contexto e ajudar o público a entender o que significam
as notícias que estão recebendo”, avalia Luiza Caires, que tem 49
mil seguidores em seu perfil pessoal no Twitter, e ainda gerencia
a conta Ciência USP, com 46 mil seguidores.
“Finalmente os cientistas estão entendendo a
importância de ocupar esse espaço com informações corretas”,
diz a bioquímica, pesquisadora e divulgadora de ciência Laura de
Freitas, pós-doutoranda no Instituto de Química da USP e
apresentadora do canal Nunca Vi 1 Cientista do YouTube (com 83
mil inscritos), em parceria com a colega Ana Bonassa. “É um
movimento muito positivo nesse sentido, mas que poderia ser
mais intenso”, ressalta ela. “Ainda estamos muito aquém do que
precisaríamos ter.”
Atila Iamarino concorda. Mesmo com 1,1 milhão de
seguidores no Twitter e 1,3 milhão de inscritos no seu canal
pessoal do YouTube (além dos 3 milhões que acompanham o
canal Nerdologia, que ele apresenta desde 2010), e mais uma
coluna quinzenal no jornal Folha de S. Paulo, ele garante que não
chega nem perto de equilibrar o jogo contra a gigantesca,
¹ Mais detalhes sobre as métricas utilizadas para elaboração do produtiva, muito bem financiada e bem articulada rede de
ranking na seção Metodologia. desinformações que se instalou no Brasil nos últimos anos. “Não
² Os perfis foram classificados de acordo com as informações é nem de longe suficiente”, avalia ele.
disponibilizadas no campo de biografia dos usuários. Apesar do aumento no número de pesquisadores
• Para entender por que há perfis internacionais no cluster envolvidos com divulgação científica ser uma tendência positiva,
brasileiro, veja a explicação do slide 25 na Metodologia. a única maneira de enfrentar essa máquina de mentiras com
alguma chance de vitória, segundo Iamarino, é com um
Ter muitos seguidores nas redes sociais é um indicador engajamento muito mais expressivo no debate público por parte
importante da capacidade de um cientista influenciar o debate das instituições que esses pesquisadores representam —
público sobre temas científicos, mas não o único. A colaboração incluindo universidades e institutos públicos de pesquisa, como
com a imprensa é outra via importante, que vem sendo bastante Butantan e Fiocruz. “Nesse vácuo de decisões técnicas que
utilizada; e às vezes nem é preciso aparecer tanto. O biólogo estamos vivenciando, quem tem o papel mais importante são as
Helder Nakaya, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, por instituições. São elas que precisam ocupar esse espaço; e nesse
exemplo, gastou uma manhã de trabalho em dezembro para sentido elas ainda estão sendo muito omissas”, afirma o
produzir o vídeo a seguir, de três minutos, sobre o que significa o divulgador. “Não sou eu que deveria estar recebendo toda essa
“consenso científico”. A motivação: repetidas mensagens de atenção, são as instituições.”
parentes no grupo de WhatsApp da família questionando a Formado em biologia e doutor em microbiologia pela
segurança das vacinas e defendendo o “tratamento precoce” USP, Iamarino ganhou enorme projeção no início da pandemia,
defendido pelo governo federal, com base em alegações sem com uma série de vídeos que apresentavam os riscos da covid-19
fundamento feitas por uma minoria de cientistas negacionistas. e a necessidade de medidas urgentes contra a disseminação do
“Não é porque alguém é médico ou tem um título de doutorado vírus no Brasil. Vários desses vídeos tiveram mais de 1 milhão de
que tudo que ele fala está certo”, diz Nakaya. visualizações, e um deles chegou a 5,7 milhões. Todo esse
O vídeo não tem tantas visualizações no YouTube (2,3 mil), sucesso, segundo ele, não tem tanto a ver com o seu currículo de
mas viralizou no WhatApp e outras plataformas. “Fiquei muito cientista, mas com a experiência (e o público) que ele conquistou
feliz de ver as pessoas repassando o vídeo para responder às fake em mais de dez anos fazendo divulgação científica nas
news”, comemora Nakaya. plataformas digitais — cada uma das quais exige uma estratégia
Quando o governo estadual paulista ameaçou tirar recursos de comunicação diferente. A confiança do público nas redes
das universidades e da Fapesp no ano passado, também, vários sociais, segundo ele, é algo que precisa ser conquistado e
pesquisadores se engajaram numa campanha virtual em defesa cultivado a longo prazo. “Agora é um momento que as pessoas
dessas instituições, gravando depoimentos, compartilhando estão muito dispostas a ouvir e entender como a ciência
notícias, dialogando com parlamentares e escrevendo artigos na funciona”, diz. “Não podemos perder essa oportunidade.”
imprensa para alertar a população sobre o papel fundamental que “Acho que a comunidade científica percebeu duas coisas:
a ciência (financiada pela Fapesp e produzida pelas como é importante fazer essa ponte de comunicação com a
universidades) tem no desenvolvimento econômico, social e sociedade, e como é difícil fazer isso”, diz a presidente
ambiental do Estado. As propostas de corte, no fim das contas, do Instituto Questão de Ciência (IQC), Natalia Pasternak, que
foram revertidas. também é formada pela USP e também se tornou uma das vozes
“Foi um esforço que nasceu por questão de sobrevivência”, mais influentes da ciência no decorrer da pandemia, tanto nas
diz a professora Alicia Kowaltowski, do Instituto de Química da redes sociais quanto na imprensa. Segundo ela, está na hora de
USP, que ajudou a organizar o movimento e publicou vários as instituições de pesquisa começarem a tratar a comunicação da
artigos sobre o tema na imprensa. Desde 2019 ela é colunista do ciência como uma atividade nobre, que precisa ser feita de forma
jornal digital Nexo, onde escreve sobre ciência (por prazer) e profissional, “e não como um hobby que você pratica nas horas
política científica (por obrigação). “Se não fizermos isso não vai vagas”. “A comunicação pública da ciência precisa ser valorizada
ter mais ciência no Brasil e a gente não vai ter futuro para o País.” como um objetivo das universidades, tanto quanto o ensino e a
Avanço importante, mas ainda insuficiente pesquisa”, conclui.
“As redes sociais, o Twitter em especial, são muito JORNAL DA USP
velozes na circulação de informações. Hoje temos desde

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