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DOI: 10.1590/1413-81232022275.

24092021 1849

Fake news e hesitação vacinal no contexto da pandemia

temas livres free themes


da COVID-19 no Brasil

Fake News and vaccine hesitancy in the COVID-19 pandemic


in Brazil

Cláudia Pereira Galhardi (https://orcid.org/0000-0002-3047-9222) 1


Neyson Pinheiro Freire (https://orcid.org/0000-0002-9038-9974) 2
Maria Clara Marques Fagundes (https://orcid.org/0000-0003-4050-5655) 3
Maria Cecília de Souza Minayo (https://orcid.org/0000-0001-6187-9301) 4
Isabel Cristina Kowal Olm Cunha (https://orcid.org/0000-0001-6374-5665) 2

Abstract This paper presents the evolution Resumo Este artigo apresenta a evolução das no-
of fake news disseminated about vaccines and the tícias falsas disseminadas a respeito das vacinas e
SARS-CoV-2 virus and its adverse impacts on the do vírus Sars-CoV-2 e os impactos negativos desse
current Brazilian health crisis. This quantitative, fenômeno sobre a crise sanitária que o Brasil atra-
empirical study is based on the notifications re- vessa. Trata-se de um estudo empírico quantita-
ceived by the Eu Fiscalizo app, through which the tivo, realizado a partir das notificações recebidas
Instagram, Facebook, Twitter, and WhatsApp pla- pelo aplicativo Eu Fiscalizo, por meio do qual foi
tforms were identified as the principal means for identificado o predomínio das plataformas Ins-
disseminating and sharing rumors and misinfor- tagram, Facebook, Twitter e WhatsApp como os
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Laboratório de Pesquisa mation about COVID-19. We observed large-sca- principais meios de difusão e compartilhamento
em Comunicação e Saúde, le circulation of fake news about vaccines directly de boatos e desinformações acerca da COVID-19.
Instituto de Comunicação related to the Brazilian political polarization, Foi observada a circulação em escala de fake news
e Informação Científica
e Tecnológica em Saúde which became prevalent four months after the first sobre vacinas, diretamente relacionadas à polari-
(LACES/ICICT/FIOCRUZ). COVID-19 case was recorded in the country. We zação política brasileira, tornando-se prevalente
Av. Brasil 4036, salas 512 can conclude that this phenomenon was crucial quatro meses depois de ser registrado o primeiro
e 504, Campus Expansão
da Fiocruz, Manguinhos. in discouraging the adherence of segments of the caso de COVID-19 no Brasil. Conclui-se que o fe-
21041-361 Rio de Janeiro Brazilian population to social distancing and vac- nômeno colaborou para desestimular a adesão de
RJ Brasil. claudia.galhardi@ cination campaigns. parcelas da população brasileira às campanhas de
icict.fiocruz.br
2
Grupo de Estudos e Key words Fake news, Pandemic, COVID-19, isolamento social e de vacinação.
Pesquisa em Administração Vaccines, Vaccine hesitancy Palavras-chave Fake news, Pandemia, CO-
dos Serviços de Saúde VID-19, Vacinas, Hesitação vacinal
e Gerenciamento de
Enfermagem, Universidade
Federal de São Paulo. São
Paulo SP Brasil.
3
Grupo de Pesquisa
Maternidade, Saúde da
Mulher e da Criança,
Universidade Federal
Fluminense. Niterói RJ
Brasil.
4
Escola Nacional de Saúde
Pública Sergio Arouca,
Fundação Oswaldo Cruz.
Rio de Janeiro RJ Brasil.
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Galhardi CP et al.

Introdução onde as pessoas se encontram, interagem, traba-


lham e se divertem de verdade, criando relaciona-
O fenômeno da desinformação mentos pautados por afinidades políticas, artís-
na pandemia da COVID-19 ticas, profissionais, religiosas e ideológicas, entre
outras. Como acontece na realidade, não rara-
As fake news sobre pandemia, vacinas e saúde mente a desinformação pode surgir nesses espaços
pública encontram terreno fértil para se proli- de maneira incidental, até pela falta de qualidade
ferar no Brasil, diante de uma população hiper- da própria informação. Não obstante, é cada vez
conectada1 cuja maioria não sabe reconhecer as mais comum a produção e distribuição em escala
diferenças lógicas entre notícias falsas ou verda- de notícias e mensagens falsas de maneira inten-
deiras2. O simples exercício de verificar a fonte da cional, com o propósito de enganar, levar vanta-
informação parece um obstáculo intransponível gem e causar dolo, por razões políticas, financeiras
para extensas parcelas da população. Principal- ou ideológicas10. Nesse ponto, o fenômeno rompe
mente quando se trata de curas milagrosas, acon- a esfera civil e invade a esfera criminal11.
tecimentos fantasiosos e teorias conspiratórias a
respeito de vacinas, o vácuo provocado pela pre- Tendência invertida
cariedade da educação e pela ausência do Estado
abre espaço para que sujeitos e instituições mal O Programa Nacional de Imunização (PNI),
-intencionados plantem dúvidas no consciente coordenado pelo Ministério da Saúde (MS), em
coletivo da população e a leve ao erro de questio- cooperação com as secretarias estaduais e mu-
nar consensos científicos incontroversos3,4. nicipais, está hoje entre os mais abrangentes do
Esse processo se tornou especialmente peri- mundo. O Brasil é um dos países que oferece o
goso no decurso da maior pandemia dos últimos maior número de vacinas de forma gratuita: 15
100 anos. Desde que a COVID-19 se instalou no para crianças, nove para adolescentes e cinco
Brasil, em março de 2020, a produção em escala para adultos e idosos. Os dados recentes, porém,
de notícias falsas sobre o novo coronavírus tor- revelam uma inversão na tendência histórica de
nou difícil para a população em geral encontrar maior aceitação das vacinas no país.
notícias oficiais e verdadeiras acerca do assunto. Ao longo do século XX, a população bra-
Inclusive, o volume exponencial de fake news a sileira passou da desconfiança e hostilidade às
respeito do vírus Sars-CoV-2 levou a Organiza- vacinas a uma forte adesão, associada ao sucesso
ção Mundial da Saúde (OMS) a cunhar o termo das campanhas de erradicação de doenças como
infodemia5, para designar uma verdadeira epide- poliomielite e varíola, além de reduzir drastica-
mia de desinformação, deliberada ou incidental, mente a incidência de outras enfermidades imu-
que contribuiu significativamente para aumentar nopreveníveis, como sarampo, tétano, difteria e
os riscos de contágio, estimular o afrouxamento rubéola12.
do isolamento social e promover desconfiança Embora o termo “vacina” tenha surgido qua-
em relação às vacinas. se um século antes, com os estudos do médico
A infodemia acontece quando informações inglês Edward Jenner sobre o efeito protetivo da
e orientações que contrariam o conhecimento varíola bovina (Variolae vaccinae) sobre a saúde
científico são amplamente difundidas, afetando dos camponeses, que se tornavam imunes à varí-
a resposta a uma crise sanitária6. Por se tratar ola, só no final do século XIX elas passaram a ser
de um fenômeno relativamente recente, existem produzidas em massa, emergindo como instru-
poucas investigações empíricas em larga escala mento de combate global às doenças13.
sobre a difusão da desinformação ou suas origens No Brasil, a chegada da vacinação massiva es-
sociais7. Não obstante, sabe-se que o termo fake teve associada a medidas higienistas que reconfi-
news é utilizado livremente para indicar tanto guraram a malha urbana das cidades e a políticas
boatos quanto informações falsas apresentadas sanitárias coercitivas, como a vacinação forçada,
sob o formato de “notícia”, e circulam principal- inclusive com autorização para adentrar os do-
mente nas redes sociais8. É fundamental, porém, micílios. Em 1904, a vacinação obrigatória con-
preservar a distinção entre informações mera- tra a varíola foi o estopim de um levante popular
mente mal apuradas ou sem embasamento cien- na então capital da República, o Rio de Janeiro, o
tífico e aquelas deliberadamente falsas, divulga- que ficou mundialmente conhecido como a Re-
das de forma intencional para atingir interesses volta da Vacina. Entretanto, a própria gravidade
de determinados indivíduos ou grupos9. da doença e os surtos que assolavam o país na-
As redes sociais funcionam atualmente como quele período histórico fizeram com que a popu-
uma extensão do ser humano no espaço digital, lação não demorasse a aderir à vacinação14.
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Enquanto no início do século XX a vacina Levantamento realizado em 22 de janeiro de
estava associada à violência do Estado, ao final 2021, com brasileiros das classes A, B e C, reve-
daquele século a vacinação beirava ao consenso lou que, mesmo diante da desinformação sobre
nacional, associada a bem-sucedidas ações pu- o tema, a maioria (72%) pretende tomar a vacina
blicitárias, com campanhas festivas e atraentes, contra a COVID-19 e 43% declararam não ter
tendo como símbolo maior o personagem Zé preferência por nenhum laboratório e que toma-
Gotinha. riam qualquer uma que estivesse aprovada pelas
Atualmente, uma a cada cinco fake news que autoridades de saúde17. Percentual significativo,
circulam no Brasil é sobre vacinas. Notícias falsas porém, declarou preferência por algum laborató-
a respeito de imunizantes, com dados estatísticos rio, sendo 15% pela vacina de Oxford, desenvol-
distorcidos acerca de contágio, óbito, cura e mé- vida pela farmacêutica AstraZeneca; 12%, pela
todos caseiros de prevenção e cura da COVID, vacina da Pfizer/BioNTech; 6% citaram a Coro-
predominantemente usam o nome da Fiocruz naVac, e 4% a vacina indiana Covaxin.
como fonte da informação, com o intuito deli- É importante ressalvar, no entanto, que a não
berado de defraudar o nome da instituição e dar vacinação nem sempre resulta de hesitação vaci-
confiabilidade ao engano, de maneira criminosa nal, definida como atraso ou recusa deliberada da
e proposital1. vacina16. Estudo empírico com bebês brasileiros
em situação de atraso vacinal em Cuiabá (MT)
Hesitação vacinal aponta a indisponibilidade da vacina na unida-
de de referência como causa, de acordo com os
O próprio sucesso do PNI é apontado, para- responsáveis. Fatores demográficos, como idade
doxalmente, como uma das causas de sua crise, da mãe ou do cuidador primário, também estão
porque à medida que as doenças passam a não associados à propensão a aderir ou não à vaci-
circular mais, tornam-se desconhecidas e há uma nação6.
redução no engajamento da população15. Cria-se,
assim, terreno fértil para a hesitação vacinal, ar-
ticulada, no momento atual, por meio das redes Percurso metodológico
sociais.
Durante a pandemia, as declarações públicas Este artigo remete a um estudo empírico quanti-
do presidente Jair Bolsonaro contribuíram para tativo sobre o fluxo de desinformação produzida
legitimar a hesitação vacinal, dando maior visibi- e disseminada a respeito das vacinas e do vírus
lidade e alcance a seus argumentos. Os próprios Sars-CoV-2, notificada por usuários do aplicati-
indivíduos hesitantes, embora articulados sobre- vo Eu Fiscalizo.
tudo por meio de redes sociais, não são um gru- A criação da ferramenta fez parte do pós-
po homogêneo. Podem recusar apenas uma ou doutoramento da pesquisadora Claudia Galhar-
diversas vacinas, por motivos variados, entre os di, na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP),
quais se destacam as crenças de que: a) a vacina supervisionado por Minayo e apoiado pela Fun-
contém elementos tóxicos; b) o sistema imunoló- dação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
gico da criança é imaturo para lidar com tantas Janeiro (Faperj)18.
vacinas; c) as vacinas são parte de uma conspi- O aplicativo foi desenvolvido para que a
ração comercial da indústria farmacêutica; d) a população pudesse detectar, avaliar e notificar
imunidade natural é melhor; e) a maior parte das conteúdos impróprios veiculados pelos canais
doenças é inofensiva para a maioria das crianças; de comunicação e entretenimento: TV aberta co-
f) as doenças imunopreveníveis se reduziram pela mercial, TV por assinatura, serviço de streaming,
melhoria das condições sanitárias, e não por causa jogos eletrônicos, cinema, espetáculos, publicida-
da vacinação; g) a liberação de vírus por dejetos, des, redes sociais, sites e aplicativo de mensagens.
após a administração de uma vacina de vírus vivo, No intuito de esclarecer e se contrapor às fake
pode levar ao adoecimento16. news disseminadas sobre o novo coronavírus e
No caso da COVID-19, a crença de que as denunciadas no Eu fiscalizo, tem sido possível
vacinas não foram suficientemente estudadas, contar com a colaboração das pneumologistas e
tendo em vista o tempo rápido de seu desenvol- pesquisadoras da Escola Nacional de Saúde Pú-
vimento, é um dos fatores associados à hesitação blica (ENSP) Margareth Dalcolmo19 e Patrícia
vacinal, ao que se acrescentam a desconfiança Canto20, e do Núcleo de Pesquisa em Jornalismo
quanto à origem da vacina e fatores políticos-i- e Comunicação (NUJOC) da Universidade Fede-
deológicos. ral do Piauí.
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Galhardi CP et al.

A parceria estabelecida entre o Eu Fiscalizo, investigação, participaram dois colaboradores,


da Fiocruz, e o Núcleo de Pesquisa em Jornalis- que analisaram e codificaram as unidades de aná-
mo e Comunicação (NUJOC) tem colaborado lise utilizando a porcentagem reduzida do total
para diminuir a desinformação e contribuído da amostra (20%)23.
para que cidadãos e cidadãs obtenham esclareci- O nível de consenso alcançado entre os codi-
mentos, de forma rápida, a respeito das formas ficadores foi “concordância muito boa”, validan-
cientificamente corretas de encarar a pandemia do os dados apresentados na investigação.
de COVID-19.
Neste estudo, trabalhou-se com uma amostra
de 253 checagens sobre vacina e COVID-19. Resultados
É preciso ressaltar que, ao desenvolver uma
proposta de estudo e no decorrer das fases de Na medida do avanço da pandemia, a produção
uma pesquisa, o investigador trabalha com a de notícias falsas sobre as vacinas se tornou cada
utilidade dos métodos disponíveis, em face às in- vez mais predominante entre a população brasi-
formações imprescindíveis para se cumprirem os leira, quando comparadas às notícias falsas sobre
objetivos do trabalho21. outros temas concernentes à saúde pública. No
Como técnica de investigação, foi utilizada a Gráfico 1, é possível observar o aumento desse
análise de conteúdo22 quantitativa, aplicada nas volume.
checagens sobre vacinas e COVID-19, entre 26 de Considerando a abordagem geral sobre vaci-
março de 2020 e 31 de março de 2021 (Figura 1). nas, sem distinção de nenhuma delas, pode-se
Cabe ressaltar que o teste do coeficiente de observar no Gráfico 2 quais foram as principais
kappa de Cohen foi aplicado para assegurar a plataformas utilizadas para gerar descrédito a
qualidade dos dados analisados. Nessa etapa da respeito dos imunizantes.

P3
P2
P1 Envio das
Compilação do
Recepção das notificações para
material por
notificações/ app esclarecimentos e
categoria
checagem de fatos

P4 P5
P6
Operacionalização Elaboração do livro
Seleção da categoria
das variáveis/ de códigos e ficha de
a analisar
noticias checadas análise

P9
P7
P8 Check-up da
Pilotagem do
Codificação da confiabilidade
processo de
amostra do processo de
codificação
codificação

P11
P10 Elaboração
Análise dos dados do informe da
investigação

Figura 1. Desenho metodológico de análise.

Fonte: Autores.
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100,00%

75,00%

54,50%
48,40%
50,00%
40,00%
33,30% 33,30%

25,00%
15,00%
10,30%
8,30%
5,60%

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Se

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Gráfico 1. Proporção de notícias falsas disseminadas nas redes sociais e aplicativos de mensagens sobre vacinas,
em relação ao total de notícias falsas verificadas no app Eu Fiscalizo, de 26 de março de 2020 a 31 de março de
Gráfico 1. Proporção de notícias falsas disseminadas nas redes sociais e aplicativos de mensagens sobre
2021.
vacinas, em relação ao total de notícias falsas verificadas no app Eu Fiscalizo, de 26 de março de 2020 a
31 Fonte:
de março de 2021.
Autores.

Fonte: Autores.

Facebook
WhatsApp
Instagram
Sites
Twitter

Gráfico 2. Meios digitais mais utilizados para divulgação de conteúdo desinformacional sobre as vacinas, de 26
de março de 2020 a 31 de março de 2021.

Fonte: Autores.
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Galhardi CP et al.

Sem dúvidas, o imunizante mais vilipendia- Da mesma sorte, a vacina da Pfizer também
do foi a CoronaVac. No Gráfico 3, nota-se que se tornou emblema das notícias falsas sobre efei-
meios foram mais utilizados para a disseminação tos adversos absolutamente sem relevância esta-
de notícias falsas sobre o imunizante produzido tística. As plataformas digitais a seguir predomi-
pelo Butantan em parceria com a farmacêutica naram como fonte de desinformação sobre esse
Sinovac. imunizante (Gráfico 5).
Não obstante, outros imunizantes também
sofreram com a onda de fake news e desinforma-
ção. A vacina produzida pela Fiocruz em parceria
com a Universidade de Oxford também foi ataca-
da nas plataformas digitais (Gráfico 4).

Facebook
WhatsApp
Instagram
Sites
Twitter

Gráfico 3. Plataformas mais utilizadas para divulgação de conteúdo desinformacional sobre o imunizante
CoronaVac, de 26 de março de 2020 a 31 de março de 2021.

Fonte: Autores.

Facebook
Sites
Instagram

Gráfico 4. Meios digitais mais utilizados para divulgação de conteúdo desinformacional sobre o imunizante
AstraZeneca, de 26 de março de 2020 a 31 de março de 2021.

Fonte: Autores.
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Facebook
Sites
Instagram

Gráfico 5. Meios digitais mais utilizados para divulgação de conteúdo desinformacional sobre o imunizante
Pfizer, de 26 de março de 2020 a 31 de março de 2021.

Fonte: Autores.

Discussão de superfaturamento na construção de hospitais


de campanha e críticas do presidente às medidas
Para compreender o cenário da hesitação vacinal, de isolamento social preconizadas por seu pró-
vale a pena recapitular a maneira como o Brasil prio ministro da Saúde. A polarização passou a
lidou com a pandemia no princípio. Diante da alimentar a crescente circulação de notícias falsas
velocidade do contágio, com base na experiência acerca da implementação das medidas de enfren-
da China e dos países da Europa, as restrições à tamento à COVID-1924.
circulação foram estabelecidas gradualmente, O negacionismo e a politização da vacina25,
seguindo diretrizes da OMS e do Ministério da a partir dos posicionamentos do presidente Jair
Saúde. Bolsonaro, contribuíram para confundir a popu-
O Distrito Federal foi a primeira unidade da lação e aumentar a hesitação vacinal. O presiden-
federação a estabelecer medidas de distancia- te afirmou que não iria se vacinar, ao contrário
mento social, ao interromper as aulas na rede de líderes dos mais diversos países, que foram os
pública em 11 de março de 2020 e decretar a sus- primeiros a dar o exemplo em suas campanhas.
pensão das atividades do comércio. Ações simila- Bolsonaro alardeou que a vacina não tinha eficá-
res foram tomadas em estados como São Paulo, cia comprovada, que a vacinação não seria obri-
16 de março, e no Rio de Janeiro, 17 de março gatória e ressaltou possíveis efeitos colaterais.
– seguidos pelos demais. Nesse mesmo dia 17 de O presidente ainda desprezou a CoronaVac,
março, o Brasil registrou a primeira morte por o imunizante fabricado pelo Instituto Butantan
COVID-19. Naquele momento, havia 301 casos em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac,
da doença confirmados no país, mas a curva de travando uma disputa política com o governador
casos e de óbitos seguiu aumentando de forma de São Paulo, João Doria, e desautorizando o mi-
avassaladora. nistro da Saúde, Eduardo Pazuello, que anuncia-
Por parte do Ministério da Saúde, as expli- ra a compra de cerca de 46 milhões de doses da
cações públicas dadas diariamente pelo então CoronaVac, desde que fosse efetivada a aprova-
ministro Luiz Henrique Mandetta e seus repre- ção pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária
sentantes sublinhavam a necessidade de reforçar (Anvisa).
o isolamento, de modo a não saturar o Sistema Esse comportamento do principal líder po-
Único de Saúde (SUS). Ao mesmo tempo, tra- lítico do país levou à discriminação de vacinas
vava-se uma guerra entre os governadores e o com base em questões político-ideológicas, dei-
presidente Jair Bolsonaro, movida a acusações xando flagrante a xenofobia de parte significati-
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Galhardi CP et al.

va da população em relação ao povo chinês. Em atingir entre mil a 100 mil usuários7. Contudo,
pelo menos 70% dos municípios brasileiros fo- as redes sociais não são, por si só, projetadas para
ram registrados casos de pessoas que queriam es- esse fim. Os algoritmos não são desenhados espe-
colher a marca das vacinas. E 53,1% das pessoas cificamente para desacreditar vacinas. Acontece
se recusavam a tomar justamente a Coronavac26. que conspirações e fantasias provocam emoções
Nesse cenário nublado por dúvidas e disputas fortes e geram audiência, cliques e engajamento,
políticas, até mesmo a primeira pessoa a ser vaci- moedas valiosas nos dias de hoje3.
nada contra a COVID-19 no Brasil, a enfermeira
paulistana Mônica Calazans, de 54 anos, tornou-
se alvo de fake news27. O governo paulista aplicou Considerações finais
a primeira dose da CoronaVac minutos após a
Anvisa aprovar o uso emergencial da vacina, com O processo saúde-doença, na perspectiva antro-
enorme repercussão midiática. Nas horas seguin- pológica, destaca o diálogo entre biologia e con-
tes, contudo, começou a circular nas redes sociais dição social do indivíduo. Elementos inerentes a
que a enfermeira tinha participado dos estudos todos os seres humanos, como o reflexo de suc-
do imunizante e portanto já estava imunizada. ção do recém-nascido, escapam ao domínio dos
Ela de fato participou como voluntária da tercei- costumes. O processo saúde-doença, por sua vez,
ra fase de estudos clínicos da vacina, mas não re- engloba fatores biológicos, psíquicos e sociais,
cebeu o imunizante naquele momento. Calazans sendo construído dentro de condições sanitárias
fazia parte do grupo controle que recebe placebo. e de vida específicas, singularidades subjetivas e
Outro episódio que marcou o início da vaci- de um sistema de crenças29.
nação no país foi o caso da enfermeira Nathanna Assim, a adesão à vacinação está sujeita ao
Faria Ceschim, demitida da Santa Casa de Mi- imaginário e a mecanismos sociais que influen-
sericórdia de Vitória (ES) depois de postar um ciam, de forma decisiva, a propensão de uma
vídeo nas redes sociais debochando da Corona- dada comunidade a ser vacinada ou não. Entre os
Vac. No vídeo, que viralizou, Nathanna, dentro múltiplos fatores que afetam tal decisão, desta-
da Santa Casa e sem usar máscara, disse: “Tomei cam-se a confiança na importância, segurança e
(a vacina) por conta que quero viajar, e não para eficácia das vacinas, bem como a compatibilidade
me sentir mais segura. Uma vacina que dá 50% com os valores religiosos do indivíduo – aspec-
de segurança para mim não é uma vacina. Tomei tos que o Vaccine Confidence Index (VCI) bus-
foi água”28. ca captar. Países que têm maiores percentuais de
Em janeiro de 2021, quando o país contabi- concordância com afirmações de que vacinas são
lizava mais de 200 mil mortos pela COVID-19, seguras, importantes e eficazes apresentam maior
as informações duvidosas em torno da vacinação percentual de pessoas que relatam ter vacinado
seguiam agravando a propagação do vírus no seus filhos30. A confiança nas vacinas é maior na
Brasil, confundindo e incentivando os cidadãos a África, na América Latina e no subcontinente in-
ignorarem as recomendações dos órgãos oficiais. diano, sugerindo que a convivência recente com
Entre o início da vacinação contra a COVID-19 doenças imunopreveníveis atua como fator de
até abril de 2021, mais de 1,5 milhão de pessoas adesão.
não voltaram para tomar a necessária segunda O Brasil historicamente apresenta muita con-
dose. Os principais motivos levantados em estu- fiança da população nas vacinas, mensurada pelo
dos para tamanho absenteísmo foram a crença VCI. Entretanto, a adesão vem caindo nos últi-
em informações falsas sobre os imunizantes, o mos anos. Em novembro de 2015, mais de 90%
medo de reações adversas, a escassez de vacinas, dos entrevistados concordavam plenamente com
a confusão sobre o intervalo das doses e a dificul- a assertiva “vacinas são importantes”. Em novem-
dade de acesso às salas de vacinação7. bro de 2018, o percentual caiu para 80-89,9%. A
O infodêmico de notícias falsas atinge massas concordância plena com as assertivas “vacinas
populacionais que apresentam pouca resistên- são seguras” e “vacinas são eficazes” se reduziram
cia e não conseguem se defender da enxurrada ainda mais no curso da pandemia, de 70-79,9%
de desinformação que recebem diariamente pelo para 60-69,9%24. Esse processo de deterioração
celular. Segundo dados do Massachusetts Ins- da confiança continua e atingiu patamares iné-
titute of Technology, fake news insurgem com ditos, sobretudo por causa de uma novidade: o
potencial 70% maior de viralizar do que notícias infodêmico de notícias falsas que atinge a socie-
verdadeiras. Enquanto uma postagem verdadeira dade de maneira acachapante por meio de dispo-
alcança em média mil pessoas, uma falsa pode sitivos eletrônicos.
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Ao analisar o fenômeno das fakes news em dados estudos longitudinais, assim como moni-
saúde durante a pandemia, é preciso ressaltar que toramentos contínuos sobre o ecossistema de de-
a importância de que sejam realizados e aprofun- sinformação nas diversas áreas de conhecimento.

Colaboradores Referências

CP Galhardi, NP Freire, MCM Fagundes, MCS 1. Galhardi CP, Freire NP, Minayo MCS, Fagundes
MCM. Fato ou fake? Uma análise da desinformação
Minayo e ICKO Cunha pesquisaram a literatura,
frente à pandemia da COVID-19 no Brasil. Cien Sau-
participaram da concepção e do delineamento do de Colet 2020; 25(2):4201-4210.
estudo. CP Galhardi e NP Freire coletaram da- 2. Empresa Kaspersky. 62% dos brasileiros não sabem
dos e fizeram a análise estatística. CP Galhardi, reconhecer uma notícia falsa [Internet]. 2020. [acessa-
NP Freire, MCM Fagundes e MCS Minayo ela- do 2020 Jul 18]. Disponível em: https://www.kasper-
sky.com.br/about/press-releases/2020_62-dos-brasi-
boraram o manuscrito. Todos os autores revi-
leiros-nao-sabem-reconhecer-uma-noticia-falsa
saram criticamente o texto quanto ao conteúdo 3. Empoli G. Os engenheiros do caos. São Paulo: Vestígio;
intelectual, participaram da revisão dos dados e 2019.
do conteúdo intelectual até a versão final do ma- 4. Mansur V, Guimarães C, Carvalho MS, Lima LD, Coe-
nuscrito. Todos também tiveram acesso total aos li CM. Da publicação acadêmica à divulgação científi-
ca. Cad Saude Publica 2021; 37(7):e00140821.
dados do estudo e tiveram responsabilidade pela
5. World Health Organization (WHO). Coronavi-
decisão de submetê-lo para publicação. rus disease 2019 (COVID-19): Situation Report – 82
[Internet]. 2019. [acessado 2021 Out 18]. Disponí-
vel em: https://apps.who.int/iris/bitstream/hand-
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6. Smith TC. Vaccine rejection and hesitancy: a review
and call to action. OFID 2017; 4(3):ofx146.
7. Vosoughi S, Roy D, Aral S. The spread of true and false
news online. Science 2018; 359(6380):1146-1151.
1858
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